segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
Crônica na Rubem
https://rubem.wordpress.com/2018/12/30/filosofos-e-fantasmas-raul-drewnick/
Uma porção de frases bem picadinhas.
Uma porção de frases bem picadinhas.
Jornada
Entregue ao jugo do mar
Por mil noites e mil dias,
Morri, mulher, sem provar
As tuas esspeciarias.
Por mil noites e mil dias,
Morri, mulher, sem provar
As tuas esspeciarias.
domingo, 30 de dezembro de 2018
Plenitude
Quando fui refém do amor bastavam-me
o pão e a água que eu recebia
porque era a mão dele que os servia.
o pão e a água que eu recebia
porque era a mão dele que os servia.
Recurso
Um chato pode até nos pagar um café, se não houver nenhum outro jeito de nos manter um pouco mais aporrinhados.
Sempre
Pode haver dez, vinte ou cinquenta pessoas na sala. Quando o chato chega, sabemos que é no nosso ombro que sua mão suada vai pousar.
Dom
O que impressiona, nos chatos, é a espontaneidade. Nenhum deles parece esforçar-se para ser o que é.
sábado, 29 de dezembro de 2018
Regresso
É como lhe disseram que seria. Vai voltando a ser menino, até nos sonhos. Neles, joga bola na rua, furta limões, beija timidamente garotas, no rosto só, e lhes aperta os peitos, como se tudo estivesse perfeito e nada mais houvesse para fazer.
Mudança (para Lucia de Moura Chamma)
Não foi o amor que mudou. São os poetas que não estão mais dispostos a morrer por ele.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
Opinião (para Ana Farrah Baunilha)
Vocês acham o sexo indecente? Eu o acho triste, agora que ele não é mais que uma lembrança.
Hoje no Estadão
Uma mistura daquelas, com direito a Julianne Moore
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/sadomaso-e-outros/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/sadomaso-e-outros/
quinta-feira, 27 de dezembro de 2018
"À espera", poema de Raymond Carver
"Vire à esquerda na rodovia e
desça a colina. Lá
embaixo, esquerda outra vez.
Mantenha a esquerda. A estrada
vai se bifurcar. Mais uma esquerda.
Há um riacho à esquerda.
Siga em frente. Pouco antes
do fim da estrada, haverá
outra estrada. Entre nela
e em nenhuma outra. Caso contrário,
sua vida estará arruinada
para sempre. Há uma casa de madeira
com um telhado de tábuas, à esquerda.
Não é essa casa. É
a próxima, bem no alto
de um aclive. A casa
com as árvores carregadas de
frutas. Onde florescem cravos,
magnólias e jasmins. É
a casa onde a mulher
aguarda na soleira
vestindo o sol nos cabelos. Aquela
que esteve esperando
todo esse tempo.
A mulher que te ama.
Aquela que pode dizer:
Por que você demorou?"
(Do livro Esta vida, tradução de Cide Piquet, publicação da Editora 34)
desça a colina. Lá
embaixo, esquerda outra vez.
Mantenha a esquerda. A estrada
vai se bifurcar. Mais uma esquerda.
Há um riacho à esquerda.
Siga em frente. Pouco antes
do fim da estrada, haverá
outra estrada. Entre nela
e em nenhuma outra. Caso contrário,
sua vida estará arruinada
para sempre. Há uma casa de madeira
com um telhado de tábuas, à esquerda.
Não é essa casa. É
a próxima, bem no alto
de um aclive. A casa
com as árvores carregadas de
frutas. Onde florescem cravos,
magnólias e jasmins. É
a casa onde a mulher
aguarda na soleira
vestindo o sol nos cabelos. Aquela
que esteve esperando
todo esse tempo.
A mulher que te ama.
Aquela que pode dizer:
Por que você demorou?"
(Do livro Esta vida, tradução de Cide Piquet, publicação da Editora 34)
Destino
Triste é a história daquele poeta condoreiro abatido a tiros ao voar sobre uma área de segurança.
Companhia
Se você diz a um chato que vá verificar se você está na esquina, ele faz o quê? Pede que você vá junto.
Fase
Tem notado a tendência de expressar tudo com metáforas. Deve ser coisa da idade. Hoje lhe ocorreu que o sexo é uma flor murcha de jarro.
Indesejáveis
Mais ninguém os aceita como hóspedes. Quando ferida pela gozosa espada do jovem amante, a prima-dona estilhaça com seus gritos todos os criatais do hotel, do primeiro ao último andar.
A tatuagem
Antes de escorregar um pouco mais para baixo, beijou meticulosamente o ventre da mulher. Salgado, embora macio como algodão-doce. Quando, tudo terminado, ela se levantou da cama e acendeu a luz, ele leu o nome tatuado acima do umbigo: Pablo. Correu à pia do banheiro, mordeu o sabonete, encheu a boca de água e se pôs a cuspir furiosamente.
Ersatz
Quando os jovens zombam dele, dizendo que uma cama agora só lhe serve para dormir, o velhote sorri e garante, com aquele ssu sorrisinho, que as mulheres não têm se queixado das surras de língua que lhes dá.
Fácil
Não é preciso pesquisar. No primeiro spoiler estão certamente ainda as impressões digitais de um chato.
quarta-feira, 26 de dezembro de 2018
Poeminha do FB
Quem entra aqui precisa ter posição
sobre todos os homens
e sobre todos os fatos
Não nos permitem vacilar
devemos ter opinião
afinal somos seres humanos ou ratos?
As redes sociais
são os modernos
tribunais
Devemos analisar
ponderar julgar -
e condenar
Podemos também
absolver sim
até poderíamos fazer isso
Mas é melhor não
entrar na esfera do perdão
e deixar Deus fazer Seu serviço.
sobre todos os homens
e sobre todos os fatos
Não nos permitem vacilar
devemos ter opinião
afinal somos seres humanos ou ratos?
As redes sociais
são os modernos
tribunais
Devemos analisar
ponderar julgar -
e condenar
Podemos também
absolver sim
até poderíamos fazer isso
Mas é melhor não
entrar na esfera do perdão
e deixar Deus fazer Seu serviço.
"O minueto", de Raymond Carver
"Claras manhãs.
Dias em que quero tanto que não quero nada.
Só esta vida, nada mais. E também torço
para que ninguém venha.
Mas, se alguém vier, espero que seja ela.
Aquela das estrelinhas brilhantes
nas pontas dos pés.
A moça que eu vi dançar o minueto.
Essa antiga dança.
O minueto. Ela dançava
do jeito que se devia.
E do jeito que ela queria."
(Do livro Esta vida, tradução de Cide Piquet, publicado pela Editora 34)
Dias em que quero tanto que não quero nada.
Só esta vida, nada mais. E também torço
para que ninguém venha.
Mas, se alguém vier, espero que seja ela.
Aquela das estrelinhas brilhantes
nas pontas dos pés.
A moça que eu vi dançar o minueto.
Essa antiga dança.
O minueto. Ela dançava
do jeito que se devia.
E do jeito que ela queria."
(Do livro Esta vida, tradução de Cide Piquet, publicado pela Editora 34)
Sui generis
Que tipo interessante é o chato modesto. Você pode lhe dizer mil vezes que ele é insuportável, que ele nunca acredita.
terça-feira, 25 de dezembro de 2018
Exceto por um ponto
É um casal de fantasmas ingleses, Eliot e Jane. Estão há dois anos na casa e dão-se muito bem com os moradores, a não ser por um detalhe: recusam-se até hoje a aparecer quando há visitas, o que já faz pairar sobre eles a suspeita de inautenticidade.
Genuíno
Era um poeta boêmio, desses que conhecem as estrelas pelo nome, pelo sobrenome e pelo apelido.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
Sonetos, ah, sonetos
Sonetos, quem irá hoje fazê-los
Como os outrora feitos por Camões,
Com as mesmas chamas e fulgurações,
Com o mesmo apuro e com tamanhos zelos?
Quem poderia agora revivê-los
Com os mesmos brilhos e cintilações?
São outros tempos, outras situações,
Ninguém mais hoje quer reconhecê-los.
O que outrora foi vívido e pulsante
Hoje soa monótono e maçante,
O que fez viver faz-nos bocejar.
Se sete anos Jacó se consumiu
E de Raquel a mão não conseguiu,
Que em outra freguesia vá chorar.
Como os outrora feitos por Camões,
Com as mesmas chamas e fulgurações,
Com o mesmo apuro e com tamanhos zelos?
Quem poderia agora revivê-los
Com os mesmos brilhos e cintilações?
São outros tempos, outras situações,
Ninguém mais hoje quer reconhecê-los.
O que outrora foi vívido e pulsante
Hoje soa monótono e maçante,
O que fez viver faz-nos bocejar.
Se sete anos Jacó se consumiu
E de Raquel a mão não conseguiu,
Que em outra freguesia vá chorar.
Glória
Nós poetas
somos presunção e vaidade
damos um ai
um aizinho
choramos um choro
um chorinho pela metade
e nos proclamamos
patrimônios da humanidade.
somos presunção e vaidade
damos um ai
um aizinho
choramos um choro
um chorinho pela metade
e nos proclamamos
patrimônios da humanidade.
Peculiaridade
Os chatos são tenazes por natureza. Os livros de autoajuda não têm nada a ensinar-lhes.
domingo, 23 de dezembro de 2018
Sobre a raridade dos haicais
Um haicai deve vir pronto, porque é uma oferenda dos deuses. Se o poeta precisar fazer algum esforço além de ouvi-lo e transcrevê-lo, já não será um haicai. Duvide dos poetas que dizem ter escrito mais de dez haicais. Os deuses são benevolentes, mas jamais tão generosos.
"Fim e começo", de Oswald de Andrade
"A noite caiu sem licença da Câmara
Se a noite não caísse
Que seria dos lampiões?"
Se a noite não caísse
Que seria dos lampiões?"
sexta-feira, 21 de dezembro de 2018
Hoje no Estadão
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/utilidade-publica-e/
Uma mistura daquelas.
Uma mistura daquelas.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2018
Primores desnecessários
Um poeta não pode ter ao alcance das mãos um amor, que logo lhe vai colocando brincos, pulseiras, colares de setenta e sete voltas. Dá forma de cascata aos cabelos e nos lábios desenha uma rosa grená. Depois, toma aquela distância que dizem ser ideal para a apreciação de uma obra de arte e faz o convite: agora um sorrisinho para mim, meu amorzinho.
Sacrifício
Tudo menos um soneto, disse ela, tomando-lhe o papel da mão e começando a sufocar-lhe a boca com seus beijos.
domingo, 16 de dezembro de 2018
Alguma coisa
Não chegou a ser um poeta. Faltou-lhe alguma coisa que hoje, muitas décadas depois, não vem ao caso pesquisar.
Cautela
Quando um chato morre, convém esperar pelo menos quinze minutos para começar a celebrar. Vai que...
sábado, 15 de dezembro de 2018
sexta-feira, 14 de dezembro de 2018
quinta-feira, 13 de dezembro de 2018
O telefonema
O editor: Qual é mesmo seu nome?
O jovem poeta: Artur.
O editor: Com h?
O jovem poeta: Sem.
O editor: Artur de quê?
O poeta: De Freitas.
O editor: Não tem Rimbaud?
O jovem poeta: Desculpe. Eu não entendi. Rã o quê?
O editor: Olha, vamos fazer o seguinte. O catálogo para este ano está fechado. Me liga em março.
O jovem poeta: Março?
O editor: É. Maio.
O jovem poeta: Artur.
O editor: Com h?
O jovem poeta: Sem.
O editor: Artur de quê?
O poeta: De Freitas.
O editor: Não tem Rimbaud?
O jovem poeta: Desculpe. Eu não entendi. Rã o quê?
O editor: Olha, vamos fazer o seguinte. O catálogo para este ano está fechado. Me liga em março.
O jovem poeta: Março?
O editor: É. Maio.
quarta-feira, 12 de dezembro de 2018
Aspereza
Ele se lembra da máscula mulher que fumava dois maços por dia e emborcava uma garrafa de rum: "Ah, quando o bigodinho dela roçava no meu."
Abertura triunfal
Quando instigada a contar seus amores, a distinta senhora começa sempre cerimoniosamente: "Remontemos ao ano de 1958."
Definição
Como diz candidamente aquele escritor, a pornografia é a arte de colocar cada coisa em seu lugar - sempre contando com algum engano, casual ou deliberado.
terça-feira, 11 de dezembro de 2018
"A eleita", de Silvana Guimarães
"Às terças e quintas,
Richard Gere.
Às segundas e quartas,
Brad Pitt.
Às sextas e domingos,
Johnny Depp.
Todo sábado,
Antonio Banderas.
Sempre pela madrugada.
Nos restos dos dias
ela vagueia pela casa
arrastando
a sua obesidade mórbida
a sua solidão mórbida
a sua lucidez mórbida."
Richard Gere.
Às segundas e quartas,
Brad Pitt.
Às sextas e domingos,
Johnny Depp.
Todo sábado,
Antonio Banderas.
Sempre pela madrugada.
Nos restos dos dias
ela vagueia pela casa
arrastando
a sua obesidade mórbida
a sua solidão mórbida
a sua lucidez mórbida."
Ontem/hoje
A quem iremos convencer, se quase nem nós mais acreditamos, de que por nossos lábios murchos passaram palavras viçosas como amor? Tão secos estão agora que até um morto se recusaria a falar por eles.
Anticlímax
É estranho ouvir dizer que a morte não é nada, que é um acontecimento prosaico, que é natural, quando ela é a única experiência verdadeiramente importante que ainda nos falta cumprir.
Crítica literária
O melhor conto brasileiro (e também o de mais belo título) é de Alcântara
Machado: "Corinthians (2) vs. Palestra (1)".
Machado: "Corinthians (2) vs. Palestra (1)".
segunda-feira, 10 de dezembro de 2018
domingo, 9 de dezembro de 2018
O principal
Para um escritor detalhista, às vezes importa mais descrever uma cama do que o casal que nela se deita com as mais fogosas intenções.
sexta-feira, 7 de dezembro de 2018
In vino veritas
Citar frases em latim não faz, por si só, a fama de um chato, mas ajuda a construí-la.
Gentileza
Um chato sempre pergunta pela saúde de nossa mãe, mesmo que ela tenha morrido há dez anos.
Poesia para a sexta-feira
Hoje no Estadão
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/em-forma-de-versos/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/em-forma-de-versos/
quinta-feira, 6 de dezembro de 2018
"Mãos dadas", de Carlos Drummond de Andrade
"Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente."
(Companhia Aguilar Editora, 1964.)
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente."
(Companhia Aguilar Editora, 1964.)
Furor
A condessa era comedida no sexo. Mas de vez em quando se punha a resfolegar como só uma locomotiva conseguiria, se uma locomotiva tivesse como ela, nessas ocasiões, fogo em cada centímetro do corpo.
quarta-feira, 5 de dezembro de 2018
Negócio
Podem me oferecer mil,
podem me mandar miles:
não troco meu calcanhar
pelo calcanhar de Aquiles.
podem me mandar miles:
não troco meu calcanhar
pelo calcanhar de Aquiles.
Paulistana
Havia as rimas -
e no momento preciso
elas nos levavam
da vila clementino
a melhor destino
do largo do limão
ao jardim japão
do jabaquara ao paraíso.
e no momento preciso
elas nos levavam
da vila clementino
a melhor destino
do largo do limão
ao jardim japão
do jabaquara ao paraíso.
terça-feira, 4 de dezembro de 2018
Melhor assim
Na noite em que o fantasma, de cachimbo e bonitão, apareceu para ela na sala e sorriu, Jurema teve vontade de chorar: por que não tinha aprendido a falar inglês? Então o fantasma tirou o cachimbo da boca e perguntou: oi, meu doce, tudo bem?
Carma
A visita de um chato, quando ultrapassa as oito horas de praxe, nos leva sempre a pensar no que fizemos em nossas vidas anteriores.
Adequação
Chega o tempo em que o verbo participar vai sendo substituído por terceirizar, e até para os pecados da carne pensamos em mandar representante.
Números finais
Resumindo minha participação na literatura: saio dela quase inteiro, apesar dos sonetos.
Característica
Os trocadilhos têm todos algo em comum: não parecem tão geniais quando ditos pela segunda vez.
Decepção
Ela pasma ele atônito
ele despido ela pelada
descobriram esta madrugada:
não passam de dois platônicos.
ele despido ela pelada
descobriram esta madrugada:
não passam de dois platônicos.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2018
domingo, 2 de dezembro de 2018
Derrières
Quando soube que o milionário estava separado da atriz Magda Calipígia, ela se entusiasmou. Mas logo descobriu que havia ainda várias bundas à sua frente, na linha de sucessão.
Bem-aventurança (para Ana Farrah Baunilha)
Felizes aqueles que aprimoraram sua caligrafia escrevendo cartas de amor.
Condição
Se a poesia não conseguir desenvolver em você pelo menos um início de tristeza, deixe-a para quem a merece.
Teste
Gostaria de viver alguns dias de glória, ou ao menos de fama, para saber se uma e outra justificam mesmo tantos ares blasés e tantos narizes emproados.
Postura municipal
Aos domingos só deveria andar pelas ruas quem, se não for bom em sorrisos, saiba ao menos simulá-los. Os poetas, apesar do que disse Fernando Pessoa, estariam excluídos.
Cinzas
Saudade daqueles amores clássicos cuja cena final eram as cartas lançadas no fogo da lareira.
O que falta
Um dia descobrirão o que escrevo. E saberei enfim, oficialmente, que sempre mereci o título de charlatão..
Norma
Poetas não devem sair de casa sem levar no bolso a identidade básica: uma estrela e um livro de Mario Quintana.
Ele
A festa acabou e duas horas depois, quando os donos da casa já dorme, quem é que volta porque esqueceu o guarda-chuva?
Ressalva
Nem toda vírgula é despótica. Se uma separa o sujeito do objeto, deve ter uma boa razão além daquela mania de enfeitar todas as frases.
Pacto
A majestosa loira trouxe-me um bilhete do Diabo. Queria saber se eu tinha enfim decidido negociar a alma. Respondi que sim, mas não em troca do Nobel. Em troca do quê, então?, ela perguntou. Olhei para ela como se todo o seu corpo fosse feito só de partes pudendas. Ela entendeu.
Ascensão
Não compreende ainda por que tanta festa.
Subiu do térreo ao primeiro andar
E disseram-lhe que tinha atingido outro patamar.
Subiu do térreo ao primeiro andar
E disseram-lhe que tinha atingido outro patamar.
sábado, 1 de dezembro de 2018
A razão
Se chamo de literatura isso que faço, não é por presunção, mas para iludir-me um pouco mais, como se tudo fosse possível ainda, assim como parecia tantos anos atrás.
Confissão
Sim, eu também acreditei um dia na beleza da vida. Poderia pensar diferente um rapaz de dezoito anos que tinha acabado de conhecer Marilyn Monroe no cinema do bairro?
Questão de mérito
Não tenho alma. Isso é coisa de Sylvia Plath, de Wislawa Szymborska, de Emily Dickinson, de Mozart e de Chopin.
Diistraído
Sou um desses tipos que podem cumprimentar o sol durante oitenta anos, toda manhã, e só então perceber que ele nunca respondeu.
O quê?
O que fizeste de mim, filha de Eva?
O Diabo ainda nem sabia meu nome
E tu já me chamavas para a treva,
Para a loucura e a consumpção.
O Diabo ainda nem sabia meu nome
E tu já me chamavas para a treva,
Para a loucura e a consumpção.
sexta-feira, 30 de novembro de 2018
Hoje no portal do Estadão
Trato de coisas bem miúdas, minha especialidade.
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/um-instante-por-favor/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/um-instante-por-favor/
quinta-feira, 29 de novembro de 2018
Relato
"Deus foi misericordioso com os pobres de São Paulo. Posso dizer por mim. Uma cidade cheia de viadutos. Nunca fico um dia sem teto. De um me expulsam, em outro me acolhem."
Crônica policial
"Os bandidos mataram os três."
"Mas não era só um casal?"
"A mulher tinha um filho na barriga."
"Mas não era só um casal?"
"A mulher tinha um filho na barriga."
A perda
Por alguns meses o fantasma do marujo frequentou a casa. Quando a família tinha já se afeiçoado a ele, sumiu. Faz quase um ano, já. O garotinho de oito anos foi quem mais se abalou: "Ele estava me ensinando palavrão em inglês." Ainda não morreram as esperanças de que volte. Esqueceu-se de levar o cachimbo.
Requisitos
Além de conhecer a diferença entre sílabas gramaticais e sílabas poéticas, o parnasiano precisava saber contar até doze.
quarta-feira, 28 de novembro de 2018
Ainda que
Ainda que não seja totalmente tolo, você há de ter sido pelo menos uma vez venturosamente iludido pelo amor.
terça-feira, 27 de novembro de 2018
"Canção de outono", de Paul Verlaine
"Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono
E soluçando,
Pálido quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
De outrora
E vou à toa
No ar mau que voa,
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta."
(Tradução de Guilherme de Almeida.)
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono
E soluçando,
Pálido quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
De outrora
E vou à toa
No ar mau que voa,
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta."
(Tradução de Guilherme de Almeida.)
O final
Só duas espécies sobreviverão quando a Terra estiver destruída. Serão a dos insetos e a dos chatos. Pobres insetos.
A cada um sua utilidade
Nem aos tolos falta serventia. Os mais perfeitos espécimes se notabilizam, até hoje, na despicienda arte do amor.
Exemplo
Não se amofine se você não tem nada a dizer. Shakespeare há mais de quatrocentos anos está calado.
segunda-feira, 26 de novembro de 2018
Retoques
Nossas lembranças não precisam ser fiéis. As melhores são as que se dispõem a revisões periódicas feitas por uma imaginação audaciosa e uma apaixonada fantasia.
Itens
Para tornar-me um poeta maldito, falta-me um tantinho menos de idade e um bocadinho mais de poesia.
domingo, 25 de novembro de 2018
sábado, 24 de novembro de 2018
Direito de resposta
Os chatos são sempre bons ouvintes. Esperam pacientemente nossa opinião sobre Shakespeare, e só então dizem que estamos errados.
A melhor
Um chato tem sempre no repertório duas piadas, embora por anos e anos conte sempre a mesma.
sexta-feira, 23 de novembro de 2018
Arre
Quando me lembro de Fernando Pessoa, e daquele seu poema, louvo meus amigos: nem todos foram campeões em tudo.
Hoje no Estadão
Ofereço um saldão de poesia
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/hoje-so-quadrinhas/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/hoje-so-quadrinhas/
quinta-feira, 22 de novembro de 2018
Do time
Poetas são esses tipos malucos que tentam nos fazer acreditar que têm algo de novo a dizer sobre coisas que malucos iguais a eles vêm dizendo há dois mil anos.
Algo, ao menos
Todos nós julgamos ter alguma coisa de Shakespeare. Mas, claro, podemos estar enganados.
Detalhista
O chato literário não consegue escrever um texto para o jornal do bairro, mas sabe se a espinha de estimação de Shakespeare era na orelha direita ou na nádega esquerda.
quarta-feira, 21 de novembro de 2018
Fases
Quando jovem, ninguém se entusiasmou por ela. Aos cinquenta, foi escolhida por um sessentão sem eira nem beira que apreciava seu frango com polenta mas eructava quando ela punha para tocar Chopin.
Promessas (para Herena Barcelos e Viviane Felton)
Promessas podem não ser dívidas, mas são certamente sempre dúvidas.
Correspondência
Gosto da tristeza. Ai de mim se ela, como tantas outras coisas queridas, estiver mentindo para mim.
A solução
Minha família preocupou-se em saber o que faria com aquele menino gênio, até que o tempo se encarregou de me desmascarar.
terça-feira, 20 de novembro de 2018
Decadência
Onde será que pequei?
Mudou tanto a sorte minha.
Se eu chamava aqui-del-rei
Vinha acudir-me a rainha.
Mudou tanto a sorte minha.
Se eu chamava aqui-del-rei
Vinha acudir-me a rainha.
Cisma
Acha que as frequentes quedas de sinal da internet são mais uma das pragas rogadas pela ex-sogra.
Sumo
Poesia são aquelas três ou quatro gotas que você recolhe ainda quando pensa que a tristeza já chorou todas.
Aptidão
Quem escreve uma autobiografia é sempre alguém capaz de transformar experiências comuns em extraordinárias experiências próprias.
Pégaso
A primeira reivindicação do poeta romântico ao patrão: substituir o vale-transporte por um cavalo alado.
O pior
Não há nada mais decepcionante do que aqueles pecados arrependidos que já na segunda vez se oferecem como hábito.
Uma frase de Stanislaw Ponte Preta
"Basta ler meia página do livro de certos escritores para perceber que eles estão despontando para o anonimato."
Frustração noturna
Acorda de um sonho lascivo como se abaixo do umbigo um peixe se contorcesse num anzol. Segura-o, tenta retê-lo, mas logo ele escapa, como o sonho.
Desvio de trajetória
Advogando em causa própria, tenta classificar como atenuante o fato de vir sonhando não mais com seios, nádegas e coxas, mas com umbigos. Um ponto não se alterou: a parte mais sensível do seu corpo continua acordando sempre dolorida e insatisfeita
segunda-feira, 19 de novembro de 2018
Símiles
Deu de sonhar com umbigos. Vai ao psicanalista, que lhe pergunta: "São bonitos?" Ele diz que sim. E o psicanalista: "Mais que as alfaces?"
Dessincronia
Justamente num dia em que todos estão predispostos a elogiá-lo, os ouvidos do morto estão moucos como os de uma estátua.
domingo, 18 de novembro de 2018
Um poema de Paulo Henriques Britto
"Embora não fôssemos nem um pouco
como duas gazelas se apascentando entre as açucenas,
nem muito menos como um rebanho de cabras
que descesse as colinas de Galaad
nem por isso merecíamos ser confortados
em vez de com bálsamos e maçãs
com meio vidro de formicida cada um
num quarto de hotel barato em Cafarnaum."
como duas gazelas se apascentando entre as açucenas,
nem muito menos como um rebanho de cabras
que descesse as colinas de Galaad
nem por isso merecíamos ser confortados
em vez de com bálsamos e maçãs
com meio vidro de formicida cada um
num quarto de hotel barato em Cafarnaum."
Arquivo
Fenecer é um verbo que foi usado pela última vez em 1934, por um escritor chamado Coelho Neto.
De ruborizar (para Felipe Fortuna)
A autobiografia costuma ser o mais descarado de todos os textos de um escritor.
Fescenino (p/ Alexandre Brandão, Cássio Zanatta, Marco Antônio Martire e Henrique Fendrich)
O morto tinha um desses bigodinhos debochados que dão a impressão de haverem estado em lugares nem sempre mencionáveis.
A exceção
Você deve se considerar sempre um grande poeta, para que sobre o assunto haja ao menos uma opinião divergente.
Estatística
Chore. Com razão ou sem,
Verta fontes, chafarizes.
Noventa e nove, entre cem,
Odeiam poetas felizes.
Verta fontes, chafarizes.
Noventa e nove, entre cem,
Odeiam poetas felizes.
Exercício de crueldade
Não diga aos jovens poetas que eles não conseguirão salvar o mundo. Deixe que sofram como você e que morram ludibriados.
Superlativos
É recebido por três mulheres altíssimas, loiríssimas, belíssimas. Elas o fazem entrar numa sala iluminada e aquecida por uma amplíssima lareira. Pedem-lhe que fique à vontade, que logo estarão de volta. "Sem roupa", diz uma, e as outras duas concordam: "É." Sentado numa poltrona confortabilíssima, ele sente uma frustração agudíssima. É sempre nesse momento, já há seis meses, que o sonho se interrompe. Pontualíssimo.
Hoje, na revista Rubem
Faço mais uma tentativa de crônica.
https://rubem.wordpress.com/2018/11/18/curtinhas-e-talvez-pretensiosas-raul-drewnick/
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sábado, 17 de novembro de 2018
Suburbana
Deitado na calçada, abraçando-se ao poste, o bêbado o chama de amigão, enquanto o cachorro, movido por duplo ciúme, urina nos dois.
sexta-feira, 16 de novembro de 2018
Hoje no Estadão
Ofereço algumas amenidades poéticas, com rima e sem.
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/uma-poesia-ai-cidadao/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/uma-poesia-ai-cidadao/
quinta-feira, 15 de novembro de 2018
Funcionário
Já sete anos de pastor Jacó servia,
mas pensava muito mais em Raquel
do que na aposentadoria.
mas pensava muito mais em Raquel
do que na aposentadoria.
Mérito
Tão imponente estava o morto, e pimpão, que era injusto chamar-se Fagundes, e não Villegaignon.
quarta-feira, 14 de novembro de 2018
Sinal
Nos olhos de um escravo do Amor há uma gratidão quase beatífica, uma resignação de cordeiro sacrificado.
terça-feira, 13 de novembro de 2018
O dedo açucarado da condessa
Num de meus primeiros dias de trabalho, a condessa, depois de tomar café, enquanto eu tirava a mesa, entregou-se a uma atividade curiosa, que seria mais apropriada a uma menina. Enfiava no açucareiro o dedo e o lambia meticulosamente. Tentei manter-me discreto, mas ela notou minha inquietação. "Quer?", perguntou. "Quer?", repetiu, oferecendo-me o dedo. Deus e os costumes conservadores de minha família fizeram de mim um covarde. Como eu lastimei isso nesse dia. Vieram outros, nos quais não me saí tão mal. Mas nunca mais ela me ofereceu o dedo açucarado. A lembrança desse episódio me enche ainda de vergonha e de desejo.
segunda-feira, 12 de novembro de 2018
Hipóteses
Se participasse de tramas policiais, o soneto seria o mordomo ou o herdeiro de um milionário de cinquenta anos saudável como um garoto de quinze.
Exposição
Dizem que venho me expondo muito onde apareço. Há de um escritor, posto por sua própria qualidade entre os mendigos, esconder-se numa toca, emular heróis de Beckett e ouvir Chopin
com uma gilete entre os dedos?
com uma gilete entre os dedos?
Obstáculo (para Dea Conti)
É difícil ser gentleman quando a idade faz doer cada osso em todas as tentativas de reverência.
Norma
Para não nos acusarem de havermos, como os outros, incorrido nas habituais transgressões da carne, deveríamos unir só nossas almas, se as tivéssemos.
Percepção
As mãos da condessa pareciam dotadas de olhos. Descobriam rapidamente qual era, no momento, a mais sensível parte do meu corpo e agarravam-se a ela como se nada lhes importasse serem salvas ou naufragarem.
Frisson
Dita pela condessa, a palavra amor parecia uma adolescente escolhendo a calcinha para o seu primeiro encontro de amor.
domingo, 11 de novembro de 2018
Reflexo
Quando se fala de carpintaria literária, naturalmente nos ocorre o nome daqueles três poetas concretistas.
Megalomania
Sonha transformar-se num fenômeno, num desses quatro ou cinco homens que, quando morrem, se chegam a fazê-lo, despertam o comentário: mas como, também ele?
Escrúpulo (para Silvana Guimarães)
Se for pecar em nome da poesia, não envolva, por favor, nem flores nem passarinhos
Experiência
Não convém dizer aos jovens que só de frustrações é feita a literatura. Mas elas costumam constituir a principal parte.
Convicção
Se a literatura for a razão de sua vida, não tenha vergonha de dizer. Se tiver, mude suas prioridades.
A única forma
Se você é poeta e não é Arthur Rimbaud nem recebe dele textos psicografados, eu só lhe digo isto: continue trabalhando, mesmo que você esteja fazendo isso há já cinquenta anos.
O outro lado
Muitos dos que dizem que escrever é uma bênção deveriam antes saber a opinião dos leitores.
sábado, 10 de novembro de 2018
Conhecimento de causa
Porque é uma exigência do seu ofício, o escritor conhece bem os sinônimos. Sabe que a literatura não é só aflição. É também angústia, tensão, dúvida, apreensão.
Aflição
Nos mais tensos lances dos jogos decisivos, o avô corintiano apalpa a barriga de chope e geme: "É hoje que eu perco os meus gêmeos."
Entrevista
Se lhe perguntarem o que significa a literatura para você, você dirá que é tudo: vida, paixão e morte. Estou certo?
Melhor não
Não me daria bem com nenhum tipo de glória. Não sei lidar com gravatas, nem ajeitar microfones, nem falar a respeitáveis públicos.
Sugestão
Se você for pecar, que sejam pecados da carne. Os da alma não inspiram mais nenhum interesse. Os mártires andam fora de moda.
Prova final (para Marcos e Vitor Guedes)
Pequemos enquanto é tempo,
Por ação e por omissão.
Enriqueçamos nosso currículo,
Vem chegando o Armagedon.
Por ação e por omissão.
Enriqueçamos nosso currículo,
Vem chegando o Armagedon.
sexta-feira, 9 de novembro de 2018
"Tratado geral das grandezas do ínfimo", de Manoel de Barros
"A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas)
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogio."
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas)
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogio."
Peculiaridade
Para um poeta concretista, manter os pés no chão não é uma vergonha; é uma questão de honra.
Hoje no Estadão
Falo de amores e amantes
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/amores-e-amantes/
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quinta-feira, 8 de novembro de 2018
Força do hábito
Tão achacado anda o velho poeta que hoje lhe perguntaram como vão seus aforismos e ele respondeu: não estão incomodando tanto, mas ainda ardem um pouco.
Sinopse
Também eu quis ser escritor. Li os clássicos e empenhei-me como só se empenham os loucos e os mártires. Foi há muito, muito tempo. No que deu esse empenho? Olhe para mim e veja. Não sou muito bom para contar histórias.
Possibilidades
De um poeta se podem esperar coisas extraordinárias, como transformar uma galinha ruiva num cisne enluarado. Se o poeta for parnasiano e estiver trabalhando num soneto, há pelo menos catorze possibilidades de um prodígio desses ocorrer.
Atuação
Há quem considere injusto o destaque dado nos velórios justamente àquele personagem que nada faz além de se omitir.
Faixas etárias
Os truques de um defunto, como ficar sem se mexer e sem respirar, geralmente são mais apreciados pelos espectadores jovens. Os adultos logo se enfastiam.
quarta-feira, 7 de novembro de 2018
Carinho final
Antes que fechassem o caixão, a viúva escondeu entre as flores um maço de cigarros, uma caixa de fósforos, uma Bic e uma revistinha de palavras cruzadas.
Dois epigramas de Marcial
"Por que não mando, Pontiliano, os livros meus?
E o medo, Pontiliano, que você mande um seu?"
" ***
Pobre hoje, Emiliano, amanhã também.
A riqueza só é dada a quem já tem."
(Tradução de Rodrigo Garcia Lopes)
E o medo, Pontiliano, que você mande um seu?"
" ***
Pobre hoje, Emiliano, amanhã também.
A riqueza só é dada a quem já tem."
(Tradução de Rodrigo Garcia Lopes)
Golpe de misericórdia
Triste é o destino do réu, quando o último argumento da defesa é: ele é filho de Deus.
Mão única
Ter simpatia por um defunto, qualquer defunto, é perda de tempo. Nunca a recíproca é verdadeira.
Os dedos certos
Não te iludam as experiências com teus bisonhos amantes. Quando fores tocada pela Morte, saberás que és dela e sempre foste, desde o dia em que nasceste.
Memória (para Helena Russano Alemany, Lígia Bejar e Silvia Bejar)
Quando pôs o dedo sobre Estocolmo, no mapa, ele desatou a chorar como no dia em que, menino, lhe explicaram que um gato, qualquer gato, mesmo um muito pequeno, podia parar de se mexer e continuar assim para sempre, se fosse tocado pela Morte.
terça-feira, 6 de novembro de 2018
No velório, um comentário sobre o defunto
"Quase não reconheci o Túlio. Como os três meses de spa fizeram bem a ele."
Reflexão do dia
Se você ouvir Cole Porter e não estiver sozinha, chore. Sei que será difícil para você, mas chore. Não deixe outro, como eu um dia, descobrir que você é o que é - essa imutável espécie de pedra inteiriça e pontiaguda.
Índole do haicai
O haicai é o mais delicado dos seres poéticos. Pede licença para entrar (e pede licença para pedir licença).
segunda-feira, 5 de novembro de 2018
Um só, o mesmo
Há quem consiga ser vinte ou trinta num dia, todos dignos de menção e festa. Eu tenho sido um só, tão óbvio e imutável quanto as três mal virguladas linhas de uma nota de falecimento no jornal de 5 de maio ou 5 de junho de 1956.
domingo, 4 de novembro de 2018
Autoavaliação
Com esta idade, eu já deveria ter aprendido a escrever - ou pelo menos a não escrever tão mal.
Despojamento
No fim da vida, o cansaço e a sabedoria nos ensinam a usar os adjetivos com parcimônia, e até a dispensá-los. Dizemos tristeza, só, e ela nos parece tão melhor agora, tão mais pura assim, na sua nudez e na sua crueza.
Algum tempo
Reserve algum tempo para falar das flores, para celebrá-las. Embora você não as mereça, elas estarão no seu peito no dia de sua definitiva viagem.
Hoje, na revista Rubem,
Dou-me algumas merecidas alfinetadas.
https://rubem.wordpress.com/2018/11/04/um-tantinho-de-autocritica-raul-drewnick/
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sábado, 3 de novembro de 2018
Realeza
Deixem o poeta passar com o nariz empinado. Não o critiquem. Ele pensa que é um rei. Poetas vivem de ilusão.
Última curva
Descrente já da glória, o velho poeta contenta-se com pequenos agrados: caixinhas de bombom, mensagens no facebook, cinco linhas e meia de elogio em jornal de bairro.
sexta-feira, 2 de novembro de 2018
Cançãozinha
Uns escrevem mal,
Outros escrevem direitinho.
Uns não saem do lugar,
Outros ficam pelo caminho.
Outros escrevem direitinho.
Uns não saem do lugar,
Outros ficam pelo caminho.
Hoje no Estadão
Falo de fenômenos poéticos
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/aninha-e-outros-fenomenos-poeticos/
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quinta-feira, 1 de novembro de 2018
Sina
Morrer de amor é uma hipótese à qual todos os tolos, até o mais espertos, estão irremediavelmente sujeitos.
quarta-feira, 31 de outubro de 2018
Da boca para fora
Deus disse que para o homem não é bom estar sozinho. Depois desapareceu, nunca voltou, e vejam em que companhia nos deixou.
Merecimento
Se estar com um gato no colo não é considerado uma felicidade, talvez você não mereça ter nenhuma outra.
terça-feira, 30 de outubro de 2018
Pressentimento
Na semana do Natal, o velho parnasiano, dois dias antes de morrer, saiu com seus dois cisnes e tocou a campainha do mais humilde sobradinho da rua: "É para a ceia de vocês."
Promessa
Quando a Morte vier, eu me entregarei, mesmo que ela não seja loira, nem longilínea, nem tenha sotaque nórdico.
Quem sabe
Diante do seu defunto mais querido, faça um teste: toque Chopin. Talvez ele não se erga, mas é possível que seus olhos tenham ainda duas lágrimas a oferecer.
Desperdício
Escrever foi um dos atos a que tolamente me entreguei antes de descobrir que para viver basta respirar.
segunda-feira, 29 de outubro de 2018
domingo, 28 de outubro de 2018
sábado, 27 de outubro de 2018
sexta-feira, 26 de outubro de 2018
Hoje no Estadão
Falo de novo do antigo vilão
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/do-amor-em-gotas/
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quinta-feira, 25 de outubro de 2018
quarta-feira, 24 de outubro de 2018
Etiqueta
Era uma puta distinta. Tratava os clientes de senhor, não falava um palavrão sem que lhe solicitassem ou exigissem e, ao despedir-se na entrada do prédio, dizia com graciosa reverência: sempre ao seu dispor.
terça-feira, 23 de outubro de 2018
Cotação do dia
Você me faz falta, mas já menos.
Viciei-me em outras drogas,
Mato-me com outros venenos.
Viciei-me em outras drogas,
Mato-me com outros venenos.
segunda-feira, 22 de outubro de 2018
domingo, 21 de outubro de 2018
Panfleto
Entre uma ideologia destra
e outra canhestra
prefiro a burrice sadia
e a alienação da poesia.
e outra canhestra
prefiro a burrice sadia
e a alienação da poesia.
Hoje na revista Rubem
Trato de algumas coisinhas.
https://rubem.wordpress.com/2018/10/21/de-pecados-e-outras-quinquilharias-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2018/10/21/de-pecados-e-outras-quinquilharias-raul-drewnick/
sábado, 20 de outubro de 2018
Foco
Saberíamos melhor de nós se não estivéssemos sempre com o nariz apontado para a casa do vizinho.
sexta-feira, 19 de outubro de 2018
Presente
Um haicai não se procura. Um haicai se recebe de joelhos, como se deve fazer sempre que os deuses, embora não mereçamos, resolvem nos presentear.
Cálculo
Se alma não for uma questão de merecimento
nossas chances de ter uma
aumentam cem por cento.
nossas chances de ter uma
aumentam cem por cento.
quinta-feira, 18 de outubro de 2018
quarta-feira, 17 de outubro de 2018
"Querendo morrer", de Anne Sexton
"Já que perguntas, muitas vezes não consigo me lembrar.
Desfilo com minhas roupas, sem marca daquela viagem,
Então o quase indescritível desejo retorna.
Mesmo assim, não tenho nada contra a vida.
Conheço bem as lâminas de grama que você menciona,
A mobília que você colocou sob o sol.
Mas suicidas têm uma linguagem especial.
Como carpinteiros eles querem saber com quais ferramentas.
Nunca perguntam por que construir.
Por duas vezes tão simplesmente me declarei,
possuí o inimigo, devorei o inimigo,
possuí seu ofício, sua magia.
Desta maneira, pesada e pensativa,
mais quente que o óleo e a água,
descansei babando pelo orifício da boca.
Não imaginei meu corpo em ponto de cruz.
Ainda que a córnea e o resto da urina tenham desaparecido.
Suicidas já traíram o corpo.
Natimortos, eles nem sempre morrem,
mas, confusos, eles não conseguem esquecer uma droga tão doce
que até crianças ao vê-la sorririam.
Acreditar que toda aquela vida está sob tua língua! -
Que, por si mesma, torna-se uma paixão.
A morte é um osso triste, machucado, você diria,
e, todavia, ela espera por mim, ano após ano,
para desfazer delicadamente uma antiga ferida
esvazia minha respiração de sua perversa prisão.
Equilibrados ali, suicidas algumas vezes se encontram.
Enfurecendo com o fruto de uma lua alterada,
deixando o pão que confundiram com um beijo,
deixando a página do livro descuidadamente aberta,
algo não dito, o fone fora do gancho
e o amor, o que quer que tenha sido, uma infecção."
(Tradução de Dalcin Lima)
Desfilo com minhas roupas, sem marca daquela viagem,
Então o quase indescritível desejo retorna.
Mesmo assim, não tenho nada contra a vida.
Conheço bem as lâminas de grama que você menciona,
A mobília que você colocou sob o sol.
Mas suicidas têm uma linguagem especial.
Como carpinteiros eles querem saber com quais ferramentas.
Nunca perguntam por que construir.
Por duas vezes tão simplesmente me declarei,
possuí o inimigo, devorei o inimigo,
possuí seu ofício, sua magia.
Desta maneira, pesada e pensativa,
mais quente que o óleo e a água,
descansei babando pelo orifício da boca.
Não imaginei meu corpo em ponto de cruz.
Ainda que a córnea e o resto da urina tenham desaparecido.
Suicidas já traíram o corpo.
Natimortos, eles nem sempre morrem,
mas, confusos, eles não conseguem esquecer uma droga tão doce
que até crianças ao vê-la sorririam.
Acreditar que toda aquela vida está sob tua língua! -
Que, por si mesma, torna-se uma paixão.
A morte é um osso triste, machucado, você diria,
e, todavia, ela espera por mim, ano após ano,
para desfazer delicadamente uma antiga ferida
esvazia minha respiração de sua perversa prisão.
Equilibrados ali, suicidas algumas vezes se encontram.
Enfurecendo com o fruto de uma lua alterada,
deixando o pão que confundiram com um beijo,
deixando a página do livro descuidadamente aberta,
algo não dito, o fone fora do gancho
e o amor, o que quer que tenha sido, uma infecção."
(Tradução de Dalcin Lima)
terça-feira, 16 de outubro de 2018
Duas frases de Marisa Raja Gabaglia
"Há pessoas que se casam em comunhão de males."
"Os meus erros na vida eu bem queria que fossem erros de tipografia."
"Os meus erros na vida eu bem queria que fossem erros de tipografia."
Ingredientes
Se uma mulher é chamada de piranha
e uma faca de punhal
você está num romance policial.
e uma faca de punhal
você está num romance policial.
Como vai ser
Se um dia chegarmos a conhecer a Verdade, a primeira coisa que faremos será dar-lhe uma boa espiada e arranjar-lhe meia dúzia de defeitos.
Presunção
Chegamos outro dia, e já queremos saber não a verdade só, mas toda a Verdade. Se encontrássemos Deus dando um giro por aí, O arrastaríamos para um cativeiro e O faríamos desembuchar.
segunda-feira, 15 de outubro de 2018
Resumo crítico em 15/10/2018
As estrofes bem escandidas
e as rimas ricas
foram umas para o vinagre
foram as outras para as picas.
e as rimas ricas
foram umas para o vinagre
foram as outras para as picas.
domingo, 14 de outubro de 2018
sábado, 13 de outubro de 2018
Apelo
Toda noite, agora, sonha com um passarinho. É sempre o mesmo. Vem, pousa no topo da árvore, também sempre a mesma, e canta com aflição. Em seguida, como se o tivesse atingido uma bala, cai e agoniza na grama. Seu último trinado parece dizer: me salve, me salve, me.
sexta-feira, 12 de outubro de 2018
Hoje no Estadão
Dia da Criança é dia de brincar.
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/quantos-sao-tantos/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/quantos-sao-tantos/
quinta-feira, 11 de outubro de 2018
Manifesto aos lobistas
Não me amolem,
não discutam.
Não sou de esquerda
nem de direita
nem do centro.
Só defendo o direito
de cada um ser filho da puta
conforme o seu gosto
e o seu jeito.
não discutam.
Não sou de esquerda
nem de direita
nem do centro.
Só defendo o direito
de cada um ser filho da puta
conforme o seu gosto
e o seu jeito.
quarta-feira, 10 de outubro de 2018
Trecho de carta
Você me pergunta se eu tenho visto aquele sujeito esquisito, tão parecido comigo, que andava com seus sonetos soltos pela rua, como cachorrinhos, e os oferecia às belas mulheres, como a você ofereceu. Eu lhe respondo: não o vejo há muito tempo já, desde o dia em que morreu.
terça-feira, 9 de outubro de 2018
segunda-feira, 8 de outubro de 2018
Mérito
Ao completar oitenta anos, o poeta foi homenageado na praça principal com discurso do prefeito, valsas tocadas pela banda municipal e uma revoada de sonetos.
Obviedade
Se há algo que não precisamos proclamar é a nossa nulidade. Qualquer inimigo, mesmo o mais distante, ou amigo, mesmo que não muito próximo, a conhece muito bem.
domingo, 7 de outubro de 2018
Nem, nem nem
Então virá uma época em que será como se você não existisse. Não haverá mais amigos para os louvores e, se forem críticas o que seu masoquismo quiser, você precisará autodepreciar-se.
Na revista Rubem hoje
Amores agonizantes e outras coisinhas.
https://rubem.wordpress.com/2018/10/07/poetas-e-mais-uma-porcao-de-coisas-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2018/10/07/poetas-e-mais-uma-porcao-de-coisas-raul-drewnick/
sábado, 6 de outubro de 2018
Incompatíveis
Poucas coisas há mais tristes que um concretista atacado por inquietações metafísicas.
Convicção
Fiel ao seu antirromantismo, o poema concretista desabou sem que um só de seus tijolos gemesse um ai.
Injustiça
Não sabe por que não faz sucesso. Empenha-se, esfalfa-se, mata-se de escrever, e nada. Sua última esperança é uma versão da Bíblia para o esperanto.
Bem assim
Os chatos, se fossem livros, seriam aqueles com cem páginas de texto e noventa e nove de notas explicativas.
Localização (para Rose Marinho Prado)
O coração de um poema é ali onde o cimento pulsa com maior vigor.
Desvios
Alguns poetas antigos andaram levantando bandeiras e quase chefiaram revoluções. Foram demovidos a tempo pelas flores e pelos pássaros.
sexta-feira, 5 de outubro de 2018
Hoje no Estadão
Tentando adoçar a sexta-feira.
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/chocolatinhos-poeticos/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/chocolatinhos-poeticos/
quinta-feira, 4 de outubro de 2018
E o senhor, quem é?
Tão cética anda a humanidade que um dia desses um provérbio de cavanhaque branco e bengala, com um pássaro na mão e dois voando, foi obrigado a mostrar seu crachá.
quarta-feira, 3 de outubro de 2018
domingo, 30 de setembro de 2018
Vida própria
Era inquieta a língua da condessa. Sempre achava um jeito de se mover, mesmo quando a boca estava entretida em uma sequência de beijos.
O que vocês disseram?
No sonho, Sócrates e Platão conversaram comigo. Não entendi nada. Era como se falassem grego.
Turnos
Talvez pelo bigode ruivo, semelhante a uma taturana, ou pela cicatriz abaixo do olho, a mosca do velório, que tinha se dado amistosamente com o defunto da tarde, aproxima-se com cautela do defunto noturno.
sábado, 29 de setembro de 2018
Ajustes
Você começa na literatura esperando aplausos. Depois, aceita agradinhos, até os indiretos. No fim, abana o rabo se alguém de sua idade pergunta, no shopping, se você é o que teve aquela coluna no jornal do bairro. Sim, você sorri, você assinou essa coluna por algum tempo, na década de 1980. E sente-se quase Shakespeare, neste sábado à tarde na Vila Santo Estéfano.
Um dos dois
Quem me conhece, um pouquinho que seja, sabe qual escolha eu faria se me oferecessem dois livros para ler: um sobre um suicida, um sobre um sobrevivente.
Atualidade
Não sei por que (embora talvez saiba muito bem) me lembrei hoje de uma conversa que ouvi quando menino. Eram todos homens velhos e, cada um ao seu modo, concordavam num ponto: a Morte, quando viesse, seria uma loira belíssima de vestido grená.
Ostracismo
Os pontos de exclamação andam sumidos. Parece que nada mais espanta ou amedronta na literatura. Logo serão encontrados apenas em livros infantis.
sexta-feira, 28 de setembro de 2018
Parceria de ouro
Há cronistas que têm a ventura de em todos os momentos da vida estar na companhia de seu principal assunto: eles mesmos.
Comunicado
Quem encontrar uma tristeza
toda desengonçada, toda feiinha,
faça o favor de devolver: é minha.
toda desengonçada, toda feiinha,
faça o favor de devolver: é minha.
Depois dos 90 (para Antero Greco, Celso Unzelte, Marcos Micheletti, Marília Ruiz e Vitor Guedes)
E se depois do Juízo Final vierem a prorrogação e os pênaltis?
Autoavaliação (para Silvana Guimarães)
Sou perfeito sou bonito
se me falta algo
é senso do ridículo.
se me falta algo
é senso do ridículo.
Hoje no portal do Estadão
Um passatempo (se tempo houver)
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/puzzle/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/puzzle/
quinta-feira, 27 de setembro de 2018
Duas reflexões do Marquês de Maricá
"A impunidade é regra, quando a cumplicidade é geral."
***
"Um povo corrompido não pode tolerar um governo que não seja corrupto."
***
"Um povo corrompido não pode tolerar um governo que não seja corrupto."
Literatura
Depois que você finalmente chega a ter algo parecido com um estilo, descobre que faltam algumas coisinhas - naturalmente as mais importantes.
Que não
Que nada, seja o que for,
Nos fira tão ternamente
E mate mais docemente
Quanto fere e mata o amor.
Nos fira tão ternamente
E mate mais docemente
Quanto fere e mata o amor.
Exata proporção
Quando fizer o exame de consciência, não superestime o poder de um soneto. O máximo que ele pode fazer é absolver outro soneto.
quarta-feira, 26 de setembro de 2018
Casuísmo
Por mais obstinados que sejam, ouvidos de mercador sempre abrem exceção para o tilintar de moedas.
Acrofobia (para Rose Marinho Prado)
Depois que se descobriu concretista, o galo não sobe mais no poleiro, com medo de cair e se espatifar.
Maneiras
Enquanto o vento derruba tudo, buscando epopeias, a brisa finge estar morta, para não espantar os haicais.
Tecla
O problema da poesia são os poetas. Garantem que está viva, chegam a jurar, mas quando são convidados a apresentar provas pedem que esperemos um pouco - e voltam com aquele Camões e aquele Pessoa.
Tipificação
Se você faz trovinhas, é possível que lhe deem estímulo. Se faz sonetos, lhe dirão que é melhor não reincidir.
Uma pergunta da condessa
E aí, o menino não se manifesta?, disse a condessa, olhando para o meu umbigo, como se ele coubesse a resposta.
Época
A primavera é a estação que inspira os poetas a comparar mulheres a flores. Nem sempre as homenagens são dignas das homenageadas.
O que é
Conurbação é o nome que se dá às relações entre uma cidade e outras, quando passam da intimidade à promiscuidade.
Façanha
Certos mortos conseguem ser tão desinteressantes que em meia hora de de velório é como se já não estivessem presentes.
terça-feira, 25 de setembro de 2018
Palavras de ordem
Alguém já deve (ou devia) ter dito isso:
se uma bandeira vamos levantar,
que seja então a do lirismo.
se uma bandeira vamos levantar,
que seja então a do lirismo.
Tema (para Rose Marinho Prado)
Concretistas não fazem odes.
Se fizessem, certamente exaltariam
O colosso de Rodes.
Se fizessem, certamente exaltariam
O colosso de Rodes.
Virtude
Um poeta deve ter, como amigos, flores e passarinhos. Homens e mulheres, só os que não sejam ligados a editoras nem participem de comissões julgadoras.
Gafe
Fale do bem no discurso do mal
fale do mal na hora da missa
mas nunca fale de pá de cal
na casa de um concretista.
fale do mal na hora da missa
mas nunca fale de pá de cal
na casa de um concretista.
Louvação (para Marisa Lajolo)
Louvado seja o consumismo
que acaba acolhendo tudo:
o romantismo, o parnasianismo, o concretismo.
que acaba acolhendo tudo:
o romantismo, o parnasianismo, o concretismo.
"Ode aos calhordas", de Rubem Braga
"Os calhordas são casados com damas gordas
Que às vezes se entregam à benemerência:
As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
E cumprem seu dever com eficiência.
Os filhos dos calhordas vivem muito bem
E fazem tolices que são perdoadas.
Quanto aos calhordas pessoalmente porém
Não fazem tolices - nunca fazem nada.
Quando um calhorda se dirige a mim
Sinto no seu olho certa complacência.
Ela acha que o pobre e o remediado
Devem procurar viver com decência.
Os calhordas às vezes ficam resfriados
E essa notícia logo sai nos jornais:
'O Sr. Calhorda acha-se acamado
E as lamentações da Pátria são gerais.'
Os calhordas não morrem - não morrem jamais.
Reservam o bronze para futuros bustos
Que outros calhordas de nova geração
Hão de inaugurar em meio de arbustos.
O calhorda diz: 'Eu pessoalmente
Acho que as coisas não vão indo bem
Pois há muita gente má e despeitada
Que não está contente com aquilo que tem.'
Os calhordas recebem muitos telegramas
E manifestações de alegres escolares
Que por este meio vão se acalhordando
E amanhã serão calhordas exemplares.
Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder
E são recebidos pelas Embaixadas.
Gostam muito de missas de ação de graças
E às sextas-feiras comem peixadas."
Que às vezes se entregam à benemerência:
As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
E cumprem seu dever com eficiência.
Os filhos dos calhordas vivem muito bem
E fazem tolices que são perdoadas.
Quanto aos calhordas pessoalmente porém
Não fazem tolices - nunca fazem nada.
Quando um calhorda se dirige a mim
Sinto no seu olho certa complacência.
Ela acha que o pobre e o remediado
Devem procurar viver com decência.
Os calhordas às vezes ficam resfriados
E essa notícia logo sai nos jornais:
'O Sr. Calhorda acha-se acamado
E as lamentações da Pátria são gerais.'
Os calhordas não morrem - não morrem jamais.
Reservam o bronze para futuros bustos
Que outros calhordas de nova geração
Hão de inaugurar em meio de arbustos.
O calhorda diz: 'Eu pessoalmente
Acho que as coisas não vão indo bem
Pois há muita gente má e despeitada
Que não está contente com aquilo que tem.'
Os calhordas recebem muitos telegramas
E manifestações de alegres escolares
Que por este meio vão se acalhordando
E amanhã serão calhordas exemplares.
Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder
E são recebidos pelas Embaixadas.
Gostam muito de missas de ação de graças
E às sextas-feiras comem peixadas."
Tarefa
Agora faz jejuns ainda mais prolongados e não toma remédio nenhum. Conservou o bom humor: diz que quer matar-se pacificamente.
Especial
Mario Quintana era um desses poetas venturosos que todo ano, já no primeiro dia, a primavera vai em casa chamar.
Tecnologia
Os chocalhos concretistas, feitos de pedrinhas cantantes, revelaram-se bem mais eficazes que as cantigas românticas para fazer dormir bebês entre seis e vinte e quatro meses.
Passado contínuo
Não há mais tempo para modernismos na poesia. Até os manifestos já nascem tão velhos quanto os princípios que pretendem derrubar.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
"Nós", de Fábio Montenegro
"Eu ando alheio, há muito, ao que se passa
sob a miséria e os torvelinhos da rua:
desconheço o clamor da população
e a vaidade, que em tudo tumultua.
Vivo do seu amor, da sua graça,
e adoro, sob a névoa que flutua,
através da cortina e da vidraça,
a palidez romântica da lua.
Em cada riso, em cada olhar, em cada
anseio que de ti me vem, querida,
sinto que cada vez és mais amada.
E assim, longe do mundo, refletida
tua alma na minh'alma, és alvorada
cantando o poema esplêndido da vida."
- Difícil achar algo desse poeta santista, ora citado como romântico, ora como parnasiano. No segundo verso - "sob a miséria e os torvelinhos da rua" -, o decassílabo imperfeito chama a atenção (provavelmente um descuido da edição). Se alguém souber algo sobre isso, será bem-vinda uma nota.
sob a miséria e os torvelinhos da rua:
desconheço o clamor da população
e a vaidade, que em tudo tumultua.
Vivo do seu amor, da sua graça,
e adoro, sob a névoa que flutua,
através da cortina e da vidraça,
a palidez romântica da lua.
Em cada riso, em cada olhar, em cada
anseio que de ti me vem, querida,
sinto que cada vez és mais amada.
E assim, longe do mundo, refletida
tua alma na minh'alma, és alvorada
cantando o poema esplêndido da vida."
- Difícil achar algo desse poeta santista, ora citado como romântico, ora como parnasiano. No segundo verso - "sob a miséria e os torvelinhos da rua" -, o decassílabo imperfeito chama a atenção (provavelmente um descuido da edição). Se alguém souber algo sobre isso, será bem-vinda uma nota.
Autenticidade
Nas novelas eróticas, dificilmente um personagem chamado Paulo Pinto induzirá o leitor a erro.
Material (para Rose Marinho Prado)
Convidado a visitar o castelo do poeta romântico, o concretista se espantou: que desperdício de areia.
Cautela poética
Se a declamação é de um poeta concretista, os espectadores da primeira fila devem estar preparados para se esquivar de perdigotos empedregulhados.
Premeditação
Os autores de novelas policiais matam um personagem logo no início, nos levam à cena do crime e, depois de pedirem nossa ajuda para descobrir o assassino, fazem tudo para nos lançar em pistas falsas até a página 240, ou 340, segundo o tamanho de seu ócio ou a encomenda do editor.
domingo, 23 de setembro de 2018
Frase de Jonathan Swift
"A sátira é uma espécie de espelho, onde aqueles que o fitam descobrem a cara de toda a gente menos a sua."
Egolatria (para Silvana Guimarães)
Num acesso de proparoxítona jactância
A melancia inflou-se
E proclamou-se melância.
A melancia inflou-se
E proclamou-se melância.
Hoje na revista Rubem
Frases sobre poesia, provérbios e mais algumas coisinhas.
https://rubem.wordpress.com/2018/09/23/poesia-proverbios-chatos/
https://rubem.wordpress.com/2018/09/23/poesia-proverbios-chatos/
sábado, 22 de setembro de 2018
Arte declamatória
Diante da plateia atônita, o sonetista morreu depois de treze convulsões de esplêndida verborragia coroadas pelo derradeiro e heroico decassílabo.
"Madrugada", soneto de Ribeiro Couto
"Se minha mãe chegasse nesta hora
Como havia de ser o seu sorriso?
Sorriso? Não. Diria como outrora
'É tão tarde, menino sem juízo!'
É tarde. Não há dúvida. Lá fora
Vejo o dia nascer, ainda indeciso,
E eu a escrever poesia até agora,
Meu veneno, meu mal, meu paraíso.
Ao fim de tantos anos e trabalhos,
Ainda sou o menino que antes era.
Para dormir tinha que ouvir uns ralhos.
Se vou sempre tão tarde para a cama,
É talvez na esperança - ó vã espera! -
De ouvir quem já não ralha nem me chama."
Como havia de ser o seu sorriso?
Sorriso? Não. Diria como outrora
'É tão tarde, menino sem juízo!'
É tarde. Não há dúvida. Lá fora
Vejo o dia nascer, ainda indeciso,
E eu a escrever poesia até agora,
Meu veneno, meu mal, meu paraíso.
Ao fim de tantos anos e trabalhos,
Ainda sou o menino que antes era.
Para dormir tinha que ouvir uns ralhos.
Se vou sempre tão tarde para a cama,
É talvez na esperança - ó vã espera! -
De ouvir quem já não ralha nem me chama."
Trecho de carta
Você me pergunta se continuo tolo ou se estou mudado. Servidor que fui de outra condessa, ajeito minha gravatinha de garçom e, estendendo o prato em que disfarçado de cordeiro me sirvo, respondo: estou como quiser, Madame.
sexta-feira, 21 de setembro de 2018
Pensamento de Lin Yutang
"A filosofia tornou-se uma ciência por intermédio da qual começamos cada vez mais a compreender cada vez menos o que somos. O que conseguiram os filósofos foi isto: quanto mais falam, mais confusos ficamos."
De novo o brilho
Quando, no meio de um sono de já quase três semanas, foi chamado pelo escritor, o ponto e vírgula sonhou que estavam voltando seus melhores dias. Imaginou-se de novo em textos nos quais se enumerassem as joias de uma rainha (colares; brincos; anéis) ou os fulgores de sua beleza (o sorriso; os olhos azulíssimos,;os cabelos de ouro). Viu-se numa lista de compras (cebola; batata; desodorante; leite; café).
Aspecto
Já há algum tempo sei que só devo dormir em casa. Se eu me deitar em qualquer outro lugar, ainda que seja num parque sob pleno sol, inevitavelmente alguém chamará o IML.
quinta-feira, 20 de setembro de 2018
Mistério
Até hoje não se sabe o tipo de argumento usado pelo fantasma para, nas três noites em que frequentou a casa, convencer o gato sonso a acompanhá-lo quando na quarta manhã se foi.
O motivo
Se agora digo tudo com sussurros, não é com nenhuma intenção erótica; é falta de energia, nada mais que isso.
Com a palavra a defesa
Quando digo que sou escritor, sinto que é cada vez mais uma alegação do que uma convicção.
Encontro
"Bom dia. Há quanto tempo. Está doente? Não põe mais nada no blog..."
"Bom dia. Não, tudo bem. Eu estava doente quando escrevia."
"Bom dia. Não, tudo bem. Eu estava doente quando escrevia."
quarta-feira, 19 de setembro de 2018
terça-feira, 18 de setembro de 2018
Prodígio
Os chatos têm uma memória admirável. São capazes de nos contar por dez dias seguidos, sem uma falha, suas piores piadas.
Cotação do dia
Acredito que até os tropeções silábicos dos meus versos poderiam ser-me perdoados, se eu tivesse cinquenta anos a menos, alguns mil fios de cabelo a mais e um sorriso que não fosse este, amargo como convém a um derrotado.
segunda-feira, 17 de setembro de 2018
domingo, 16 de setembro de 2018
Expiação
Um aqui destruído
outro ali incendiado
os ônibus são hoje punidos
como os bodes do passado.
outro ali incendiado
os ônibus são hoje punidos
como os bodes do passado.
0800
Se alguém lhe perguntar um dia
o que é ser e o que é não ser,
passem-lhe o telefone da filosofia.
o que é ser e o que é não ser,
passem-lhe o telefone da filosofia.
sábado, 15 de setembro de 2018
Necessidade
Se eu não me presumir importante, continuarão a andar comigo os que se julgam mil vezes mais importantes que eu?
Nas nuvens
O poeta romântico dizia conhecer todas as estrelas, nome por nome, e comentava que isso era simplesmente uma retribuição, porque todas também sabiam que ele era Felisberto Felício de Oliveira.
Identidade
Cada dia maior é a dificuldade
para distinguir em fantasma falso
de um fantasma de verdade.
para distinguir em fantasma falso
de um fantasma de verdade.
A síndrome
Escreve duas páginas e já fica ofegante.
Pergunta aqui, pergunta ali,
E Estocolmo é sempre mais adiante.
Pergunta aqui, pergunta ali,
E Estocolmo é sempre mais adiante.
sexta-feira, 14 de setembro de 2018
quinta-feira, 13 de setembro de 2018
Responsabilidade
O substantivo velho tem sido visto na companhia de adjetivos noturnos, rechonchudos, sinuosos e calipígios.
Etapas
Convencer os leitores de que sou um escritor e estou vivo é um processo cuja etapa inicial será a de convencer-me a mim mesmo de que sou e de que estou.
Do ramo (para Alexandre Brandão, Cássio Zanatta, Henrique Fendrich e Marco Antonio Mártire)
Se os parnasianos tivessem conseguido o monopólio das estrelas, elas estariam muito mais bem conservadas.
Defesa (Lu Nobre)
Não creio que fazer sonetos seja uma coisa tão abominável. Há tantos sonetistas com estátuas por aí...