quinta-feira, 30 de abril de 2015

Mario Quintana

À sisuda Casa de Machado de Assis teriam feito um bem enorme o espírito jovial e as traquinagens de Mario Quintana. Eu o imagino fazendo careta para um confrade que, de pincenê e sem pudor, tivesse usado a palavra celebérrimo.

Literal

Um humorista não deve gostar muito quando alguém diz que suas piadas parecem piada.

Pose

Levar-nos muito a sério como escritores ou qualquer outra coisa às vezes é o melhor modo de fazer com que riam de nós e digam frases como: "Quem ele pensa que é? O Shakespeare?"

Questão de gosto

Guloseima não me parece um bom nome para coisa gostosa.

Milagre

Quando menino, nunca entendi o milagre que era dar um papel às vezes sujo e rabiscado e receber em troca um sorvete. Continuo não entendendo.

Aparência

Assim pelo nome, o pecado venial sempre me soou mais pecaminoso que o pecado mortal.

O mais

De todos os pecados, o mais plagiado é sempre o original.

Ab initio

A literatura é a minha maior paixão. Devo ser franco quando falo dela. Se eu pudesse começar tudo de novo, não começaria.

Paixão

O bem-te-vi apaixonado, toda vez que vê sua bem-te-vi, perde a fala e diz só: bem. Não deixa de ser um bom começo.

Saia e blusa

É tão recatado, tão pudico, que, se deixassem, percorreria os museus do mundo para vestir os nus artísticos.

Conceito

Se o amor fosse tudo que dizem dele, seria um grande filho da puta.

Barriga cheia

Queixamo-nos da brevidade da vida, mas nunca nos faltou tempo para cometer alguns sonetos calamitosos, para falar mal do próximo e do distante e até para apontar meia dúzia de defeitos em Deus.

Homem

Aspirar à eternidade é uma de nossas melhores piadas.

Pauta

A poesia não há
de falar de bonitezas
de primaveras
de princesas
de rosas
de coisinhas mimosas

A poesia há de falar
de pestes
de pragas
das mil chagas do amor
que são de todas
as chagas mais prazerosas.

Causa e efeito

Depois que morre o amor, a vida se arrasta como um cachorro estropiado.

Soneto do amor patife

O amor é aquele patife
Que para bem nos lesar
Tem escritório em Mianmar
E sucursal no Recife.

Não há para ele empecilho.
Se viajar não nos agrada,
Ele dá uma chegada
E nos furta em domicílio.

Furta-nos no Cambuci,
Na Aclimação, no Pari,
Na China, no Paquistão,

E diz não merecer penas
Quem de um homem furta apenas
Nada além do coração.

Mario Quintana

Em Mario Quintana, até o sarcástico soava com tanta verve e justeza que inibia qualquer retaliação.

Tal qual

Um gramático conjugando em voz alta um verbo irregular diante dos futuros sogros se dá ares de Maria Callas cantando uma ária no Scala de Milão.

Corpo de delito

Quem há de dar-nos a mão?
Como nós nos livraremos
Do amor que morto mantemos
Trancado em nosso porão?

Extrato

Do amor, o que nos ficou
Foi a malograda história,
Foi a incômoda memória.
O resto a morte levou.

Reinado

O amor há de registrar
tremores em todas as escalas
e se houver fronteiras
ignorá-las
e se houver barreiras
derrubá-las

O amor
deve submeter
deve subjugar

O amor
deve impor
o seu horror

O amor deve
reinar.

A única

A possessão do amor é a única que nosso coração aceita com naturalidade - e anseia por ela.

O belo

O belo há de ser nossa aspiração suprema. Não sabermos exatamente o que ele é abre nossa alma para tudo em que ele possa estar, e com o tempo aprendemos a percebê-lo em coisas mínimas, às quais antes não dávamos atenção.

Plus

Um escritor deveria usar metáforas não com a intenção de exprimir o belo, mas de melhorá-lo.

Gramática

Se anacoluto não é palavrão, não é por falta de esforço.

"O braço armado", de Dalton Trevisan

"O filho é o braço armado da mãe contra o monstro do pai."

(Do livro Desgracida, publicado pela Editora Record.)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Diagnóstico

Se você está lidando com o amor, melhor ser desenganado de vez que enganado aos poucos.

Pelo menos

Rogo para que no fim
Se vieres a me faltar
Na morte eu possa confiar
E que ela cuide de mim.

Mario Quintana

O bom em Mario Quintana
É que a frase mais divina,
Mais invulgar, mais supina,
Tem sempre feição humana.

Soneto de quem diz o teu nome

Por ti fiz tudo que fiz.
Te chamei na primavera,
Quando minha voz ainda era
A voz de um homem feliz,

E te louvei no verão,
Quando só por ti batia,
Noite a noite e dia a dia,
Com febre meu coração.

No outono te louvei, terno,
E não te esqueci no inverno,
Amada mais que querida.

E agora, no fim da vida,
Com esta voz que já me some,
Eu ainda digo teu nome.

Mario Quintana

As palavras mais amáveis procuravam Mario Quintana aos bandos, como garotas alvoroçadas pelo primeiro amor. Depois que iam embora, chegavam algumas um tanto mais sapecas. Ele as recebia com um pigarro e um olhar austeros, que elas já sabiam não serem de reprovação.

A frase

Minha simpatia não é para aqueles cuja frase derradeira é morre um homem mas não morre a humanidade. É para aqueles que entregam a alma com um ai tão tímido que não chega aos ouvidos da brisa.

Mario Quintana

Mario Quintana tinha um jeito de lidar com as palavras que poderia chamar-se de garimpagem, se já não tivesse o nome de ternura.

Linhas

Os poemas de amor
deveriam ter uma linha só
eu te amo tanto
talvez mais uma
eu te amo demais
no máximo três mais
eu te amo mais
do que jamais
conseguirei dizer.

Um trecho de Djanira Pio

"Uma senhora muito idosa pega o telefone e lembra que não há mais ninguém para quem ligar. Desiste e volta ao seu mundo imaginário. Viver é só viver."

(Do livro O ciclo da vida, publicado pela Editora Scortecci.)

Cotação do dia

Quando a doença é o amor, ter morrido é melhor do que ir morrendo.

Invocação

Em prosa
em versos
em febre
em delírio
em desespero
em aflição
chamamos o amor
chamamos o amor
chamamos o amor
em vão.

Tendências

A gramática é como a moda. Vive mudando para continuar igual.

Colchetes

Os colchetes são parênteses que não deram certo.

Parênteses

As palavras entre parênteses parecem aqueles três ou quatro homens que, apanhados com cem outros numa batida policial num prostíbulo ou num cassino, começam a puxar documentos para mostrar que, se estão ali, é por um equívoco, pois não gostam de mulheres e muito menos ainda de qualquer tipo de jogo.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Diga-me com quem

Os provérbios são mais chatos do que aqueles pregadores que sentam ao nosso lado no ponto inicial do ônibus e vão conosco até o ponto final.

Detetives

Há gramáticos tão desconfiados que chegam a examinar com lupa a palavra invisível e a encostar o nariz na palavra inodora.

Comodidade

É comum os romancistas desafiarem Deus usando como disfarce seus personagens.

Degrau acima

Escrever poderia considerar-se uma atividade simples, se não existissem os escritores.

O último

A morte é o último recurso que às vezes um romancista tem, depois de haver submetido um personagem às drogas e ao amor.

Soneto do poeta de um assunto só

Os anos passam, mas ele,
Como no primeiro dia,
Escreve ainda o que escrevia,
E o seu tema é sempre aquele.

Quem o vê, seja quem for,
No seu bloquinho anotando,
Sabe que ele está falando
Do assunto de sempre: o amor.

Não é um amor qualquer,
É um amor grandioso, insano,
Que tem por uma mulher.

Essa paixão que o enlouquece
Semestre a semestre, ano a ano,
Só a amada desconhece.

Logro

Pode até haver bons poemas que não falem de amor. São aqueles em que o leitor, ao chegar ao fim com um sorriso, desconfia ter sido enganado com um produto ao qual falta o principal ingrediente.

Soneto da memória que talvez tu tenhas

Talvez venhas a lembrar
No futuro, qualquer dia,
Daquele homem que em ti via
A vida, ao te ver passar.

Talvez (por que duvidar?)
Sintas alguma alegria
Ao lembrar como eu sorria
Só para te impressionar.

Ou talvez tu simplesmente
Lembres de mim vagamente
Como se nem te lembrasses.

Não importa. Eu lembro, sim,
E ainda hoje, diante de mim,
Não há dia em que não passes.

Mario Quintana

Mario Quintana ia pela rua. No alto, um passarinho o acompanhava, assobiando. Alguém chamou: Mario. Quintana virou-se para olhar. O passarinho virou-se também.

Soneto de quem espera ver o amor antes de morrer

Quando caiu prisioneiro,
Do céu se viu devedor
Quando soube que do amor
Era aquele cativeiro.

Mantido com água e pão,
Ninguém o viu rebelar-se
E nem ao menos queixar-se
Dessa mísera ração.

Só chora que o pão comido,
E a água, nunca tenha sido
O amor que os veio trazer.

Talvez, quem sabe, ainda o veja
Com a água e o pão, ainda que seja
Um dia antes de morrer.

Soneto de Nosso Senhor o Amor

Quando quer nos conquistar,
O Amor sempre apela a tudo:
De cetim é o seu olhar
E os lábios são de veludo.

Ele nos diz: sou o Amor -
E o Amor, todos nós sabemos,
Do mundo é o grande Senhor,
O maior que conhecemos.

Ele tudo nos promete
E diz que a nós só compete
O doce fardo de amá-Lo.

Só não nos diz quantos já
De nós enterrados há
Por Nele crer e adorá-Lo.

Um trecho de "As palavras", de Jean-Paul Sartre

"Comecei minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio dos livros. No gabinete do meu avô, havia-os por toda parte; era proibido espaná-los exceto uma vez por ano antes do reinício das aulas em outubro. Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas: em pé ou inclinadas, apertadas como tijolos nas prateleiras da biblioteca ou nobremente espacejadas em aleias de menires, eu sentia que a prosperidade de nossa família dependia delas."

(Tradução de J. Guinsburg, publicação da Editora Nova Fronteira.)

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Presente

Uma noite, quando ele, pensando em como vinha sendo maltratado pela amada, andava pela praia, caiu-lhe bem à frente uma estrela. Ele a pegou com cuidado, tirou-lhe a areia e foi levá-la à amada. Ela examinou a estrela, frente e verso, e, não vendo nenhuma inscrição que indicasse a sua procedência, atirou-a longe. O cachorro da casa apanhou-a alegremente e, desde essa noite, incorporou-a aos seus brinquedos.

Jurisdições

O câncer não o matou.
Deu-lhe a ciência mais cinco anos,
Com chapas e sem enganos,
Mas o amor não o poupou.

Soneto da voz que a deixava de cama

Ah, como ela se incendiava
Naquele tempo em que o amor
No telefone a chamava
Com sua voz de tenor.

Ah, quase ela desmaiava
Ouvindo o doce clamor
Que febril sempre a deixava
E em estado de estupor.

Ela ainda ama essa voz, ama,
E se toca o celular
Se apressa, para a escutar.

Mas hoje, quando ela a chama,
Com seus pigarrinhos de asma,
É a voz de um tenor fantasma.

A pior

A pior abominação
em poesia
não é rimar amor
com dor
nem contrapor tristeza
com alegria

Isso já está
catalogado
e até autorizado
nos usos e costumes
e como licença poética
consagrado

A pior abominação
a mais antiética e antiestética
é usar de premeditação
ao escrever juventude
e envelhecê-la uma linha depois
rimando-a com senectude.

Mario Quintana

A beleza dos textos de Mario Quintana tem sempre um quê de menina travessa encarapitada numa árvores, mastigando uma fruta e cuspindo carocinhos.

Mario Quintana

Gostar de Mario Quintana é um desses gostares que se assumem logo à primeira vista.

Soneto do que significa ser amado

Ser amado, ter ouvido
Nossa amada nos chamar
E ao nosso nome somar
Meu amado, meu querido.

Ser amado, ter podido
Ouvir a amada jurar
Que somente nos amar
Dava à vida algum sentido.

Ser querido, ser amado,
Ainda que rapidamente
E num longínquo passado,

É, viva quanto viver,
O mais precioso presente
Que um homem pode querer.

domingo, 26 de abril de 2015

www.rubem.wordpress.com

Na crônica de hoje na Revista Rubem recolho algumas migalhas do cotidiano.

Motivação

Nos romances policiais antigos, a primeira ordem que o comissário dava aos auxiliares era: cherchez la femme. A mulher, uma mulher, era sempre considerada o que se chamava de pivô do crime. Hoje a ordem é outra: cherchez l'argent.

Tarefa

Cada um é o que é. Calhou-me escrever. Desde os doze anos sei disso. Se eu tivesse feito a escolha, optaria talvez por algo menos difícil

Prazo

Os poemas costumam ter a validade dos amores que os inspiram: dois a três meses.

Recurso

Se o amor não te tornar melhor poeta, só te resta flertares com a morte.

Vida passada

Às vezes penso ser a reencarnação de uma donzela do século XIX. Morrer de amor me parece uma bênção que jamais chegarei a merecer.

Tempo

Quando me vias, outrora,
Sorrias e me beijavas.
Bom não me veres agora.
Se tu me visses, choravas.

Pet

Tem uma kombi. Diz que está com ela há cinquenta anos, desde o dia em foi buscá-la zerinho na revendedora. Não gosta de animais. Nunca teve um. Há marcas de óleo na garagem. Ele sorri: "Imaginou se fosse um cachorro?"

Gosto

É tão aborrecido o amor. Tudo sempre igual, sempre as mesmas histórias. Ainda há quem goste de ouvi-las.

Perda

Perder o amor é perder
O nosso dom mais valioso,
O tesouro mais precioso:
A vontade de viver.

Soneto da intensidade do amor

Quer tenha durado muito
E tenha com intensidade
Buscado a perenidade,
Quer tenha sido fortuito,

Quer tenha um ano durado,
Quer tenha vivido uma hora,
Quer tenha ido logo embora,
Ou um pouco mais ficado,

O amor há de sempre ser
A nossa melhor memória
E a nossa mais bela história.

Mesmo depois de morrer,
Ele vive sempre em nós
E fala por nossa voz.

Mario Quintana

Se Mario Quintana fosse chuva, seria dessas que caem amenas, como se temessem afogar uma formiga ou despetalar uma rosa.

Bem-te-vi

Morto, o amor é um bem-te-vi cego cantando de memória o arco-íris.

Soneto do inesperado reencontro

No instante em que hoje te vi,
Preferia não te ver.
Eu quis fugir, quis morrer,
Mas tu viste, não morri.

Também viste: envelheci.
Parece que envelhecer
Foi só o que eu soube fazer
Desde quando te perdi.

Tu viste como mudei,
Tu viste como piorei.
Tu, porém, estás igual.

Me alegra essa divisão:
Ser o bem tua porção
E a mim caber todo o mal.

sábado, 25 de abril de 2015

Só assim

Um homem de juízo só se mete com literatura depois de perdê-lo.

Tipos

Beata parece a putana,
E a carola, uma gaudéria.
Existe afronta mais séria
À teoria lombrosiana?

1/12

Mesmo sendo maio um mês
Que acha os outros seus escravos,
Com toda sua altivez
Do ano ele é só um doze avos.

"Amor de velha", de Dalton Trevisan

"O velho geme, espirra, tosse - e que tosse!
A velhinha, no fundo da cama:
- Isso mesmo. Continue assim. Não se cuide.
- ...
- Nada como um inverno bem frio.
- ...
- Faça de mim na primavera a mais faceira das viúvas alegres!"

(Do livro Desgracida, publicado pela Record.)

Sandra Annenberg

Quem tiver interesse em ver minha participação no programa "Como Será", digite por favor globotv.globo.com/redeglobo/como-sera/v/sonho-meu-terezinha-aparecida-de-lima/4134057.

Ontem

Para sentir de novo o prazer
de manhãs já quase apagadas
de tardes já quase desacreditadas
e de noites já quase esquecidas
o amor vei ver se as janelas
estão todas bem fechadas
e se põe a lamber
delicadamente as feridas.

Terceirização

Na hora de atribuir a culpa
Pelo pescoço enforcado
Ou o cérebro estourado,
O amor é sempre a desculpa.

Hoje

Melhor não saber de ti.
Fiquemos como acertamos
Quando nós nos separamos:
Morreste, e eu, também, morri.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Mario Quintana

Mario Quintana sabia que vivemos de ar e palavras. Sem ar, morremos. Com as palavras, permanecemos.

Soneto dos sons do amor

No início, arrebatador,
Com a força da novidade,
O amor tem a intensidade
Das batidas de um tambor.

Depois, torna-se mais fino
Seu toque, e mais apurado,
Tão claro e tão delicado
Quanto o toque de um violino.

Perdendo a força então vai
E o som aos poucos se esvai,
E se transforma em gemido.

É triste, mas é assim.
Sempre o amor chora, no fim,
Como um cãozinho perdido.

Endereço

A literatura brasileira e Dalton Trevisan moram na mesma cidade: Curitiba. Nas raras vezes em que ela e ele são vistos, estão sempre juntos.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Pecadoras

As pecadoras de romances antigos feriam princípios morais. As de romances atuais são mais tentadas a ferir preceitos estéticos e normas gramaticais..

Mario Quintana

O simples, em Mario Quintana, era simplesmente o que era: simples.

Cavanhaque

É muito difícil imaginar que um poeta parnasiano tenha sido jovem algum dia.

Época

É estranho pensar que os escritores clássicos não eram vistos assim no seu tempo.

Respeito

Alguns escritores clássicos nos maçam profundamente, mas jamais admitimos isso nem a nós mesmos.

Como Philip

Um dia, você decide ser igual a Philip Roth ao menos numa coisa, e para de escrever. Não há lamentações de leitores, nem comemorações de concorrentes. No mais, é a mesma coisa.

Desvio

Se a poesia procura a verdade, é porque não tem nada importante a dizer.

Expediente

Depois de esperarmos por três dias, o secretário do amor veio nos comunicar que ele não iria nos receber. E, para desculpar o patrão, nos piscou e disse, baixo: vocês sabem, são aquelas coisas dele. Ele está outra vez apaixonado. Vocês acreditam?

Nesta quinta

Uma bobagem me basta
uma coisinha qualquer
dessas que encantam
um homem
uma mulher
um encontro casual
um flerte
um olhar circunstancial
uma dessas besteiras
que se bem não fazem
também não fazem mal
um desses enredos
de folhetim
que escapam para a rua
porque o autor
deixou aberta
a porta do fundo

Uma historiazinha assim
exatamente assim
sem conteúdo
me basta - e como me basta

O que menos quero
nesta quinta chinfrim
é bancar o profundo.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Programas

Há tantas coisas
melhores do que escrever

Nadar
passear
fazer alguma coisa
nada fazer
vadiar
espairecer

Pergunte a qualquer um
que não seja escritor

Ele vai lhe dizer.

E agora, José?

Nunca mais viemos a saber
quem com a pedra topou
e quem foi que o bonde perdeu
depois que o gauche drummond morreu.

Sintonia

A mulher identifica-se de modo tão perfeito com a beleza que é como se tivessem ambas nascido na mesma época.

Cardiologia (para Arlete Franco)

Amor é o nome que se dá a diversas afecções do coração.

Norma

Para valor vir a ter,
Que seja o ato de escrever
Não nosso modo de ver,
Mas nosso modo de ser.

Soneto da indecisão

Havia tanto a dizer,
Havia tanto a falar,
Mas havia algo a esconder,
Mas havia algo a calar.

Havia tanto a perder,
Havia tanto a ganhar,
Que ficamos sem saber
Que decisão tomar.

Parados então ficamos
E do destino esperamos
Que nos viesse a decisão.

E ainda hoje assim nós estamos,
Sem saber se ao amor vamos
Gritar sim ou dizer não.

Honestidade

Depois que tudo avaliou,
Pode dizer com certeza
Que, se o amor o abandonou,
Foi legítima defesa.

Sintomas

Ele sabe que está apaixonado
Porque o longe começa a ficar perto,
O céu sombrio lhe parece aberto
E certo lhe parece o equivocado.

Naufrágio

O amor, como o Titanic,
Morreu por falta de zelo,
Bastou um pouco de gelo
Para colocá-lo a pique.

Mario Quintana

Para Mario Quintana, fazer poesia era tão natural quanto respirar, porém muito mais prazeroso.

Subsistência

Os poetas antigos só precisavam de três coisas para viver: pão, água e amor - não necessariamente nessa ordem.

Testemunha

Quando, depois de lhe encherem os bolsos com pedras, atiraram o amor ao rio, passou em voo rasante um pássaro acusador: eu vi, eu vi, eu vi.

Marco

Demos adeus ao amor. Foi a última coisa importante que fizemos. A vida continuou, mas tudo já passara a pertencer então à esfera e ao domínio da morte.

Soneto do amor sem nenhum caráter

Se alguém tivesse nos dito
Que o amor era mentiroso,
Que era um falso, um asqueroso,
Um desgraçado, um maldito.

Se tivéssemos notado
Como era ardiloso, esquivo,
Como era dúbio e furtivo,
Se houvéssemos desconfiado,

Certamente o ignoraríamos
E a porta não lhe abriríamos.
Que ele morresse lá fora!

Tivemos bom coração,
E quem é que esse ladrão
Consegue expulsar agora?

terça-feira, 21 de abril de 2015

Respeito

Muito do terror solene que inspiravam as provas no meu tempo de colégio vinha do fato de elas serem feitas obrigatoriamente em folhas de papel almaço.

Sem sal

Já não era tempo de terem arranjado um nome mais excitante ou menos antipático para libido?

Modo(s)

Alguns advérbios de modo não têm modos nenhuns. Escandalosamente, por exemplo, ou despudoradamente.

Questão de saúde

As vírgulas são aquelas pausas recomendadas pelos gramáticos para que o sujeito não chegue ao final da oração precisando de um balão de oxigênio.

Hospício

Sempre o mais pífio bufão
É aquele que exige pouco.
Quem quer ser um simples louco
Se pode ser Napoleão?

Mario Quintana

Casimiro de Abreu e Mario Quintana, se houvessem sido contemporâneos, teriam certamente escrito poemas a duas mãos e um só coração juvenil.

Mario Quintana

Mario Quintana era tão avesso a escolas poéticas e normas literárias que, se viesse a escrever um manual, seria provavelmente um ensinando a arte de não apanhar borboletas.

Mario Quintana

Mario Quintana tinha com as palavras uma dessas relações que o tempo sempre acaba transformando de amizade em amor.

Circo

Suspensa na mão da menina, a pipoca será poupada enquanto o trapezista não acabar de executar o triplo salto mortal.

Caixa

Se acaso o amor nos concede
Mais que o habitual suprimento,
No mesmo instante nos pede
O total ressarcimento.

Figuras

Acredito que uma das razões pelas quais a gramática é tão malvista seja o nome de algumas de suas figuras, assustadoras como os mais horripilantes monstros ou as mais nefastas doenças. Quem tem ânimo de seguir adiante depois de se deparar com horrores como zeugma, apócope, sintagma, anástrofe, sinédoque, parequema e anacoluto?

Soneto em que se exorta uma dama

Por esta intensa ternura
Que sempre tive por ti,
Abraça-me com loucura,
Beija-me com frenesi.

Repete-me aquela jura
Que uma vez de ti ouvi,
Jura de novo, rejura,
Finge que não a entendi.

Esquece que és uma dama,
Me morde a boca, me arranha,
Grita que me amas, exclama

Que sou teu dono e senhor,
E acalma em mim esta sanha,
Este fogo, este furor.

Um trecho de "Niels Lyhne", de Jens Peter Jacobsen

"Como era bela e doce e pura! Amava-a com fervor, de joelhos implorava, aos seus pés, toda aquela beleza enlouquecedora. Lança-te do alto do teu trono e vem até mim! Faz-te minha escrava, põe tu própria a cadeia de escrava ao pescoço, mas não por brinquedo, quero sacudir essa cadeia, terá de haver obediência em todos os teus membros, servidão no teu olhar! Ah, se pudesse fazê-la curvar-se a ele com um elixir de amor!"

(Tradução de J. Silva Duarte, publicação da Livraria Civilização Editora.)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Padrão

Verdade se diga: os chatos nunca nos surpreendem.

Leitor tradicional

"Para mim, a decadência dos jornais começou quando eles deixaram de publicar a seção de filatelia."

Tim-tim por tim-tim

Se ao menos nos avisassem que o amor tem garras mas só as usa quando quer.

Anos 1950

Deu-lhe no aniversário um colar de pérolas e um romance de Somerset Maugham.

Mau gosto

Falar de morte é pecado,
É desleal, é vilania,
Com este sol escancarado,
Com esta beleza de dia.

Boletim médico

O doente
do 120
está vive não vive
e o paciente
do 109
está morre não morre.

Balança

Devamos sempre ao amor.
Quem, tolo, lhe pagará,
Sabendo que não virá
Quando não for mais credor?

Patrimônio

Tudo que tenho
é velho
ou já morreu

o amor
a esperança
eu.

Precaução

Uma estrela das pequenas caiu num quintal. O cachorro latiu por uma boa meia hora, para advertir os donos, mas eles não acordaram. Então, sem saber se a estrela era perigosa, por via das dúvidas ele a engoliu, como fazia com os gatos imprudentes.

Ilusão

Um filete de sol ficou enroscado numa calcinha escura, no varal. Quando chegou a noite, um vaga-lume pousou amorosamente sobre ele.

Desforra

Aos perdedores
pesam menos as comendas
no peito
e as flores
no dia final.

Ela

Lá vai o texto, resoluto, assobiando uma marcha militar, quando atravessa seu caminho nada mais nada menos que uma partícula apassivadora, e ele se modifica da cabeça aos pés.

Travessura

Não acredito que o poeta, mesmo o moderno, deva procurar obsessivamente a contenção e a sobriedade. Como faz bem uma verborragiazinha de vez em quando, uma dessas transgressões que nos levam a crer que o coração ainda mande alguma coisa!

Nome

Queria ter um nome que ribombasse como um trovão no céu: Nabucodonosor. Chamava-se José. Zé, para os íntimos, e também para os demais.

Passo em falso

Dar a vida à literatura é uma estupidez que alguns de nós ainda fazemos.

Único

Talvez tu saibas, talvez
Tu não compreendas jamais
Que o amor vem só uma vez,
Vai embora, e nunca mais.

Anfiguri

O mérito de Confúcio,
Aquilo que o tornou grande,
Foi notar que a cada glande
Correspondia um prepúcio.

Concurso

Fez um poema
rimando energúmenos
com catecúmenos
mas a comissão julgadora
deu o primeiro lugar
a uma poesia inovadora
que rimava digitar
com facebookear.

Cena

A delicadeza sem par
de Simone de Beauvoir
quando na hora de partir
para ir ver Nelson Algren
nos EUA
dizia beijando Sartre
au révoir
mon chéri
au révoir.

Círculo

Enquanto lentos definham
Os nossos gênios atuais,
Mortos estão os que tinham
Julgado ser imortais.

Apressado

O desfortunado bispo Sardinha teve o azar de vir ao Brasil quando ainda não existia o Ibama.

Soneto da cautela que tivemos com o amor

Tivemos tato com o amor.
Estávamos alertados
Sobre os seus casos passados
E sua fama de traidor.

Procedemos com rigor.
Fizemo-nos de rogados,
Não lhe fizemos agrados,
Sempre alegando pudor.

Quando ele, como receávamos,
Foi embora certo dia,
Já preparados estávamos.

Por jamais nos termos dado,
De  nós nunca ele riria
Com seu riso debochado.

Mario Quintana

A poesia de Mario Quintana é como o cheiro morno da primeira fornada de pãezinhos do dia, que o vento aspira avidamente, misturado com o aroma orvalhado das flores.

Paradoxo

Um homem que sempre se nega a exprimir suas opiniões é um homem de opinião.

Lambdacismo

Está certo que Sicrano é um nome forjado, mas isso não dá a ninguém o direito de chamá-lo de Siclano.

Decoração

Ampliei a sala
e comprei três enormes poemas concretos
de ângulos retos
para adorná-la.

Destino

Se o amor te escolheu, querida,
Não hesites, não receies,
Não negues, não regateies,
Dá-lhe logo toda a vida.

Senhor

Se lhe ordena sua voz,
Ainda que fortes os laços,
O amor desfaz os abraços
E se liberta de nós.

domingo, 19 de abril de 2015

Aurea mediocritas

Às vezes o grande ideal
É apenas aquela farsa
Com a qual um homem disfarça
A sua vida banal.

Júbilo

O amor nos terá iludido
como a tantos outros iludiu
e sairemos todos
e sorriremos ao sol
como sorriem só
os escolhidos.

Traços biográficos

Terei morrido
e quem se importará
e quem terá como assunto
o que houver ocorrido
seja o que for
mesmo que seja o amor
na vida de um defunto?

Espelho

Em você, minha querida,
Quando ela quer reinspirar-se
E no apogeu reencontrar-se,
É que vai espiar-se a vida.

Vingança

Quando o fazendeiro fechou de tal forma os galinheiros que eles se tornaram inexpugnáveis, os lobos desforraram-se devorando o espantalho.

Foco

Um romance pode ser analisado sob vários pontos de vista. Às vezes o mais acertado é o do autor.

Civilizados

No início ele não sabia,
Depois ele relevou.
Como um só deles traía,
A história não azedou.

Mario Quintana

Os versos de Mario Quintana, assim como os de Casimiro de Abreu, têm o gosto único daqueles frutos nascidos na imaginação e postos no desenho de um menino que quer encantar com ele a nova professorinha do segundo ano.

A escolha

Hesitava entre mandar de presente à amada um gato ou uma quadrinha. Optou pelo gato, porque lhe pareceu pouco provável que, mesmo com um temperamento romântico, a amada beijasse uma folha de papel.

sábado, 18 de abril de 2015

Mario Quintana

Mario Quintana era um desses irresistíveis piscares de olhos, uma dessas lentas ajeitadas de cabelos que a poesia usa quando quer se mostrar mais graciosa.

"Soneto", de Ana Cristina Cesar

"Pergunto aqui se sou louca
Quem quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?"

(De Inéditos e dispersos, publicado pela Editora Brasiliense.)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Soneto dos sonetos pavorosos

Que vais fazer, minha amada,
Dos teus troféus amorosos,
Daquela sonetalhada,
Dos quartetos horrorosos?

Ah, bem poderia ser,
Porque és deles a razão,
Que conseguisses fazer
Melhor minha inspiração.

Outro poeta merecias
Por todas as alegrias
Que de ti eu recebi.

Ah, triste é não ter valor
Tudo que com tanto amor
Fiz por ti e para ti.

Espectro

Quando parecia estar
Perdido já no passado,
O amor volta a me pesar
Como um defunto afogado.

Contabilidade

A vida, no deve e haver,
Contando aquilo que resta,
E tirando o que não presta,
Fica sempre a nos dever.

Corretíssimos

Os escritores enfadonhos geralmente escrevem muito bem. O sujeito é claro, o verbo correto e os objetos sempre bem definidos. De vez em quando nos fazem consultar o dicionário, mas só umas três vezes por página, o que não chega a ser um transtorno.

Mario Quintana

Ter ocorrido a Mario Quintana ser um poeta foi certamente um dos preciosos momentos em que as conjunções astrais atingiram a perfeição.

Quem

Amor, quem é que há de guiar-nos
Para o nosso descaminho,
O nosso doce extermínio,
Se tu vieres a faltar-nos?

Quase

Alguma coisa faltou,
Foi pouco, agora sabemos,
Porém já nada mais temos,
E o tempo, ah o tempo passou.

Versão

Que lindo quando me dizes,
Quando até eu já duvido,
Que valeu todo o vivido,
E foste (e fomos) felizes.

Rimas

Quando escrevo que me lembro,
A rima vem me forçar
E diz para me lembrar
Em setembro ou em novembro.

Novembro?, eu penso, setembro?
Eu me ponho a analisar
E, opte por qual eu optar,
Não me perdoará dezembro.

Cisma

Digam o que disserem os gramáticos, um sujeito oculto traz sempre uma presunção de ilegalidade.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Rito real

Um gato há de dispor sempre de algum tempo para receber seus súditos, desde que não lhe atrapalhem as sonecas com afagos além da conta.

Fernandos

Quem mais levou a sério a dúvida shakespeariana entre ser e não ser foi Fernando Pessoa. Não conseguindo resolvê-la, foi cem.

Lombrosiano

Um pronome oblíquo sempre causa certa suspeita.

Estilo

Ter um estilo é escrever em 2015 um texto da mesma forma como se poderia tê-lo escrito em 2005.

Aliterações

As aliterações, quando fogem ao controle, soam como solos de tambor.

Tal qual

Nos sonhos, as palavras da amada lhe chegam macias como os passos de um gato sobre um tapete.

Sabor morango

Palavras que passam por lábios com batom costumam ficar muito mais excitantes. Eu te amo, por exemplo.

Alento

Abrir um parágrafo deve dar sempre ao leitor a esperança de que o texto possa enfim melhorar.

Paninho

A poesia não deve parecer nunca uma faxina sentimental.

Conflito de classes

Nas novelas de Agatha Christie, se uma faca de cozinha degola um dos nobres convidados, será naturalmente uma faca de prata.

Detalhistas

Certos escritores descrevem o interior de uma casa como se fossem corretores de imóveis ou decoradores.

Grupo

Verbos como precisar, carecer e ansiar são portadores de necessidades especiais.

Rotas

Há quem em mar calmo viva,
Com as bênçãos que Deus lhe deu,
E há quem só vogue à deriva,
Ai de mim, assim como eu.

Autossuficiência

Que orgulhosos são os verbos intransitivos, que prescindem do sujeito e dos complementos. Que doce arrogância há em chover, por exemplo, ou nevar.

Mario Quintana

Mario Quintana tinha especial afeição pelas pequenas coisas. E elas sempre lhe retribuíam esse amor, com a tocante generosidade dos humildes.

Singular pluralidade

Que singular prazer desfrutam aqueles substantivos que só se usam no plural. Ah, o nariz empinado das férias, dos óculos, das alvíssaras.

Janela

Ficamos olhando
passar a vida
indagando sobre seus possíveis sentidos
e quando julgamos achar um
ela havia passado toda
e dispensava-se já
de ter qualquer significado.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

O aroma

O amor será como o aroma deixado por uma flor numa gaveta aberta muitos anos depois. Dela não terá restado mais que um pó de cor indefinida, e a empregada, com o pano na mão, para a limpeza, imaginará aspirar a brisa que chega pela janela.

Tribunal

Seja o recurso qual for,
Jamais será atendido.
O amor não se dobra, o amor
É um déspota esclarecido.

Todo certinho

Se o amor tivesse bom-senso,
Fosse uma coisa arrazoada,
Seria um xarope imenso,
A mais chocha patacoada.

Fiscais

Se houvesse fiscais gramaticais, todos enriqueceriam, quer fossem mil, dez mil ou cem mil - se soubessem gramática, naturalmente.

Clandestinos

Os livros se escrevem não com a gramática, mas apesar dela.

Nariz empinado

Se existe alguém mais birrento que um gramático, é um gramático ortodoxo.

Do contra

O travessão é um hífen dissidente, que em vez de unir tem a pachorra de separar.

Mario Quintana

De Mario Quintana eu sei o essencial: foi poeta. Todo o resto são detalhes biográficos.

Pistas

Alguns poetas têm pejo de se proclamar e agem sempre com muito cuidado quando vão tirar algo dos bolsos, para não serem denunciados pela indiscreta queda de pétalas de rosa.

!

Os pontos de exclamação parecem estacas fincadas no texto: daqui ninguém passa! Quando se juntam dois ou três, é puro despotismo.

Coerência

Deram aos verbos defectivos um nome tão feio que não é de se estranhar eles se portarem tão mal.

Poetas

Mas que ausência de pudor
Somos forçados a ver.
Escrever poemas de amor
É não ter o que dizer.

Linhagens

O ó e o oh discutem para saber se é mais nobre um vocativo ou uma exclamação.

Iconoclastia

Arrastado pela correnteza para a goela de um bueiro, o barquinho de papel lastima-se: não se respeita nem mais a nostalgia.

Promiscuidade

O advérbio deveria relacionar-se apenas com o verbo. Talvez tenha sido assim, no início. Depois, um afrouxamento nos costumes gramaticais permitiu que ele mantivesse flertes também com os adjetivos e, em seguida, para horror dos puristas, com outros advérbios. E a degeneração parece estar em curso ainda, estendendo-se às conjunções, como se pode ver pela estranha combinação que anda aí pelos textos: muito embora.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Higidez

O que a literatura juvenil tem de melhor é o fôlego.

Autoria

Se a poesia não fosse escrita por poetas, talvez os editores a tivessem em melhor conta.

Disparate

O pior da poesia infantil é ser ela geralmente escrita por adultos.

Newtonianos

Um dos problemas dos poemas concretos é estarem sujeitos à lei da gravidade.

Símiles

Um soneto parnasiano só tem uma vantagem, ou desvantagem, sobre um vaso de cristal: a de não quebrar-se nunca.

Mario Quintana

Mario Quintana, que abominava as escolas literárias, se fosse para a Academia acredito que se sentiria como um passarinho catalogado e engaiolado.

Carimbo

Gostaria de saber como se sentem os livros antigos quando os chamam de alfarrábios.

Esplendor

O superlativo é aquele instante único em que uma palavra se sente uma prima-dona.

Norma

Os maus poemas deveriam morrer antes de se completar o primeiro verso.

Identidade

Se um cronista não sabe quantas árvores há em sua rua e quantos passarinhos moram em cada uma delas, desconfie dele e exija que lhe mostre a carteirinha.

Alienação

Os poetas são tão distraídos que podem levar no ombro uma borboleta, de um canto a outro da cidade, e só perceber se alguém, no ônibus ou no metrô, lhes chamar a atenção.

Paciência

Se, num romance, o amor não aparecer até a página 10, talvez o leitor benevolente se disponha a iniciar a leitura da página 11.

Recaída

Mesmo que precisemos alterar alguns fatos, dar uma roubadinha aqui e uma furtadinha ali, o amor há de parecer sempre puro para nós, como era no início, quando ainda não precisávamos manipulá-lo com nossas pequenas falcatruas.

O avô

O amor agora é para ele como um avô de barbas bem brancas que conta histórias sem nexo e a todo instante, mesmo debaixo do sol, queixa-se de frio nas mãos.

Indício

Dizem que morreu de amor, porque onde foi sepultado nasceu uma flor que verte lágrimas mesmo quando não chove.

Limites

As odes nascem daquelas situações em que a poesia, como um violino invejando um tambor, sente a tentação de soar como prosa.

História

Na batalha pelo amor
alguns morreram
e cada um foi por ele
pranteado
sepultado
e reconhecido

Os que se salvaram
nunca se perdoaram
por terem sobrevivido.

O que é

Morrer por amor é mais que uma sina; é um privilégio.

Honra

Aos que morrem por ele, o amor reserva um espaço no seu solo sagrado: aquele onde nascem os lírios e as rosas.

Esperança

Morrer por amor é uma dessas raras expectativas que podem estimular um homem a continuar vivendo.

Um trecho de Rainer Maria Rilke

"Leia o menos possível coisas estéticas e críticas - ou são visões parciais, que se tornaram petrificadas e sem sentido em sua inanimada obstinação, ou são hábeis jogos de palavras, nas quais hoje domina uma opinião, amanhã a oposta. Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode alcançá-las tão pouco quanto a crítica. Somente o amor pode compreendê-las e captá-las e ser justo com elas."

(De "Carta ao jovem poeta Kappus", extraído do livro A melodia das coisas, tradução de Claudia Cavalcanti, publicação da Estação Liberdade.)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Árbitro

Na escolha de sofás, o gato da casa há de ter sempre a última palavra.

Soneto da crença que tenho no amor

Sim, eu sou um sonhador.
Acredito ainda em boleros,
No poder dos lero-leros
E das cartinhas de amor.

Creio também no fervor
Dos juramentos sinceros,
E também nos insinceros
Vejo sempre algum valor.

Tudo que do amor nos vem
Por definição é um bem,
Mesmo que assim não pareça.

Eu louvo o amor ternamente,
Com o coração, a alma e a mente,
Ainda que ele não mereça.

Do contra

Na gramática, as dissidências são sempre encabeçadas pelos antônimos, pelos advérbios de negação e pelas conjunções adversativas.

Belezas

O bocejo de um gato é mais delicado que o suspiro de uma rosa.

Carapuça

Pundonor é uma palavra que deveria ter pudor de ser tão afrescalhada.

Vírgula

Na dúvida entre pôr ou não uma vírgula numa frase, ponha. Ela dá sempre uma impressão de texto bem cuidado.

Desperdício

Qualquer poema que não fale de amor está perdendo uma grande oportunidade.

Censura

Nada mais obsceno, na gramática, do que as conjunções copulativas.

Imagem

A ideia que tenho de majestade é um gato acomodado num sofá.

Estratagema

O sujeito oculto é uma das tentativas da gramática para se tornar um pouco menos maçante.

Estoque

Na noite em que o poetastro jurou que jamais faria mais um verso sequer, suas rimas dormiram o mais tranquilo dos sonos em sua gaveta de ouro. Mas, de manhã, foram acordadas pelo desmemoriado patife, que bradava: "Sol, cadê você? Onde está você, arrebol?"

Ana

vi um pássaro voar
do sétimo andar

Não voava bem
me lembrou alguém

Ah foi você
menina traquina

Ah foi você
aninha c?

Dia G

Galeano, Grass. A Morte em ordem alfabética.

Parágrafo inicial de "O tambor", de Günter Grass

"Admito: sou interno de um hospício. Meu enfermeiro está me observando, quase nunca tira os olhos de mim; porque na porta há um postigo e os olhos do meu enfermeiro são desse castanho que não consegue penetrar o azul dos meus."

(Tradução de Lúcio Alves, publicação da Rio Gráfica.)

"A noite/1", de Eduardo Galeano

"Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta."

(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, publicação da L&PM Pocket.)

Fiscalização

Por que os verbos irregulares não têm a licença cassada?

Culpa

Diante da gramática nos sentimos sempre como se nossa gravata estivesse toda babada e tivéssemos esquecido de fechar a braguilha.

Cotação

Andamos tão mal-humorados e aborrecidos com o mundo que não estranharei se um dia destes um repórter der nota 6 a um arco-íris.

Criação

No primeiro dia o menino desenhou o céu, e viu que era bom. No segundo desenhou o mar, e viu que era bom. No terceiro notou que o lápis estava sem ponta e ficou com preguiça de continuar brincando de Deus. Como último ato, decretou que era domingo e foi descansar embaixo da ameixeira.

Soberba

Um paralelepípedo é um proparoxítono com mania de grandeza.

Mario Quintana

Mario Quintana dizia
Que o amor cobrava seu preço:
À alma que amava exigia,
E à amada, o mesmo endereço.

Fim

A morte sempre devia
Ser mais ou menos assim
Como a chegada macia
Da noite sobre um jardim.

JSB

Antes de cada fuga
Bach preparava o teclado
e mascava um cravo
bem temperado.

Hora H

Ninguém a adia ou evita,
Chega sempre o dia, e a hora,
De receber a visita
Da Infatigável Senhora.

domingo, 12 de abril de 2015

2009

Talvez nos vejamos
na paulista
na consolação

Talvez nos reconheçamos
talvez
melhor não

Quem ainda se comove
ao rever um rosto
de 2009?

Quem acredita
que uma  manhã
de verão se repita?

Assim como

Assim como os gatos, especialmente os cinzas, o amor não deveria morrer nunca.

Soneto de como tratamos o amor

Celebramos hoje o amor,
Mas quando nós o tivemos
Que tratamento lhe demos,
Onde estava este fervor?

Ele se pôs ao dispor
E dele nós dispusemos,
Mas logo nos desfizemos
Sem remorso e sem pudor.

Ontem nós o rejeitamos,
O negamos, renegamos,
Hoje dizemos amá-lo.

Queremos tudo fazer
Para dele dignos ser.
Podemos ressuscitá-lo?

"A oferenda", de Mario Quintana

"Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio."

(De Nova antologia poética, Editora Globo.)

sábado, 11 de abril de 2015

Amor &

Do amor já falamos tudo,
Chegamos a nos fartar,
Falamos tudo e contudo
Ainda há tanto por falar.

Má escolha

Em vez de passar a vida falando do amor, eu deveria ter-me ocupado com os gatos. Eles arranham também, mas só quando têm motivo, e não há no mundo maciez que se compare à do seu pelo quando acariciado.

Mario Quintana

Mario Quintana sabia lidar com as palavras como tantos outros e, ao mesmo tempo, como mais nenhum.

Mario Quintana

Dizer o nome Quintana é assumir instantaneamente o poder de abrir sorrisos e predispor as pessoas a um estado único de leveza espiritual.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Cerimônia

Quando eu, na extrema agonia,
Triste perguntar por ti,
Dirão que estarás aqui,
Mas só no sétimo dia.

Soneto de quem tem o amor como guia

Quem tem o amor como guia
De nada se queixará
E não reivindicará
Recompensa ou alegria.

Resignado aceitará
Pão mofado, cama fria,
E de dor ou agonia
Jamais se lastimará.

Estando ao lado do amor
Onde, quando e como for,
Lhe será grato viver.

E se algo pedir a Deus
Pedirá que os dias seus
Morram quando o amor morrer.

Faces

Viver é se debater,
Morrer é apenas ficar.
Viver é um modo de ser,
Morrer é um modo de estar.

Inscrição

No dia em que você conclui que narrar a vida é mais importante que vivê-la, você passa a pertencer à extravagante categoria dos escritores.

Bate-papo

Teoricamente, nada impede que batamos todo dia dois bons dedos de prosa com a poesia.

Alívio

Quando eu morrer, estarás
Isenta de me atender,
De pedir para dizer
Que não vieste, não estás.

Plus

Não me pergunte a medida
Nem de onde a ideia tirei.
Nem mesmo eu sei por que sei
Que o amor vale mais que a vida.

Politicamente correto

Só não diz ser um zero à esquerda porque receia ser envolvido em questões ideológicas.

Enjoadinho

Nenhum remédio adiantou,
Nenhum esforço valeu,
O amor conosco emburrou,
Nos deu banana e morreu.

Soneto da paz em que morreremos (versão final)

Nós morreremos em casa,
Não sob o calor da chama
Que queima sempre quem ama
E deixa-lhe o peito em brasa.

Nós morreremos dormindo
Com tanta normalidade,
Tão sem dramaticidade,
Que morreremos sorrindo.

Bem melhor nós morreríamos
No tempo em que nós morríamos
Por um abraço, um sorriso,

E em que, para um só ganhar,
Nos agradaria dar
Nossa vida, se preciso.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Ontem

Houve uma tarde em que a vida
Para nós teve sentido.
Ai de nós, hoje eu duvido
E você também duvida.

Presunção

Alguns amores são tão presunçosos que aspiram à eternidade. Esses são os verdadeiros.

Mario Quintana

Mario Quintana e a beleza falavam a mesma língua, mas se entendiam até por mímica.

Demais

Tão grande imaginamos o amor que, ainda que vivêssemos mil vidas, jamais conseguiríamos merecê-lo.

Cobrança

Terá chegado o tempo de pagar.
Afogado, com algas nos cabelos,
O amor perguntará, em pesadelos,
Que razão tivemos de o matar.

Sofá

Triste é o sofá sobre o qual nunca esteve deitado um gato com os olhos enevoados de remela e sono.

Tédio

As histórias de amor são tão maçantes...
Como são previsíveis os amores...
Se contar uma história dessas fores,
Ah, por favor, me poupa, avisa-me antes.

Acalanto

Aninhar-me no teu trigo,
Afundar-me em teus cabelos,
Pintados de noite vê-los
E dormir com eles, contigo.

Pensar

Pensar que ainda ontem brilhavam ao sol as flores que morrem agora num peito defunto.

Mario Quintana

Mario Quintana tinha o maravilhoso e confessável vício da beleza.

Quer

Quer nos tolere, quer não,
Quer nos ame, quer maltrate,
Quer nos poupe, quer nos mate,
O amor tem sempre razão.

História

Nós criamos um monstro e, como não sabíamos que nome dar-lhe, lhe demos o nome de amor.

76

O que nos sobra se não
A mão de sonhos vazia,
A alma ferida e sombria
E a triste recordação?

Gêneros

Isso de dizer que o romance está vivendo seus últimos dias já virou uma novela.

A diferença

Na prosa há entrelinhas. Na poesia, só entrelinhas.

Godot

Beckett construía seu absurdo com uma lógica impecável.

Relâmpago

Tínhamos tanto a fazer,
Tanto a medir, a checar,
Que não chegamos a ver
A nossa vida passar.

Coerência

Se chamas isso de amor,
Que possa eu então chamar,
Para de ti não destoar,
O teu chicote de flor.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Lições

Começa a se habituar com a morte do amor. Já não vai abrir a porta quando o vento a toca e aprendeu que o ruído na janela, de madrugada, é só a ameixeira cabeceando de sono.

Menos

Quando viu que não conseguiria arrastar para baixo a lua, resignou-se a descer com uma estrela, a menor delas, imaginando como a amada o censuraria por mais essa inaptidão.

Mendigo

A ele nós nos demos tanto
Que nos estranhou o amor.
Esmola de alto valor
Deixa desconfiado o santo.

A melhor

Tu dizes que o amor te mata,
E te lamentas, e choras.
O que, criatura, deploras?
Tu queres morte mais grata?

Autor

Se o amor vier a te faltar,
Por esse teu sofrimento,
Por todo esse teu tormento,
A quem irás tu culpar?

Idade

Digam o que disserem, provérbio é coisa de velho.

Fraque e cartola

Não há nada mais maçante nem mais metido a besta que um provérbio.

d.D

Poesia talvez seja isso que continuamos fazendo mesmo depois que Drummond morreu.

Última curva

Sei que mais nada vai acontecer.
Glória jamais, nem hoje nem no fim.
Mas ainda escrevo, e acho melhor assim:
Escrever, escrever por escrever.

Mario Quintana

Mario Quintana sabia,
Sem precisar anotar,
O rumo preciso do ar
E o endereço da poesia.

A palavra

Que belos os necrológios
em que surge a palavra amor

A cada vez que aparece
mais o defunto se enobrece
e mais injusto parece
o desígnio do Criador.

Sempre um

Porém há sempre um calhorda
A quem o amor, com jeitinho,
Manda subir no banquinho
Enquanto prepara a corda.

Amor

Nos mata sem compaixão.
Depois, com as mãos amorosas,
Espalha em nosso caixão
Uma mortalha de rosas.

Cotação do dia

Se eu soubesse dar saltos mortais no trapézio, me agradaria dar o último num dia como este, e espatifar-me de cara num picadeiro em que estivesse escrita em letras enormes a palavra ESPERANÇA.

Aleluia

Estar travado
por três
por seis meses
ou mais
às vezes
é o melhor recado
que o escritor
mesmo consagrado
pode dar
ao seu abnegado leitor.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Intimidade

É atrevida, já se vê.
Para ela o Proust é Marcel,
O Descartes é meu René
E o Kant é caro Immanuel.

Média histórica

Em tudo que penso ou faço,
Jamais, no final da história,
Obtenho renome ou glória,
Só decepção e cansaço.

Intimidade

É atrevida, já se vê.
Chama Proust de Marcel,
Descartes de meu René,
Kant de caro Immanuel.

Norma

Se queres que amiga e amigo,
Namorada e companheiro
Estejam sempre contigo,
Não lhes emprestes dinheiro.

Mario Quintana

Mario Quintana era carinhoso com a beleza. Depois de cada frase lhe perguntava: "Não é mesmo, guria?"

Ardil

Alguns, para assegurar
Honras no céu ou no inferno,
Garantem, com o olhar mais terno,
Que morreram por amar.

Ontem

Ainda ontem riam, cantavam.
Distante ainda estava o pó.
O amor era um verbo, só,
E os dois não o conjugavam.

O amor sempre nos submete.
Sempre mantemos a fé
No que nos oferta, e até
Naquilo que nem promete.

Hora de

Já não posso te dizer
O que te dizia outrora.
Mudou tudo, e agora é hora
Não de viver, de morrer.

Mario Quintana

Muito cedo a poesia percebeu que podia confiar em Mario Quintana, talvez pelo modo com que ele olhava para as estrelas e às vezes piscava marotamente para uma delas.

Talvez até

Não me matarei por ti.
Talvez até me matasse,
Se porventura confiasse
Em que viesses ver-me aqui.

Mario Quintana

Mario Quintana nos ensinou que o simples é uma conquista do esforço e de uma obstinada persistência.

Inocência

Benditos sejam os tolos,
Que, se recebem favores
Ou agradinhos de amores,
Não sabem nem onde pô-los.

Mario Quintana

Em Mario Quintana o humor
Era bem dosado, fino,
Mais murmúrio que clamor,
Um humor quase londrino.

Poder

Certas elites diretivas
Se Goethe um dia as estudasse
É bem possível que as chamasse
De nulidades eletivas.

"Mais um ano", de W.S. Merwin

"Nada tenho a lhe pedir,
Futuro, paraíso do pobre.
Ainda visto as mesmas coisas.

Continuo vendo o mesmo problema
Pela mesma luz,
Comendo a mesma pedra,

E as agulhas do relógio ainda espetam sem entrar."

(Tradução de Antonio Carlos Secchin, extraído da coletânea Nova poesia norte-americana, publicação da Editora e Livraria Escrita.)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Parca

O amor enreda quem ama,
Tece os fios, animado.
Mas logo cansa, enfadado
Dorme, e se desfaz a trama.

Língua

Enquanto tens língua
grita ao mundo
a falácia do amor

Um dia quem garante
que ele não a atirará
ao caldeirão fumegante
ou à fome urgente
do seu cão?

Gato

Não é fato consumado,
Mas já requer atenção.
O amor subiu ao telhado,
Sem nenhuma explicação.

Comme il faut

Amor, te presentearia
Meu coração, se o aceitasses,
E em filés o cortaria
Para que não engasgasses.

Alcaguete

Alcaguete é uma das palavras mais antipáticas e fedidas da língua portuguesa.

Dedo-duro

Hoje o meu sexto sentido
Veio chegando, parou,
E com jeito me insinuou
Que os cinco têm me traído.

Cavalo

Tem jeito de vencedor,
Mas, quando no fim se vê,
O superposudo amor
Não paga sequer placê.

Soneto da inevitabilidade do amor

Talvez, se eu fosse um homem precavido,
Dotado de prudência e de bom-senso,
Imune ao descalabro e ao contrassenso,
Não tivesse ao amor me submetido.

Sinto o meu pensamento dividido
Sempre que nesse grave assunto penso.
Penso que errei, que não, depois repenso
E de uma e de outra conclusão duvido.

O amor é uma tamanha realidade
Que se for falso ou se for de verdade
Em nós o mesmo efeito causará.

Já que bateu um dia à nossa porta,
Se mentiu, ou se não, já não importa.
Jamais vamos deixá-lo ao deus-dará.

Soneto de como gostarias de mim

Tu gostarias de mim
Se eu fosse todo assentado,
Decente e disciplinado,
Se eu não fosse tolo assim?

Tu gostarias, me diz,
Se eu fosse um mestre aclamado,
Um professor renomado
Com doutorado em Paris?

Talvez gostasses, mas não
Com a comovente paixão
Que revelas dia a dia

Por este rabiscador
Que se tem algum valor
É o de em ti ver a poesia.

Ali

Não é fato consumado,
Mas já requer atenção.
O amor subiu ao telhado,
Sem nenhuma explicação.

Um poema de Emily Dickinson

"É tudo que hoje tenho para dar-te -
Isto - e meu coração -
Isto, e meu coração, e mais os campos
E prados na amplidão -
Não te percas na conta - se eu esqueço
Alguém tem de lembrar -
Isto, e meu coração, e cada Abelha
Que no Trevo morar."

(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)

Vieira

Os discípulos do padre Vieira só não gostavam dele quando vinha com sermões e lições de português.

Mito

Se Ruy Barbosa estivesse vivo, seria professor de inglês em Cambridge.

Amnésia

Morou naquela casa verde um menino que morreu com nove anos, em 1958. O sol, que anda caducando já, em certas manhãs vem chamá-lo ainda, às sete, para acompanhá-lo até o colégio.

Emily

Era um desses tipos aos quais não afetam os morticínios, as catástrofes nem as calamidades. Fazia trinta anos que dedicava todos os seus dias ao estudo do travessão na obra de Emily Dickinson. Na tarde em que o encontraram morto num dos bancos do seu jardim, notaram em sua camisa uma borboleta que se recusava a ser espantada.

Perfil

De modo rápido ou lento,
Com toda a pressa ou vagar,
O amor mostra, ao se mostrar,
Que é um bicho feio e gosmento.

Lema

Fazer poemas como
quem faz palavras cruzadas

Garantir assim satisfação
entretenimento
e bom humor
se não ao leitor birrento
ao menos ao autor.

Maioridade

Surgiu então um problema.
Alguém instruiu a menina
E ela exigiu, de propina,
Um real ao invés de um poema.

Mérito

Agradecer ao amor
Mesmo sem saber por quê,
Esse é o maior favor
Que você faz a você.

Previsão

Quisemos dar-nos ao amor
e ele sorriu
nos disse
logo você vai ver
como vai ficar estragadinho
esse seu rosto bonito
e esse corpinho sadio.

Tocaia

Alegres, vêm as palavras beber no riacho onde as esperamos com nossa sede diária e nossa eterna presunção.

Pau pau

Se as palavras perdessem a mania da intermediação e fossem aquilo que nomeiam, sem circunlóquios.

Predestinação

Não sabiam que o sobradão abrigaria trinta anos depois um asilo de loucos, e lhes parecia estranho que o filho menor conversasse com o sol no quintal e o chamasse de Frederico.

Mario Quintana

Assim como o gato tem
Um pulo de astúcia cheio,
Que não ensina a ninguém,
Quintana tinha o gorjeio.

Fim

Mil sorrisos ou um só,
Um milhão ou um vintém,
Todo o mal e todo o bem,
Tudo e nada viram pó.

Cego

O amor é um grande papalvo.
O seu arco ainda é o mesmo,
Porém ele atira a esmo
E já não acerta o alvo.

Folha corrida

Ouvir o amor é loucura,
É querer ser infeliz.
O amor perjura o que jura,
O amor desdiz o que diz.

Um poema de Emily Dickinson

"Ela morreu - assim ela morreu -
E quando o ar lhe foi embora
Vestiu-se em roupas simples
E partiu para o sol.
Seu vulto perto do portão
Os anjos devem ter notado -
Pois nunca a vi de novo
Aqui entre mortais."

(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)

domingo, 5 de abril de 2015

Ofício

Já foi meu hobby, meu vício,
Meu mais intenso prazer.
Já foi. Mas hoje escrever
É dor, é pena, é suplício.

Revisão

Um dia
tudo será esclarecido

Por um engano qualquer
um mal-entendido
finalmente revelado
o amor derrotado
terá vencido
e vencedor proclamado
terá todos
os direitos reconhecidos

Gozará então
de régia aposentadoria
e morará numa mansão
digna de um estadista
na baixada santista.

Das formas de pedir

Tudo que pedir
peça de modo veemente
e se for amor
veemente e descaradamente

O amor é aquele produto
que por tradição
é vendido
com tudo incluído
até o  perdão.

O ideal

A poesia deveria ser uma espécie de cartilha que os anjos menores aprendessem no jardim de infância do céu, junto com a arte de desenhar estrelas.

Sim

Sim
nós fazemos poesia

É uma atividade
mais charmosa
que a prosa
e mesmo quando trata
do dia a dia
se denunciada
jamais confessaria.

Escritor

Não teve tempo de viver. Havia sempre algo a anotar, uma observação, uma ideia, um sentimento, e os dias foram passando por ele como se não os merecesse.

Mario Quintana

Se no céu há um departamento incumbido de montar e desmontar arcos-íris, Mario Quintana certamente é o encarregado da primeira parte dessa tarefa.

Mario Quintana

Assim como para Wislawa Szymborska, para Mario Quintana o prosaico era só mais uma das fontes da poesia.

Soneto do sobrevivente

Se eu tivesse morrido ontem, como eu faria
Para dizer-te, amiga, como agora digo,
Que nesta noite se refez a epifania
E eu pude novamente me encontrar contigo?

Se eu tivesse morrido ontem, quem responderia
Quando no sonho perguntaste és tu, amigo?
E quem, amiga, diz, te tranquilizaria,.
Pedindo que não te ocupasses mais comigo?

Se eu tivesse morrido ontem, quem, minha querida,
Te diria que és tu apenas, mais ninguém,
A razão de eu acreditar ainda na vida?

Se eu tivesse morrido ontem, me diz, quem mais
Rogaria que, sendo tu todo o meu bem,
Não te ausentes de mim, minha amiga, jamais?


... e outra na ferradura

Ora desdém, ora acenos,
Sentimentos desiguais...
Cada vez te entendo menos
E cada vez te amo mais.

Amor (versão final)

Não sabem se é sortilégio,
Se é dom ou se danação,
Se é pena ou se privilégio,
Não sabem, não saberão.

Não sabem, porém o aceitam,
Seja um mal ou seja um bem.
Se for um bem, se deleitam
E, se for um mal, também.

Regressão

Fui secretário do Proust
E lhe disse, desgostoso,
Que achava ser um embuste
E um desvio vergonhoso
Ele andar sempre nervoso,
Melancólico, abatido,
Atrás de um tempo perdido
Perdendo um tempo precioso.

sábado, 4 de abril de 2015

Mas não

Imaginávamos ter
Já visto tudo, mas não.
Faltava a estupefação
De vermos o amor morrer.

Soneto do que o amor é para nós

Sem o amor, o que seríamos?
Sem ele, como viver,
Sem ele, como sofrer,
Sem ele, o que nós faríamos?

Sem ele, nós estaríamos
Ainda hoje sem conhecer
Como ganhar e perder,
E a grave arte ignoraríamos

De construir e de destruir,
De erguer e de fazer ruir
Num sopro um castelo inteiro,

Essa arte nobre e fatal,
Essa artimanha na qual
O amor é useiro e vezeiro.

Rotina

Isso já provoca enfado.
Serrá preciso que o amor
Se faça de perdedor
Para ganhar um agrado?

Solenidade

Em ocasiões especiais
o amor faz uma festa
e homenageia
seus antigos generais

São simpáticos todos
ainda quase joviais

Ouvem o amor falar
dos seus feitos
sorriem 
agradecem
mas a maioria
não se lembra mais.

Hoje

Tudo que agora nós somos
Nada mais é que somente
A amarga face presente
Do alegre ser que ontem fomos.

Soneto do teu e do meu destino

Que cada um de nós cumpra o seu destino.
Que tu, querida, estejas destinada
A percorrer a trilha mais dourada
E eu a trilhar o atalho mais mofino.

Que por onde passares sempre um hino
Componha para ti a passarada
E que sempre que fores celebrada
Se igualem teu humano e teu divino.

Que consiga eu imbuir-me de humildade
E, nada tendo meu a celebrar,
Não queira com meu canto te cantar.

Que estejas livre da calamidade
Dos quartetos sovados e tercetos
Destes meus anacrônicos sonetos.

Majestade

Que quando vos curvardes vos curveis
Diante de uma realeza de verdade,
Não diante de uma falsa majestade.
Eu vos digo que o amor é o rei dos reis.

Dias

Que esplêndidos dias
foram esses
em que o perfume
de tua ausência
brindou minhas narinas
como se perfumasse
as trançãs de duas meninas

Que esplêndidos dias
seriam estes
que se renovam todos os dias
se com tudo que trazem
trouxessem a novidade
de que finalmente
reapareceste.

Mario Quintana

Se um dia eu for para Pasárgada, sei que lá estará Mario Quintana. Será ele quem me apresentará o rei, se o rei não for ele mesmo.

Calendário

Aquela alegria que era
Tão febrilmente esperada
Ficou no meio da estrada,
Não veio com a primavera.

Decisão

Sofrendo a pressão amarga da
Vida, não mais esperei:
Ao diabos tudo mandei
E embarquei para Pasárgada.

Aspiração

Dormir muito, inteiramente,
E, se um dia despertar,
Pensar que é um sonho somente
E voltar a ressonar.

Suserano

Depois que um coração dobra
E o submete à servidão,
O amor tudo dele cobra
Sem nenhuma compaixão.

Tropa

Morreram todos aqueles
Que só pelo amor viveram
E por ele combateram.
Eu sei, eu estava entre eles.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Pedir perdão

Pedir perdão a Aristarco
pela transgressão gramatical
e a Stéphane Mallarmé
pela rima banal
mas escrever mesmo assim
e não ter pejo de repetir
eu amo você
eu amo você

Porque a poesia
não é só aquela
engravatada e endomingada
que se compra na livraria.

23h24

Fechar a loja. Quem estará acordado a esta hora? O amor certamente está, mas há muito fez questão de esquecer este endereço.

Monólogo

A vida é assim, seu Raul:
Um dia sem briga, e as flores
Se tornam mais multicores
E o céu até mais azul.

Como vou

Quando alguém me perguntou
O que fiz, já que sumi,
A tristeza me mandou
Que eu mentisse, e então menti:
"Viajei, tirei férias, li."
A pessoa acreditou
E não viu, não suspeitou,
Não percebeu que morri.

A ameaça de Alice B. Toklas

Gertrude, quanto descaso!
A razão disso não sei,
Mas, se não mudares, caso
Com o Picasso ou o Hemingway.

Família

Já disse um homem sapiente
Que a família é um tesouro
Mais valioso do que o ouro,
Mas tem um inconveniente:
É constituída por gente
E o vínculo é duradouro.

Soneto dos últimos instantes do amor

Levamos então o amor
Por uma trilha sombria
Já sem sinal de calor
E nem do esplendor do dia.

Que culpa eu sinto, e que dor,
Lembrando que ele sorria
Sem nem pressentir o horror
Que em seguida sentiria.

Sem de nada suspeitar
Ele se deixou levar,
Conversando, conversando.

Foi assim. Meia hora após,
Não muito mais que isso, nós
O estávamos enterrando.

A voz

Não é do amor essa voz.
O amor ama sanfoneiros,
Soldados e marinheiros,
O amor não gosta de nós.

Argh

Melhor a poesia pecar pelo excesso do que pela moderação. Se bem que o barroco, se bem que o gongorismo, se bem que o condoreirismo...

Distorções

O amor é aquele cretino
Que ouve soar uma matraca,
Berrar uma maritaca,
E crê ouvir um violino.

Motivo

Pois eu que morrendo vivo
Posso sem erro dizer:
O amor é o melhor motivo
Para viver e morrer.

Soneto do difícil aprendizado

Aprenderemos um dia,
Depois de tanto sofrer,
Que à vida custa entender
A nossa filosofia?

Até um cego veria
Que nosso modo de ver
Pior não poderia ser
Nem mais tolo poderia.

Ainda nós não nos fartamos
De ver quanto já erramos
No que quisemos supor?

Não vemos nós que morremos
Por esse apego que temos
A palavras como amor?

Mensagem (haicai)

O pombo-correio
Surgiu com o bico vazio
No dia em que veio.

Troca-letras

Já Fócrates ensinava
A alunos de sua roda
Que o mundo é uma coisa brava
E a vida é mesmo uma soda.

Duas medidas

Se todo grego, ao andar,
Se achava um peripatético,
Por que é que eu, ao caminhar,
Me sinto apenas patético?

Anfiguri

De repente, sem nenhuma
Razão, ficou todo prosa
E achou a dialética uma
Conquista nada Espinosa.

Aquele

Aquele que não venceu
Em nada, aquele de quem
Zombaram aqui e além,
Aquele, amiga, sou eu.

Reminiscência do Pessoa

Melhor do que a noite é o dia,
Melhor que pensar, viver.
Melhor cochilar, comer
Doces na confeitaria,
Melhor qualquer coisa que
Nossa vã filosofia.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Prestidigitação

Quisera ter o poder
De tocar um pé de alface
E, como um mago, fazer
Que em rosa se transformasse.

Paz

Tão suave passou o dia
Que pude ouvir, bem baixinho,
A bem-te-vi que tecia
Com palha e amor o seu ninho.

Desfeita

Negar que dor seja
a rima perfeita para amor
é uma atitude
que não salvaria
a poesia
e contrariaria
o que há séculos vêm dizendo
poetas de todas as escolas
e latitudes.

Sucessão

Se um dia eu chegar a rei,
Que glória será a minha.
Ao meu trono abdicarei
E o entregarei à rainha.

Mario Quintana

Mario Quintana bebeu na mais pura fonte da poesia brasileira: a casimiriana.

Filosofia

Temos a volúpia do grandioso. Vivemos perguntando para onde vai o Homem, e ninguém se importa em saber para onde vai a formiga carregando aquele torrãozinho.

Criacionismo

Inventamos o mundo conforme nos deu na telha e como nos instruiu o Diabo, e, quando ele começou a desandar, criamos Deus, porque Alguém precisava levar a culpa.

Cachoeira

Na concha das mãos ela colheu um fio de água e um filete de sol. Bebeu-os com a tranquila indiferença da majestade.

Norma

Devemos ter a humildade
De somente perguntar,
Sem a pretensão de achar
Que acharemos a verdade.

Mario Quintana

Se diante de Mario Quintana alguém chamasse o sol de astro-rei, deveria estar preparado para ouvir ao menos meia dúzia de desaforos.

Mario Quintana

Em Mario Quintana, o simples é que era uma questão de etiqueta.

Soneto da futura memória

Quando, cansados, tivermos
De quase tudo abdicado
E tudo quanto fizermos
Será lembrar o passado,

Se ainda lembrar-nos pudermos
Do que tivermos amado,
Terá, se assim nós fizermos,
Nossa ventura voltado.

Que seja assim e possamos,
Lembrando-nos do que amamos,
Reviver a nossa história.

Que seja assim, quando for,
E que seja sempre o amor
A nossa melhor memória.


Covardia

No dia em que viu
O mundo aos seus pés, foi fundo:
Chutou-o e fugiu.

Resposta

Na carta esperada
Havia uma frase fria:
"Nada, nada, nada."

(Des)caminho

Escrever para onde,
Se aqui, se acolá, se ali,
Ninguém te responde?

Voo

Quando o coração do poeta
Explodiu no pavimento,
Alguém comentou: "Pateta!
Quem mandou ter sentimento?"

quarta-feira, 1 de abril de 2015

A primeira

A primeira viagem que fiz com meu terninho de marinheiro, aos cinco anos, foi para que tirassem a minha também primeira foto. Quem tirava fotos, naquela época, eram só os fotógrafos, em seus estúdios. O desse meu era na rua Direita, salvo engano, e me lembro com certa angústia das mil e uma vezes que ele girou meu rosto, até ele assumir a pose definitiva. Senti-me como um herdeiro do império austro-húngaro ameaçado de perder a sucessão.

Esnobe

Não dizia Blumenau, dizia Blumenô. Casou-se com a filha de um nobre merceeiro de Nová Grrranadá e os duzentos convidados cearam fartamente num legítimo restorã frrrancês.

Francisquinho

Hoje, no mercado, me lembrei do Francisquinho, da Líria Porto. O garotinho apontou as azeitonas: "Olha, mãe, elas têm uma piscina só pra elas!"

Mario Quintana

O anjo torto recomendou a Drummond que fosse gaúcho. Ele entendeu mal, foi gauche, e o erro só foi corrigido com Mario Quintana.

Antes

Mas que palavras o amor
Tem para nos agradar,
E aquele sorriso, e a flor,
Antes de nos despachar.

Mario Quintana

Mario Quintana só podia ter nascido em Alegrete, ele que viria a ser sempre alegrinho, ma non troppo.

Sorte

Se não tivéssemos sido tolos, o amor seria hoje como uma daquelas fotos de família borradas pelo amarelo do tempo. Sermos derrotados por ele foi nossa vitória.

Alteração de perfil

A morte censura frequentemente a vida por lhe entregar, tão danificados, rostos outrora tão belos.

Honra póstuma

Se falo de amor, ainda, é porque ele concede, àqueles que em seu nome morrem, algumas honras, como a de continuarem a celebrá-lo.

Mario, Luis Fernando

Quando surpreendo em Luis Fernando Verissimo o ar galhofeiro de Mario Quintana, sinto alívio: o bom humor gaúcho está salvo, assim como o chimarrão.

Emily

Ler Emily Dickinson é ter, por instantes, a impressão de que o divino e o sagrado às vezes se deixam tocar por certas mãos humanas.

Mario Quintana

Os melhores amigos do menino Mario Quintana eram as gurias de olhos sonhadores e os passarinhos metidos a barítonos.

Embalagem

As caixinhas de lápis de cor lhe parecem um engenhoso modo de guardar arcos-íris.

Jamais

Quando seu modo de viver começa a incomodar sua família, é porque você já perdeu o seu melhor tempo de ser poeta.

Soneto das viagens da Fracassotour

São sempre bem-vindas essas
Palavras que ela me diz.
Jamais passam de promessas,
Mas me deixam tão feliz.

Em março iríamos à Índia
E a Cuba agora em abril,
Porém vai chegar maio e ainda
Estou aqui no Brasil.

Espero-a até me cansar
E enquanto a espero me vem
Alguém sempre me contar

Que aqui e ali minha amada
Foi vista sem mim, mas bem,
Sempre bem acompanhada.

"Primeira foto de Hitler", de Wislawa Szymborska

"E quem é essa gracinha de tiptop?
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório com a filha do prefeito?

Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe;
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.

Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos."

(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, edição da Companhia das Letras.)

Farinha de outro saco

Querer coerência num poeta é confundi-lo com a empertigada classe dos filósofos. Mario Quintana sabia muito bem disso.

Acervo

Sinto em mim certa beleza que sou tentado a compartilhar. Talvez consiga, agora. Outrora tentei transmiti-la ao amor, mas, jovem que era, falhei calamitosamente.

Paradoxo

Queres viver e ao mesmo tempo ser feliz no amor. Tens aí um problema.

Ainda

Não importa quantas pilhas já picaste e queimaste. Hás de ter ao menos um cantinho de gaveta para novas recordações amorosas, ainda que precises forjá-las.

Linha de montagem

O problema dos versos parnasianos é que, por mais belos que sejam, parecem sempre feitos pelo mesmo poeta e na mesma oficina.

Mario Quintana

Mario Quintana era um dos pouquíssimos poetas capazes de atestar  a autenticidade de um arco-íris sem recorrer a uma lupa.

Amor

Custou-nos tanto plantar,
Semear custou-nos bastante.
Podar, serrar, empilhar,
Aí foi só um instante.

Um poema de Emily Dickinson

"Um rosto nu de amor e graça,
Um rosto vil, de duros traços,
Rosto com que uma pedra
Há de ficar sempre à vontade
Quais fossem velhas amizades
Que juntas se arremessam."

(De A branca voz da solidão, tradução de José Lira, publicado pela Iluminuras.)