sexta-feira, 7 de maio de 2010
Pequenas alegrias urbanas (87) -- As notas
Na manhã em que perderia a perna esquerda, João Amaro, embora depois não se lembrasse, ainda empurrou com ela para fora de casa um folheto, ao sair para o trabalho. Depois, já na rua, com a mesma perna, espantou um cachorro que ameaçava mordê-lo e, um pouco mais adiante, chutou com precisão uma tampinha. Talvez pelo sol, talvez pela brisa de outono, talvez pelo olhar promissor de uma colega de escritório na véspera, ele caminhava mais leve nesse dia, e o sorriso, habitual nele, estava mais aberto do que nunca. A caminho do metrô, olhou para o chão e viu, sopradas pelo vento na sua direção, três notas. Apanhou-as, calculando rapidamente que um operário comum precisaria trabalhar no mínimo dois dias para ganhar aquilo, e pensou que o dinheiro vinha na hora certa, porque com ele poderia convidar a colega de escritório para um almoço numa lanchonete que tinha sido aberta naquela semana, perto de onde os dois trabalhavam. Estava começando a atravessar a rua quando alguém gritou "ei". Imaginando com pesar que poderia ser o dono das notas querendo se reapossar delas, olhou para trás e foi apanhado pelo ônibus que tinha saído bruscamente do ponto e para o qual um homem aflito, na calçada, havia tentado chamar sua atenção.
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