terça-feira, 30 de junho de 2020
O dom
Se nos exigirem a beleza e não pudermos dá-la, agradeçamos ainda assim a quem nos houver considerado dignos talvez desse dom que algum deus, para compensar-nos por nossa pequenez e miséria, nos deixa às vezes desfrutar um pouco, não mais que um pouco, para não morrermos consumidos pelo êxtase de nos acharmos também divinos.
Única
Que a perfeição, se nos vier, seja tão cabal e definitiva que não queiramos nem tenhamos forças para buscar outra. Que seja única, para que não nos ridicularizem por ousarmos comparar estrelas.
Nem tanto
Sabe-se que Deus escreve certo por linhas tortas, mas não há prova nenhuma de que seja um sonetista.
segunda-feira, 29 de junho de 2020
A acusação
Tinha má fama. Era um tipo esquisito, dostoievskiano, em cujo rosto se poderiam encontrar sem esforço sinais de uma dezena de perversões, embora a única acusação que lhe fizessem fosse a de escrever sonetos.
Autoautoajuda
Era um desses livros de autoajuda formidáveis.
Transformou seu autor, um pobretão,
Num dos dez milionários mais notáveis.
Transformou seu autor, um pobretão,
Num dos dez milionários mais notáveis.
Primícias
São tocares ainda tímidos, roçares cautelosos. Não posso garantir, mas a Morte talvez esteja começando a flertar comigo. Se puder, vou fazer-me de difícil.
Cotação do dia
Sinto-me como se fosse
um desses personagens que no teatro
nunca chegam ao terceiro ato.
um desses personagens que no teatro
nunca chegam ao terceiro ato.
domingo, 28 de junho de 2020
Soneto do tempo que virá
Quando tiver já todo transcorrido
O tempo áureo de nossa mocidade,
Em que sonhar nos era permitido
E em que críamos na felicidade.
Quando o que foi melhor já tiver sido
E não houver a possibilidade
De um novo rumo, de um novo sentido
E de nenhuma nova realidade.
Quando soubermos que não há virtude
Que possa substituir a juventude
E que sempre esta, só, nos fez viver,
Que estejamos os dois bem preparados.
Terão início os tempos malfadados
De sofrer, de chorar e de morrer.
O tempo áureo de nossa mocidade,
Em que sonhar nos era permitido
E em que críamos na felicidade.
Quando o que foi melhor já tiver sido
E não houver a possibilidade
De um novo rumo, de um novo sentido
E de nenhuma nova realidade.
Quando soubermos que não há virtude
Que possa substituir a juventude
E que sempre esta, só, nos fez viver,
Que estejamos os dois bem preparados.
Terão início os tempos malfadados
De sofrer, de chorar e de morrer.
Hoje na revista Rubem
Conto uma história tristinha de pai e filho.
https://rubem.wordpress.com/2020/06/28/como-vao-indo-as-coisas-la-em-casa-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2020/06/28/como-vao-indo-as-coisas-la-em-casa-raul-drewnick/
Honra ao demérito
Ainda estou vivo, embora não pareça.
Ouço ainda aquela antiga melodia
Que me fala de amor e de alegria.
Ainda estou vivo, embora não mereça.
Ouço ainda aquela antiga melodia
Que me fala de amor e de alegria.
Ainda estou vivo, embora não mereça.
Outra forma
Bem-aventurados os românticos, que vivendo em meio tantas pragas, pestes e calamidades, podiam buscar a morte nos lábios de uma virgem e nos braços fatais do amor.
Concisão
Petrus Paralelepipedus, o maior concretista grego, tornou-se mundialmente conhecido por suas frases lapidares e por seus poemas de uma palavra só (geralmente pedra).
Desvio
No meio de uma jornada em busca do autoconhecimento, ele se sentiu tão entediado que hoje pensa em dedicar-se ao estudo de um personagem mais interessante. Não sabe ainda quem será. Provavelmente Woody Allen.
Excelência
Os livros de autoajuda e os exercícios na academia devolveram-lhe o amor-próprio e a confiança. Vive bem como nunca e não teme o futuro. Quando chegar o dia, há de ser um defunto especial.
Arquétipo
Até hoje a imagem que se costuma ter do poeta é a do jovem de cabelos longos que, destruído por um amor impossível, quer tudo, menos livrar-se desse destino.
Vozes
Para um poeta, falar de amor deve ser sempre como se fosse a primeira vez, ou como há de ser a última.
sábado, 27 de junho de 2020
Item básico
No currículo de um poeta, se ele precisar fazer um, há de haver uma referência, ainda que mínima, a uma dessas loucuras mansas sem as quais um poema pode se tornar tão excitante quanto a ata de uma reunião de condomínio convocada para decidir sobre a reforma de um elevador.
Direito do consumidor
Depois das reclamações causadas pelo declamador de poemas concretos na estreia, na noite seguinte a organização providenciou uma tela para proteger o público dos perdigotos pétreos, que como raivosas aliterações haviam atingido até os espectadores da última fila.
Avanço
A segunda geração de poetas concretistas, conquistada pelas possibilidades visuais abertas pelo movimento, substituiu a folha de papel e a caneta pela tela e pelo pincel.
Asterisco
Tão esquecido anda o amor que logo será necessário, quando ele aparecer num texto, explicar numa nota de pé de página do que se trata.
A emenda
Quando lhe perguntaram como gostaria de morrer, o velho galhofeiro disse que não se importaria se fosse após uma bacanal. Mas logo pareceu arrependido e, com os olhos faiscando de lubricidade, corrigiu: depois da segunda.
Terceira via
O concretismo surgiu para livrar-nos de morrer afogados pelas lágrimas dos românticos e soterrados pela lava dourada dos parnasianos. Faltou apontar-nos uma terceira via, na qual pudéssemos prazerosamente nos consumir.
Proeza
Às vezes, apesar de ser velho para isso, ele pensa em realizar algum ato comparável a um heroísmo. Seu projeto atual é uma cruzada para mostrar aos jovens que, ao contrário do que possam ter ouvido, os sonetos não latem nem mordem.
Penetras
Na noite de inauguração, quando todas as janelas de todos os vinte andares do poema concreto se acenderam simultaneamente sob vivas dos convidados, o poeta viu, desgostoso, a lua e mais dúzia de estrelas aproximando-se. Temendo que elas lhe ofuscassem a glória, no seu momento de maior intensidade, ele, da sacada da cobertura, berrou: "Fora daqui, suas vacas românticas! Fora!"
sexta-feira, 26 de junho de 2020
O limite
Falo cada vez mais de mim. Se com a idade que tenho não me conheço, como me atreveria a falar de alguém mais?
Burla
O vento entra pela janela e, afoito como todos os ventos de primavera, vai soprar as pétalas da rosa de plástico do jarro da sala.
Nuvem
O velho poeta não tem a humildade de reconhecer que, se a cada dia mais palavras lhe faltam, não é porque ele as descarte, mas porque elas já não apreciam ser vistas em sua companhia.
Questão de jeito
Quando comecei a escrever, diziam que eu tinha certo jeito para a poesia. Creio não ter perdido esse certo jeito, mas há muito tempo imagino que ele não seja o jeito certo.
O sinal
Descobriu sua vocação de poeta na tarde em que foi seguido da Penha até a Lapa por um arco-íris.
Glória
Se algum brilho eu tenho
Não o devo à minha prosa
Nem à minha poesia.
Ele me vem da calva lustrosa,
Da fulguração luzidia,
Da ostentação presunçosa
De minha alopecia.
Não o devo à minha prosa
Nem à minha poesia.
Ele me vem da calva lustrosa,
Da fulguração luzidia,
Da ostentação presunçosa
De minha alopecia.
quinta-feira, 25 de junho de 2020
Disfarce
Você pode fazer um soneto com os dois quartetos e os dois tercetos de praxe, ou adotar o modelo shakespeariano, com três quartetos e o dístico final. Você pode tentar a perfeição e alcançá-la. Só não diga, se alguém lhe perguntar o que é, que é um soneto,
Sem concorrência
Os poetas mais autênticos foram os românticos. Por morrerem com menos de trinta anos, não chegavam a ter com a vida uma relação duradoura o suficiente para torná-la tão essencial, para eles, quanto a poesia.
Physique du rôle
Era um rapaz estranho. Sóbrio, grave, circunspecto, se alguma vocação se podia ver nele talvez fosse para o teatro, em alguma peça na qual houvesse papel para um defunto, de preferência inglês.
quarta-feira, 24 de junho de 2020
O perigo
Ser velho não seria tão desagradável se os jovens não nos olhassem com o receio de quem se vê diante de um ser capaz de a qualquer momento puxar do bolso um puro, perfeito e maçantemente mortal soneto.
segunda-feira, 22 de junho de 2020
Equilíbrio
Deve-se encarar com serenidade o tema da dedicação à literatura. Se alguém declara que lhe deu a vida, aparece logo quem o censure por não ter ainda morrido por ela.
Ipsis verbis
Não sei o motivo da decepção de alguns leitores. As máximas do Marquês de Maricá são exatamente o que são: as máximas do Marquês de Maricá.
Posição privilegiada
Se todos os textos que escrevi fossem empilhados como degraus no fundo de minha casa, eu poderia enxergar o mundo do alto estrelado de minha incompetência.
Coproprietários
Já fui bem mais ignorante em literatura do que hoje. Quando rapazinho, eu imaginava, por ouvir dizer, que havia dois infernos: o do Diabo e o de Dante.
Responsabilidade
Conheço um poeta velho, muito velho e tolo, que até hoje tenta cumprir um compromisso que assumiu quando era jovem, muito jovem, e sua única tolice era presumir-se poeta.
Arrependimento
Lembrando tudo quanto o amor lhe deu
Num tempo agora há muito transcorrido,
O poeta reconhece, arrependido:
"Deu-me sempre mais do que lhe dei eu."
Num tempo agora há muito transcorrido,
O poeta reconhece, arrependido:
"Deu-me sempre mais do que lhe dei eu."
Leitura no parque
Na terceira manhã em que, sentando-se no parque para ler um livro de poesia, viu reunir-se subitamente sobre sua cabeça uma centena de passarinhos que pareciam ansiosos para dizer-lhe alguma coisa, ele descobriu que não era um mágico, nem um santo, como chegara a imaginar. Era o livro de Mario Quintana que os passarinhos queriam.
Antimilagre
O haicai é uma espécie de milagre envergonhado, um fiozinho de sol que quase pede desculpas por se demorar um instante a mais numa árvore, quando todas as outras do pomar estão já entregues à noite.
domingo, 21 de junho de 2020
O risco
Talvez o maior dano que um mau poeta como eu pode causar não seja propriamente aos leitores, mas a patrimônios poéticos como pássaros, flores, estrelas e arcos-íris.
Nostalgia
Cronistas costumam ser nostálgicos. Conheço um que até hoje maldiz a última reforma ortográfica, por privá-lo do prazer de colocar hifens em seu dia a dia, como se tivesse sido proibido de mencionar passarinhos em seus textos.
sábado, 20 de junho de 2020
A guerra do sexo
Os romances eróticos costumam desenvolver-se dentro de um ambiente bélico, ocupado por guerreiros e guerreiras empenhados em intermináveis e gozosas batalhas. Tão intenso é tudo, as apalpadelas, as carícias, os beijos, que não é impróprio chamá-los de escaramuças.
O erudito
Era um velhote empertigado, com ares de alta erudição. Chamá-lo de mestre ou doutor parecia a todos nada além de um reconhecimento da majestade do seu porte e do seu vocabulário. Eu mesmo o chamei assim alternadamente, de mestre ou doutor, durante muito tempo. Ele sempre se mostrava modesto e recusava essas duas formas de tratamento.Um dia, confessou seu apego a uma disciplina que qualificou como corriqueira e classificou-se como autodidata em sexologia. Olhei-o com a surpresa que os leitores hão de imaginar, enquanto ele, receando provavelmente que eu tirasse uma conclusão errada, completou: "Eu trabalho mais com a teoria do que com a parte prática."
Consolo
Esperar ainda alguma coisa da poesia aos oitenta e um anos é menos risível, talvez, do que esperar ainda alguma coisa da poesia aos oitenta e dois.
DR
Sobre minha relação com a poesia, declaro ter ainda esperança de reatamento, embora cada vez menor.
sexta-feira, 19 de junho de 2020
Velho de calça curta
O poeta tem idade bastante para não ser ingênuo, mas continua acreditando que está próximo o dia no qual os sonetos voltarão a ser recebidos pelos leitores com um sentimento bem mais entusiástico do que a resignação.
quinta-feira, 18 de junho de 2020
quarta-feira, 17 de junho de 2020
Cansaço
Defunto preguiçoso é aquele que, tendo o ano inteiro à frente, resolve assumir-se já em 1º de janeiro.
Números
Tudo estaria bem com a literatura se ela não continuasse produzindo dada vez mais literatos e cada vez menos escritores.
terça-feira, 16 de junho de 2020
Sorte
O intérprete de sonhos me encheu os ombros de tapinhas e recomendou que eu jogasse na loteria, quando lhe contei o pesadelo em que me vi num velório.
Item de currículo
Eu sabia medir versos
metrificar
casar sons
rimar
tinha objetos de escandir
polir
burilar
uma oficina completa
na época
em que me presumi poeta.
metrificar
casar sons
rimar
tinha objetos de escandir
polir
burilar
uma oficina completa
na época
em que me presumi poeta.
Demolição
Deletar um poema concreto é um trabalho que às vezes torna necessário contratar uma empresa.
Sui generis
Era um nefelibata não muito convicto. Só se aboletava em nuvens baixas, e com rede de proteção.
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Soneto do morto convicto
Estou tão morto quanto pode estar
Um homem que da vida decidisse
Abster-se e que tão bem o conseguisse
Que se abstivesse até de respirar.
Estou tão morto que, se agora ouvisse
Alguém na minha rua me chamar,
Jamais me deixaria equivocar,
Um morto não cai fácil em tolice.
Morto, assim morto eu permaneceria,
Porque morto estou desde aquele dia
No qual a peste veio para impor
Que morreriam todos empestados
Aqueles que se achavam destinados
A morrer abençoados pelo amor.
Um homem que da vida decidisse
Abster-se e que tão bem o conseguisse
Que se abstivesse até de respirar.
Estou tão morto que, se agora ouvisse
Alguém na minha rua me chamar,
Jamais me deixaria equivocar,
Um morto não cai fácil em tolice.
Morto, assim morto eu permaneceria,
Porque morto estou desde aquele dia
No qual a peste veio para impor
Que morreriam todos empestados
Aqueles que se achavam destinados
A morrer abençoados pelo amor.
domingo, 14 de junho de 2020
Cirandinha
Vovô via a ave
Ivo via a uva
E Emília lia a cartilha
Enquanto o priminho dissoluto
contava à priminha impoluta
Que Pluto era filho da Pluta.
Ivo via a uva
E Emília lia a cartilha
Enquanto o priminho dissoluto
contava à priminha impoluta
Que Pluto era filho da Pluta.
Hoje na revista Rubem
A história de uma pequena rainha.
https://rubem.wordpress.com/2020/06/14/um-pinguim-para-a-rainha-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2020/06/14/um-pinguim-para-a-rainha-raul-drewnick/
sábado, 13 de junho de 2020
Três tempos
JANEIRO
Beijam-se como se fossem devorar-se.
FEVEREIRO
Beijam-se antes de devorar-se.
DEZEMBRO
Beijam-se.
Beijam-se como se fossem devorar-se.
FEVEREIRO
Beijam-se antes de devorar-se.
DEZEMBRO
Beijam-se.
Os cento e quarenta e quatro
Investiu a vida em sonetos. Desde a adolescência, gastou-se neles, consumiu-se com eles e teria morrido feliz se morresse por eles. Gozou de uma fama que jamais encorajou algum editor a cogitar a publicação de um livro que reunisse sua produção. Quando esta atingiu três centenas, ele selecionou as cento e quarenta e quatro melhores pétalas, enfiou-as em um pacote, anexou meia lauda de notas biográficas e encaminhou tudo a uma editora. Passado um ano sem resposta, telefonou imaginando que pudesse ter havido um extravio. Atendido por uma gentil secretária, comunicou-lhe esse temor. Ela pediu que ele esperasse um instante e ele a ouviu perguntar a alguém pelo livro. Então uma voz que parecia mais a de um tenor que a de um editor, trovejou ao fundo: "É o autor? Vê se ele tem algum livro de poesia." O velho sonetista desligou sem ter a curiosidade de saber como a amável secretária lhe daria a notícia. E assim os leitores perderam a oportunidade de conhecer Uma grosa de sonetos de amor.
sexta-feira, 12 de junho de 2020
Dados biográficos
Depois de tentar por décadas e décadas ganhar dinheiro como poeta, já no fim da vida conseguiu, por sua habilidade na criação de cacófatos, empregar-se numa indústria de fabricação de temperos. Era o gerente do setor ao qual cabia a operação primária de descascar alho.
Preliminares
Toda manhã, antes de levar seus personagens até a cama, o escritor de livros eróticos reúne os advérbios de modo habituais (voluptuosamente, fogosamente, ardentemente, deliciosamente) e coloca-os ao lado dos verbos de praxe (abraçar, beijar e os que vêm em sequência, desde os tempos bíblicos). Assim preparado tecnicamente, toma uma providência de ordem física: como costuma se envolver intensamente nas ações que descreve, ele faz uma gemada com seis magníficos ovos.
quinta-feira, 11 de junho de 2020
Excitação reminiscente
Dos livros de conteúdo sexual que leu furtivamente na adolescência, se alguma excitação sente ao lembrá-los, não é propriamente de tal ou qual cena, mas da percepção de pecado que acelerava seu coração toda vez que retirava um dos livros do esconderijo ou o repunha, com a mão ainda pulsando de culpa.
Honra ao mérito
Se houvesse justiça para os poetas, os da escola romântica mereceriam morrer pelo menos três vezes, todas por amor.
Por assim dizer
Nos livros eróticos há metáforas curiosas. Uma das mais recorrentes é a das espadas que gotejam mel.
Até o fim
Chato prestativo é aquela única alma caridosa que no velório de um amigo afasta ainda um cisco do seu paletó e impede a mosca de aterrissar em seu nariz.
A voz
De um dos Três Tenores conta-se que, cantando na cerimônia de sepultamento de um amigo, o fez com tanto vigor que suas amígdalas foram parar no colo do defunto, que, assim inusitadamente acordado, as recolheu com enojada precisão e lançou a pergunta óbvia: mas nem morto a gente pode ter mais sossego?
quarta-feira, 10 de junho de 2020
Escala
Na ordem poética, sou o mais comum dos tipos: um poeta insignificante inflado de megalomania.
Veniais
Na história da poesia, as rimas, que quase chegaram a ser atiradas aos caldeirões da inquisição, hoje são consideradas pecadilhos da juventude.
terça-feira, 9 de junho de 2020
O sentido
Mestre naquilo que na linguagem cinematográfica atual se chama de efeitos especiais, famoso por suas onomatopeias e aliterações, o poeta antigo, surpreendido por um leitor que não atinava com o sentido de um soneto seu, perguntou-lhe se achava que os versos cantavam, Quando o leitor respondeu que sim, que cantavam, o poeta lhe disse que isso era o que importava, que esse era o sentido.
Balanço
Um poeta parnasiano, empobrecido por uma crise econômica, começou a substituir cisnes por galinhas em sua linha de produção.
segunda-feira, 8 de junho de 2020
Soneto dos dois tempos
Passou, já, nosso tempo de viver,
Tão fugaz quanto o amor, tão apressado
Que, tão logo se deu a conhecer,
Estava já prescrito e consumado.
Tão curtos vida e amor vieram a ser
Quanto o reinado de um rei que, coroado,
Na sagração morresse após beber
Um cálice de vinho envenenado.
Se o amor foi nosso rei, e nossa vida
Dissemos sempre estar à dele unida,
Por que incidimos neste erro fatal?
Se um súdito não segue seu senhor,
Se um amante não segue seu amor,
Como é que fica a lógica, afinal?
Tão fugaz quanto o amor, tão apressado
Que, tão logo se deu a conhecer,
Estava já prescrito e consumado.
Tão curtos vida e amor vieram a ser
Quanto o reinado de um rei que, coroado,
Na sagração morresse após beber
Um cálice de vinho envenenado.
Se o amor foi nosso rei, e nossa vida
Dissemos sempre estar à dele unida,
Por que incidimos neste erro fatal?
Se um súdito não segue seu senhor,
Se um amante não segue seu amor,
Como é que fica a lógica, afinal?
domingo, 7 de junho de 2020
Razões
Já soube, ou imaginei saber, os motivos pelos quais escrevia: orgulho, vaidade, paixão, fama, glória, prestígio, consagração, riqueza - cada um predominando a seu tempo e todos presentes em parcelas desiguais, em todas as épocas. Hoje, tantas décadas depois do início, se eu disser que escrevo por uma obstinada crença não me sentirei honesto; mais correto será dizer que aquilo que continua a pôr na minha mão a Bic é um misto de teimosia, de ignorância, de presunção e de falta de senso do ridículo.
sábado, 6 de junho de 2020
Preservacionismo
Com tantas reformas gramaticais e ortográficas, é difícil entender a proteção de que goza a crase, preservada sempre, apesar de seus maus propósitos, enquanto os desassistidos hifens e tremas são tratados sem a menor consideração.
Santuário
Pobres sonetos antigos, sempre os mesmos, trancafiados com seus cisnes, suas estrelas e seus ornamentos de ouro em páginas mofadas de antologia, condenados a atestar perenemente uma perfeição que causa cada vez maior desdém.
sexta-feira, 5 de junho de 2020
Audição
Se você for poeta e decidir repentinamente fazer uma apresentação pública, comece com uma quadrinha e, conforme a recepção, leia mais uma, talvez duas. Se houver um soneto no repertório, deixe-o para o fim, desde que o ambiente continue amistoso. Mesmo assim, leia-o rápido e, se necessário, antecipe a chave de ouro para o segundo quarteto.
Contraste
Dos contistas e dos romancistas eu não sei, mas dos poetas os leitores costumam esperar mais dos jovens, avoados e desarvorados, que dos experientes, os chamados poetas de ofício ou de carreira. Na poesia é mais forte a marca do romantismo que na prosa.
quinta-feira, 4 de junho de 2020
Soneto dos humilhados pelo vírus
Nós, que fomos outrora tão altivos
E ao dizermos sim ou dizermos não
Agíamos com plena convicção
Hoje estamos mais mortos do que vivos.
Agora somos fracos e furtivos
E quando alguém nos cobra uma opinião
O silêncio é nossa única reação,
Pelo mais improvável dos motivos.
Nós, que de nossa força nos gabávamos
E nossa voz confiantes elevávamos
Contra o mundo visível e o invisível,
Que voz iremos hoje levantar,
Depois que nos deixamos humilhar
Por um ser tão obscuro e desprezível?
Uma previsão
Quando, no início de minha adolescência, minha mãe descobriu quem era Dostoiévski, que eu andava lendo, fez uma previsão: eu acabaria num hospício. Minha memória não é confiável, mas creio poder dizer que, apesar da excelência do meu mestre e dos meus méritos, isso ainda não aconteceu.
quarta-feira, 3 de junho de 2020
Soneto da hora vindoura
Não há muito a dizer. Havia a rua,
Os carros, as pessoas caminhando,
Aviões no céu e pássaros cantando,
Durante o dia o sol, à noite a lua.
Tudo era simples. Que podia ter
Uma rua qualquer, que novidade,
Que anomalia, que anormalidade
Que em outra rua não pudesse haver?
Havia a rua e o que na rua havia,
Tudo igual, lua à noite, sol de dia,
E não achávamos valor em nada.
Que possamos com nosso olhar de agora
Voltar à rua quando chegar a hora,
E não tarde a vir essa hora abençoada.
Os carros, as pessoas caminhando,
Aviões no céu e pássaros cantando,
Durante o dia o sol, à noite a lua.
Tudo era simples. Que podia ter
Uma rua qualquer, que novidade,
Que anomalia, que anormalidade
Que em outra rua não pudesse haver?
Havia a rua e o que na rua havia,
Tudo igual, lua à noite, sol de dia,
E não achávamos valor em nada.
Que possamos com nosso olhar de agora
Voltar à rua quando chegar a hora,
E não tarde a vir essa hora abençoada.
Registro
Na última vez em que vi o amor, ele estava saindo furtivamente de cena, ridicularizado como nenhum outro sentimento na história. Faz alguns anos.
segunda-feira, 1 de junho de 2020
Noviciado
Espalha sol nos lábios antes de beijar o garoto, para que, na terceira ou quarta noite, ele possa visitar sem estranheza partes mais complexas do seu corpo.
Lição
Quando sente os dedos do homem entre as coxas, aperta-as com força, mas não muita, como se fosse uma professora castigando alunos por uma travessura.
Patrimônio
Mulher sovina, beija sempre com a boca fechada, com receio de que lhe furtem as preciosas vogais de seus gemidos amorosos.
Coragem
Homens tímidos costumam tornar-se amantes ousadíssimos e até escandalosos quando, sob nome falso, atuam como romancistas.
Classe
Diga-se o que se disser, os sonetos mantêm sua dignidade. Não andam mais em carruagens nem têm lacaios, mas, ao contrário de seus irmãos poéticos, que secam a testa com guardanapos de papel, usam ainda lenços com monograma para desacalorar-se.
Soneto dos amantes ardilosos
Gosto desses amores escondidos
Que se movem nas sombras, disfarçados,
Que florescem no escuro, impressentidos,
Que se omitem no claro, camuflados.
Gosto desses amores reprimidos,
Desses amores estigmatizados
Que por falso pudor são perseguidos
E por inveja oculta condenados.
Gosto desses amores, dos amantes
Que contra a ira dos intolerantes
Conseguem, sob astúcia e sob disfarce,
Com as mais insuspeitadas aparências
Cometer as horríveis indecências
De abraçar-se, beijar-se, acariciar-se.
Que se movem nas sombras, disfarçados,
Que florescem no escuro, impressentidos,
Que se omitem no claro, camuflados.
Gosto desses amores reprimidos,
Desses amores estigmatizados
Que por falso pudor são perseguidos
E por inveja oculta condenados.
Gosto desses amores, dos amantes
Que contra a ira dos intolerantes
Conseguem, sob astúcia e sob disfarce,
Com as mais insuspeitadas aparências
Cometer as horríveis indecências
De abraçar-se, beijar-se, acariciar-se.