quinta-feira, 30 de abril de 2015
Mario Quintana
À sisuda Casa de Machado de Assis teriam feito um bem enorme o espírito jovial e as traquinagens de Mario Quintana. Eu o imagino fazendo careta para um confrade que, de pincenê e sem pudor, tivesse usado a palavra celebérrimo.
Pose
Levar-nos muito a sério como escritores ou qualquer outra coisa às vezes é o melhor modo de fazer com que riam de nós e digam frases como: "Quem ele pensa que é? O Shakespeare?"
Milagre
Quando menino, nunca entendi o milagre que era dar um papel às vezes sujo e rabiscado e receber em troca um sorvete. Continuo não entendendo.
Ab initio
A literatura é a minha maior paixão. Devo ser franco quando falo dela. Se eu pudesse começar tudo de novo, não começaria.
Paixão
O bem-te-vi apaixonado, toda vez que vê sua bem-te-vi, perde a fala e diz só: bem. Não deixa de ser um bom começo.
Saia e blusa
É tão recatado, tão pudico, que, se deixassem, percorreria os museus do mundo para vestir os nus artísticos.
Barriga cheia
Queixamo-nos da brevidade da vida, mas nunca nos faltou tempo para cometer alguns sonetos calamitosos, para falar mal do próximo e do distante e até para apontar meia dúzia de defeitos em Deus.
Pauta
A poesia não há
de falar de bonitezas
de primaveras
de princesas
de rosas
de coisinhas mimosas
A poesia há de falar
de pestes
de pragas
das mil chagas do amor
que são de todas
as chagas mais prazerosas.
de falar de bonitezas
de primaveras
de princesas
de rosas
de coisinhas mimosas
A poesia há de falar
de pestes
de pragas
das mil chagas do amor
que são de todas
as chagas mais prazerosas.
Soneto do amor patife
O amor é aquele patife
Que para bem nos lesar
Tem escritório em Mianmar
E sucursal no Recife.
Não há para ele empecilho.
Se viajar não nos agrada,
Ele dá uma chegada
E nos furta em domicílio.
Furta-nos no Cambuci,
Na Aclimação, no Pari,
Na China, no Paquistão,
E diz não merecer penas
Quem de um homem furta apenas
Nada além do coração.
Que para bem nos lesar
Tem escritório em Mianmar
E sucursal no Recife.
Não há para ele empecilho.
Se viajar não nos agrada,
Ele dá uma chegada
E nos furta em domicílio.
Furta-nos no Cambuci,
Na Aclimação, no Pari,
Na China, no Paquistão,
E diz não merecer penas
Quem de um homem furta apenas
Nada além do coração.
Mario Quintana
Em Mario Quintana, até o sarcástico soava com tanta verve e justeza que inibia qualquer retaliação.
Tal qual
Um gramático conjugando em voz alta um verbo irregular diante dos futuros sogros se dá ares de Maria Callas cantando uma ária no Scala de Milão.
Corpo de delito
Quem há de dar-nos a mão?
Como nós nos livraremos
Do amor que morto mantemos
Trancado em nosso porão?
Como nós nos livraremos
Do amor que morto mantemos
Trancado em nosso porão?
Extrato
Do amor, o que nos ficou
Foi a malograda história,
Foi a incômoda memória.
O resto a morte levou.
Foi a malograda história,
Foi a incômoda memória.
O resto a morte levou.
Reinado
O amor há de registrar
tremores em todas as escalas
e se houver fronteiras
ignorá-las
e se houver barreiras
derrubá-las
O amor
deve submeter
deve subjugar
O amor
deve impor
o seu horror
O amor deve
reinar.
tremores em todas as escalas
e se houver fronteiras
ignorá-las
e se houver barreiras
derrubá-las
O amor
deve submeter
deve subjugar
O amor
deve impor
o seu horror
O amor deve
reinar.
O belo
O belo há de ser nossa aspiração suprema. Não sabermos exatamente o que ele é abre nossa alma para tudo em que ele possa estar, e com o tempo aprendemos a percebê-lo em coisas mínimas, às quais antes não dávamos atenção.
"O braço armado", de Dalton Trevisan
"O filho é o braço armado da mãe contra o monstro do pai."
(Do livro Desgracida, publicado pela Editora Record.)
(Do livro Desgracida, publicado pela Editora Record.)
quarta-feira, 29 de abril de 2015
Pelo menos
Rogo para que no fim
Se vieres a me faltar
Na morte eu possa confiar
E que ela cuide de mim.
Se vieres a me faltar
Na morte eu possa confiar
E que ela cuide de mim.
Mario Quintana
O bom em Mario Quintana
É que a frase mais divina,
Mais invulgar, mais supina,
Tem sempre feição humana.
É que a frase mais divina,
Mais invulgar, mais supina,
Tem sempre feição humana.
Soneto de quem diz o teu nome
Por ti fiz tudo que fiz.
Te chamei na primavera,
Quando minha voz ainda era
A voz de um homem feliz,
E te louvei no verão,
Quando só por ti batia,
Noite a noite e dia a dia,
Com febre meu coração.
No outono te louvei, terno,
E não te esqueci no inverno,
Amada mais que querida.
E agora, no fim da vida,
Com esta voz que já me some,
Eu ainda digo teu nome.
Te chamei na primavera,
Quando minha voz ainda era
A voz de um homem feliz,
E te louvei no verão,
Quando só por ti batia,
Noite a noite e dia a dia,
Com febre meu coração.
No outono te louvei, terno,
E não te esqueci no inverno,
Amada mais que querida.
E agora, no fim da vida,
Com esta voz que já me some,
Eu ainda digo teu nome.
Mario Quintana
As palavras mais amáveis procuravam Mario Quintana aos bandos, como garotas alvoroçadas pelo primeiro amor. Depois que iam embora, chegavam algumas um tanto mais sapecas. Ele as recebia com um pigarro e um olhar austeros, que elas já sabiam não serem de reprovação.
A frase
Minha simpatia não é para aqueles cuja frase derradeira é morre um homem mas não morre a humanidade. É para aqueles que entregam a alma com um ai tão tímido que não chega aos ouvidos da brisa.
Mario Quintana
Mario Quintana tinha um jeito de lidar com as palavras que poderia chamar-se de garimpagem, se já não tivesse o nome de ternura.
Linhas
Os poemas de amor
deveriam ter uma linha só
eu te amo tanto
talvez mais uma
eu te amo demais
no máximo três mais
eu te amo mais
do que jamais
conseguirei dizer.
deveriam ter uma linha só
eu te amo tanto
talvez mais uma
eu te amo demais
no máximo três mais
eu te amo mais
do que jamais
conseguirei dizer.
Um trecho de Djanira Pio
"Uma senhora muito idosa pega o telefone e lembra que não há mais ninguém para quem ligar. Desiste e volta ao seu mundo imaginário. Viver é só viver."
(Do livro O ciclo da vida, publicado pela Editora Scortecci.)
(Do livro O ciclo da vida, publicado pela Editora Scortecci.)
Invocação
Em prosa
em versos
em febre
em delírio
em desespero
em aflição
chamamos o amor
chamamos o amor
chamamos o amor
em vão.
em versos
em febre
em delírio
em desespero
em aflição
chamamos o amor
chamamos o amor
chamamos o amor
em vão.
Parênteses
As palavras entre parênteses parecem aqueles três ou quatro homens que, apanhados com cem outros numa batida policial num prostíbulo ou num cassino, começam a puxar documentos para mostrar que, se estão ali, é por um equívoco, pois não gostam de mulheres e muito menos ainda de qualquer tipo de jogo.
terça-feira, 28 de abril de 2015
Diga-me com quem
Os provérbios são mais chatos do que aqueles pregadores que sentam ao nosso lado no ponto inicial do ônibus e vão conosco até o ponto final.
Detetives
Há gramáticos tão desconfiados que chegam a examinar com lupa a palavra invisível e a encostar o nariz na palavra inodora.
O último
A morte é o último recurso que às vezes um romancista tem, depois de haver submetido um personagem às drogas e ao amor.
Soneto do poeta de um assunto só
Os anos passam, mas ele,
Como no primeiro dia,
Escreve ainda o que escrevia,
E o seu tema é sempre aquele.
Quem o vê, seja quem for,
No seu bloquinho anotando,
Sabe que ele está falando
Do assunto de sempre: o amor.
Não é um amor qualquer,
É um amor grandioso, insano,
Que tem por uma mulher.
Essa paixão que o enlouquece
Semestre a semestre, ano a ano,
Só a amada desconhece.
Como no primeiro dia,
Escreve ainda o que escrevia,
E o seu tema é sempre aquele.
Quem o vê, seja quem for,
No seu bloquinho anotando,
Sabe que ele está falando
Do assunto de sempre: o amor.
Não é um amor qualquer,
É um amor grandioso, insano,
Que tem por uma mulher.
Essa paixão que o enlouquece
Semestre a semestre, ano a ano,
Só a amada desconhece.
Logro
Pode até haver bons poemas que não falem de amor. São aqueles em que o leitor, ao chegar ao fim com um sorriso, desconfia ter sido enganado com um produto ao qual falta o principal ingrediente.
Soneto da memória que talvez tu tenhas
Talvez venhas a lembrar
No futuro, qualquer dia,
Daquele homem que em ti via
A vida, ao te ver passar.
Talvez (por que duvidar?)
Sintas alguma alegria
Ao lembrar como eu sorria
Só para te impressionar.
Ou talvez tu simplesmente
Lembres de mim vagamente
Como se nem te lembrasses.
Não importa. Eu lembro, sim,
E ainda hoje, diante de mim,
Não há dia em que não passes.
No futuro, qualquer dia,
Daquele homem que em ti via
A vida, ao te ver passar.
Talvez (por que duvidar?)
Sintas alguma alegria
Ao lembrar como eu sorria
Só para te impressionar.
Ou talvez tu simplesmente
Lembres de mim vagamente
Como se nem te lembrasses.
Não importa. Eu lembro, sim,
E ainda hoje, diante de mim,
Não há dia em que não passes.
Mario Quintana
Mario Quintana ia pela rua. No alto, um passarinho o acompanhava, assobiando. Alguém chamou: Mario. Quintana virou-se para olhar. O passarinho virou-se também.
Soneto de quem espera ver o amor antes de morrer
Quando caiu prisioneiro,
Do céu se viu devedor
Quando soube que do amor
Era aquele cativeiro.
Mantido com água e pão,
Ninguém o viu rebelar-se
E nem ao menos queixar-se
Dessa mísera ração.
Só chora que o pão comido,
E a água, nunca tenha sido
O amor que os veio trazer.
Talvez, quem sabe, ainda o veja
Com a água e o pão, ainda que seja
Um dia antes de morrer.
Do céu se viu devedor
Quando soube que do amor
Era aquele cativeiro.
Mantido com água e pão,
Ninguém o viu rebelar-se
E nem ao menos queixar-se
Dessa mísera ração.
Só chora que o pão comido,
E a água, nunca tenha sido
O amor que os veio trazer.
Talvez, quem sabe, ainda o veja
Com a água e o pão, ainda que seja
Um dia antes de morrer.
Soneto de Nosso Senhor o Amor
Quando quer nos conquistar,
O Amor sempre apela a tudo:
De cetim é o seu olhar
E os lábios são de veludo.
Ele nos diz: sou o Amor -
E o Amor, todos nós sabemos,
Do mundo é o grande Senhor,
O maior que conhecemos.
Ele tudo nos promete
E diz que a nós só compete
O doce fardo de amá-Lo.
Só não nos diz quantos já
De nós enterrados há
Por Nele crer e adorá-Lo.
O Amor sempre apela a tudo:
De cetim é o seu olhar
E os lábios são de veludo.
Ele nos diz: sou o Amor -
E o Amor, todos nós sabemos,
Do mundo é o grande Senhor,
O maior que conhecemos.
Ele tudo nos promete
E diz que a nós só compete
O doce fardo de amá-Lo.
Só não nos diz quantos já
De nós enterrados há
Por Nele crer e adorá-Lo.
Um trecho de "As palavras", de Jean-Paul Sartre
"Comecei minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio dos livros. No gabinete do meu avô, havia-os por toda parte; era proibido espaná-los exceto uma vez por ano antes do reinício das aulas em outubro. Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas: em pé ou inclinadas, apertadas como tijolos nas prateleiras da biblioteca ou nobremente espacejadas em aleias de menires, eu sentia que a prosperidade de nossa família dependia delas."
(Tradução de J. Guinsburg, publicação da Editora Nova Fronteira.)
(Tradução de J. Guinsburg, publicação da Editora Nova Fronteira.)
segunda-feira, 27 de abril de 2015
Presente
Uma noite, quando ele, pensando em como vinha sendo maltratado pela amada, andava pela praia, caiu-lhe bem à frente uma estrela. Ele a pegou com cuidado, tirou-lhe a areia e foi levá-la à amada. Ela examinou a estrela, frente e verso, e, não vendo nenhuma inscrição que indicasse a sua procedência, atirou-a longe. O cachorro da casa apanhou-a alegremente e, desde essa noite, incorporou-a aos seus brinquedos.
Jurisdições
O câncer não o matou.
Deu-lhe a ciência mais cinco anos,
Com chapas e sem enganos,
Mas o amor não o poupou.
Deu-lhe a ciência mais cinco anos,
Com chapas e sem enganos,
Mas o amor não o poupou.
Soneto da voz que a deixava de cama
Ah, como ela se incendiava
Naquele tempo em que o amor
No telefone a chamava
Com sua voz de tenor.
Ah, quase ela desmaiava
Ouvindo o doce clamor
Que febril sempre a deixava
E em estado de estupor.
Ela ainda ama essa voz, ama,
E se toca o celular
Se apressa, para a escutar.
Mas hoje, quando ela a chama,
Com seus pigarrinhos de asma,
É a voz de um tenor fantasma.
Naquele tempo em que o amor
No telefone a chamava
Com sua voz de tenor.
Ah, quase ela desmaiava
Ouvindo o doce clamor
Que febril sempre a deixava
E em estado de estupor.
Ela ainda ama essa voz, ama,
E se toca o celular
Se apressa, para a escutar.
Mas hoje, quando ela a chama,
Com seus pigarrinhos de asma,
É a voz de um tenor fantasma.
A pior
A pior abominação
em poesia
não é rimar amor
com dor
nem contrapor tristeza
com alegria
Isso já está
catalogado
e até autorizado
nos usos e costumes
e como licença poética
consagrado
A pior abominação
a mais antiética e antiestética
é usar de premeditação
ao escrever juventude
e envelhecê-la uma linha depois
rimando-a com senectude.
em poesia
não é rimar amor
com dor
nem contrapor tristeza
com alegria
Isso já está
catalogado
e até autorizado
nos usos e costumes
e como licença poética
consagrado
A pior abominação
a mais antiética e antiestética
é usar de premeditação
ao escrever juventude
e envelhecê-la uma linha depois
rimando-a com senectude.
Mario Quintana
A beleza dos textos de Mario Quintana tem sempre um quê de menina travessa encarapitada numa árvores, mastigando uma fruta e cuspindo carocinhos.
Soneto do que significa ser amado
Ser amado, ter ouvido
Nossa amada nos chamar
E ao nosso nome somar
Meu amado, meu querido.
Ser amado, ter podido
Ouvir a amada jurar
Que somente nos amar
Dava à vida algum sentido.
Ser querido, ser amado,
Ainda que rapidamente
E num longínquo passado,
É, viva quanto viver,
O mais precioso presente
Que um homem pode querer.
Nossa amada nos chamar
E ao nosso nome somar
Meu amado, meu querido.
Ser amado, ter podido
Ouvir a amada jurar
Que somente nos amar
Dava à vida algum sentido.
Ser querido, ser amado,
Ainda que rapidamente
E num longínquo passado,
É, viva quanto viver,
O mais precioso presente
Que um homem pode querer.
domingo, 26 de abril de 2015
Motivação
Nos romances policiais antigos, a primeira ordem que o comissário dava aos auxiliares era: cherchez la femme. A mulher, uma mulher, era sempre considerada o que se chamava de pivô do crime. Hoje a ordem é outra: cherchez l'argent.
Tarefa
Cada um é o que é. Calhou-me escrever. Desde os doze anos sei disso. Se eu tivesse feito a escolha, optaria talvez por algo menos difícil
Vida passada
Às vezes penso ser a reencarnação de uma donzela do século XIX. Morrer de amor me parece uma bênção que jamais chegarei a merecer.
Tempo
Quando me vias, outrora,
Sorrias e me beijavas.
Bom não me veres agora.
Se tu me visses, choravas.
Sorrias e me beijavas.
Bom não me veres agora.
Se tu me visses, choravas.
Pet
Tem uma kombi. Diz que está com ela há cinquenta anos, desde o dia em foi buscá-la zerinho na revendedora. Não gosta de animais. Nunca teve um. Há marcas de óleo na garagem. Ele sorri: "Imaginou se fosse um cachorro?"
Gosto
É tão aborrecido o amor. Tudo sempre igual, sempre as mesmas histórias. Ainda há quem goste de ouvi-las.
Soneto da intensidade do amor
Quer tenha durado muito
E tenha com intensidade
Buscado a perenidade,
Quer tenha sido fortuito,
Quer tenha um ano durado,
Quer tenha vivido uma hora,
Quer tenha ido logo embora,
Ou um pouco mais ficado,
O amor há de sempre ser
A nossa melhor memória
E a nossa mais bela história.
Mesmo depois de morrer,
Ele vive sempre em nós
E fala por nossa voz.
E tenha com intensidade
Buscado a perenidade,
Quer tenha sido fortuito,
Quer tenha um ano durado,
Quer tenha vivido uma hora,
Quer tenha ido logo embora,
Ou um pouco mais ficado,
O amor há de sempre ser
A nossa melhor memória
E a nossa mais bela história.
Mesmo depois de morrer,
Ele vive sempre em nós
E fala por nossa voz.
Mario Quintana
Se Mario Quintana fosse chuva, seria dessas que caem amenas, como se temessem afogar uma formiga ou despetalar uma rosa.
Soneto do inesperado reencontro
No instante em que hoje te vi,
Preferia não te ver.
Eu quis fugir, quis morrer,
Mas tu viste, não morri.
Também viste: envelheci.
Parece que envelhecer
Foi só o que eu soube fazer
Desde quando te perdi.
Tu viste como mudei,
Tu viste como piorei.
Tu, porém, estás igual.
Me alegra essa divisão:
Ser o bem tua porção
E a mim caber todo o mal.
Preferia não te ver.
Eu quis fugir, quis morrer,
Mas tu viste, não morri.
Também viste: envelheci.
Parece que envelhecer
Foi só o que eu soube fazer
Desde quando te perdi.
Tu viste como mudei,
Tu viste como piorei.
Tu, porém, estás igual.
Me alegra essa divisão:
Ser o bem tua porção
E a mim caber todo o mal.
sábado, 25 de abril de 2015
Tipos
Beata parece a putana,
E a carola, uma gaudéria.
Existe afronta mais séria
À teoria lombrosiana?
E a carola, uma gaudéria.
Existe afronta mais séria
À teoria lombrosiana?
1/12
Mesmo sendo maio um mês
Que acha os outros seus escravos,
Com toda sua altivez
Do ano ele é só um doze avos.
Que acha os outros seus escravos,
Com toda sua altivez
Do ano ele é só um doze avos.
"Amor de velha", de Dalton Trevisan
"O velho geme, espirra, tosse - e que tosse!
A velhinha, no fundo da cama:
- Isso mesmo. Continue assim. Não se cuide.
- ...
- Nada como um inverno bem frio.
- ...
- Faça de mim na primavera a mais faceira das viúvas alegres!"
(Do livro Desgracida, publicado pela Record.)
A velhinha, no fundo da cama:
- Isso mesmo. Continue assim. Não se cuide.
- ...
- Nada como um inverno bem frio.
- ...
- Faça de mim na primavera a mais faceira das viúvas alegres!"
(Do livro Desgracida, publicado pela Record.)
Sandra Annenberg
Quem tiver interesse em ver minha participação no programa "Como Será", digite por favor globotv.globo.com/redeglobo/como-sera/v/sonho-meu-terezinha-aparecida-de-lima/4134057.
Ontem
Para sentir de novo o prazer
de manhãs já quase apagadas
de tardes já quase desacreditadas
e de noites já quase esquecidas
o amor vei ver se as janelas
estão todas bem fechadas
e se põe a lamber
delicadamente as feridas.
de manhãs já quase apagadas
de tardes já quase desacreditadas
e de noites já quase esquecidas
o amor vei ver se as janelas
estão todas bem fechadas
e se põe a lamber
delicadamente as feridas.
Terceirização
Na hora de atribuir a culpa
Pelo pescoço enforcado
Ou o cérebro estourado,
O amor é sempre a desculpa.
Pelo pescoço enforcado
Ou o cérebro estourado,
O amor é sempre a desculpa.
Hoje
Melhor não saber de ti.
Fiquemos como acertamos
Quando nós nos separamos:
Morreste, e eu, também, morri.
Fiquemos como acertamos
Quando nós nos separamos:
Morreste, e eu, também, morri.
sexta-feira, 24 de abril de 2015
Mario Quintana
Mario Quintana sabia que vivemos de ar e palavras. Sem ar, morremos. Com as palavras, permanecemos.
Soneto dos sons do amor
No início, arrebatador,
Com a força da novidade,
O amor tem a intensidade
Das batidas de um tambor.
Depois, torna-se mais fino
Seu toque, e mais apurado,
Tão claro e tão delicado
Quanto o toque de um violino.
Perdendo a força então vai
E o som aos poucos se esvai,
E se transforma em gemido.
É triste, mas é assim.
Sempre o amor chora, no fim,
Como um cãozinho perdido.
Com a força da novidade,
O amor tem a intensidade
Das batidas de um tambor.
Depois, torna-se mais fino
Seu toque, e mais apurado,
Tão claro e tão delicado
Quanto o toque de um violino.
Perdendo a força então vai
E o som aos poucos se esvai,
E se transforma em gemido.
É triste, mas é assim.
Sempre o amor chora, no fim,
Como um cãozinho perdido.
Endereço
A literatura brasileira e Dalton Trevisan moram na mesma cidade: Curitiba. Nas raras vezes em que ela e ele são vistos, estão sempre juntos.
quinta-feira, 23 de abril de 2015
Pecadoras
As pecadoras de romances antigos feriam princípios morais. As de romances atuais são mais tentadas a ferir preceitos estéticos e normas gramaticais..
Respeito
Alguns escritores clássicos nos maçam profundamente, mas jamais admitimos isso nem a nós mesmos.
Como Philip
Um dia, você decide ser igual a Philip Roth ao menos numa coisa, e para de escrever. Não há lamentações de leitores, nem comemorações de concorrentes. No mais, é a mesma coisa.
Expediente
Depois de esperarmos por três dias, o secretário do amor veio nos comunicar que ele não iria nos receber. E, para desculpar o patrão, nos piscou e disse, baixo: vocês sabem, são aquelas coisas dele. Ele está outra vez apaixonado. Vocês acreditam?
Nesta quinta
Uma bobagem me basta
uma coisinha qualquer
dessas que encantam
um homem
uma mulher
um encontro casual
um flerte
um olhar circunstancial
uma dessas besteiras
que se bem não fazem
também não fazem mal
um desses enredos
de folhetim
que escapam para a rua
porque o autor
deixou aberta
a porta do fundo
Uma historiazinha assim
exatamente assim
sem conteúdo
me basta - e como me basta
O que menos quero
nesta quinta chinfrim
é bancar o profundo.
uma coisinha qualquer
dessas que encantam
um homem
uma mulher
um encontro casual
um flerte
um olhar circunstancial
uma dessas besteiras
que se bem não fazem
também não fazem mal
um desses enredos
de folhetim
que escapam para a rua
porque o autor
deixou aberta
a porta do fundo
Uma historiazinha assim
exatamente assim
sem conteúdo
me basta - e como me basta
O que menos quero
nesta quinta chinfrim
é bancar o profundo.
quarta-feira, 22 de abril de 2015
Programas
Há tantas coisas
melhores do que escrever
Nadar
passear
fazer alguma coisa
nada fazer
vadiar
espairecer
Pergunte a qualquer um
que não seja escritor
Ele vai lhe dizer.
melhores do que escrever
Nadar
passear
fazer alguma coisa
nada fazer
vadiar
espairecer
Pergunte a qualquer um
que não seja escritor
Ele vai lhe dizer.
E agora, José?
Nunca mais viemos a saber
quem com a pedra topou
e quem foi que o bonde perdeu
depois que o gauche drummond morreu.
quem com a pedra topou
e quem foi que o bonde perdeu
depois que o gauche drummond morreu.
Sintonia
A mulher identifica-se de modo tão perfeito com a beleza que é como se tivessem ambas nascido na mesma época.
Norma
Para valor vir a ter,
Que seja o ato de escrever
Não nosso modo de ver,
Mas nosso modo de ser.
Que seja o ato de escrever
Não nosso modo de ver,
Mas nosso modo de ser.
Soneto da indecisão
Havia tanto a dizer,
Havia tanto a falar,
Mas havia algo a esconder,
Mas havia algo a calar.
Havia tanto a perder,
Havia tanto a ganhar,
Que ficamos sem saber
Que decisão tomar.
Parados então ficamos
E do destino esperamos
Que nos viesse a decisão.
E ainda hoje assim nós estamos,
Sem saber se ao amor vamos
Gritar sim ou dizer não.
Havia tanto a falar,
Mas havia algo a esconder,
Mas havia algo a calar.
Havia tanto a perder,
Havia tanto a ganhar,
Que ficamos sem saber
Que decisão tomar.
Parados então ficamos
E do destino esperamos
Que nos viesse a decisão.
E ainda hoje assim nós estamos,
Sem saber se ao amor vamos
Gritar sim ou dizer não.
Honestidade
Depois que tudo avaliou,
Pode dizer com certeza
Que, se o amor o abandonou,
Foi legítima defesa.
Pode dizer com certeza
Que, se o amor o abandonou,
Foi legítima defesa.
Sintomas
Ele sabe que está apaixonado
Porque o longe começa a ficar perto,
O céu sombrio lhe parece aberto
E certo lhe parece o equivocado.
Porque o longe começa a ficar perto,
O céu sombrio lhe parece aberto
E certo lhe parece o equivocado.
Naufrágio
O amor, como o Titanic,
Morreu por falta de zelo,
Bastou um pouco de gelo
Para colocá-lo a pique.
Morreu por falta de zelo,
Bastou um pouco de gelo
Para colocá-lo a pique.
Mario Quintana
Para Mario Quintana, fazer poesia era tão natural quanto respirar, porém muito mais prazeroso.
Subsistência
Os poetas antigos só precisavam de três coisas para viver: pão, água e amor - não necessariamente nessa ordem.
Testemunha
Quando, depois de lhe encherem os bolsos com pedras, atiraram o amor ao rio, passou em voo rasante um pássaro acusador: eu vi, eu vi, eu vi.
Marco
Demos adeus ao amor. Foi a última coisa importante que fizemos. A vida continuou, mas tudo já passara a pertencer então à esfera e ao domínio da morte.
Soneto do amor sem nenhum caráter
Se alguém tivesse nos dito
Que o amor era mentiroso,
Que era um falso, um asqueroso,
Um desgraçado, um maldito.
Se tivéssemos notado
Como era ardiloso, esquivo,
Como era dúbio e furtivo,
Se houvéssemos desconfiado,
Certamente o ignoraríamos
E a porta não lhe abriríamos.
Que ele morresse lá fora!
Tivemos bom coração,
E quem é que esse ladrão
Consegue expulsar agora?
Que o amor era mentiroso,
Que era um falso, um asqueroso,
Um desgraçado, um maldito.
Se tivéssemos notado
Como era ardiloso, esquivo,
Como era dúbio e furtivo,
Se houvéssemos desconfiado,
Certamente o ignoraríamos
E a porta não lhe abriríamos.
Que ele morresse lá fora!
Tivemos bom coração,
E quem é que esse ladrão
Consegue expulsar agora?
terça-feira, 21 de abril de 2015
Respeito
Muito do terror solene que inspiravam as provas no meu tempo de colégio vinha do fato de elas serem feitas obrigatoriamente em folhas de papel almaço.
Modo(s)
Alguns advérbios de modo não têm modos nenhuns. Escandalosamente, por exemplo, ou despudoradamente.
Questão de saúde
As vírgulas são aquelas pausas recomendadas pelos gramáticos para que o sujeito não chegue ao final da oração precisando de um balão de oxigênio.
Hospício
Sempre o mais pífio bufão
É aquele que exige pouco.
Quem quer ser um simples louco
Se pode ser Napoleão?
É aquele que exige pouco.
Quem quer ser um simples louco
Se pode ser Napoleão?
Mario Quintana
Casimiro de Abreu e Mario Quintana, se houvessem sido contemporâneos, teriam certamente escrito poemas a duas mãos e um só coração juvenil.
Mario Quintana
Mario Quintana era tão avesso a escolas poéticas e normas literárias que, se viesse a escrever um manual, seria provavelmente um ensinando a arte de não apanhar borboletas.
Mario Quintana
Mario Quintana tinha com as palavras uma dessas relações que o tempo sempre acaba transformando de amizade em amor.
Circo
Suspensa na mão da menina, a pipoca será poupada enquanto o trapezista não acabar de executar o triplo salto mortal.
Caixa
Se acaso o amor nos concede
Mais que o habitual suprimento,
No mesmo instante nos pede
O total ressarcimento.
Mais que o habitual suprimento,
No mesmo instante nos pede
O total ressarcimento.
Figuras
Acredito que uma das razões pelas quais a gramática é tão malvista seja o nome de algumas de suas figuras, assustadoras como os mais horripilantes monstros ou as mais nefastas doenças. Quem tem ânimo de seguir adiante depois de se deparar com horrores como zeugma, apócope, sintagma, anástrofe, sinédoque, parequema e anacoluto?
Soneto em que se exorta uma dama
Por esta intensa ternura
Que sempre tive por ti,
Abraça-me com loucura,
Beija-me com frenesi.
Repete-me aquela jura
Que uma vez de ti ouvi,
Jura de novo, rejura,
Finge que não a entendi.
Esquece que és uma dama,
Me morde a boca, me arranha,
Grita que me amas, exclama
Que sou teu dono e senhor,
E acalma em mim esta sanha,
Este fogo, este furor.
Que sempre tive por ti,
Abraça-me com loucura,
Beija-me com frenesi.
Repete-me aquela jura
Que uma vez de ti ouvi,
Jura de novo, rejura,
Finge que não a entendi.
Esquece que és uma dama,
Me morde a boca, me arranha,
Grita que me amas, exclama
Que sou teu dono e senhor,
E acalma em mim esta sanha,
Este fogo, este furor.
Um trecho de "Niels Lyhne", de Jens Peter Jacobsen
"Como era bela e doce e pura! Amava-a com fervor, de joelhos implorava, aos seus pés, toda aquela beleza enlouquecedora. Lança-te do alto do teu trono e vem até mim! Faz-te minha escrava, põe tu própria a cadeia de escrava ao pescoço, mas não por brinquedo, quero sacudir essa cadeia, terá de haver obediência em todos os teus membros, servidão no teu olhar! Ah, se pudesse fazê-la curvar-se a ele com um elixir de amor!"
(Tradução de J. Silva Duarte, publicação da Livraria Civilização Editora.)
(Tradução de J. Silva Duarte, publicação da Livraria Civilização Editora.)
segunda-feira, 20 de abril de 2015
Leitor tradicional
"Para mim, a decadência dos jornais começou quando eles deixaram de publicar a seção de filatelia."
Mau gosto
Falar de morte é pecado,
É desleal, é vilania,
Com este sol escancarado,
Com esta beleza de dia.
É desleal, é vilania,
Com este sol escancarado,
Com esta beleza de dia.
Balança
Devamos sempre ao amor.
Quem, tolo, lhe pagará,
Sabendo que não virá
Quando não for mais credor?
Quem, tolo, lhe pagará,
Sabendo que não virá
Quando não for mais credor?
Precaução
Uma estrela das pequenas caiu num quintal. O cachorro latiu por uma boa meia hora, para advertir os donos, mas eles não acordaram. Então, sem saber se a estrela era perigosa, por via das dúvidas ele a engoliu, como fazia com os gatos imprudentes.
Ilusão
Um filete de sol ficou enroscado numa calcinha escura, no varal. Quando chegou a noite, um vaga-lume pousou amorosamente sobre ele.
Ela
Lá vai o texto, resoluto, assobiando uma marcha militar, quando atravessa seu caminho nada mais nada menos que uma partícula apassivadora, e ele se modifica da cabeça aos pés.
Travessura
Não acredito que o poeta, mesmo o moderno, deva procurar obsessivamente a contenção e a sobriedade. Como faz bem uma verborragiazinha de vez em quando, uma dessas transgressões que nos levam a crer que o coração ainda mande alguma coisa!
Nome
Queria ter um nome que ribombasse como um trovão no céu: Nabucodonosor. Chamava-se José. Zé, para os íntimos, e também para os demais.
Único
Talvez tu saibas, talvez
Tu não compreendas jamais
Que o amor vem só uma vez,
Vai embora, e nunca mais.
Tu não compreendas jamais
Que o amor vem só uma vez,
Vai embora, e nunca mais.
Anfiguri
O mérito de Confúcio,
Aquilo que o tornou grande,
Foi notar que a cada glande
Correspondia um prepúcio.
Aquilo que o tornou grande,
Foi notar que a cada glande
Correspondia um prepúcio.
Concurso
Fez um poema
rimando energúmenos
com catecúmenos
mas a comissão julgadora
deu o primeiro lugar
a uma poesia inovadora
que rimava digitar
com facebookear.
rimando energúmenos
com catecúmenos
mas a comissão julgadora
deu o primeiro lugar
a uma poesia inovadora
que rimava digitar
com facebookear.
Cena
A delicadeza sem par
de Simone de Beauvoir
quando na hora de partir
para ir ver Nelson Algren
nos EUA
dizia beijando Sartre
au révoir
mon chéri
au révoir.
de Simone de Beauvoir
quando na hora de partir
para ir ver Nelson Algren
nos EUA
dizia beijando Sartre
au révoir
mon chéri
au révoir.
Círculo
Enquanto lentos definham
Os nossos gênios atuais,
Mortos estão os que tinham
Julgado ser imortais.
Os nossos gênios atuais,
Mortos estão os que tinham
Julgado ser imortais.
Apressado
O desfortunado bispo Sardinha teve o azar de vir ao Brasil quando ainda não existia o Ibama.
Soneto da cautela que tivemos com o amor
Tivemos tato com o amor.
Estávamos alertados
Sobre os seus casos passados
E sua fama de traidor.
Procedemos com rigor.
Fizemo-nos de rogados,
Não lhe fizemos agrados,
Sempre alegando pudor.
Quando ele, como receávamos,
Foi embora certo dia,
Já preparados estávamos.
Por jamais nos termos dado,
De nós nunca ele riria
Com seu riso debochado.
Estávamos alertados
Sobre os seus casos passados
E sua fama de traidor.
Procedemos com rigor.
Fizemo-nos de rogados,
Não lhe fizemos agrados,
Sempre alegando pudor.
Quando ele, como receávamos,
Foi embora certo dia,
Já preparados estávamos.
Por jamais nos termos dado,
De nós nunca ele riria
Com seu riso debochado.
Mario Quintana
A poesia de Mario Quintana é como o cheiro morno da primeira fornada de pãezinhos do dia, que o vento aspira avidamente, misturado com o aroma orvalhado das flores.
Lambdacismo
Está certo que Sicrano é um nome forjado, mas isso não dá a ninguém o direito de chamá-lo de Siclano.
Destino
Se o amor te escolheu, querida,
Não hesites, não receies,
Não negues, não regateies,
Dá-lhe logo toda a vida.
Não hesites, não receies,
Não negues, não regateies,
Dá-lhe logo toda a vida.
Senhor
Se lhe ordena sua voz,
Ainda que fortes os laços,
O amor desfaz os abraços
E se liberta de nós.
Ainda que fortes os laços,
O amor desfaz os abraços
E se liberta de nós.
domingo, 19 de abril de 2015
Aurea mediocritas
Às vezes o grande ideal
É apenas aquela farsa
Com a qual um homem disfarça
A sua vida banal.
É apenas aquela farsa
Com a qual um homem disfarça
A sua vida banal.
Júbilo
O amor nos terá iludido
como a tantos outros iludiu
e sairemos todos
e sorriremos ao sol
como sorriem só
os escolhidos.
como a tantos outros iludiu
e sairemos todos
e sorriremos ao sol
como sorriem só
os escolhidos.
Traços biográficos
Terei morrido
e quem se importará
e quem terá como assunto
o que houver ocorrido
seja o que for
mesmo que seja o amor
na vida de um defunto?
e quem se importará
e quem terá como assunto
o que houver ocorrido
seja o que for
mesmo que seja o amor
na vida de um defunto?
Espelho
Em você, minha querida,
Quando ela quer reinspirar-se
E no apogeu reencontrar-se,
É que vai espiar-se a vida.
Quando ela quer reinspirar-se
E no apogeu reencontrar-se,
É que vai espiar-se a vida.
Vingança
Quando o fazendeiro fechou de tal forma os galinheiros que eles se tornaram inexpugnáveis, os lobos desforraram-se devorando o espantalho.
Foco
Um romance pode ser analisado sob vários pontos de vista. Às vezes o mais acertado é o do autor.
Civilizados
No início ele não sabia,
Depois ele relevou.
Como um só deles traía,
A história não azedou.
Depois ele relevou.
Como um só deles traía,
A história não azedou.
Mario Quintana
Os versos de Mario Quintana, assim como os de Casimiro de Abreu, têm o gosto único daqueles frutos nascidos na imaginação e postos no desenho de um menino que quer encantar com ele a nova professorinha do segundo ano.
A escolha
Hesitava entre mandar de presente à amada um gato ou uma quadrinha. Optou pelo gato, porque lhe pareceu pouco provável que, mesmo com um temperamento romântico, a amada beijasse uma folha de papel.
sábado, 18 de abril de 2015
Mario Quintana
Mario Quintana era um desses irresistíveis piscares de olhos, uma dessas lentas ajeitadas de cabelos que a poesia usa quando quer se mostrar mais graciosa.
"Soneto", de Ana Cristina Cesar
"Pergunto aqui se sou louca
Quem quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?"
(De Inéditos e dispersos, publicado pela Editora Brasiliense.)
Quem quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?"
(De Inéditos e dispersos, publicado pela Editora Brasiliense.)
sexta-feira, 17 de abril de 2015
Soneto dos sonetos pavorosos
Que vais fazer, minha amada,
Dos teus troféus amorosos,
Daquela sonetalhada,
Dos quartetos horrorosos?
Ah, bem poderia ser,
Porque és deles a razão,
Que conseguisses fazer
Melhor minha inspiração.
Outro poeta merecias
Por todas as alegrias
Que de ti eu recebi.
Ah, triste é não ter valor
Tudo que com tanto amor
Fiz por ti e para ti.
Dos teus troféus amorosos,
Daquela sonetalhada,
Dos quartetos horrorosos?
Ah, bem poderia ser,
Porque és deles a razão,
Que conseguisses fazer
Melhor minha inspiração.
Outro poeta merecias
Por todas as alegrias
Que de ti eu recebi.
Ah, triste é não ter valor
Tudo que com tanto amor
Fiz por ti e para ti.
Espectro
Quando parecia estar
Perdido já no passado,
O amor volta a me pesar
Como um defunto afogado.
Perdido já no passado,
O amor volta a me pesar
Como um defunto afogado.
Contabilidade
A vida, no deve e haver,
Contando aquilo que resta,
E tirando o que não presta,
Fica sempre a nos dever.
Contando aquilo que resta,
E tirando o que não presta,
Fica sempre a nos dever.
Corretíssimos
Os escritores enfadonhos geralmente escrevem muito bem. O sujeito é claro, o verbo correto e os objetos sempre bem definidos. De vez em quando nos fazem consultar o dicionário, mas só umas três vezes por página, o que não chega a ser um transtorno.
Mario Quintana
Ter ocorrido a Mario Quintana ser um poeta foi certamente um dos preciosos momentos em que as conjunções astrais atingiram a perfeição.
Quem
Amor, quem é que há de guiar-nos
Para o nosso descaminho,
O nosso doce extermínio,
Se tu vieres a faltar-nos?
Para o nosso descaminho,
O nosso doce extermínio,
Se tu vieres a faltar-nos?
Quase
Alguma coisa faltou,
Foi pouco, agora sabemos,
Porém já nada mais temos,
E o tempo, ah o tempo passou.
Foi pouco, agora sabemos,
Porém já nada mais temos,
E o tempo, ah o tempo passou.
Versão
Que lindo quando me dizes,
Quando até eu já duvido,
Que valeu todo o vivido,
E foste (e fomos) felizes.
Quando até eu já duvido,
Que valeu todo o vivido,
E foste (e fomos) felizes.
Rimas
Quando escrevo que me lembro,
A rima vem me forçar
E diz para me lembrar
Em setembro ou em novembro.
Novembro?, eu penso, setembro?
Eu me ponho a analisar
E, opte por qual eu optar,
Não me perdoará dezembro.
A rima vem me forçar
E diz para me lembrar
Em setembro ou em novembro.
Novembro?, eu penso, setembro?
Eu me ponho a analisar
E, opte por qual eu optar,
Não me perdoará dezembro.
Cisma
Digam o que disserem os gramáticos, um sujeito oculto traz sempre uma presunção de ilegalidade.
quinta-feira, 16 de abril de 2015
Rito real
Um gato há de dispor sempre de algum tempo para receber seus súditos, desde que não lhe atrapalhem as sonecas com afagos além da conta.
Fernandos
Quem mais levou a sério a dúvida shakespeariana entre ser e não ser foi Fernando Pessoa. Não conseguindo resolvê-la, foi cem.
Estilo
Ter um estilo é escrever em 2015 um texto da mesma forma como se poderia tê-lo escrito em 2005.
Tal qual
Nos sonhos, as palavras da amada lhe chegam macias como os passos de um gato sobre um tapete.
Sabor morango
Palavras que passam por lábios com batom costumam ficar muito mais excitantes. Eu te amo, por exemplo.
Alento
Abrir um parágrafo deve dar sempre ao leitor a esperança de que o texto possa enfim melhorar.
Conflito de classes
Nas novelas de Agatha Christie, se uma faca de cozinha degola um dos nobres convidados, será naturalmente uma faca de prata.
Detalhistas
Certos escritores descrevem o interior de uma casa como se fossem corretores de imóveis ou decoradores.
Rotas
Há quem em mar calmo viva,
Com as bênçãos que Deus lhe deu,
E há quem só vogue à deriva,
Ai de mim, assim como eu.
Com as bênçãos que Deus lhe deu,
E há quem só vogue à deriva,
Ai de mim, assim como eu.
Autossuficiência
Que orgulhosos são os verbos intransitivos, que prescindem do sujeito e dos complementos. Que doce arrogância há em chover, por exemplo, ou nevar.
Mario Quintana
Mario Quintana tinha especial afeição pelas pequenas coisas. E elas sempre lhe retribuíam esse amor, com a tocante generosidade dos humildes.
Singular pluralidade
Que singular prazer desfrutam aqueles substantivos que só se usam no plural. Ah, o nariz empinado das férias, dos óculos, das alvíssaras.
Janela
Ficamos olhando
passar a vida
indagando sobre seus possíveis sentidos
e quando julgamos achar um
ela havia passado toda
e dispensava-se já
de ter qualquer significado.
passar a vida
indagando sobre seus possíveis sentidos
e quando julgamos achar um
ela havia passado toda
e dispensava-se já
de ter qualquer significado.
quarta-feira, 15 de abril de 2015
O aroma
O amor será como o aroma deixado por uma flor numa gaveta aberta muitos anos depois. Dela não terá restado mais que um pó de cor indefinida, e a empregada, com o pano na mão, para a limpeza, imaginará aspirar a brisa que chega pela janela.
Tribunal
Seja o recurso qual for,
Jamais será atendido.
O amor não se dobra, o amor
É um déspota esclarecido.
Jamais será atendido.
O amor não se dobra, o amor
É um déspota esclarecido.
Todo certinho
Se o amor tivesse bom-senso,
Fosse uma coisa arrazoada,
Seria um xarope imenso,
A mais chocha patacoada.
Fosse uma coisa arrazoada,
Seria um xarope imenso,
A mais chocha patacoada.
Fiscais
Se houvesse fiscais gramaticais, todos enriqueceriam, quer fossem mil, dez mil ou cem mil - se soubessem gramática, naturalmente.
Mario Quintana
De Mario Quintana eu sei o essencial: foi poeta. Todo o resto são detalhes biográficos.
Pistas
Alguns poetas têm pejo de se proclamar e agem sempre com muito cuidado quando vão tirar algo dos bolsos, para não serem denunciados pela indiscreta queda de pétalas de rosa.
!
Os pontos de exclamação parecem estacas fincadas no texto: daqui ninguém passa! Quando se juntam dois ou três, é puro despotismo.
Coerência
Deram aos verbos defectivos um nome tão feio que não é de se estranhar eles se portarem tão mal.
Poetas
Mas que ausência de pudor
Somos forçados a ver.
Escrever poemas de amor
É não ter o que dizer.
Somos forçados a ver.
Escrever poemas de amor
É não ter o que dizer.
Iconoclastia
Arrastado pela correnteza para a goela de um bueiro, o barquinho de papel lastima-se: não se respeita nem mais a nostalgia.
Promiscuidade
O advérbio deveria relacionar-se apenas com o verbo. Talvez tenha sido assim, no início. Depois, um afrouxamento nos costumes gramaticais permitiu que ele mantivesse flertes também com os adjetivos e, em seguida, para horror dos puristas, com outros advérbios. E a degeneração parece estar em curso ainda, estendendo-se às conjunções, como se pode ver pela estranha combinação que anda aí pelos textos: muito embora.
terça-feira, 14 de abril de 2015
Símiles
Um soneto parnasiano só tem uma vantagem, ou desvantagem, sobre um vaso de cristal: a de não quebrar-se nunca.
Mario Quintana
Mario Quintana, que abominava as escolas literárias, se fosse para a Academia acredito que se sentiria como um passarinho catalogado e engaiolado.
Identidade
Se um cronista não sabe quantas árvores há em sua rua e quantos passarinhos moram em cada uma delas, desconfie dele e exija que lhe mostre a carteirinha.
Alienação
Os poetas são tão distraídos que podem levar no ombro uma borboleta, de um canto a outro da cidade, e só perceber se alguém, no ônibus ou no metrô, lhes chamar a atenção.
Paciência
Se, num romance, o amor não aparecer até a página 10, talvez o leitor benevolente se disponha a iniciar a leitura da página 11.
Recaída
Mesmo que precisemos alterar alguns fatos, dar uma roubadinha aqui e uma furtadinha ali, o amor há de parecer sempre puro para nós, como era no início, quando ainda não precisávamos manipulá-lo com nossas pequenas falcatruas.
O avô
O amor agora é para ele como um avô de barbas bem brancas que conta histórias sem nexo e a todo instante, mesmo debaixo do sol, queixa-se de frio nas mãos.
Indício
Dizem que morreu de amor, porque onde foi sepultado nasceu uma flor que verte lágrimas mesmo quando não chove.
Limites
As odes nascem daquelas situações em que a poesia, como um violino invejando um tambor, sente a tentação de soar como prosa.
História
Na batalha pelo amor
alguns morreram
e cada um foi por ele
pranteado
sepultado
e reconhecido
Os que se salvaram
nunca se perdoaram
por terem sobrevivido.
alguns morreram
e cada um foi por ele
pranteado
sepultado
e reconhecido
Os que se salvaram
nunca se perdoaram
por terem sobrevivido.
Honra
Aos que morrem por ele, o amor reserva um espaço no seu solo sagrado: aquele onde nascem os lírios e as rosas.
Esperança
Morrer por amor é uma dessas raras expectativas que podem estimular um homem a continuar vivendo.
Um trecho de Rainer Maria Rilke
"Leia o menos possível coisas estéticas e críticas - ou são visões parciais, que se tornaram petrificadas e sem sentido em sua inanimada obstinação, ou são hábeis jogos de palavras, nas quais hoje domina uma opinião, amanhã a oposta. Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode alcançá-las tão pouco quanto a crítica. Somente o amor pode compreendê-las e captá-las e ser justo com elas."
(De "Carta ao jovem poeta Kappus", extraído do livro A melodia das coisas, tradução de Claudia Cavalcanti, publicação da Estação Liberdade.)
(De "Carta ao jovem poeta Kappus", extraído do livro A melodia das coisas, tradução de Claudia Cavalcanti, publicação da Estação Liberdade.)
segunda-feira, 13 de abril de 2015
Soneto da crença que tenho no amor
Sim, eu sou um sonhador.
Acredito ainda em boleros,
No poder dos lero-leros
E das cartinhas de amor.
Creio também no fervor
Dos juramentos sinceros,
E também nos insinceros
Vejo sempre algum valor.
Tudo que do amor nos vem
Por definição é um bem,
Mesmo que assim não pareça.
Eu louvo o amor ternamente,
Com o coração, a alma e a mente,
Ainda que ele não mereça.
Acredito ainda em boleros,
No poder dos lero-leros
E das cartinhas de amor.
Creio também no fervor
Dos juramentos sinceros,
E também nos insinceros
Vejo sempre algum valor.
Tudo que do amor nos vem
Por definição é um bem,
Mesmo que assim não pareça.
Eu louvo o amor ternamente,
Com o coração, a alma e a mente,
Ainda que ele não mereça.
Do contra
Na gramática, as dissidências são sempre encabeçadas pelos antônimos, pelos advérbios de negação e pelas conjunções adversativas.
Vírgula
Na dúvida entre pôr ou não uma vírgula numa frase, ponha. Ela dá sempre uma impressão de texto bem cuidado.
Estratagema
O sujeito oculto é uma das tentativas da gramática para se tornar um pouco menos maçante.
Estoque
Na noite em que o poetastro jurou que jamais faria mais um verso sequer, suas rimas dormiram o mais tranquilo dos sonos em sua gaveta de ouro. Mas, de manhã, foram acordadas pelo desmemoriado patife, que bradava: "Sol, cadê você? Onde está você, arrebol?"
Ana
vi um pássaro voar
do sétimo andar
Não voava bem
me lembrou alguém
Ah foi você
menina traquina
Ah foi você
aninha c?
do sétimo andar
Não voava bem
me lembrou alguém
Ah foi você
menina traquina
Ah foi você
aninha c?
Parágrafo inicial de "O tambor", de Günter Grass
"Admito: sou interno de um hospício. Meu enfermeiro está me observando, quase nunca tira os olhos de mim; porque na porta há um postigo e os olhos do meu enfermeiro são desse castanho que não consegue penetrar o azul dos meus."
(Tradução de Lúcio Alves, publicação da Rio Gráfica.)
(Tradução de Lúcio Alves, publicação da Rio Gráfica.)
"A noite/1", de Eduardo Galeano
"Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, publicação da L&PM Pocket.)
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, publicação da L&PM Pocket.)
Culpa
Diante da gramática nos sentimos sempre como se nossa gravata estivesse toda babada e tivéssemos esquecido de fechar a braguilha.
Cotação
Andamos tão mal-humorados e aborrecidos com o mundo que não estranharei se um dia destes um repórter der nota 6 a um arco-íris.
Criação
No primeiro dia o menino desenhou o céu, e viu que era bom. No segundo desenhou o mar, e viu que era bom. No terceiro notou que o lápis estava sem ponta e ficou com preguiça de continuar brincando de Deus. Como último ato, decretou que era domingo e foi descansar embaixo da ameixeira.
Mario Quintana
Mario Quintana dizia
Que o amor cobrava seu preço:
À alma que amava exigia,
E à amada, o mesmo endereço.
Que o amor cobrava seu preço:
À alma que amava exigia,
E à amada, o mesmo endereço.
Hora H
Ninguém a adia ou evita,
Chega sempre o dia, e a hora,
De receber a visita
Da Infatigável Senhora.
Chega sempre o dia, e a hora,
De receber a visita
Da Infatigável Senhora.
domingo, 12 de abril de 2015
2009
Talvez nos vejamos
na paulista
na consolação
Talvez nos reconheçamos
talvez
melhor não
Quem ainda se comove
ao rever um rosto
de 2009?
Quem acredita
que uma manhã
de verão se repita?
na paulista
na consolação
Talvez nos reconheçamos
talvez
melhor não
Quem ainda se comove
ao rever um rosto
de 2009?
Quem acredita
que uma manhã
de verão se repita?
Soneto de como tratamos o amor
Celebramos hoje o amor,
Mas quando nós o tivemos
Que tratamento lhe demos,
Onde estava este fervor?
Ele se pôs ao dispor
E dele nós dispusemos,
Mas logo nos desfizemos
Sem remorso e sem pudor.
Ontem nós o rejeitamos,
O negamos, renegamos,
Hoje dizemos amá-lo.
Queremos tudo fazer
Para dele dignos ser.
Podemos ressuscitá-lo?
Mas quando nós o tivemos
Que tratamento lhe demos,
Onde estava este fervor?
Ele se pôs ao dispor
E dele nós dispusemos,
Mas logo nos desfizemos
Sem remorso e sem pudor.
Ontem nós o rejeitamos,
O negamos, renegamos,
Hoje dizemos amá-lo.
Queremos tudo fazer
Para dele dignos ser.
Podemos ressuscitá-lo?
"A oferenda", de Mario Quintana
"Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio."
(De Nova antologia poética, Editora Globo.)
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio."
(De Nova antologia poética, Editora Globo.)
sábado, 11 de abril de 2015
Amor &
Do amor já falamos tudo,
Chegamos a nos fartar,
Falamos tudo e contudo
Ainda há tanto por falar.
Chegamos a nos fartar,
Falamos tudo e contudo
Ainda há tanto por falar.
Má escolha
Em vez de passar a vida falando do amor, eu deveria ter-me ocupado com os gatos. Eles arranham também, mas só quando têm motivo, e não há no mundo maciez que se compare à do seu pelo quando acariciado.
Mario Quintana
Mario Quintana sabia lidar com as palavras como tantos outros e, ao mesmo tempo, como mais nenhum.
Mario Quintana
Dizer o nome Quintana é assumir instantaneamente o poder de abrir sorrisos e predispor as pessoas a um estado único de leveza espiritual.
sexta-feira, 10 de abril de 2015
Cerimônia
Quando eu, na extrema agonia,
Triste perguntar por ti,
Dirão que estarás aqui,
Mas só no sétimo dia.
Triste perguntar por ti,
Dirão que estarás aqui,
Mas só no sétimo dia.
Soneto de quem tem o amor como guia
Quem tem o amor como guia
De nada se queixará
E não reivindicará
Recompensa ou alegria.
Resignado aceitará
Pão mofado, cama fria,
E de dor ou agonia
Jamais se lastimará.
Estando ao lado do amor
Onde, quando e como for,
Lhe será grato viver.
E se algo pedir a Deus
Pedirá que os dias seus
Morram quando o amor morrer.
De nada se queixará
E não reivindicará
Recompensa ou alegria.
Resignado aceitará
Pão mofado, cama fria,
E de dor ou agonia
Jamais se lastimará.
Estando ao lado do amor
Onde, quando e como for,
Lhe será grato viver.
E se algo pedir a Deus
Pedirá que os dias seus
Morram quando o amor morrer.
Inscrição
No dia em que você conclui que narrar a vida é mais importante que vivê-la, você passa a pertencer à extravagante categoria dos escritores.
Alívio
Quando eu morrer, estarás
Isenta de me atender,
De pedir para dizer
Que não vieste, não estás.
Isenta de me atender,
De pedir para dizer
Que não vieste, não estás.
Plus
Não me pergunte a medida
Nem de onde a ideia tirei.
Nem mesmo eu sei por que sei
Que o amor vale mais que a vida.
Nem de onde a ideia tirei.
Nem mesmo eu sei por que sei
Que o amor vale mais que a vida.
Politicamente correto
Só não diz ser um zero à esquerda porque receia ser envolvido em questões ideológicas.
Enjoadinho
Nenhum remédio adiantou,
Nenhum esforço valeu,
O amor conosco emburrou,
Nos deu banana e morreu.
Nenhum esforço valeu,
O amor conosco emburrou,
Nos deu banana e morreu.
Soneto da paz em que morreremos (versão final)
Nós morreremos em casa,
Não sob o calor da chama
Que queima sempre quem ama
E deixa-lhe o peito em brasa.
Nós morreremos dormindo
Com tanta normalidade,
Tão sem dramaticidade,
Que morreremos sorrindo.
Bem melhor nós morreríamos
No tempo em que nós morríamos
Por um abraço, um sorriso,
E em que, para um só ganhar,
Nos agradaria dar
Nossa vida, se preciso.
Não sob o calor da chama
Que queima sempre quem ama
E deixa-lhe o peito em brasa.
Nós morreremos dormindo
Com tanta normalidade,
Tão sem dramaticidade,
Que morreremos sorrindo.
Bem melhor nós morreríamos
No tempo em que nós morríamos
Por um abraço, um sorriso,
E em que, para um só ganhar,
Nos agradaria dar
Nossa vida, se preciso.
quinta-feira, 9 de abril de 2015
Ontem
Houve uma tarde em que a vida
Para nós teve sentido.
Ai de nós, hoje eu duvido
E você também duvida.
Para nós teve sentido.
Ai de nós, hoje eu duvido
E você também duvida.
Demais
Tão grande imaginamos o amor que, ainda que vivêssemos mil vidas, jamais conseguiríamos merecê-lo.
Cobrança
Terá chegado o tempo de pagar.
Afogado, com algas nos cabelos,
O amor perguntará, em pesadelos,
Que razão tivemos de o matar.
Afogado, com algas nos cabelos,
O amor perguntará, em pesadelos,
Que razão tivemos de o matar.
Sofá
Triste é o sofá sobre o qual nunca esteve deitado um gato com os olhos enevoados de remela e sono.
Tédio
As histórias de amor são tão maçantes...
Como são previsíveis os amores...
Se contar uma história dessas fores,
Ah, por favor, me poupa, avisa-me antes.
Como são previsíveis os amores...
Se contar uma história dessas fores,
Ah, por favor, me poupa, avisa-me antes.
Acalanto
Aninhar-me no teu trigo,
Afundar-me em teus cabelos,
Pintados de noite vê-los
E dormir com eles, contigo.
Afundar-me em teus cabelos,
Pintados de noite vê-los
E dormir com eles, contigo.
Quer
Quer nos tolere, quer não,
Quer nos ame, quer maltrate,
Quer nos poupe, quer nos mate,
O amor tem sempre razão.
Quer nos ame, quer maltrate,
Quer nos poupe, quer nos mate,
O amor tem sempre razão.
Relâmpago
Tínhamos tanto a fazer,
Tanto a medir, a checar,
Que não chegamos a ver
A nossa vida passar.
Tanto a medir, a checar,
Que não chegamos a ver
A nossa vida passar.
Coerência
Se chamas isso de amor,
Que possa eu então chamar,
Para de ti não destoar,
O teu chicote de flor.
Que possa eu então chamar,
Para de ti não destoar,
O teu chicote de flor.
quarta-feira, 8 de abril de 2015
Lições
Começa a se habituar com a morte do amor. Já não vai abrir a porta quando o vento a toca e aprendeu que o ruído na janela, de madrugada, é só a ameixeira cabeceando de sono.
Menos
Quando viu que não conseguiria arrastar para baixo a lua, resignou-se a descer com uma estrela, a menor delas, imaginando como a amada o censuraria por mais essa inaptidão.
Mendigo
A ele nós nos demos tanto
Que nos estranhou o amor.
Esmola de alto valor
Deixa desconfiado o santo.
Que nos estranhou o amor.
Esmola de alto valor
Deixa desconfiado o santo.
A melhor
Tu dizes que o amor te mata,
E te lamentas, e choras.
O que, criatura, deploras?
Tu queres morte mais grata?
E te lamentas, e choras.
O que, criatura, deploras?
Tu queres morte mais grata?
Autor
Se o amor vier a te faltar,
Por esse teu sofrimento,
Por todo esse teu tormento,
A quem irás tu culpar?
Por esse teu sofrimento,
Por todo esse teu tormento,
A quem irás tu culpar?
Última curva
Sei que mais nada vai acontecer.
Glória jamais, nem hoje nem no fim.
Mas ainda escrevo, e acho melhor assim:
Escrever, escrever por escrever.
Glória jamais, nem hoje nem no fim.
Mas ainda escrevo, e acho melhor assim:
Escrever, escrever por escrever.
Mario Quintana
Mario Quintana sabia,
Sem precisar anotar,
O rumo preciso do ar
E o endereço da poesia.
Sem precisar anotar,
O rumo preciso do ar
E o endereço da poesia.
A palavra
Que belos os necrológios
em que surge a palavra amor
A cada vez que aparece
mais o defunto se enobrece
e mais injusto parece
o desígnio do Criador.
em que surge a palavra amor
A cada vez que aparece
mais o defunto se enobrece
e mais injusto parece
o desígnio do Criador.
Sempre um
Porém há sempre um calhorda
A quem o amor, com jeitinho,
Manda subir no banquinho
Enquanto prepara a corda.
A quem o amor, com jeitinho,
Manda subir no banquinho
Enquanto prepara a corda.
Amor
Nos mata sem compaixão.
Depois, com as mãos amorosas,
Espalha em nosso caixão
Uma mortalha de rosas.
Depois, com as mãos amorosas,
Espalha em nosso caixão
Uma mortalha de rosas.
Cotação do dia
Se eu soubesse dar saltos mortais no trapézio, me agradaria dar o último num dia como este, e espatifar-me de cara num picadeiro em que estivesse escrita em letras enormes a palavra ESPERANÇA.
Aleluia
Estar travado
por três
por seis meses
ou mais
às vezes
é o melhor recado
que o escritor
mesmo consagrado
pode dar
ao seu abnegado leitor.
por três
por seis meses
ou mais
às vezes
é o melhor recado
que o escritor
mesmo consagrado
pode dar
ao seu abnegado leitor.
terça-feira, 7 de abril de 2015
Intimidade
É atrevida, já se vê.
Para ela o Proust é Marcel,
O Descartes é meu René
E o Kant é caro Immanuel.
Para ela o Proust é Marcel,
O Descartes é meu René
E o Kant é caro Immanuel.
Média histórica
Em tudo que penso ou faço,
Jamais, no final da história,
Obtenho renome ou glória,
Só decepção e cansaço.
Jamais, no final da história,
Obtenho renome ou glória,
Só decepção e cansaço.
Intimidade
É atrevida, já se vê.
Chama Proust de Marcel,
Descartes de meu René,
Kant de caro Immanuel.
Chama Proust de Marcel,
Descartes de meu René,
Kant de caro Immanuel.
Norma
Se queres que amiga e amigo,
Namorada e companheiro
Estejam sempre contigo,
Não lhes emprestes dinheiro.
Namorada e companheiro
Estejam sempre contigo,
Não lhes emprestes dinheiro.
Mario Quintana
Mario Quintana era carinhoso com a beleza. Depois de cada frase lhe perguntava: "Não é mesmo, guria?"
Ardil
Alguns, para assegurar
Honras no céu ou no inferno,
Garantem, com o olhar mais terno,
Que morreram por amar.
Honras no céu ou no inferno,
Garantem, com o olhar mais terno,
Que morreram por amar.
Ontem
Ainda ontem riam, cantavam.
Distante ainda estava o pó.
O amor era um verbo, só,
E os dois não o conjugavam.
Distante ainda estava o pó.
O amor era um verbo, só,
E os dois não o conjugavam.
Fé
O amor sempre nos submete.
Sempre mantemos a fé
No que nos oferta, e até
Naquilo que nem promete.
Sempre mantemos a fé
No que nos oferta, e até
Naquilo que nem promete.
Hora de
Já não posso te dizer
O que te dizia outrora.
Mudou tudo, e agora é hora
Não de viver, de morrer.
O que te dizia outrora.
Mudou tudo, e agora é hora
Não de viver, de morrer.
Mario Quintana
Muito cedo a poesia percebeu que podia confiar em Mario Quintana, talvez pelo modo com que ele olhava para as estrelas e às vezes piscava marotamente para uma delas.
Talvez até
Não me matarei por ti.
Talvez até me matasse,
Se porventura confiasse
Em que viesses ver-me aqui.
Talvez até me matasse,
Se porventura confiasse
Em que viesses ver-me aqui.
Mario Quintana
Mario Quintana nos ensinou que o simples é uma conquista do esforço e de uma obstinada persistência.
Inocência
Benditos sejam os tolos,
Que, se recebem favores
Ou agradinhos de amores,
Não sabem nem onde pô-los.
Que, se recebem favores
Ou agradinhos de amores,
Não sabem nem onde pô-los.
Mario Quintana
Em Mario Quintana o humor
Era bem dosado, fino,
Mais murmúrio que clamor,
Um humor quase londrino.
Era bem dosado, fino,
Mais murmúrio que clamor,
Um humor quase londrino.
Poder
Certas elites diretivas
Se Goethe um dia as estudasse
É bem possível que as chamasse
De nulidades eletivas.
Se Goethe um dia as estudasse
É bem possível que as chamasse
De nulidades eletivas.
"Mais um ano", de W.S. Merwin
"Nada tenho a lhe pedir,
Futuro, paraíso do pobre.
Ainda visto as mesmas coisas.
Continuo vendo o mesmo problema
Pela mesma luz,
Comendo a mesma pedra,
E as agulhas do relógio ainda espetam sem entrar."
(Tradução de Antonio Carlos Secchin, extraído da coletânea Nova poesia norte-americana, publicação da Editora e Livraria Escrita.)
Futuro, paraíso do pobre.
Ainda visto as mesmas coisas.
Continuo vendo o mesmo problema
Pela mesma luz,
Comendo a mesma pedra,
E as agulhas do relógio ainda espetam sem entrar."
(Tradução de Antonio Carlos Secchin, extraído da coletânea Nova poesia norte-americana, publicação da Editora e Livraria Escrita.)
segunda-feira, 6 de abril de 2015
Parca
O amor enreda quem ama,
Tece os fios, animado.
Mas logo cansa, enfadado
Dorme, e se desfaz a trama.
Tece os fios, animado.
Mas logo cansa, enfadado
Dorme, e se desfaz a trama.
Língua
Enquanto tens língua
grita ao mundo
a falácia do amor
Um dia quem garante
que ele não a atirará
ao caldeirão fumegante
ou à fome urgente
do seu cão?
grita ao mundo
a falácia do amor
Um dia quem garante
que ele não a atirará
ao caldeirão fumegante
ou à fome urgente
do seu cão?
Comme il faut
Amor, te presentearia
Meu coração, se o aceitasses,
E em filés o cortaria
Para que não engasgasses.
Meu coração, se o aceitasses,
E em filés o cortaria
Para que não engasgasses.
Dedo-duro
Hoje o meu sexto sentido
Veio chegando, parou,
E com jeito me insinuou
Que os cinco têm me traído.
Veio chegando, parou,
E com jeito me insinuou
Que os cinco têm me traído.
Soneto da inevitabilidade do amor
Talvez, se eu fosse um homem precavido,
Dotado de prudência e de bom-senso,
Imune ao descalabro e ao contrassenso,
Não tivesse ao amor me submetido.
Sinto o meu pensamento dividido
Sempre que nesse grave assunto penso.
Penso que errei, que não, depois repenso
E de uma e de outra conclusão duvido.
O amor é uma tamanha realidade
Que se for falso ou se for de verdade
Em nós o mesmo efeito causará.
Já que bateu um dia à nossa porta,
Se mentiu, ou se não, já não importa.
Jamais vamos deixá-lo ao deus-dará.
Dotado de prudência e de bom-senso,
Imune ao descalabro e ao contrassenso,
Não tivesse ao amor me submetido.
Sinto o meu pensamento dividido
Sempre que nesse grave assunto penso.
Penso que errei, que não, depois repenso
E de uma e de outra conclusão duvido.
O amor é uma tamanha realidade
Que se for falso ou se for de verdade
Em nós o mesmo efeito causará.
Já que bateu um dia à nossa porta,
Se mentiu, ou se não, já não importa.
Jamais vamos deixá-lo ao deus-dará.
Soneto de como gostarias de mim
Tu gostarias de mim
Se eu fosse todo assentado,
Decente e disciplinado,
Se eu não fosse tolo assim?
Tu gostarias, me diz,
Se eu fosse um mestre aclamado,
Um professor renomado
Com doutorado em Paris?
Talvez gostasses, mas não
Com a comovente paixão
Que revelas dia a dia
Por este rabiscador
Que se tem algum valor
É o de em ti ver a poesia.
Se eu fosse todo assentado,
Decente e disciplinado,
Se eu não fosse tolo assim?
Tu gostarias, me diz,
Se eu fosse um mestre aclamado,
Um professor renomado
Com doutorado em Paris?
Talvez gostasses, mas não
Com a comovente paixão
Que revelas dia a dia
Por este rabiscador
Que se tem algum valor
É o de em ti ver a poesia.
Um poema de Emily Dickinson
"É tudo que hoje tenho para dar-te -
Isto - e meu coração -
Isto, e meu coração, e mais os campos
E prados na amplidão -
Não te percas na conta - se eu esqueço
Alguém tem de lembrar -
Isto, e meu coração, e cada Abelha
Que no Trevo morar."
(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)
Isto - e meu coração -
Isto, e meu coração, e mais os campos
E prados na amplidão -
Não te percas na conta - se eu esqueço
Alguém tem de lembrar -
Isto, e meu coração, e cada Abelha
Que no Trevo morar."
(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)
Vieira
Os discípulos do padre Vieira só não gostavam dele quando vinha com sermões e lições de português.
Amnésia
Morou naquela casa verde um menino que morreu com nove anos, em 1958. O sol, que anda caducando já, em certas manhãs vem chamá-lo ainda, às sete, para acompanhá-lo até o colégio.
Emily
Era um desses tipos aos quais não afetam os morticínios, as catástrofes nem as calamidades. Fazia trinta anos que dedicava todos os seus dias ao estudo do travessão na obra de Emily Dickinson. Na tarde em que o encontraram morto num dos bancos do seu jardim, notaram em sua camisa uma borboleta que se recusava a ser espantada.
Perfil
De modo rápido ou lento,
Com toda a pressa ou vagar,
O amor mostra, ao se mostrar,
Que é um bicho feio e gosmento.
Com toda a pressa ou vagar,
O amor mostra, ao se mostrar,
Que é um bicho feio e gosmento.
Lema
Fazer poemas como
quem faz palavras cruzadas
Garantir assim satisfação
entretenimento
e bom humor
se não ao leitor birrento
ao menos ao autor.
quem faz palavras cruzadas
Garantir assim satisfação
entretenimento
e bom humor
se não ao leitor birrento
ao menos ao autor.
Maioridade
Surgiu então um problema.
Alguém instruiu a menina
E ela exigiu, de propina,
Um real ao invés de um poema.
Alguém instruiu a menina
E ela exigiu, de propina,
Um real ao invés de um poema.
Previsão
Quisemos dar-nos ao amor
e ele sorriu
nos disse
logo você vai ver
como vai ficar estragadinho
esse seu rosto bonito
e esse corpinho sadio.
e ele sorriu
nos disse
logo você vai ver
como vai ficar estragadinho
esse seu rosto bonito
e esse corpinho sadio.
Tocaia
Alegres, vêm as palavras beber no riacho onde as esperamos com nossa sede diária e nossa eterna presunção.
Pau pau
Se as palavras perdessem a mania da intermediação e fossem aquilo que nomeiam, sem circunlóquios.
Predestinação
Não sabiam que o sobradão abrigaria trinta anos depois um asilo de loucos, e lhes parecia estranho que o filho menor conversasse com o sol no quintal e o chamasse de Frederico.
Mario Quintana
Assim como o gato tem
Um pulo de astúcia cheio,
Que não ensina a ninguém,
Quintana tinha o gorjeio.
Um pulo de astúcia cheio,
Que não ensina a ninguém,
Quintana tinha o gorjeio.
Cego
O amor é um grande papalvo.
O seu arco ainda é o mesmo,
Porém ele atira a esmo
E já não acerta o alvo.
O seu arco ainda é o mesmo,
Porém ele atira a esmo
E já não acerta o alvo.
Folha corrida
Ouvir o amor é loucura,
É querer ser infeliz.
O amor perjura o que jura,
O amor desdiz o que diz.
É querer ser infeliz.
O amor perjura o que jura,
O amor desdiz o que diz.
Um poema de Emily Dickinson
"Ela morreu - assim ela morreu -
E quando o ar lhe foi embora
Vestiu-se em roupas simples
E partiu para o sol.
Seu vulto perto do portão
Os anjos devem ter notado -
Pois nunca a vi de novo
Aqui entre mortais."
(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)
E quando o ar lhe foi embora
Vestiu-se em roupas simples
E partiu para o sol.
Seu vulto perto do portão
Os anjos devem ter notado -
Pois nunca a vi de novo
Aqui entre mortais."
(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)
domingo, 5 de abril de 2015
Ofício
Já foi meu hobby, meu vício,
Meu mais intenso prazer.
Já foi. Mas hoje escrever
É dor, é pena, é suplício.
Meu mais intenso prazer.
Já foi. Mas hoje escrever
É dor, é pena, é suplício.
Revisão
Um dia
tudo será esclarecido
Por um engano qualquer
um mal-entendido
finalmente revelado
o amor derrotado
terá vencido
e vencedor proclamado
terá todos
os direitos reconhecidos
Gozará então
de régia aposentadoria
e morará numa mansão
digna de um estadista
na baixada santista.
tudo será esclarecido
Por um engano qualquer
um mal-entendido
finalmente revelado
o amor derrotado
terá vencido
e vencedor proclamado
terá todos
os direitos reconhecidos
Gozará então
de régia aposentadoria
e morará numa mansão
digna de um estadista
na baixada santista.
Das formas de pedir
Tudo que pedir
peça de modo veemente
e se for amor
veemente e descaradamente
O amor é aquele produto
que por tradição
é vendido
com tudo incluído
até o perdão.
peça de modo veemente
e se for amor
veemente e descaradamente
O amor é aquele produto
que por tradição
é vendido
com tudo incluído
até o perdão.
O ideal
A poesia deveria ser uma espécie de cartilha que os anjos menores aprendessem no jardim de infância do céu, junto com a arte de desenhar estrelas.
Sim
Sim
nós fazemos poesia
É uma atividade
mais charmosa
que a prosa
e mesmo quando trata
do dia a dia
se denunciada
jamais confessaria.
nós fazemos poesia
É uma atividade
mais charmosa
que a prosa
e mesmo quando trata
do dia a dia
se denunciada
jamais confessaria.
Escritor
Não teve tempo de viver. Havia sempre algo a anotar, uma observação, uma ideia, um sentimento, e os dias foram passando por ele como se não os merecesse.
Mario Quintana
Se no céu há um departamento incumbido de montar e desmontar arcos-íris, Mario Quintana certamente é o encarregado da primeira parte dessa tarefa.
Mario Quintana
Assim como para Wislawa Szymborska, para Mario Quintana o prosaico era só mais uma das fontes da poesia.
Soneto do sobrevivente
Se eu tivesse morrido ontem, como eu faria
Para dizer-te, amiga, como agora digo,
Que nesta noite se refez a epifania
E eu pude novamente me encontrar contigo?
Se eu tivesse morrido ontem, quem responderia
Quando no sonho perguntaste és tu, amigo?
E quem, amiga, diz, te tranquilizaria,.
Pedindo que não te ocupasses mais comigo?
Se eu tivesse morrido ontem, quem, minha querida,
Te diria que és tu apenas, mais ninguém,
A razão de eu acreditar ainda na vida?
Se eu tivesse morrido ontem, me diz, quem mais
Rogaria que, sendo tu todo o meu bem,
Não te ausentes de mim, minha amiga, jamais?
Para dizer-te, amiga, como agora digo,
Que nesta noite se refez a epifania
E eu pude novamente me encontrar contigo?
Se eu tivesse morrido ontem, quem responderia
Quando no sonho perguntaste és tu, amigo?
E quem, amiga, diz, te tranquilizaria,.
Pedindo que não te ocupasses mais comigo?
Se eu tivesse morrido ontem, quem, minha querida,
Te diria que és tu apenas, mais ninguém,
A razão de eu acreditar ainda na vida?
Se eu tivesse morrido ontem, me diz, quem mais
Rogaria que, sendo tu todo o meu bem,
Não te ausentes de mim, minha amiga, jamais?
... e outra na ferradura
Ora desdém, ora acenos,
Sentimentos desiguais...
Cada vez te entendo menos
E cada vez te amo mais.
Sentimentos desiguais...
Cada vez te entendo menos
E cada vez te amo mais.
Amor (versão final)
Não sabem se é sortilégio,
Se é dom ou se danação,
Se é pena ou se privilégio,
Não sabem, não saberão.
Não sabem, porém o aceitam,
Seja um mal ou seja um bem.
Se for um bem, se deleitam
E, se for um mal, também.
Se é dom ou se danação,
Se é pena ou se privilégio,
Não sabem, não saberão.
Não sabem, porém o aceitam,
Seja um mal ou seja um bem.
Se for um bem, se deleitam
E, se for um mal, também.
Regressão
Fui secretário do Proust
E lhe disse, desgostoso,
Que achava ser um embuste
E um desvio vergonhoso
Ele andar sempre nervoso,
Melancólico, abatido,
Atrás de um tempo perdido
Perdendo um tempo precioso.
E lhe disse, desgostoso,
Que achava ser um embuste
E um desvio vergonhoso
Ele andar sempre nervoso,
Melancólico, abatido,
Atrás de um tempo perdido
Perdendo um tempo precioso.
sábado, 4 de abril de 2015
Soneto do que o amor é para nós
Sem o amor, o que seríamos?
Sem ele, como viver,
Sem ele, como sofrer,
Sem ele, o que nós faríamos?
Sem ele, nós estaríamos
Ainda hoje sem conhecer
Como ganhar e perder,
E a grave arte ignoraríamos
De construir e de destruir,
De erguer e de fazer ruir
Num sopro um castelo inteiro,
Essa arte nobre e fatal,
Essa artimanha na qual
O amor é useiro e vezeiro.
Sem ele, como viver,
Sem ele, como sofrer,
Sem ele, o que nós faríamos?
Sem ele, nós estaríamos
Ainda hoje sem conhecer
Como ganhar e perder,
E a grave arte ignoraríamos
De construir e de destruir,
De erguer e de fazer ruir
Num sopro um castelo inteiro,
Essa arte nobre e fatal,
Essa artimanha na qual
O amor é useiro e vezeiro.
Solenidade
Em ocasiões especiais
o amor faz uma festa
e homenageia
seus antigos generais
São simpáticos todos
ainda quase joviais
Ouvem o amor falar
dos seus feitos
sorriem
agradecem
mas a maioria
não se lembra mais.
Hoje
Tudo que agora nós somos
Nada mais é que somente
A amarga face presente
Do alegre ser que ontem fomos.
Nada mais é que somente
A amarga face presente
Do alegre ser que ontem fomos.
Soneto do teu e do meu destino
Que cada um de nós cumpra o seu destino.
Que tu, querida, estejas destinada
A percorrer a trilha mais dourada
E eu a trilhar o atalho mais mofino.
Que por onde passares sempre um hino
Componha para ti a passarada
E que sempre que fores celebrada
Se igualem teu humano e teu divino.
Que consiga eu imbuir-me de humildade
E, nada tendo meu a celebrar,
Não queira com meu canto te cantar.
Que estejas livre da calamidade
Dos quartetos sovados e tercetos
Destes meus anacrônicos sonetos.
Que tu, querida, estejas destinada
A percorrer a trilha mais dourada
E eu a trilhar o atalho mais mofino.
Que por onde passares sempre um hino
Componha para ti a passarada
E que sempre que fores celebrada
Se igualem teu humano e teu divino.
Que consiga eu imbuir-me de humildade
E, nada tendo meu a celebrar,
Não queira com meu canto te cantar.
Que estejas livre da calamidade
Dos quartetos sovados e tercetos
Destes meus anacrônicos sonetos.
Majestade
Que quando vos curvardes vos curveis
Diante de uma realeza de verdade,
Não diante de uma falsa majestade.
Eu vos digo que o amor é o rei dos reis.
Diante de uma realeza de verdade,
Não diante de uma falsa majestade.
Eu vos digo que o amor é o rei dos reis.
Dias
Que esplêndidos dias
foram esses
em que o perfume
de tua ausência
brindou minhas narinas
como se perfumasse
as trançãs de duas meninas
Que esplêndidos dias
seriam estes
que se renovam todos os dias
se com tudo que trazem
trouxessem a novidade
de que finalmente
reapareceste.
foram esses
em que o perfume
de tua ausência
brindou minhas narinas
como se perfumasse
as trançãs de duas meninas
Que esplêndidos dias
seriam estes
que se renovam todos os dias
se com tudo que trazem
trouxessem a novidade
de que finalmente
reapareceste.
Mario Quintana
Se um dia eu for para Pasárgada, sei que lá estará Mario Quintana. Será ele quem me apresentará o rei, se o rei não for ele mesmo.
Calendário
Aquela alegria que era
Tão febrilmente esperada
Ficou no meio da estrada,
Não veio com a primavera.
Tão febrilmente esperada
Ficou no meio da estrada,
Não veio com a primavera.
Decisão
Sofrendo a pressão amarga da
Vida, não mais esperei:
Ao diabos tudo mandei
E embarquei para Pasárgada.
Vida, não mais esperei:
Ao diabos tudo mandei
E embarquei para Pasárgada.
Aspiração
Dormir muito, inteiramente,
E, se um dia despertar,
Pensar que é um sonho somente
E voltar a ressonar.
E, se um dia despertar,
Pensar que é um sonho somente
E voltar a ressonar.
Suserano
Depois que um coração dobra
E o submete à servidão,
O amor tudo dele cobra
Sem nenhuma compaixão.
E o submete à servidão,
O amor tudo dele cobra
Sem nenhuma compaixão.
Tropa
Morreram todos aqueles
Que só pelo amor viveram
E por ele combateram.
Eu sei, eu estava entre eles.
Que só pelo amor viveram
E por ele combateram.
Eu sei, eu estava entre eles.
sexta-feira, 3 de abril de 2015
Pedir perdão
Pedir perdão a Aristarco
pela transgressão gramatical
e a Stéphane Mallarmé
pela rima banal
mas escrever mesmo assim
e não ter pejo de repetir
eu amo você
eu amo você
Porque a poesia
não é só aquela
engravatada e endomingada
que se compra na livraria.
pela transgressão gramatical
e a Stéphane Mallarmé
pela rima banal
mas escrever mesmo assim
e não ter pejo de repetir
eu amo você
eu amo você
Porque a poesia
não é só aquela
engravatada e endomingada
que se compra na livraria.
23h24
Fechar a loja. Quem estará acordado a esta hora? O amor certamente está, mas há muito fez questão de esquecer este endereço.
Monólogo
A vida é assim, seu Raul:
Um dia sem briga, e as flores
Se tornam mais multicores
E o céu até mais azul.
Um dia sem briga, e as flores
Se tornam mais multicores
E o céu até mais azul.
Como vou
Quando alguém me perguntou
O que fiz, já que sumi,
A tristeza me mandou
Que eu mentisse, e então menti:
"Viajei, tirei férias, li."
A pessoa acreditou
E não viu, não suspeitou,
Não percebeu que morri.
A ameaça de Alice B. Toklas
Gertrude, quanto descaso!
A razão disso não sei,
Mas, se não mudares, caso
Com o Picasso ou o Hemingway.
A razão disso não sei,
Mas, se não mudares, caso
Com o Picasso ou o Hemingway.
Família
Já disse um homem sapiente
Que a família é um tesouro
Mais valioso do que o ouro,
Mas tem um inconveniente:
É constituída por gente
E o vínculo é duradouro.
Que a família é um tesouro
Mais valioso do que o ouro,
Mas tem um inconveniente:
É constituída por gente
E o vínculo é duradouro.
Soneto dos últimos instantes do amor
Levamos então o amor
Por uma trilha sombria
Já sem sinal de calor
E nem do esplendor do dia.
Que culpa eu sinto, e que dor,
Lembrando que ele sorria
Sem nem pressentir o horror
Que em seguida sentiria.
Sem de nada suspeitar
Ele se deixou levar,
Conversando, conversando.
Foi assim. Meia hora após,
Não muito mais que isso, nós
O estávamos enterrando.
Por uma trilha sombria
Já sem sinal de calor
E nem do esplendor do dia.
Que culpa eu sinto, e que dor,
Lembrando que ele sorria
Sem nem pressentir o horror
Que em seguida sentiria.
Sem de nada suspeitar
Ele se deixou levar,
Conversando, conversando.
Foi assim. Meia hora após,
Não muito mais que isso, nós
O estávamos enterrando.
A voz
Não é do amor essa voz.
O amor ama sanfoneiros,
Soldados e marinheiros,
O amor não gosta de nós.
O amor ama sanfoneiros,
Soldados e marinheiros,
O amor não gosta de nós.
Argh
Melhor a poesia pecar pelo excesso do que pela moderação. Se bem que o barroco, se bem que o gongorismo, se bem que o condoreirismo...
Distorções
O amor é aquele cretino
Que ouve soar uma matraca,
Berrar uma maritaca,
E crê ouvir um violino.
Que ouve soar uma matraca,
Berrar uma maritaca,
E crê ouvir um violino.
Motivo
Pois eu que morrendo vivo
Posso sem erro dizer:
O amor é o melhor motivo
Para viver e morrer.
Posso sem erro dizer:
O amor é o melhor motivo
Para viver e morrer.
Soneto do difícil aprendizado
Aprenderemos um dia,
Depois de tanto sofrer,
Que à vida custa entender
A nossa filosofia?
Até um cego veria
Que nosso modo de ver
Pior não poderia ser
Nem mais tolo poderia.
Ainda nós não nos fartamos
De ver quanto já erramos
No que quisemos supor?
Não vemos nós que morremos
Por esse apego que temos
A palavras como amor?
Depois de tanto sofrer,
Que à vida custa entender
A nossa filosofia?
Até um cego veria
Que nosso modo de ver
Pior não poderia ser
Nem mais tolo poderia.
Ainda nós não nos fartamos
De ver quanto já erramos
No que quisemos supor?
Não vemos nós que morremos
Por esse apego que temos
A palavras como amor?
Troca-letras
Já Fócrates ensinava
A alunos de sua roda
Que o mundo é uma coisa brava
E a vida é mesmo uma soda.
A alunos de sua roda
Que o mundo é uma coisa brava
E a vida é mesmo uma soda.
Duas medidas
Se todo grego, ao andar,
Se achava um peripatético,
Por que é que eu, ao caminhar,
Me sinto apenas patético?
Se achava um peripatético,
Por que é que eu, ao caminhar,
Me sinto apenas patético?
Anfiguri
De repente, sem nenhuma
Razão, ficou todo prosa
E achou a dialética uma
Conquista nada Espinosa.
Razão, ficou todo prosa
E achou a dialética uma
Conquista nada Espinosa.
Reminiscência do Pessoa
Melhor do que a noite é o dia,
Melhor que pensar, viver.
Melhor cochilar, comer
Doces na confeitaria,
Melhor qualquer coisa que
Nossa vã filosofia.
Melhor que pensar, viver.
Melhor cochilar, comer
Doces na confeitaria,
Melhor qualquer coisa que
Nossa vã filosofia.
quinta-feira, 2 de abril de 2015
Prestidigitação
Quisera ter o poder
De tocar um pé de alface
E, como um mago, fazer
Que em rosa se transformasse.
De tocar um pé de alface
E, como um mago, fazer
Que em rosa se transformasse.
Paz
Tão suave passou o dia
Que pude ouvir, bem baixinho,
A bem-te-vi que tecia
Com palha e amor o seu ninho.
Que pude ouvir, bem baixinho,
A bem-te-vi que tecia
Com palha e amor o seu ninho.
Desfeita
Negar que dor seja
a rima perfeita para amor
é uma atitude
que não salvaria
a poesia
e contrariaria
o que há séculos vêm dizendo
poetas de todas as escolas
e latitudes.
a rima perfeita para amor
é uma atitude
que não salvaria
a poesia
e contrariaria
o que há séculos vêm dizendo
poetas de todas as escolas
e latitudes.
Sucessão
Se um dia eu chegar a rei,
Que glória será a minha.
Ao meu trono abdicarei
E o entregarei à rainha.
Que glória será a minha.
Ao meu trono abdicarei
E o entregarei à rainha.
Filosofia
Temos a volúpia do grandioso. Vivemos perguntando para onde vai o Homem, e ninguém se importa em saber para onde vai a formiga carregando aquele torrãozinho.
Criacionismo
Inventamos o mundo conforme nos deu na telha e como nos instruiu o Diabo, e, quando ele começou a desandar, criamos Deus, porque Alguém precisava levar a culpa.
Cachoeira
Na concha das mãos ela colheu um fio de água e um filete de sol. Bebeu-os com a tranquila indiferença da majestade.
Norma
Devemos ter a humildade
De somente perguntar,
Sem a pretensão de achar
Que acharemos a verdade.
De somente perguntar,
Sem a pretensão de achar
Que acharemos a verdade.
Mario Quintana
Se diante de Mario Quintana alguém chamasse o sol de astro-rei, deveria estar preparado para ouvir ao menos meia dúzia de desaforos.
Soneto da futura memória
Quando, cansados, tivermos
De quase tudo abdicado
E tudo quanto fizermos
Será lembrar o passado,
Se ainda lembrar-nos pudermos
Do que tivermos amado,
Terá, se assim nós fizermos,
Nossa ventura voltado.
Que seja assim e possamos,
Lembrando-nos do que amamos,
Reviver a nossa história.
Que seja assim, quando for,
E que seja sempre o amor
A nossa melhor memória.
De quase tudo abdicado
E tudo quanto fizermos
Será lembrar o passado,
Se ainda lembrar-nos pudermos
Do que tivermos amado,
Terá, se assim nós fizermos,
Nossa ventura voltado.
Que seja assim e possamos,
Lembrando-nos do que amamos,
Reviver a nossa história.
Que seja assim, quando for,
E que seja sempre o amor
A nossa melhor memória.
Voo
Quando o coração do poeta
Explodiu no pavimento,
Alguém comentou: "Pateta!
Quem mandou ter sentimento?"
Explodiu no pavimento,
Alguém comentou: "Pateta!
Quem mandou ter sentimento?"
quarta-feira, 1 de abril de 2015
A primeira
A primeira viagem que fiz com meu terninho de marinheiro, aos cinco anos, foi para que tirassem a minha também primeira foto. Quem tirava fotos, naquela época, eram só os fotógrafos, em seus estúdios. O desse meu era na rua Direita, salvo engano, e me lembro com certa angústia das mil e uma vezes que ele girou meu rosto, até ele assumir a pose definitiva. Senti-me como um herdeiro do império austro-húngaro ameaçado de perder a sucessão.
Esnobe
Não dizia Blumenau, dizia Blumenô. Casou-se com a filha de um nobre merceeiro de Nová Grrranadá e os duzentos convidados cearam fartamente num legítimo restorã frrrancês.
Francisquinho
Hoje, no mercado, me lembrei do Francisquinho, da Líria Porto. O garotinho apontou as azeitonas: "Olha, mãe, elas têm uma piscina só pra elas!"
Mario Quintana
O anjo torto recomendou a Drummond que fosse gaúcho. Ele entendeu mal, foi gauche, e o erro só foi corrigido com Mario Quintana.
Antes
Mas que palavras o amor
Tem para nos agradar,
E aquele sorriso, e a flor,
Antes de nos despachar.
Tem para nos agradar,
E aquele sorriso, e a flor,
Antes de nos despachar.
Mario Quintana
Mario Quintana só podia ter nascido em Alegrete, ele que viria a ser sempre alegrinho, ma non troppo.
Sorte
Se não tivéssemos sido tolos, o amor seria hoje como uma daquelas fotos de família borradas pelo amarelo do tempo. Sermos derrotados por ele foi nossa vitória.
Alteração de perfil
A morte censura frequentemente a vida por lhe entregar, tão danificados, rostos outrora tão belos.
Honra póstuma
Se falo de amor, ainda, é porque ele concede, àqueles que em seu nome morrem, algumas honras, como a de continuarem a celebrá-lo.
Mario, Luis Fernando
Quando surpreendo em Luis Fernando Verissimo o ar galhofeiro de Mario Quintana, sinto alívio: o bom humor gaúcho está salvo, assim como o chimarrão.
Emily
Ler Emily Dickinson é ter, por instantes, a impressão de que o divino e o sagrado às vezes se deixam tocar por certas mãos humanas.
Mario Quintana
Os melhores amigos do menino Mario Quintana eram as gurias de olhos sonhadores e os passarinhos metidos a barítonos.
Jamais
Quando seu modo de viver começa a incomodar sua família, é porque você já perdeu o seu melhor tempo de ser poeta.
Soneto das viagens da Fracassotour
São sempre bem-vindas essas
Palavras que ela me diz.
Jamais passam de promessas,
Mas me deixam tão feliz.
Em março iríamos à Índia
E a Cuba agora em abril,
Porém vai chegar maio e ainda
Estou aqui no Brasil.
Espero-a até me cansar
E enquanto a espero me vem
Alguém sempre me contar
Que aqui e ali minha amada
Foi vista sem mim, mas bem,
Sempre bem acompanhada.
Palavras que ela me diz.
Jamais passam de promessas,
Mas me deixam tão feliz.
Em março iríamos à Índia
E a Cuba agora em abril,
Porém vai chegar maio e ainda
Estou aqui no Brasil.
Espero-a até me cansar
E enquanto a espero me vem
Alguém sempre me contar
Que aqui e ali minha amada
Foi vista sem mim, mas bem,
Sempre bem acompanhada.
"Primeira foto de Hitler", de Wislawa Szymborska
"E quem é essa gracinha de tiptop?
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe;
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.
Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, edição da Companhia das Letras.)
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe;
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.
Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, edição da Companhia das Letras.)
Farinha de outro saco
Querer coerência num poeta é confundi-lo com a empertigada classe dos filósofos. Mario Quintana sabia muito bem disso.
Acervo
Sinto em mim certa beleza que sou tentado a compartilhar. Talvez consiga, agora. Outrora tentei transmiti-la ao amor, mas, jovem que era, falhei calamitosamente.
Ainda
Não importa quantas pilhas já picaste e queimaste. Hás de ter ao menos um cantinho de gaveta para novas recordações amorosas, ainda que precises forjá-las.
Linha de montagem
O problema dos versos parnasianos é que, por mais belos que sejam, parecem sempre feitos pelo mesmo poeta e na mesma oficina.
Mario Quintana
Mario Quintana era um dos pouquíssimos poetas capazes de atestar a autenticidade de um arco-íris sem recorrer a uma lupa.
Amor
Custou-nos tanto plantar,
Semear custou-nos bastante.
Podar, serrar, empilhar,
Aí foi só um instante.
Semear custou-nos bastante.
Podar, serrar, empilhar,
Aí foi só um instante.
Um poema de Emily Dickinson
"Um rosto nu de amor e graça,
Um rosto vil, de duros traços,
Rosto com que uma pedra
Há de ficar sempre à vontade
Quais fossem velhas amizades
Que juntas se arremessam."
(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)
Um rosto vil, de duros traços,
Rosto com que uma pedra
Há de ficar sempre à vontade
Quais fossem velhas amizades
Que juntas se arremessam."
(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)