Gato dormindo

Um gato dormindo é uma das maneiras de a beleza sugerir que devemos reverenciá-la em silêncio ou com a voz que usaríamos para, num sonho, chamar um anjo. 

Dura de morrer

A crase é como aquele vilão que morre no final de todos os filmes e reaparece no início de todos os filmes seguintes, sempre mais perverso e abominável. 

O detalhe

 Sonhou que morria afogado. Acordou destruído: no último gole engoliu um peixinho azul.

Sopros

Definir um haicai talvez fosse uma tarefa que se pudesse confiar à brisa, se ela já não tivesse sob seu cuidado contar histórias às rosas. 

Passado e presente

Os tempos mudam.

Os morituros que nos saudavam

Hoje não mais saúdam,

Transição

 Habituada no início a cavalgar soberanamente corcéis alados, a poesia precisou acostumar-se aos trancos e solavancos dos tresloucados ônibus metropolitanos.

Cicerone

Aqui era o parque central 

a avenida principal o teatro municipal

aqui era tudo o que havia antes

do recital dos três tenores tonitruantes. 

Miserere

 O tempo é o nosso algoz.

Ontem morriam os outros,

Hoje os morituros somos nós.

CLT

 Sou um péssimo patrão,

Não tenho dúvida disso.

Recuso-me compaixão

Quando estou a meu serviço.

Pai perverso

 Aos oitenta anos, rejeita a paternidade dos sonetos que aos vinte trazia no colo e sufocava de beijos.

Incompatibilidade

 Gato e feio são palavras que só se juntam para causar espanto ou indignação.

Domingo no parque

 Num domingo, se estivermos caminhando por um parque, podemos fingir que não ouvimos os passos da Morte. Podemos, até, julgá-los uma travessura armada pela brisa com as folhas secas.

Hoje, na revista Rubem

 Uma reunião de nadas

https://rubem.wordpress.com/2021/07/25/um-punhado-de-ninharias-raul-drewnick/

O sorriso

Hoje, folheando um álbum, o poeta se viu com dezessete anos. Nesse tempo ele sorria. Se fosse comparar as épocas, apontaria essa como a diferença principal: ele sorria. Com os olhos postos no rosto jovem e despudoradamente feliz, ele disse, amargo: idiota. 

A inveja

 A inveja, que até então era em mim um sentimento morno, tornou-se um rato balofo que passou a roer-me por dentro desde o dia em que conheci Shakespeare.

Obsessão

Escrever o deixou louco.

Viveu só para escrever,

Escreveu até morrer

E, morto, ainda mais um pouco. 

Frente a frente

Quando o sujeito no espelho

Me olha e diz que é Shakespeare,

Eu a rima escamoteio

E me suicido de rir. 

Compromisso

 Eu era um adolescente quando prometi dedicar a vida inteira à poesia. Pobre poesia. Podia ela imaginar que eu viveria tanto?

Passado

Não sou saudosista, mas admito que já gostei mais de mim. 

Ninharias

 Meio nobel serve

um vice-jabuti basta

para um poeta de baixa casta.

A pergunta

Depois dos oitenta, aa pergunta mais frequente que tenho feito é até quando Deus irá fingir que valho o ar que respiro. 

Sobre a beleza

 Gosto daquele tipo de beleza que nos fere, que nos machuca, que nos dói. Que nos deixa marcas que mostraremos um dia para ninguém supor que Deus nos privou de tudo.

Prova final

Teve certeza de que os sonetos jamais recuperarão o prestígio quando um amigo os confundiu com palavras cruzadas e lhe perguntou se elas eram mesmo um hobby tão bom quanto dizem. 

Tarefa

 Se o poeta, esteja onde estiver, não estiver procurando a beleza, há de ter uma boa justificativa para isso.

Cuidado

 Na embalagem dos poemas concretistas, uma recomendação: esta parte para cima.

Questão de idade

Aos sessenta anos decidiu encerrar a carreira de sonetista e dedicar-se aos haicais. Seus confrades dividiram-se em dois grupos: o dos que lhe prediziam sucesso, por sua ascendência oriental, e o dos - estes mais numerosos - que atribuíam a mudança a uma falta de fôlego provocada pela idade. "Quatorze versos são quatorze versos, três são só três", resumiu aritmeticamente um dos representantes do segundo grupo. 

Sósia

 Um dia, ele se deu conta de que era uma versão aprimorada de Clark Gable, o que seria importante se não fosse 2021 e alguém, além dos oito associados do clube de cinéfilos de Várzea Grande, soubesse quem era Clark Gable.

Certeza póstuma

Era um defunto imponente, cheio de autoconfiança, como se estivesse na centésima representação de uma peça de teatro cujo título fosse A resssurreição. 

Detalhe

 A rua da amargura não é um logradouro; é um lugar-comum.

Cotação

Vivo minha mais tranquila fase.

Sonhos não tenho mais, nem ideais.

Se não estou morto, estou quase. 

O defeito

 Não é o pior dos poetas. Seus versos não fluem mal, e as rimas, quando ele as usa, são discretas. O problema é sempre o assunto: uma xaropada ou para fazer boi dormir ou para ninar defunto.

Expressão

 Desencantou-se aos poucos com a mulher e tanto se desaveio com ela que, no fim, quando a tratava de minha cara, já não expressava afeto, mas quanto lhe custava pagar-lhe a pensão.

Veracidade

 Os tipos muito simples, quase simplórios, são os que a literatura usa quando quer dizer que retrata com fidelidade a vida.

Falsa importância

 Ler Dostoievski aos doze anos, em 1950, quase nunca tem outro efeito ou importância além de se poder dizer, setenta anos depois, aos oitenta e dois, que se leu Dostoievski em 1950.

Curva final

 Quem hoje me vê caidaço,

Tão perto já do meu fim,

Não sabe o esforço que faço

Para me manter assim.

Diversionismo

 Saudade das rimas.

Enlaçando-se em inho,

Abraçando-se em ão,

Iam com jeitinho e precisão

Entretendo os leitores

E escondendo a pobreza do tema

E os defeitos de fabricação.

Página um

 A primeira lição literária que os novatos precisam aprender é que escrever não pode ser simplesmente escrever, embora não deva ser muito diferente disso.

Número

Se acerto o salto, nenhuma. Porém

Se despenco do trapézio e quebro o nariz,

As vozes e a rima se juntam e me pedem bis. 

Excelência

 Agora só anda com os de sua categoria.

Não é mais um versejador qualquer,

É um poeta de antologia.

Não mais

 Às vezes, a esperança resolve tentá-lo novamente e põe diante dele uma cena que o emociona: uma criança maltrapilha, um cego vendendo vassouras, um gato atropelado. Seus olhos se enchem de lágrimas, como tantos anos antes, e ele sente o apelo da poesia. Mas não lhe vem um verso, como se ele não fosse o homem que, quando jovem, teve a presunção de se dizer poeta.

Belle époque

Houve épocas melhores para escrever. Como aquela em que até os fracassos artísticos tinham uma escala obrigatória em Paris. 

Pragmatismo

A nova geração de poetas objetivos, hoje preponderantes, leva muito a sério o conceito de produtividade. Ao contrário dos pioneiros da escola, abriram-se a sentimentos antigamente exclusivos dos românticos, como a tristeza, desde que apresentem uma boa relação entre custo e benefício.

Moderação

 Às vezes gosto de me supor melhor do que sou. Mass não tanto quanto aqueles que se dizem réplicas aprimoradas de Deus.

Merecimento

Quando não os merecermos mais,

Que morramos antes que morram

Nossos sonhos e nossos ideais.

Farsa

 Na opinião dos detratores da beleza, um arco-íris não passa de um dos truques mais baratos de Deus.

Tarimba

 O poeta se define, carinhosamente, como puta velha. Os jovens o respeitam. Os olhos dele, nublados pelo sofrimento, são pura poesia para eles. Não estranhariam se, rameira escolada que é, começasse a exibir,   lentamente, papéis preenchidos com letras nas quais até o mais estulto dos homens poderia ver uma faísca de eternidade.

Vocação

Conheci ao todo seis ou sete escritores dispostos a morrer pela literatura. Seis eram poetas.

Custos

 As novelas policiais não economizam balas nem defuntos.

Salve-se quem puder

Um autor de novelas policiais tem sobre os outros uma vantagem inestimável. Ou os personagens se comportam bem ou ele pode reuni-los todos num capítulo, não necessariamente o último, para que se matem todos sem piedade. 

Definição

 Para Mario Quintana, poesia era só uma coisa, uma coisa muito simples de fazer. Para Mario Quintana.

Lápide de um matemático

 Meus dias sempre estiveram contados.

Dalton Trevisan, Hugo Almeida

 Um dia, muito tempo faz, estive em Curitiba e não vi Dalton Trevisan. Era mais fácil encontrar por ali o papa, disseram-me. Um a quem perguntei por ele me olhou torto: aquele escritor pornográfico? Os outros sorriram sorrisos de concordância: aquele escritor pornográfico. Tive pena de Curitiba. E entendi o rancor de Dalton, como entendi o de Leminski. Raça de cidade mesquinha, mal-agradecida. Não disse, mas devia, que Curitiba é menos que Dalton, e sempre será. Difícil citar hoje um escritor brasileiro de primeiro time que não tenha algo dele. Hugo Almeida tem muito,.

Carreira

 Escrevi por muitos anos, tempo suficiente para saber que precisaria de pelo menos o dobro para parecer um poeta um pouco menos insignificante do que sou.

Servidão

 Amor, que houve com tuas algemas?

Por que afrouxaram,

Por que não me apertam mais?

É noite e se te escapo

Onde irás me procurar?

Hoje, na revista Rubem

 Algumas divagações sobre poetas e mulheres

https://rubem.wordpress.com/2021/07/11/de-poetas-e-mulheres-raul-drewnick/

Perfis

 É um tipo esquisito. A primeira coisa que faz toda manhã, ao sair de casa, é olhar para o céu. Dizem que assim ele cumprimenta o sol e há quem, por isso e por outros gestos estranhos, o chame de poeta. Na mesma rua mora um rapaz de vinte e poucos anos, com dois livros publicados, em quem os vizinhos reconheceriam um poeta, se ele tivesse o hábito de desejar bom dia ao sol.

Revolução

 Enquanto os defensores da velha literatura se ocupavam ainda com alpistes e quireras, Drummond enxotava os cisnes e os pombos parnasianos e ia introduzindo mineiramente leiteiros e outros extravagantes personagens na cena principal.

Fiscais

No tempo em que as estrelas tinham ainda alguma importância, eram os os poetas que atestavam sua veracidade. 

Ressalva

 Cheguei ao fim, reconheço.

Não façam caso, me ignorem,

Não me lamentem, não chorem,

Eu não valho, eu não mereço.

Miserere

 Comecei a me dizer poeta tão cedo e tanto me empenhei em fazer verossímil essa presunção que várias vezes cheguei a me convencer. Que me perdoem todos aqueles que eu possa ter iludido com minha reles embromação.

Currículo

 Minha tese de mestrado

Tem a morte como assunto.

Sou um aluno aplicado,

Hei de ser um bom defunto.

Releitura

Quando, cinquenta anos depois, abriu a gaveta onde estavam escritos em esmerada letra os sonetos de sua juventude, decepcionou-se. Tinha lido já o terceiro e seus olhos permaneciam obstinadamente secos. 

Humildade

 Tenho uma convicção: a de que um poeta presunçoso nunca receberá a visita de um haicai.

Resumo

Nasci triste. Isso fez de mim um menino orgulhoso. Repugnava-me o riso dos adultos, como quase tudo que lhes era próprio. Horrorizava-me pensar que logo seria um deles. Quando descobri a literatura, escravizei-me aos personagens atormentados, aos miseráveis e aos derrotados. Ela nunca me faltou. Até hoje me dá o pão amargo que me alimenta. 

Doktor Alzh

 Estou num momento mau,

Que péssima fase, a minha.

Minha alma virou mingau

E meu cérebro, farinha.

Depreciação

 Ando tão diverso, já,

De modos e de feições

Que a Morte, se me aceitar,

Há de ser com restrições.

Necessidade

 Depois que se casou com uma viúva pobre e mãe de três filhos, o poeta passou a fazer recitais para um só tipo de público: o pagante.

De bom tamanho

 Na ideia de imortalidade do escritor municipal não há uma passagem por Estocolmo. Há uma reunião na câmara de vereadores e uma votação que lhe garantirá um lugar de estátua na praça central. Isso lhe bastaria. Se pudesse pedir algo mais, seria que o plantassem de frente para o pequeno lago.

Opacidade

 É um desses poetas que, numa antologia de quinze, fazem sempre pensar que com catorze ela ficaria bem melhor.

Identidade

 Enquanto o poeta social se identifica apresentando a carteirinha do sindicato, o poeta comum continua dependendo dos passarinhos e dos seus colegas de ofício.

Composição de preço

Que todo sacrifício imposto pela literatura seja assumido pelos escritores e que eles resistam à tentação de repassá-lo aos leitores. 

Antecedentes

Cinquenta anos atrás, quando se esmerava para escrever seus sonetos, ele os classificava em duas categorias: os românticos e os realistas. Na época, eles ainda não se dividiam em dolosos e culposos. 

A promessa

 A promessa de dedicar a vida inteira à literatura é uma imprudência que só se deve cometer depois dos cinquenta ou sessenta anos.

Programa

Que será de mim, de ti,

De nós, telespectadores,

Quando acabar a CPI? 

Currículo

 Reprovada por sua verdeza,

a banana se inscreveu

num curso de madureza.

Lições amargas

Nem sempre nos é propícia a maturidade. Podem ser amargas suas lições. Uma das que fazem parte de minha experiência é a descoberta, tão tardia, de que a poucos é dada a bênção de exprimir a beleza com a poesia.

A poderosa

Das atividades que podem levar um homem ao fracasso, uma das mais fascinantes e infalíveis é a literatura. 

Itinerário

O pior momento, para um escritor, é aquele no qual descobre que nem todos os caminhos levam a Estocolmo. 

Pecado original

 Minha desafortunada aventura poética começou muitos anos atrás, com um equívoco que há de se perdoar a um adolescente. Eu queria ser Shakespeare, eu desejava ser Fernando Pessoa, eu ambicionava ser Camões. Não houve uma voz sensata para me dizer que, com aquelas pretensões, eu só poderia ser um humorista. 

Sonetinho dos maiorais

Certos poetas dizem ter

Escrito obras magistrais

E nos asseguram ser

Maiores que os maiorais.

Quem irá desmerecer

Tais obras, fundamentais,

Quem ousará desdizer

Escritores tão geniais?

Diante dessas excelências

Tenhamos só reverências,

Deixemo-nos seduzir.

Sejamos uma só voz,

Digamos ser todos nós

Maiores que Shakespeare.