Uma das mais notáveis histórias curtas de Isaac Bashevis Singer (Nobel de Literatura de 1978) é "O abatedor". Nesse conto de onze páginas, Singer discute, quase com a mesma intensidade atingida por Dostoiévski em "Crime e castigo", o problema da existência de Deus e como a resposta, afirmativa ou negativa, afeta a consciência do homem. Na obra de Dostoiévski, o assassino Raskolnikov raciocina que, se não existe Deus, tudo é lícito, argumento retomado por Woody Allen em alguns dos seus mais significativos filmes. A história de "O abatedor" é simples, se assim se pode considerar um enredo cuja força está em um dilema de consciência que atormenta um homem, Yoineh Meir. Destinado a ser rabino, mas preterido, oferecem-lhe as funções de abatedor ritual da cidade. Ele não quer fazer isso. Tem piedade pelos animais, compadece-se com seus sofrimentos, mas é convencido, aos poucos, a resignar-se. O principal argumento que lhe apresentam é o de que Deus disse ao homem que ele deveria matar seus rebanhos e manadas. Não foram ensinados a Moisés, no monte Sinai, os modos de matar e abrir o animal para livrá-lo de impurezas? O corolário desse argumento, com o qual acabam por demover Yoineh Meir de seus impulsos de caridade, é: pode um homem ser mais compassivo que Deus? Yoineh debate-se profundamente com essa questão. O que lhe acontece no final é uma curiosidade que, além da excelência do texto de Singer, constitui um convite ao leitor para, se ainda não conhece o conto, conhecê-lo.
("47 contos de Isaac Bashevis Singer", tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras.)
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