terça-feira, 22 de junho de 2010
Lírica (116) - O sopro
Da outra calçada, a mulher soprou um beijo para ele e sorriu. Era meio-dia, como o sol e as doze badaladas da catedral anunciaram. Ele quis atravessar logo para o outro lado, mas por dois minutos os ônibus todos, e os carros, e as motos obstinaram-se em impedir que pusesse os pés na rua. Esses dois minutos bastaram para que ele não falasse com ela, não lhe conhecesse o nome e não a visse, nem naquele dia nem nos cinquenta anos seguintes. E em todo esse tempo não houve um dia sequer em que ele não reconstruísse laboriosa e dolorosamente aquela cena: o sol pleno, o alarido grave dos sinos sacudindo a catedral, a furiosa balbúrdia do trânsito, incitada pelo destino, e aquele beijo, aquele sopro que arrepiou todos os seus sentidos por cinquenta anos, até seu último suspiro.
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