Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/10/30/o-que-shakespeare-fazia-raul-drewnick/

Época

 Eu fui feliz, eu sorria.

Era jovem e ainda achava

Que tudo quanto eu pensava

Se transformava em poesia.

Premeditação

Um sonetista jamais há de alegar inocência ou apresentar atenuantes. Antes da chave de ouro, ele tem sempre treze versos para se arrepender. 

Definição

Creio ter chegado o instante

De pôr os pingos nos is.

Eu seria melhor Dante

Se fosses melhor Beatriz.

Dúvida

Qual vem de qual com certeza

Eu dizer não saberia:

Se a poesia da tristeza,

Se a tristeza da poesia. 

Apropriação

Se os grandes homens fizeram

Aquilo que nos cabia,

Durmamos sobre seus louros,

Louvemos sua autoria. 

Histórico

Entreguei-me à tristeza como quem, 

Depois de muito aos outros recorrer,

Jurou um dia não mais se socorrer

Nem mais de nada nem de mais ninguém. 

Camelô

Enfeitei minha tristeza

Da melhor forma que pude

E fui vendê-la na esquina:

"Eis minha maior riqueza,

Eis minha maior virtude."

Coadjuvante

Também eu nunca fui

aplaudido em cena aberta.

Como vocês, sempre quis 

fazer tudo bem, tudo certo, 

e ensaiei, e reensaiei, 

e tudo fiz, tudo refiz,

mas jamais consegui 

fazer certo a coisa certa.

Também eu, como vocês,

fiz o papel que fiz

como o melhor ator

fez seu melhor papel

e faço ainda

e espero ainda 

que um espectador,

ainda que o mais sonso de todos,

se erga e espante a plateia

gritando bis,

bis, bis, bis.

Impressão

 Talvez a Morte já tenha

Até me feito um sinal

E eu ou não tenha entendido

Ou tenha entendido mal.

Proverbiozinho

 É isso mesmo, pode crer.

A vida é para os tolos e os petizes -

Enquanto assim eles puderem ser.

Persona

Sou um personagem

sem vontade e sem coragem,

sou o rei dos poltrões.

Se minha vida 

fosse uma peça de teatro

e tivesse três atos

precisaria ter

pela lei das proporções

três mil

trezentas e trinta

e três omissões. 

SCCP

Nós podíamos, dissemos.

E à luta nós nos lançamos

E nos ferimos, sangramos.

Podíamos. Não pudemos, 

Se

Se eu conseguisse esquecer

Os defeitos e os senões,

Talvez pudesse dizer

Que me amo sem restrições. 

Procuração

 Se eu precisasse confiar minha tristeza às mãos de alguém, escolheria as de Chopin.

Riqueza

Eu era um menino e já sabia que, se tinha alguma vantagem sobre os outros, ela era a tristeza que me angustiava o peito e me pedia algo mais que as lágrimas para se expressar. 

O que somos

Se o amor não nos comove e a beleza não nos faz chorar, poderemos nós censurar quem nos considera velhacos e quem nos chama de patifes? 

Passado

Naquele tempo

eu escrevia coisinhas graciosas

historinhas engraçadas

de passarinhos e passarinhas

assuntos de rosas

bobagens rimadas

minigâncias com insignificâncias

ninharias com quinquilharias

quase nada

com menos que nada

Hoje nem isso mais

nem mais nada. 

Quadrinha de não ser

Se eu fosse hoje o que sonhei,

Talvez não fosse infeliz.

Mas nunca me consumei

E nem jamais me perfiz.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/10/16/a-gloriosa-impunidade-raul-drewnick/

Soberba

Tem por si tão alta estima

Que sua grandeza não cabe

Já mais em nenhuma frase,

Já mais em nenhuma rima.

O pecado

Sim, andei falando em nome da Poesia. Prenderam-me aqui, desmascararam-me ali, surraram-me acolá. E onde me prenderam, e onde me desmascararam, e onde me surraram eu me declarei culpado, culpado, culpado. Teria sido feliz, mas não. Acusaram-se sempre de tudo. De farsa, de engodo, de trapaça. Mas jamais do pecado imortal da simonia. 

Bênção

Dou graças à minha tristeza, que, sempre atenta, jamais me deixou ser como esses tipos capazes de se afogar em gargalhadas diante de um bufão imitador de passarinhos. 

Diálogo de pré-cama

Você não me ama, ela disse,

E ele: você só reclama.

E ela, já tirando a roupa:

Então me ama, me ama, me ama.

Plateia

Se fracassado me julgo,

Todos me aplaudem.

Se formidável me reputo,

Nenhum puto.

Carpe diem

Um dia você talvez descubra

a chave do mundo 

e indo à sua origem

consiga decifrá-lo.

Nesse dia talvez

você descubra também

que esse segredo

seria melhor ignorá-lo.

Sábio é quem caminhando sob o sol

sabe viver o dia

sem querer saber quem

por sua autoria

crítica merece 

por fazê-lo mal

ou louvor por fazê-lo bem.

Discurseira

 Se longo demais for o epicédio,

O morto, se ainda não estiver,

E se em seu socorro ninguém vier,

Morto acabará, de enfado e tédio.

Espécies

Há os que só precisam enfeitar sua tristeza, para vendê-la na esquina, e há os que, menos aquinhoados, necessitam inventá-la. 

Projeto

Ser escritor foi o que eu

Me lembro de ter querido

Para o menino sofrido

Que em mim, gorado, morreu. 

Em boca própria

Para meu alívio e meu bem, ser eu ou não um escritor deveria ser algo que dependesse de minha opinião somente, e de mais nada ou ninguém.

Ciúme

Agora, se vacilo quando falo

E se treme meu corpo ou minha mão,

Mister Parkinson chama-me a atenção

E me ordena que pare de imitá-lo.

Bocagiana (para Adelto Gonçalves e Hugo Almeida)

Bocage dizem que tinha

uma face ruim

e outra boa

uma quase divina

e a outra muito à-toa

e tão pródiga era 

a boa e a que não era 

que para as duas manter

Bocage precisaria ser

mais que aqueles cem

que dizem ter sido Pessoa.

Título

No dia em que finalmente a Academia

lhe concedeu o Nobel, 

o velho escritor

reconciliou-se com Deus

e para celebrar o ato

pediu ao Senhor

que lhe desse

assim que pudesse

o bicampeonato.

Adesismo

 Quando o modernismo começou a abalar as estruturas poéticas, o velho parnasiano foi tentado a fazer uma autorrevisão, se não na parte formal, ao menos no conteúdo. Essa tentativa durou uma tarde e catorze versos: um soneto que exaltava o garbo com que um cisne flutuava não em um lago, mas numa piscina. A mulher do poeta, que, como sempre, foi a primeira leitora, nesse dia foi a única. Rasgando o soneto em quatro, ela disse: "É melhor parar por aqui, Cleonte. Desse jeito, no próximo você vai acabar inventando um cisne motorizado."

A pedra

No caminho onde havia pedras

só Drummond viu 

com suas retinas fatigadas

que no meio tinha uma

que os outros poetas todos

com suas retinas descansadas

não tinham conseguido ver.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/10/02/morte-na-primavera-raul-drewnick/

A pergunta

Alguém me diz se está morto

O pássaro cuja voz

Foi nosso encanto e conforto

Ou mortos estamos nós?

Felicidade

Não posso me lastimar,

Fui feliz enquanto pude.

Quem me dera hoje voltar 

Aos anos da juventude. 

Oraçãozinha

As tristezas que em boa hora

De minha casa bani,

Que morram todas lá fora

E não me voltem aqui.