Na alma ele tem um cavalo
Que, quando pressente uma égua,
Revoluteia sem trégua
E luta até derrubá-lo.
Cavalo farejador,
Derrubador de porteiras,
Corcel que ignora fronteiras
Quando o chicoteia o amor.
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
Raízes
De origem humilde, conservou-se fiel às raízes porque jamais conseguiu vencer a própria mediocridade.
"Dezembro", de Ferreira Gullar
"Fora da casa
o dia mantém solidário
seu corpo de chama e de verdura
Dia terrestre,
falam num mesmo nível de fogo
minha boca e a tua."
(De Poemas de Ferreira Gullar, publicação da Global Editora.)
o dia mantém solidário
seu corpo de chama e de verdura
Dia terrestre,
falam num mesmo nível de fogo
minha boca e a tua."
(De Poemas de Ferreira Gullar, publicação da Global Editora.)
terça-feira, 29 de setembro de 2015
Todos
O gato da sua vida
foi thomas um siamês
lalá uma angorá
tuquinha aquela gatinha
de raça desconhecida
e mais trinta e três.
foi thomas um siamês
lalá uma angorá
tuquinha aquela gatinha
de raça desconhecida
e mais trinta e três.
Um toque, uma soneca
Um gato tem o dom de sacralizar objetos como uma bolinha de pingue-pongue ou um sofá. Basta um toque, uma soneca, e tanto a bolinha quanto o sofá se tornam peças do acervo sentimental de uma família, assim como aqueles fiozinhos de bigode guardados num envelope, junto com os primeiros cachinhos de filhos e netos.
Astúcia
Tão ladina e capciosa é a vida que pode, pondo diante de nossos olhos um passarinho para voar no céu azul, reconciliar-nos com ela.
Hipótese
De dentro da caçamba subiu um impossível cheiro de rosa. A suspeita logo recaiu sobre o bloco de rascunho do poeta da casa amarela.
Vilão
Meninos
eu vi
Quando a barriga
do gato
começou a cantar
descobriram que dentro dela
morava um bem-te-vi.
eu vi
Quando a barriga
do gato
começou a cantar
descobriram que dentro dela
morava um bem-te-vi.
"A adolescente", de Mario Quintana
"Arvorezinha crescendo...
crescendo...
crescendo...
Até brotarem dois pomos!"
(De Eu passarinho, publicação da Editora Ática.)
crescendo...
crescendo...
Até brotarem dois pomos!"
(De Eu passarinho, publicação da Editora Ática.)
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Entre amigos
O lobista
se associa
ao golpista
diante dos olhos
da polícia
que amanhã dirá
não ter pista.
se associa
ao golpista
diante dos olhos
da polícia
que amanhã dirá
não ter pista.
Mariana Ianelli
Em tudo quanto Mariana Ianelli escreve, sinto algo sobrenatural, imaterial, inacreditável, miraculoso, que jamais saberei se é magia ou feitiçaria. Seja o que for isso, se eu soubesse o que é, também o utilizaria.
Beethoven
Por mais que eu releve
e minimize
sinto ainda no peito
o despeito que me dava
anos atrás
o caminhão de gás
quando não tocava para você
o que tocava
pour Elise.
e minimize
sinto ainda no peito
o despeito que me dava
anos atrás
o caminhão de gás
quando não tocava para você
o que tocava
pour Elise.
Socialista
Por achar o bico do seio esquerdo um pouco menor e menos gracioso que o outro, foi nele que pôs primeiro a língua, coerente com sua simpatia pelos menos favorecidos.
"Dupla delícia", de Mario Quintana
"O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado."
domingo, 27 de setembro de 2015
Revista "Rubem"
Hoje, na revista (www.rubem.wordpress.com), falo da tentação que há, em cada escritor, de refazer o mundo.
Então
Então o vento irá encontrá-la no pomar, lhe levantará a saia com os dedos mornos e, com a boca nos seus pelinhos ruivos, lhe dirá obscenidades que farão aparecer no rosto dela a mais rubra das maçãs.
Soneto da última chance
Talvez os dois possam ainda
Algumas cenas gozar,
Algum prazer desfrutar
De sua peça já finda.
Talvez possa ele abraçá-la
Agora, na despedida,
Como jamais fez na vida,
E como nunca beijá-la.
Por que não? Ela talvez
Pense também, outra vez,
Em lhe conceder perdão.
Mas ele hesita, e também
Ela, e agora mais ninguém
Evita a separação.
Algumas cenas gozar,
Algum prazer desfrutar
De sua peça já finda.
Talvez possa ele abraçá-la
Agora, na despedida,
Como jamais fez na vida,
E como nunca beijá-la.
Por que não? Ela talvez
Pense também, outra vez,
Em lhe conceder perdão.
Mas ele hesita, e também
Ela, e agora mais ninguém
Evita a separação.
"Espelho das nuvens", de Adonis
"Asas
são, mas de cera
e a chuva a torrente não
é chuva - são barcos levando lágrimas."
(De Poemas de Adonis, tradução de Michel Sleiman, publicação da Companhia das Letras.)
são, mas de cera
e a chuva a torrente não
é chuva - são barcos levando lágrimas."
(De Poemas de Adonis, tradução de Michel Sleiman, publicação da Companhia das Letras.)
sábado, 26 de setembro de 2015
A magia de Mario Quintana (para Silvia Galant François)
Aprendiz de feiticeiro,
Mario Quintana sabia
Como encontrar a magia
Buscando-a no corriqueiro.
Com um só olhar ligeiro
Imediatamente via
Toda beleza que havia
No breve e no passageiro.
Àqueles que conheciam
Seu poder e lhe pediam
Alguma demonstração,
Para o céu ele apontava
E ou uma estrela mostrava
Ou uma constelação.
Mario Quintana sabia
Como encontrar a magia
Buscando-a no corriqueiro.
Com um só olhar ligeiro
Imediatamente via
Toda beleza que havia
No breve e no passageiro.
Àqueles que conheciam
Seu poder e lhe pediam
Alguma demonstração,
Para o céu ele apontava
E ou uma estrela mostrava
Ou uma constelação.
Mario Quintana (para Liberato Vieira da Cunha)
O menino Mario Quintana era o único, no colégio, que não tinha lápis de cor, porque não precisava.
"Simultaneidade", de Mario Quintana
"- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta."
(De Eu passarinho, publicado pela Editora Ática.)
sexta-feira, 25 de setembro de 2015
Inspiração
Passando rapidamente pelas flores, o poeta parnasiano dirige-se ao centro do parque e vai gastar seus vocativos e exclamações diante do magnífico bronze da estátua do Figurão Tal.
Soneto em que se prega a anulação do ser
Precisamos nos abster
Dos surtos de desejar,
Dos hábitos de almejar
E dos anseios de ser.
Precisamos nos refrear,
Precisamos nos conter,
Precisamos aprender
A não querer nem sonhar.
Em vez de sonhos nutrirmos,
Em vez de nos iludirmos,
E nos sonhos naufragarmos,
Melhor ficarmos calados,
Quietos, desinteressados,
Melhor de mortos posarmos.
Dos surtos de desejar,
Dos hábitos de almejar
E dos anseios de ser.
Precisamos nos refrear,
Precisamos nos conter,
Precisamos aprender
A não querer nem sonhar.
Em vez de sonhos nutrirmos,
Em vez de nos iludirmos,
E nos sonhos naufragarmos,
Melhor ficarmos calados,
Quietos, desinteressados,
Melhor de mortos posarmos.
"O autorretrato", de Mario Quintana
"No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!"
(De Eu passarinho, publicado pela Editora Ática.)
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!"
(De Eu passarinho, publicado pela Editora Ática.)
Solidez
Os concretistas gabam-se de que só os seus poemas podem ser considerados objetos de arte. E batem orgulhosamente a mão sobre eles: sólidos, sólidos.
"Relógio", de Mario Quintana
"O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família."
(De Para gostar de ler - volume 41, publicação da Editora Ática.)
(De Para gostar de ler - volume 41, publicação da Editora Ática.)
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
Soneto da exata dimensão dos nossos sonhos
De tudo estamos curados:
De nossos planos irreais,
De nossos tolos ideais,
De nossos sonhos dourados.
Lenta e dolorosamente
Nós aprendemos a não
Confiar nem no coração
Nem nas loucuras da mente.
Sonhamos Shakespeare ser,
Obras-primas escrever,
Chegar à imortalidade.
E o que nós fizemos? Nada.
Ah, ambição desbragada!
Ah, ridícula vaidade!
De nossos planos irreais,
De nossos tolos ideais,
De nossos sonhos dourados.
Lenta e dolorosamente
Nós aprendemos a não
Confiar nem no coração
Nem nas loucuras da mente.
Sonhamos Shakespeare ser,
Obras-primas escrever,
Chegar à imortalidade.
E o que nós fizemos? Nada.
Ah, ambição desbragada!
Ah, ridícula vaidade!
Seu homem
Se seu homem nunca mencionou um arco-íris e jamais a comparou à lua, talvez ele seja homem demais.
Soneto da companhia ideal
Preciso de alguém assim
Que o que eu digo não desminta
E que creia sempre em mim
Até mesmo quando eu minta.
De alguém que sempre me aceite,
De alguém que melhor me veja,
E que jamais me rejeite,
Por pior que eu pareça ou seja.
De alguém de nome curtinho
Que eu, com todo o meu carinho,
À noite possa chamar.
E que no dia final
Eu possa ainda, bem ou mal,
Pelo menos murmurar.
Que o que eu digo não desminta
E que creia sempre em mim
Até mesmo quando eu minta.
De alguém que sempre me aceite,
De alguém que melhor me veja,
E que jamais me rejeite,
Por pior que eu pareça ou seja.
De alguém de nome curtinho
Que eu, com todo o meu carinho,
À noite possa chamar.
E que no dia final
Eu possa ainda, bem ou mal,
Pelo menos murmurar.
Presente
Para o aniversário da amada, o beija-flor levou um fiozinho de arco-íris, ainda quente de sol.
"Uma voz", de Ferreira Gullar
"Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando."
(De Os melhores poemas de Ferreira Gullar, publicação da Global Editora.)
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando."
(De Os melhores poemas de Ferreira Gullar, publicação da Global Editora.)
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
Talvez
Já não precisamos nos perdoar. Não somos mais aqueles dois que se disseram tantas coisas amargas. Talvez sejamos aqueles dois que se disseram algumas coisas doces.
CLT
Um dos relógios, o da cozinha, desandou a andar e desandar conforme sua própria vontade. Se lhe apraz tirar uma soneca à tarde, ele tira. Se decide cochilar à noite, cochila. E, naturalmente, não repõe as horas gastas. Imagino que ele julgue ser regido pela CLT.
Bonecos
Não fomos nós que nos dissemos aquilo tudo naquele tempo. Foi o amor, que nos usou como instrumentos e depois nos deixou em cena, sem palavras, suspensos como dois bonecos.
Dois trechos de Anaïs Nin
"Nem é preciso invocar o caso de Zelda Fitgerald. Vocês provavelmente já perceberam que ela não teria enlouquecido se Fitzgerald não a tivesse proibido de publicar seu diário. Todo mundo sabe que ele impediu a publicação porque precisava desse diário para a realização de sua própria obra. Para mim, os problemas de Zelda começaram a partir daí. Impossibilitada de se afirmar como escritora, ela acabou esmagada pela reputação do marido. Se vocês lerem seu livro verão que, num certo sentido, ela criou um romance muito mais original que o dele, mais moderno na sua procura de um novo uso da linguagem."
***
"Como um ´projetor, a história humana ilumina apenas o que quer, deixando geralmente a mulher na obscuridade. Todos nós conhecemos Dylan Thomas. Mas quem conhecerá Caitlin Thomas, que escreveu, após a morte do marido, um livro que é um verdadeiro poema e que ultrapassa os do próprio Dylan em força, beleza, e no seu legítimo apelo à sensibilidade? Ela foi tão esmagada pelo talento do marido que nunca pensou em escrever antes de sua morte."
(De Em busca de um homem sensível, tradução de Estela Senra, publicação da Editora Brasiliense.)
***
"Como um ´projetor, a história humana ilumina apenas o que quer, deixando geralmente a mulher na obscuridade. Todos nós conhecemos Dylan Thomas. Mas quem conhecerá Caitlin Thomas, que escreveu, após a morte do marido, um livro que é um verdadeiro poema e que ultrapassa os do próprio Dylan em força, beleza, e no seu legítimo apelo à sensibilidade? Ela foi tão esmagada pelo talento do marido que nunca pensou em escrever antes de sua morte."
(De Em busca de um homem sensível, tradução de Estela Senra, publicação da Editora Brasiliense.)
terça-feira, 22 de setembro de 2015
Soneto das perdas e dos danos
O amor, surgindo do nada,
Quis entrar em nossa vida
E nos deu casa, comida,
Cigarro e roupa lavada.
Pediu em troca somente
Sexo à noite, de manhã,
Sexo ontem, hoje, amanhã,
Sexo tresloucadamente.
Quando de nós se cansou,
Tudo que deu nos cortou:
O teto, as roupas, o pão.
Ainda hoje nos lamentamos.
Com tudo nos habituamos.
Com a falta de sexo, não.
Quis entrar em nossa vida
E nos deu casa, comida,
Cigarro e roupa lavada.
Pediu em troca somente
Sexo à noite, de manhã,
Sexo ontem, hoje, amanhã,
Sexo tresloucadamente.
Quando de nós se cansou,
Tudo que deu nos cortou:
O teto, as roupas, o pão.
Ainda hoje nos lamentamos.
Com tudo nos habituamos.
Com a falta de sexo, não.
Soneto da linguagem amorosa
Ao diabo com os preconceitos,
Abaixo todas as tretas.
Como chamarei teus peitos
Se os posso chamar de tetas?
E à bunda como tratar
Se, sem nenhum menoscabo,
Posso da pompa abdicar
E chamá-la só de rabo?
É tempo de nos rendermos
E nos poemas recorrermos
À linguagem corriqueira.
Entre formas de dizer,
Se podemos escolher,
Fiquemos com a verdadeira.
Abaixo todas as tretas.
Como chamarei teus peitos
Se os posso chamar de tetas?
E à bunda como tratar
Se, sem nenhum menoscabo,
Posso da pompa abdicar
E chamá-la só de rabo?
É tempo de nos rendermos
E nos poemas recorrermos
À linguagem corriqueira.
Entre formas de dizer,
Se podemos escolher,
Fiquemos com a verdadeira.
Paixão
Aos sábados, quando o ponteiro finalmente indicava quinze para as seis, um quarto de hora antes do encontro, ele beijava o relógio.
Mario Quintana
Aprendiz de farmácia e de feiticeiro, Mario Quintana sabia exatamente com quantas gotas de leite misturadas a pó de arco-íris se recuperava uma estrelinha recém-nascida e que tipo de poção se devia fazer para curar os males de amor da lua.
A causa
Eu não sei se é porque devo,
Eu não sei se é por amor.
Se alguém souber por que escrevo,
Será talvez o leitor.
Eu não sei se é por amor.
Se alguém souber por que escrevo,
Será talvez o leitor.
Alguns trechos de Anaïs Nin
"Os homens costumam se queixar de que as mulheres necessitam de segurança e exigem provas de amor. Os japoneses reconheceram essa necessidade e antigamente era de regra que o homem escrevesse, após uma noite de amor, um poema que deveria chegar à amada antes do seu despertar. Não seria esta uma maneira de vincular o ato amoroso ao amor?"
***
"As confissões das mulheres sempre revelam uma repressão permanente. No seu diário, George Sand conta que Zola, seu admirador, obteve dela uma noite de amor; como ela deu livre curso à sensualidade, ao partir ele deixou-lhe dinheiro sobre a cabeceira, para significar que a seus olhos uma mulher apaixonada era uma prostituta."
***
"Nós já distinguimos o erotismo da pornografia: a pornografia trata a sexualidade de uma maneira grotesca, rebaixando-a ao nível animal. O erotismo desperta a sensualidade sem precisar rebaixá-la. A maioria das mulheres com as quais discuti concorda com a necessidade de criar uma literatura erótica completamente diferente da do homem; esta não tem nenhum interesse para as mulheres: ela mostra o "caçador", o "estuprador", para quem a sexualidade é apenas violência."
***
"A literatura americana está profundamente marcada pelo puritanismo. Este faz o escritor encarar a sexualidade como um vício baixo,vulgar e animalesco. Na falta de outros modelos, certas escritoras os imitaram e conseguiram apenas inverter os papéis: as mulheres se comportam como os homens, fazem amor e partem ao amanhecer sem nenhuma expressão de ternura, sem promessas.A mulher passa a ser o destruidor, o agressor. Essa atitude entretanto não muda o fundo da questão. Continuamos precisando saber quais os sentimentos da mulher e é isto que elas terão de exprimir em seus livros."
(De Em busca de um homem sensível, tradução de Estela Senra, publicação da Editora Brasiliense.)
***
"As confissões das mulheres sempre revelam uma repressão permanente. No seu diário, George Sand conta que Zola, seu admirador, obteve dela uma noite de amor; como ela deu livre curso à sensualidade, ao partir ele deixou-lhe dinheiro sobre a cabeceira, para significar que a seus olhos uma mulher apaixonada era uma prostituta."
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"Nós já distinguimos o erotismo da pornografia: a pornografia trata a sexualidade de uma maneira grotesca, rebaixando-a ao nível animal. O erotismo desperta a sensualidade sem precisar rebaixá-la. A maioria das mulheres com as quais discuti concorda com a necessidade de criar uma literatura erótica completamente diferente da do homem; esta não tem nenhum interesse para as mulheres: ela mostra o "caçador", o "estuprador", para quem a sexualidade é apenas violência."
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"A literatura americana está profundamente marcada pelo puritanismo. Este faz o escritor encarar a sexualidade como um vício baixo,vulgar e animalesco. Na falta de outros modelos, certas escritoras os imitaram e conseguiram apenas inverter os papéis: as mulheres se comportam como os homens, fazem amor e partem ao amanhecer sem nenhuma expressão de ternura, sem promessas.A mulher passa a ser o destruidor, o agressor. Essa atitude entretanto não muda o fundo da questão. Continuamos precisando saber quais os sentimentos da mulher e é isto que elas terão de exprimir em seus livros."
(De Em busca de um homem sensível, tradução de Estela Senra, publicação da Editora Brasiliense.)
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
Conselho amoroso
Nunca deixe um amor para amanhã. Amanhã você estará mais velho e possivelmente mais sensato.
Suicida
O pior tipo de suicida é o indeciso. Conheço um que há trinta anos ameaça, promete, e nada. O filho o chama de suicida mais longevo do mundo.
Brinquedo
Jubilosos tempos foram aqueles em que o coração era só um menino pedinchão e em que morrer por amor era o seu brinquedo predileto.
Soneto dos dois falsários do amor
Chegou a hora de admitir
Que quando amor nos jurávamos
Meramente praticávamos
O exercício de mentir.
Como soubemos fingir.
O amor de que nos gabávamos
E que eterno proclamávamos
Hoje é motivo de rir.
Como erraste, como errei.
Tu me chamavas de rei,
Eu te chamava de fada.
Quando hoje nos encontramos,
E desse tempo lembramos,
Caímos na gargalhada.
Que quando amor nos jurávamos
Meramente praticávamos
O exercício de mentir.
Como soubemos fingir.
O amor de que nos gabávamos
E que eterno proclamávamos
Hoje é motivo de rir.
Como erraste, como errei.
Tu me chamavas de rei,
Eu te chamava de fada.
Quando hoje nos encontramos,
E desse tempo lembramos,
Caímos na gargalhada.
Faces (versão final)
Viver é se perfazer
E morrer é se negar.
Viver é um modo de ser,
Morrer é um modo de estar.
E morrer é se negar.
Viver é um modo de ser,
Morrer é um modo de estar.
Cotação do dia
A convicção de que em algum ponto do caminho, lá atrás, era preciso ter tomado um atalho, à direita ou à esquerda. Um deles - talvez os dois - nos levaria ao lugar onde nasce o fogo.Mas nós seguimos em frente, como seguem os homens retos. Encontramos, adiante, a monotonia das fontes límpidas, dos jardins encantados e dos arcos-íris.
Um poema de Emily Dickinson
"O raio é um garfo amarelo,
Por desatentas mãos deixado cair
De mesas postas no céu;
A espantosa cutelaria
De mansões jamais bem abertas,
Nem tampouco bem fechadas,
É aparato das trevas
À ignorância revelado."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
Por desatentas mãos deixado cair
De mesas postas no céu;
A espantosa cutelaria
De mansões jamais bem abertas,
Nem tampouco bem fechadas,
É aparato das trevas
À ignorância revelado."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
domingo, 20 de setembro de 2015
Soneto da alegria que tivemos
O que fazer já não há,
Se aquele afeto que havia
E a viver nos impelia
Não há mais, nem haverá.
A vida, que voltas dá!
Desdenhamos da alegria,
Que pouca nos parecia,
E agora onde é que ela está?
Achando que outras viriam
E que melhores seriam,
Nós a deixamos morrer.
Ah, como nos enganamos.
Outra, como a que gozamos,
Nunca mais viemos a ter.
Se aquele afeto que havia
E a viver nos impelia
Não há mais, nem haverá.
A vida, que voltas dá!
Desdenhamos da alegria,
Que pouca nos parecia,
E agora onde é que ela está?
Achando que outras viriam
E que melhores seriam,
Nós a deixamos morrer.
Ah, como nos enganamos.
Outra, como a que gozamos,
Nunca mais viemos a ter.
"O homem humano", de Adélia Prado
"Se não fosse a esperança de que me aguardas com a mesa posta
o que seria de mim eu não sei.
Sem o Teu Nome
a claridade do mundo não me hospeda,
é crua luz crestante sobre ais.
Eu necessito por detrás do sol
do calor que não se põe e tem gerado meus sonhos,
na mais fechada noite, fulgurantes lâmpadas.
Porque acima e abaixo e ao redor do que existe permaneces,
eu repouso meu rosto nesta areia
contemplando as formigas, envelhecendo em paz
como envelhece o que é de amoroso dono.
O mar é tão pequenino diante do que eu choraria
se não fosses meu Pai.
Ó Deus, ainda assim não é sem temor que Te amo,
nem sem medo."
(Do livro Poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
o que seria de mim eu não sei.
Sem o Teu Nome
a claridade do mundo não me hospeda,
é crua luz crestante sobre ais.
Eu necessito por detrás do sol
do calor que não se põe e tem gerado meus sonhos,
na mais fechada noite, fulgurantes lâmpadas.
Porque acima e abaixo e ao redor do que existe permaneces,
eu repouso meu rosto nesta areia
contemplando as formigas, envelhecendo em paz
como envelhece o que é de amoroso dono.
O mar é tão pequenino diante do que eu choraria
se não fosses meu Pai.
Ó Deus, ainda assim não é sem temor que Te amo,
nem sem medo."
(Do livro Poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
sábado, 19 de setembro de 2015
Márika Voroshenka
Terminei hoje, no facebook, a publicação, em capítulos, da história de Márika Voroshenka. Como ela se estendeu por vários dias, sugeri, àqueles que desejem uma leitura mais fácil, que visitem este blog. É a esses que me dirijo agora. O procedimento é simples: aberto o blog, ir para o alto, à esquerda, e digitar márika voroshenka (1), márika voroshenka (2) e assim subsequentemente, até márika voroshenka (15). Como esclarecimento aos que têm perguntado quem é Márika, digo que ela é uma espécie de evolução da personagem Priscylla Mariuszka Moskevitch. Ambas me exauriram, me dessangraram, me aniquilaram - e me enriqueceram, porque não há maior tesouro, para alguém que se presume poeta, do que o amor quando tomado como fonte de êxtase e de sofrimento.
Vindita
Ela se vingou
de quem a magoou
Eu paguei
por um holandês
por um argentino
por um bailarino
por um brasileiro
por um sanfoneiro
por um português
por um japonês
e por mais trinta e três.
de quem a magoou
Eu paguei
por um holandês
por um argentino
por um bailarino
por um brasileiro
por um sanfoneiro
por um português
por um japonês
e por mais trinta e três.
Decepção
Quando, dez anos depois, ela abriu a gaveta para ler as cartas de amor, estranhou não ver esvoaçar nenhuma borboleta pelo quarto. Foi o derradeiro golpe no seu romantismo.
Única
Estejas onde estiveres,
Seja qual for a ocasião,
Todas as outras mulheres
Tão tolas parecerão...
Seja qual for a ocasião,
Todas as outras mulheres
Tão tolas parecerão...
Soneto do que dirão de nós.
Todos dirão que hoje somos
Nós dois o antônimo ideal,
A negação mais cabal
De tudo aquilo que fomos.
Estarão certos. Semeamos
Com fé, incansavelmente,
Sempre com a melhor semente,
O amor que depois matamos.
Nós não fomos visitá-lo,
Nós nem fomos enterrá-lo
No dia em que ele morreu.
Quem nós iremos culpar?
Não adianta disfarçar.
Foi você, sim, e fui eu.
Nós dois o antônimo ideal,
A negação mais cabal
De tudo aquilo que fomos.
Estarão certos. Semeamos
Com fé, incansavelmente,
Sempre com a melhor semente,
O amor que depois matamos.
Nós não fomos visitá-lo,
Nós nem fomos enterrá-lo
No dia em que ele morreu.
Quem nós iremos culpar?
Não adianta disfarçar.
Foi você, sim, e fui eu.
Haicai
O haicai é como um vaga-lume. O poeta não o faz, pode apenas retê-lo na retina por um instante - instante que nenhuma palavra conseguirá reproduzir.
Um trecho de "Torquator", de Henry Trujillo
"E, se você fosse embora, eu te seguiria até o fim do mundo, porque você é a única razão que tenho para viver. Você pode me odiar se quiser, não me importo. O ódio e o amor se parecem, porque só amamos aquilo que nos faz sofrer e aquilo que nos domina. Se for necessário, você vai ter que sofrer, mas vai ser para o bem."
(Tradução de Pablo Cardellino Soto e Walter Carlos Costa, publicação da GRUA Livros.)
(Tradução de Pablo Cardellino Soto e Walter Carlos Costa, publicação da GRUA Livros.)
sexta-feira, 18 de setembro de 2015
Melhor
Alguns sonham com uma escada de degraus dourados ou um tapete de nuvens para levá-los a uma estrela ou à lua. Eu me satisfaria com as tranças de certa Rapunzel.
Segunda do plural
O bem-te-vi anda generoso e eleitoreiro. Agora, quando passa, canta: bem-vos-vi, bem-vos-vi, bem-vos-vi.
Item
A única tarefa de um poeta deveria ser entender de borboletas e gatos - não obrigatoriamente nessa ordem.
"Pensamentos noturnos", de Tu Fu
"Ervas rasteiras
Brisa suave
Sozinho na noite
Sob o mastro ao alto.
As estrelas suspensas
Sob a vasta planície
A lua ondula
Corre o grande rio.
Vem das obras, a fama?
O letrado retira-se velho
E doente - sempre errante
Que sou eu senão uma
Gaivota entre céu e terra?"
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Brisa suave
Sozinho na noite
Sob o mastro ao alto.
As estrelas suspensas
Sob a vasta planície
A lua ondula
Corre o grande rio.
Vem das obras, a fama?
O letrado retira-se velho
E doente - sempre errante
Que sou eu senão uma
Gaivota entre céu e terra?"
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Prova
O amor é como um vampiro.
Mesmo depois de obrigá-lo
A dar o último suspiro,
Convém de novo matá-lo.
Mesmo depois de obrigá-lo
A dar o último suspiro,
Convém de novo matá-lo.
Agruras de um gerente
Com que aflição o amor
na seção de suprimentos
vai buscar alimentos
para os seus prisioneiros
Pega um tantinho para cada um
cuidando para não faltar
nem um pouquinho
para nenhum
Cada vez as migalhas
são mais migalhas
Ele já pôs avisos
distribuiu comunicados
não tem
como prender mais ninguém
Mas todo dia
sem exceção
em busca de suas migalhas
para cada três prisioneiros
que morrem
trinta e três acorrem
às portas de sua prisão
e imploram para ser encarcerados.
na seção de suprimentos
vai buscar alimentos
para os seus prisioneiros
Pega um tantinho para cada um
cuidando para não faltar
nem um pouquinho
para nenhum
Cada vez as migalhas
são mais migalhas
Ele já pôs avisos
distribuiu comunicados
não tem
como prender mais ninguém
Mas todo dia
sem exceção
em busca de suas migalhas
para cada três prisioneiros
que morrem
trinta e três acorrem
às portas de sua prisão
e imploram para ser encarcerados.
Protocolo
Se num sofá estiver acomodado um gato, devemos, antes de nos sentar, pedir-lhe gentilmente licença, com alguma frase que comece com "vossa alteza".
To be
Um pardal medita sobre sua identidade. Um prestimoso gato lhe diz que ele é um passarinho e, em troca da informação, dá-lhe a honra de ser seu almoço.
Fetiche
Ele beija sem pressa
o lenço em que o batom
(que gosto intenso, bom!)
deixou a boca impressa.
o lenço em que o batom
(que gosto intenso, bom!)
deixou a boca impressa.
Lição
Só consegui aprender
Que o amor é sempre o melhor
E sempre também o pior
Que nos pode acontecer.
Que o amor é sempre o melhor
E sempre também o pior
Que nos pode acontecer.
"Canção de Joana d'Arc", de Adélia Prado
"A chama do meu amor faz arder minhas vestes.
É uma canção tão bonita o crepitar
que minha mãe se consola,
meu pai me entende sem perguntas
e o rei fica tão surpreendido
que decide em meu favor
uma revisão das leis."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
É uma canção tão bonita o crepitar
que minha mãe se consola,
meu pai me entende sem perguntas
e o rei fica tão surpreendido
que decide em meu favor
uma revisão das leis."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
Mario Quintana
Aos poucos, um tantinho por dia, Mario Quintana foi convencendo a poesia de que lhe ficavam melhor os cabelos curtos, um sorriso mais juvenil e palavras ensolaradas.
Individualidade
Uma vírgula diz a outra, da mesma frase: "Não dá para você se afastar um pouco? Vão pensar que somos aspas."
Um poema de Ouyang Xiu
"Ano passado na Primeira Lua Cheia
As lanternas do mercado das flores eram brilhantes como o dia
A lua subiu ao cimo do salgueiro
E eu e o meu amor, pelo crepúsculo, nos encontramos.
Este ano, na Primeira Lua Cheia
São as mesmas, a lua e as lanternas.
Mas o homem do ano passado - onde está ele?
Cobertas de choro
As mangas do meu vestido primaveril."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
As lanternas do mercado das flores eram brilhantes como o dia
A lua subiu ao cimo do salgueiro
E eu e o meu amor, pelo crepúsculo, nos encontramos.
Este ano, na Primeira Lua Cheia
São as mesmas, a lua e as lanternas.
Mas o homem do ano passado - onde está ele?
Cobertas de choro
As mangas do meu vestido primaveril."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
terça-feira, 15 de setembro de 2015
Soneto da malograda obra-prima
O que outrora me animava,
Agora já não anima.
Ah, tolo, eu acreditava
Fazer do amor obra-prima.
Então eu o retocava
E, com minha melhor lima,
Pouco a pouco o melhorava
Na forma, no som, na rima.
No dia em que o terminei,
Por satisfeito me dei.
Infelizmente, o amor, não.
Dizendo que eu me enganara
E toscamente o moldara,
Ele me cuspiu na mão.
Agora já não anima.
Ah, tolo, eu acreditava
Fazer do amor obra-prima.
Então eu o retocava
E, com minha melhor lima,
Pouco a pouco o melhorava
Na forma, no som, na rima.
No dia em que o terminei,
Por satisfeito me dei.
Infelizmente, o amor, não.
Dizendo que eu me enganara
E toscamente o moldara,
Ele me cuspiu na mão.
Soneto do cativeiro que nos impusemos
Houve uma vez em que vimos,
Sem ninguém a nos vigiar,
Que era fácil escapar.
Ah, por que nós não fugimos?
Como erramos nesse dia.
O amor já nos desdenhava
E tudo que nos jurava
Dificilmente cumpria.
Por que não aproveitamos
E por que não escapamos?
Se fugíssemos nessa hora,
A nossa honra manteríamos
E da dor nos livraríamos
De o amor nos mandar embora.
Sem ninguém a nos vigiar,
Que era fácil escapar.
Ah, por que nós não fugimos?
Como erramos nesse dia.
O amor já nos desdenhava
E tudo que nos jurava
Dificilmente cumpria.
Por que não aproveitamos
E por que não escapamos?
Se fugíssemos nessa hora,
A nossa honra manteríamos
E da dor nos livraríamos
De o amor nos mandar embora.
Lírica (1.232) - Mimo (versão final)
Que em mim não creias aceito.
Quem sou para censurar-te?
Mas olha: para louvar-te
Sangro a alma e estraçalho o peito.
Quem sou para censurar-te?
Mas olha: para louvar-te
Sangro a alma e estraçalho o peito.
Lírica (1.200) - O motivo (versão final)
Se ele tiver se salvado,
Seja lá pelo que for,
Não há de ser pelo amor,
Porque o amor lhe foi negado.
Viverá pelo rancor
Contra si mesmo voltado
Por haver no amor confiado
E no seu falso esplendor.
Seja lá pelo que for,
Não há de ser pelo amor,
Porque o amor lhe foi negado.
Viverá pelo rancor
Contra si mesmo voltado
Por haver no amor confiado
E no seu falso esplendor.
Classicismo
O antigo dilema dos poetas clássicos: fazer a rima trabalhar para o poema ou o poema trabalhar para a rima.
Soneto da trajetória do amor
Aos poucos fomos deixando
Que o ardor em nós fraquejasse,
Que o sol de nós se afastasse
E a sombra fosse chegando.
Aos poucos ela avançou
E o fulgor do meio-dia
Que outrora nos aquecia
Em noite se transformou.
O amor será sempre assim.
Pouco lhe importa, no fim,
O que eu lhe dei e o que deste,
Tua tristeza, ou a minha.
Ele, insensível, caminha
Para o inevitável oeste.
Que o ardor em nós fraquejasse,
Que o sol de nós se afastasse
E a sombra fosse chegando.
Aos poucos ela avançou
E o fulgor do meio-dia
Que outrora nos aquecia
Em noite se transformou.
O amor será sempre assim.
Pouco lhe importa, no fim,
O que eu lhe dei e o que deste,
Tua tristeza, ou a minha.
Ele, insensível, caminha
Para o inevitável oeste.
Um poema de Mariana Ianelli
"Era esperado que aos poucos
Definhasse, fosse desaparecendo
Naturalmente levado pelo sono.
Era suposto que por abandono -
Morresse.
E não teria o vento nenhum sentido
De ventura, seria apenas
A passagem de uma hora branca,
Entre outras tantas,
Para um coração manso
Que já nada espera nem recorda -
Como se o tempo não devorasse
Também o desconsolo,
E dele fizesse exsudar um leve perfume,
Como se não arrastasse
Cada corpo uma penumbra,
Como se fosse possível
Em vida a paz dos mortos."
(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Definhasse, fosse desaparecendo
Naturalmente levado pelo sono.
Era suposto que por abandono -
Morresse.
E não teria o vento nenhum sentido
De ventura, seria apenas
A passagem de uma hora branca,
Entre outras tantas,
Para um coração manso
Que já nada espera nem recorda -
Como se o tempo não devorasse
Também o desconsolo,
E dele fizesse exsudar um leve perfume,
Como se não arrastasse
Cada corpo uma penumbra,
Como se fosse possível
Em vida a paz dos mortos."
(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
Mario Quintana
Numa acareação entre Mario Quintana e a poesia, vieram à tona segredos antes só compartilhados pelos beija-flores e as rosas.
Lapso
Ao explicar aquela história dos catetos e das hipotenusas, o professor se enrolou. Um dos alunos o consolou: "Não esquenta. Eu mesmo me confundo toda hora com essas protenusas."
... que o soneto
Mercadejar o corpo é uma dessas expressões muito mais feias que o ato que exprimem.
Soneto de quem perde a voz de louvar
Terá morrido quem te ama,
Quem te cantou, te louvou,
Rainha te proclamou
E ainda te exalta e proclama.
Vai se apagando esta flama
Que só por ti fulgurou
E às vezes penso se sou
Mesmo eu quem ainda te chama.
Se mais realeza almejares
E a outra coroa aspirares,
Outro precisará pôr-te.
Morto, eu serei uma piada
Sofrivelmente contada
Pelo pior bobo da corte.
Quem te cantou, te louvou,
Rainha te proclamou
E ainda te exalta e proclama.
Vai se apagando esta flama
Que só por ti fulgurou
E às vezes penso se sou
Mesmo eu quem ainda te chama.
Se mais realeza almejares
E a outra coroa aspirares,
Outro precisará pôr-te.
Morto, eu serei uma piada
Sofrivelmente contada
Pelo pior bobo da corte.
"Verossímil", de Adélia Prado
"Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
'Canta alto, espevita as palavras bem',
Eu levantava voo rumo acima."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano)
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
'Canta alto, espevita as palavras bem',
Eu levantava voo rumo acima."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano)
domingo, 13 de setembro de 2015
Etiqueta
As mensagens de amor deveriam ser escritas sempre com caneta, para poderem desmanchar-se em lágrimas.
Realeza
Os gatos só não assumem o poder porque não nos acham suficientemente dignos de ser seus súditos.
Estar ou não estar
Nunca se sabe direito se o acento circunflexo está pousando ou se acabou de iniciar voo.
Bis
Ela gosta dos beijos longos e dos romances de setecentas páginas. Por ter memória fraca, vive recorrendo às repetições e às segundas leituras.
As três
O escritor pôs uma interrogação no fim da frase. Depois pensou melhor e colocou a segunda, e a terceira. As três se olharam, preocupadas. A mais experiente delas comentou: "Acho que estamos num texto de filosofia."
Soneto da manhã e sua rainha
Deixa que a manhã te veja
Como estás agora, assim,
Com os olhos postos em mim,
Por um instante que seja.
Permite que o sol te estude
No que tu tens de fulgor,
No que tu tens de calor,
E que, imitando-te, mude.
Não consigo imaginar
Quem melhor possa expressar
Que a beleza é uma virtude.
Reina assim, querida minha,
Reina assim, minha rainha,
Reina em tua plenitude.
Como estás agora, assim,
Com os olhos postos em mim,
Por um instante que seja.
Permite que o sol te estude
No que tu tens de fulgor,
No que tu tens de calor,
E que, imitando-te, mude.
Não consigo imaginar
Quem melhor possa expressar
Que a beleza é uma virtude.
Reina assim, querida minha,
Reina assim, minha rainha,
Reina em tua plenitude.
Mais uns fiapos descoloridos
Hoje, na Revista Rubem (www.rubem.wordpress.com), algumas dessas coisas parcas com que me ocupo, enquanto as Parcas não se decidem.
"Medievo", de Adélia Prado
"Senhor meu amo, escutai-me,
a donzela espera por vós, no balcão.
Cuidai que não acorde os fâmulos
a paixão que estremece vosso peito.
Os galgos estão inquietos, a alimária pateia.
Rogo-vos que vos apresseis."
(Do livro Poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
a donzela espera por vós, no balcão.
Cuidai que não acorde os fâmulos
a paixão que estremece vosso peito.
Os galgos estão inquietos, a alimária pateia.
Rogo-vos que vos apresseis."
(Do livro Poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
sábado, 12 de setembro de 2015
Castigo
As chapas determinaram
que ele não chegará a dezembro
e ele lembra
que quando menino
para se mostrar original
fingia detestar o Natal.
que ele não chegará a dezembro
e ele lembra
que quando menino
para se mostrar original
fingia detestar o Natal.
Memento
Às vezes sonho que estou
Ainda sofrendo a agonia,
O êxtase daquele dia
Em que você me matou.
Ainda sofrendo a agonia,
O êxtase daquele dia
Em que você me matou.
Soneto das lembranças que me despertas
Ainda me lembro de ti,
Quando a recordar me ponho
Aquela manhã de sonho,
A primeira em que te vi.
Ainda me lembro dos teus
Sorrisos, dos teus cabelos,
Dos olhos buscados pelos
Olhares vivos dos meus.
Lembro, e como esqueceria
Que eras tu a luz do dia,
Calorosa e fulgurante?
Naquela manhã, querida,
No resplendor da avenida
O sol era um coadjuvante.
Quando a recordar me ponho
Aquela manhã de sonho,
A primeira em que te vi.
Ainda me lembro dos teus
Sorrisos, dos teus cabelos,
Dos olhos buscados pelos
Olhares vivos dos meus.
Lembro, e como esqueceria
Que eras tu a luz do dia,
Calorosa e fulgurante?
Naquela manhã, querida,
No resplendor da avenida
O sol era um coadjuvante.
Parágrafo inicial de "Torquator", de Henry Trujillo
"O ônibus minorou a marcha, girou um par de vezes como se duvidasse, depois, já decidido, se dirigiu a uma pequena cabana iluminada no meio de um campo mergulhado na mais absoluta escuridão. Os que viajavam custaram a compreender que essa cabana era uma lanchonete - assim pretendia uma modesta plaquinha na frente da porta - e que essas sombras que se recortavam pouco mais adiante pertenciam a uma cidadezinha, se é que chegava a isso."
(Tradução de Pablo Cardellino Soto e Walter Carlos Costa, publicação da GRUA Livros.)
(Tradução de Pablo Cardellino Soto e Walter Carlos Costa, publicação da GRUA Livros.)
O tempo
O tempo de morrer é
Aquele em que a alma se cansa
De acreditar na esperança
E o coração perde a fé.
Aquele em que a alma se cansa
De acreditar na esperança
E o coração perde a fé.
Etapas
Na juventude
nós demos tudo
o corpo
a alma
a alegria
a quem nos pedia
e também a quem não
Guardamos somente
avarentamente o pão
e hoje o comemos
compartilhando-o
com a velhice
a melancolia
e a solidão.
nós demos tudo
o corpo
a alma
a alegria
a quem nos pedia
e também a quem não
Guardamos somente
avarentamente o pão
e hoje o comemos
compartilhando-o
com a velhice
a melancolia
e a solidão.
"Artefato nipônico", de Adélia Prado
"Borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada."
(Do livro Poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
ou é Deus
ou é nada."
(Do livro Poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
Mario Quintana
Fosse qual fosse a época do ano, Mario Quintana tinha sempre uma primavera no estoque.
Improviso
Morrer é um modo educado,
Uma forma bem amena
De se abandonar a cena
Quando se está contrariado.
Uma forma bem amena
De se abandonar a cena
Quando se está contrariado.
Trunfo
O amor é sempre um motivo
Que alguém pode apresentar
Quando quer justificar
Que vale a pena estar vivo.
Que alguém pode apresentar
Quando quer justificar
Que vale a pena estar vivo.
Soneto do verdadeiro culpado
Quando, depois de semeada
Com nosso empenho maior,
Nosso obstinado suor,
E por nossa alma regada,
A terra, áspera e mesquinha,
Nos retribui parcamente -
Ou com uma árvore doente
Ou com uma planta daninha,
O que devemos fazer?
Devemos Deus maldizer
Ou amaldiçoar a terra?
Seria pura tolice.
Somos homens, e quem disse
Que o homem é um ser que não erra?
Com nosso empenho maior,
Nosso obstinado suor,
E por nossa alma regada,
A terra, áspera e mesquinha,
Nos retribui parcamente -
Ou com uma árvore doente
Ou com uma planta daninha,
O que devemos fazer?
Devemos Deus maldizer
Ou amaldiçoar a terra?
Seria pura tolice.
Somos homens, e quem disse
Que o homem é um ser que não erra?
Igual
Nós já teremos morrido,
E o amor, que nos matará,
Como hoje continuará
Sem fazer nenhum sentido.
E o amor, que nos matará,
Como hoje continuará
Sem fazer nenhum sentido.
"Canícula", de Adélia Prado
"Ao meio-dia, deságua o amor,
os sonhos mais frescos e intrigantes;
estou onde estão as torrentes.
Ao redor da casa grande espaça um quintal sem cercas,
tomado de bananeiras, só bananeiras,
altas como coqueiros.
Chego e é na beira do mar encrespado de correntezas,
sorvedouros azuis.
Há um perigo sobre faixa exígua
que é de areia e é branca.
Quero braceletes
e a companhia do macho que escolhi."
(Do livro Poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
os sonhos mais frescos e intrigantes;
estou onde estão as torrentes.
Ao redor da casa grande espaça um quintal sem cercas,
tomado de bananeiras, só bananeiras,
altas como coqueiros.
Chego e é na beira do mar encrespado de correntezas,
sorvedouros azuis.
Há um perigo sobre faixa exígua
que é de areia e é branca.
Quero braceletes
e a companhia do macho que escolhi."
(Do livro Poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
quinta-feira, 10 de setembro de 2015
Cena final
Quando o viu pendurado, seu cachorro pensou que fosse só uma brincadeira nova e começou a puxá-lo alegremente pela perna.
A causa
O que o matou não foi a corda no pescoço. Foi a mensagem que recebeu, cheio de nãos, nuncas e jamais.
Réprobos
Os que morreram de amor são a vergonha das famílias,e seu nome nunca é pronunciado, apenas sussurrado, como a palavra câncer na frente de crianças.
Mario Quintana
Mario Quintana escrevia como escreveria um bem-te-vi que tivesse o dom da palavra e quisesse exercê-lo.
Morrer
Morrer deveria ser como uma travessura de menino, alguma coisa assim como, estando já no carro funerário, passar diante da Vida e dar-lhe uma bela banana.
Soneto do início e do fim do amor (versão final)
Hoje, ao lembrarmos o dia
Em que o amor nos convidou
E pela mão nos levou
A conhecer a alegria,
Na imagem que nos ficou
Nota-se uma área sombria
Que na ocasião não havia
Ou nenhum de nós notou.
Ardiloso sempre assim,
Ou no começo ou no fim,
O amor haverá de ser.
Jamais será tão propício
Quanto nós, no seu início,
Tolos chegamos a crer.
Em que o amor nos convidou
E pela mão nos levou
A conhecer a alegria,
Na imagem que nos ficou
Nota-se uma área sombria
Que na ocasião não havia
Ou nenhum de nós notou.
Ardiloso sempre assim,
Ou no começo ou no fim,
O amor haverá de ser.
Jamais será tão propício
Quanto nós, no seu início,
Tolos chegamos a crer.
"Exausto", de Adélia Prado
"Eu quero uma licença de dormir,
perdão para descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente. Muito mais que raízes."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
perdão para descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente. Muito mais que raízes."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
A revolta dos desdenhados
Num recente congresso, as interjeições, exclamações, reticências, pontos de interrogação e outros componentes menores da linguagem reafirmaram a sua convicção de que, sendo capazes de exprimir as principais emoções humanas, era mais do que hora de irem aos gramáticos e reivindicarem um tratamento mais condizente. Segundo uma estatística apresentada na ocasião, livros como Madame Bovary poderiam, se limitado o uso dos substantivos, adjetivos, verbos, advérbios e outras presunçosas categorias, reduzir-se a dez ou quinze páginas. A Interrogação Mor, que presidiu o congresso, concluiu, sob exclamações triunfais: "Concordam?"
Imperícia
Verbos que exprimem desempenho, como conseguir, alcançar e atingir, queixam-se frequentemente de sujeitos que não sabem manejá-los como deveriam ser.
Autoria
Há imagens tão surpreendentes que, se não forem de um poeta, certamente serão de uma criança ou de um louco.
"A filha da antiga lei", de Adélia Prado
"Deus não me dá sossego. É meu aguilhão.
Morde meu calcanhar como serpente,
faz-se verbo, carne, caco de vidro,
pedra contra a qual sangra minha cabeça.
Eu não tenho descanso neste amor.
Eu não posso dormir sob a luz do seu olho que me fixa.
Quero de novo o ventre de minha mãe,
sua mão espalmada contra o umbigo estufado,
me escondendo de Deus."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
Morde meu calcanhar como serpente,
faz-se verbo, carne, caco de vidro,
pedra contra a qual sangra minha cabeça.
Eu não tenho descanso neste amor.
Eu não posso dormir sob a luz do seu olho que me fixa.
Quero de novo o ventre de minha mãe,
sua mão espalmada contra o umbigo estufado,
me escondendo de Deus."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
quarta-feira, 9 de setembro de 2015
Soneto do que ainda esperamos do amor
Que diga o amor, sem tardar,
Aquilo tudo que diz
Quando nos quer ver feliz,
Quando nos quer enganar.
Que ele venha nos rever
Enquanto ainda respiramos,
Enquanto ainda desfrutamos
A ventura de viver.
Que ele, pela última vez,
Repita o que sempre fez:
Mentir, burlar, iludir.
Já que nos enganou tanto,
Que assim continue enquanto
Nós o pudermos ouvir.
Aquilo tudo que diz
Quando nos quer ver feliz,
Quando nos quer enganar.
Que ele venha nos rever
Enquanto ainda respiramos,
Enquanto ainda desfrutamos
A ventura de viver.
Que ele, pela última vez,
Repita o que sempre fez:
Mentir, burlar, iludir.
Já que nos enganou tanto,
Que assim continue enquanto
Nós o pudermos ouvir.
Labéu
Ter lambido o chão do templo do Amor, o mais falso de todos os deuses, é uma vergonha que nem a eternidade será capaz de apagar.
"Objeto de amor", de Adélia Prado
"De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, amo."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, amo."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
terça-feira, 8 de setembro de 2015
Malévola
Ela mantinha o gato só para ter um álibi para quando o marido chegava e via pela casa toda objetos que ela quebrava quando o amante não atendia suas ligações.
Escrito nas estrelas
A Terra girar em torno do Sol é ainda, para os machistas, um argumento irrespondível.
No asilo
Seu Jarbas diz, com a aprovação dos outros velhinhos: "No nosso tempo, o cinema era uma arte. Não era essa enganação para vender pipoca."
Exibição única
Aos que arquitetam o suicídio como se ele fosse sua obra-prima, aborrece saber que nunca chegarão a conhecer a opinião da crítica, a menos que fracassem.
Situações
No fim das contas, descontados os excessos poéticos, a morte de um amor tem tanta importância quanto a bailarina de cristal errar um passo e espatifar-se no assoalho da sala.
Compatíveis
Ela o beijava como se estivesse lhe fazendo um favor. Ele aceitava, comovido. Ela o chamava de chato. Ele, de santa.
Da cartilha do poeta
Melhor chorar
do que rir
melhor chorar muito
do que chorar pouco
melhor o choro contínuo
do que o fortuito
melhor chorar
melhor gritar
o nome do amor
até ficar rouco
até ficar louco
melhor não rimar.
do que rir
melhor chorar muito
do que chorar pouco
melhor o choro contínuo
do que o fortuito
melhor chorar
melhor gritar
o nome do amor
até ficar rouco
até ficar louco
melhor não rimar.
"Josafá", de Mariana Ianelli
"Um trem some na noite,
Já não sabes
O que nesta viagem
Aconteceu.
O olho cego de Deus
Ilumina os campos nevados,
A brancura de nada saber
Te faz bem.
Moves-te
Num ventre de áspide,
Move-te a vontade de outrem,
Tua complacência viaja.
Tua complacência,
Uma fúria
Que o vagar das sombras
Enterneceu.
Não há tua história,
Tua estrela no peito, teus bens.
Há um rosto fixo e mudo.
Teu nome é ninguém."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Já não sabes
O que nesta viagem
Aconteceu.
O olho cego de Deus
Ilumina os campos nevados,
A brancura de nada saber
Te faz bem.
Moves-te
Num ventre de áspide,
Move-te a vontade de outrem,
Tua complacência viaja.
Tua complacência,
Uma fúria
Que o vagar das sombras
Enterneceu.
Não há tua história,
Tua estrela no peito, teus bens.
Há um rosto fixo e mudo.
Teu nome é ninguém."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
Soneto dos prêmios concedidos pelo Amor
Nestes infelizes dias
Em que a ternura arrefece,
Quem morre de amor merece
Ter todas as honrarias.
Uma menção de louvor
Convém sempre reservar
A quem se deixou fanar
Por entregar-se ao Amor.
E a quem não quis se envolver,
Pelo medo de perder,
Por não suportar derrota,
Se dê um prêmio também
Por ter agido tão bem:
Uma medalha de idiota.
Em que a ternura arrefece,
Quem morre de amor merece
Ter todas as honrarias.
Uma menção de louvor
Convém sempre reservar
A quem se deixou fanar
Por entregar-se ao Amor.
E a quem não quis se envolver,
Pelo medo de perder,
Por não suportar derrota,
Se dê um prêmio também
Por ter agido tão bem:
Uma medalha de idiota.
Soneto do dia em que nos couber morrer
Nós haveremos de ser
Cordatos, bem-comportados,
Gentis e bem-educados,
Quando a Morte aparecer.
Nós a iremos atender,
Calouros ruborizados,
Ansiosos e alvoroçados:
"Oi, Morte, muito prazer!"
Falaremos mal da vida,
Essa vadia fodida
Que só doenças nos passou.
Depois de um papo bem breve,
Pediremos que nos leve:
"Como você demorou!"
Cordatos, bem-comportados,
Gentis e bem-educados,
Quando a Morte aparecer.
Nós a iremos atender,
Calouros ruborizados,
Ansiosos e alvoroçados:
"Oi, Morte, muito prazer!"
Falaremos mal da vida,
Essa vadia fodida
Que só doenças nos passou.
Depois de um papo bem breve,
Pediremos que nos leve:
"Como você demorou!"
Mandachuva (para o Gianluca e a Nicole)
Nada mais lógico
do que o tempo ir mal.
São Pedro ainda é analógico
na era digital.
do que o tempo ir mal.
São Pedro ainda é analógico
na era digital.
A magia de Mario Quintana (para Silvia Galant François)
Mario Quintana sabia
Como usar sua destreza
Testando quanta beleza
Cabia numa poesia.
E, por saber que podia,
Chegava às vezes à proeza
De transformar a tristeza
Em desatada alegria.
O que ele, intenso, buscava
E quase sempre alcançava
Nessas suas tentativas
Era como aprimorar
A magna arte de tornar
Mais vivas as coisas vivas.
Como usar sua destreza
Testando quanta beleza
Cabia numa poesia.
E, por saber que podia,
Chegava às vezes à proeza
De transformar a tristeza
Em desatada alegria.
O que ele, intenso, buscava
E quase sempre alcançava
Nessas suas tentativas
Era como aprimorar
A magna arte de tornar
Mais vivas as coisas vivas.
Sorriso
Que, na nossa hora final, haja pelo menos uma enfermeira fingindo, com seu bem treinado sorriso, que não está acontecendo nada, é só a luz que às vezes enfraquece.
Frase
Do netinho para a avó: "Se o vô fosse um gato, acho que ele ia ser uma pessoa muito mais legal."
Soneto do nome que o fogo reescreve
No sonho às vezes a chama
Do extinto amor reaparece
E por um instante o aquece
Com o vigor da antiga flama.
Então ele, deslumbrado,
Revive nesse momento
O calor e o encantamento
Daquele fogo sagrado.
Enquanto essa chama ideal,
Assim como outrora a real,
Novamente se consome,
Ele vê que como outrora
O fogo desenha agora
Outra vez aquele nome.
Do extinto amor reaparece
E por um instante o aquece
Com o vigor da antiga flama.
Então ele, deslumbrado,
Revive nesse momento
O calor e o encantamento
Daquele fogo sagrado.
Enquanto essa chama ideal,
Assim como outrora a real,
Novamente se consome,
Ele vê que como outrora
O fogo desenha agora
Outra vez aquele nome.
Estatística
Nas casas em que há pelo menos um gato por sofá, é vinte por cento menor a incidência de suicídios.
"Rondel", de George Trakl
"Foi-se o dourado dos dias,
Cor marrom e azul da tarde:
Doces flautas vãs do pastor
Cor marrom e azul da tarde
Foi-se o dourado dos dias."
(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicado pela Iluminuras.)
Cor marrom e azul da tarde:
Doces flautas vãs do pastor
Cor marrom e azul da tarde
Foi-se o dourado dos dias."
(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicado pela Iluminuras.)
domingo, 6 de setembro de 2015
Azar
Por pura ausência de zelo,
Sem pôr a boia deitou-se
E em alto-mar afogou-se
No meio de um pesadelo.
Sem pôr a boia deitou-se
E em alto-mar afogou-se
No meio de um pesadelo.
Soneto em que se requer um beija-flor
Se eu uma carta escrevesse
E um beija-flor a levasse,
Quem sabe você a lesse
E a sério enfim me tomasse.
Talvez você até cresse
Ou talvez não duvidasse
Que um amor grande, como esse,
Não há nenhum que o ultrapasse.
E talvez, então, no que eu
Disse e você esqueceu
Você notasse valor.
Talvez eu pudesse, eu sei.
Mas onde conseguirei
Arranjar um beija-flor?
E um beija-flor a levasse,
Quem sabe você a lesse
E a sério enfim me tomasse.
Talvez você até cresse
Ou talvez não duvidasse
Que um amor grande, como esse,
Não há nenhum que o ultrapasse.
E talvez, então, no que eu
Disse e você esqueceu
Você notasse valor.
Talvez eu pudesse, eu sei.
Mas onde conseguirei
Arranjar um beija-flor?
Chance
Se um poeta oferecer mais que a beleza, talvez convenha acreditar. Alguns poetas já conseguiram.
"Memória amorosa", de Adélia Prado
"Quando ele aparece
bonito e mudo se posta
entre moitas de murici.
Faz alto-verão no corpo,
no tempo dilatado de resinas.
Como quem treina para ver a Deus,
olho a curva do lábio, a testa,
o nariz afrontoso.
Não se despede nunca.
Quando sai não vejo,
extenuada por tamanha abundância:
seus dedos com unhas, inacreditáveis!"
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
bonito e mudo se posta
entre moitas de murici.
Faz alto-verão no corpo,
no tempo dilatado de resinas.
Como quem treina para ver a Deus,
olho a curva do lábio, a testa,
o nariz afrontoso.
Não se despede nunca.
Quando sai não vejo,
extenuada por tamanha abundância:
seus dedos com unhas, inacreditáveis!"
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
sábado, 5 de setembro de 2015
Soneto de como o amor costuma proceder
Por mais que seja famoso,
Nunca é demais recordar
E até convém repisar
Que o amor é um tipo asqueroso.
Ele chega, maneiroso,
E para nos agradar
Pode por tudo passar,
Até fingir-se bondoso.
Ele age assim, o bandido.
Depois que nos arrebata,
Ele devagar nos mata.
Então, sempre bem fingido,
Fica um pouco no velório
E vai embora, o finório.
Nunca é demais recordar
E até convém repisar
Que o amor é um tipo asqueroso.
Ele chega, maneiroso,
E para nos agradar
Pode por tudo passar,
Até fingir-se bondoso.
Ele age assim, o bandido.
Depois que nos arrebata,
Ele devagar nos mata.
Então, sempre bem fingido,
Fica um pouco no velório
E vai embora, o finório.
Soneto daquilo que o poeta é
O poeta é aquele pamonha
Que, enquanto os homens normais
Vivem, se desmancha em ais
E apenas vive o que sonha.
O poeta é aquele cretino
Que, para os jovens casais
Que dançam danças sensuais,
Canções toca em seu violino.
O poeta é aquele coitado
Que, tendo sido enjeitado
E sofrido hipocrisia,
Mesmo morto e sepultado,
O nome do ser amado
Docemente balbucia.
Que, enquanto os homens normais
Vivem, se desmancha em ais
E apenas vive o que sonha.
O poeta é aquele cretino
Que, para os jovens casais
Que dançam danças sensuais,
Canções toca em seu violino.
O poeta é aquele coitado
Que, tendo sido enjeitado
E sofrido hipocrisia,
Mesmo morto e sepultado,
O nome do ser amado
Docemente balbucia.
Tevê (para o Gianluca e a Nicole)
No globo repórter
falaram de um vidente
que por saber tudo previamente
morreu antecipadamente
e enganou a morte
e no jornal nacional
falaram de um peixe pioneiro
aquele peixe
que foi o primeiro
a entrar na rede social.
falaram de um vidente
que por saber tudo previamente
morreu antecipadamente
e enganou a morte
e no jornal nacional
falaram de um peixe pioneiro
aquele peixe
que foi o primeiro
a entrar na rede social.
"Registro", de Adélia Prado
"Visíveis no facho de ouro jorrado porta adentro,
mosquitinhos, grãos maiores de pó.
A mãe no fogão atiça as brasas
e acende na menina
o nunca mais apagado da memória:
uma vez banqueteando-se, comeu feijão com arroz
mais um facho de luz. Com toda fome."
(De Poesia reunida, Editora Siciliano.)
mosquitinhos, grãos maiores de pó.
A mãe no fogão atiça as brasas
e acende na menina
o nunca mais apagado da memória:
uma vez banqueteando-se, comeu feijão com arroz
mais um facho de luz. Com toda fome."
(De Poesia reunida, Editora Siciliano.)
sexta-feira, 4 de setembro de 2015
Soneto do pragmatismo do amor
O amor nestes tempos é
Dotado de senso prático
E em ser preciso e pragmático
Consiste toda sua fé.
Inflexível, ele não
É mais, como antigamente,
Generoso, complacente,
Não tem dó nem compaixão.
Como ele mudou. Agora
Tudo rápido encaminha,
Nada mais ultrapassa a hora.
Não enrola, não empata.
Hoje ele abraça e acarinha,
Amanhã sufoca e mata.
Dotado de senso prático
E em ser preciso e pragmático
Consiste toda sua fé.
Inflexível, ele não
É mais, como antigamente,
Generoso, complacente,
Não tem dó nem compaixão.
Como ele mudou. Agora
Tudo rápido encaminha,
Nada mais ultrapassa a hora.
Não enrola, não empata.
Hoje ele abraça e acarinha,
Amanhã sufoca e mata.
Soneto dos que sonham com coisas preciosas
Os nossos olhos mortais
Que tanta miséria viram
Agora somente aspiram
A ver cenas celestiais.
Nunca mais aceitaremos
Como aceitávamos antes
Esses roteiros maçantes
Nos quais sempre nos movemos.
Esqueceremos a vida
Como foi por nós vivida
E o mundo tolo também.
Nos deixaremos dormir,
Nos deixaremos partir,
Para o céu e para além.
Que tanta miséria viram
Agora somente aspiram
A ver cenas celestiais.
Nunca mais aceitaremos
Como aceitávamos antes
Esses roteiros maçantes
Nos quais sempre nos movemos.
Esqueceremos a vida
Como foi por nós vivida
E o mundo tolo também.
Nos deixaremos dormir,
Nos deixaremos partir,
Para o céu e para além.
Um trecho de "Os sofrimentos de Werther", de Goethe
"Não, não me engano! Leio-lhe nos olhos o sincero interesse que a minha pessoa e a minha sorte lhe merecem... Sim, sinto-o... e nesse ponto não se ilude o meu coração. Sinto-o - devo eu pronunciar essa palavra que me abre as portas do céu? - sinto que ela me tem amor!"
(Tradutor não mencionado, publicação da W.M. Jackson Editores.)
(Tradutor não mencionado, publicação da W.M. Jackson Editores.)
quinta-feira, 3 de setembro de 2015
Soneto de quem escolheu morrer por amor
Como é ridículo o drama
De quem, podendo escolher
Mil e um modos de morrer,
Escolhe morrer porque ama.
Se ao menos fosse decente,
Procedesse com lisura
E tivesse a compostura
De morrer honestamente!
Mas não. Em vez de com tiros
Quer matar-se com suspiros
E não para de chorar.
Diz que morrer hoje vai
Ou amanhã. Porém, ai!,
Não há meio de acertar.
De quem, podendo escolher
Mil e um modos de morrer,
Escolhe morrer porque ama.
Se ao menos fosse decente,
Procedesse com lisura
E tivesse a compostura
De morrer honestamente!
Mas não. Em vez de com tiros
Quer matar-se com suspiros
E não para de chorar.
Diz que morrer hoje vai
Ou amanhã. Porém, ai!,
Não há meio de acertar.
Sonho
Ele estranhou quando o médico, um sessentão educado e pernóstico, depois de examinar as chapas disse: "Fodeu."
Desempenho
Saiu da cama arranhado, manuseado, lambido, mordiscado, com a convicção de que poderia ter feito melhor. Abriu a janela e contemplou a noite. Se fosse dia, o sol zombaria dele.
Bacanal
As coxas aos comilões,
As tetas aos comedores,
Os gozos aos gozadores,
Bananas aos bobalhões!
As tetas aos comedores,
Os gozos aos gozadores,
Bananas aos bobalhões!
Aviso
Rapazes, cuidado com ela!
Sei muito bem como é dura
E ingrata a literatura.
Jamais caiam na esparrela.
Sei muito bem como é dura
E ingrata a literatura.
Jamais caiam na esparrela.
Um trecho de Rubem Fonseca
"A pessoa quando lê um livro pode ter várias reações. Pode cochilar (há quem leia apenas na cama, duas ou três páginas, para ter sono e dormir), pode se divertir, aprender, criar, sonhar. Mas pode também ter reações como se emocionar sem saber bem por quê, ou ficar perplexa, na dúvida se é cinza ou preto; ou não entender, mas sentir, com admiração, que há algo sendo dito. Ou coçar a cabeça e perguntar-se, espantada, 'Que diabo é isto?'"
(De O romance morreu, publicação da Companhia das Letras.)
(De O romance morreu, publicação da Companhia das Letras.)
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
Compromisso
Que madrasta é a minha sorte.
O meu único motivo
Para permanecer vivo
É aprontar-me para a morte.
O meu único motivo
Para permanecer vivo
É aprontar-me para a morte.
Se
Os que o amor derrotou contam às vezes versões feitas de parágrafos longos, todos começados com a palavra se, ao fim das quais ostentam sorrisos que alguém, descuidado, atribuiria aos vencedores.
Mario Quintana
Em Mario Quintana era tão forte o apelo da poesia que até o cigarrinho na mão esquerda, à noite, se dava fumaças de vaga-lume.
A batalha
Tão frágil sou
tão fosco
tão fraco
tão baço
tão opaco
Não tenho mais sangue
nem vigor
meu ímpeto morreu
meu coração secou
Por que, Senhor,
fazes tanto esforço
para matar um morto?
Posso eu, Senhor,
com este corpo
arruinado e oco
enfrentar os exércitos do Amor?
tão fosco
tão fraco
tão baço
tão opaco
Não tenho mais sangue
nem vigor
meu ímpeto morreu
meu coração secou
Por que, Senhor,
fazes tanto esforço
para matar um morto?
Posso eu, Senhor,
com este corpo
arruinado e oco
enfrentar os exércitos do Amor?
Mario Quintana
Não cometamos o exagero de dizer que, quando aparecia, Mario Quintana era mais caloroso e sorridente que o sol. Mas que empatava, empatava.
Minuto 1
Todo homem deve saber
Que, assim que nasce, começa
A contar, lento ou depressa,
O seu tempo de morrer.
Que, assim que nasce, começa
A contar, lento ou depressa,
O seu tempo de morrer.
Bula
De todos os efeitos funestos que o uso continuado do amor pode trazer, a morte mais excita do que desestimula.
"Composição", de Mariana Ianelli
"A lenta e refinada arte
De fazer um adágio -
Extrair o peso a cada pedra
E ver mais alto o edifício
A cada coisa abandonada
A cada rosto de si mesmo perdido -
Esse edifício transparente e musical
Onde se vê um pássaro sobre ruínas."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
De fazer um adágio -
Extrair o peso a cada pedra
E ver mais alto o edifício
A cada coisa abandonada
A cada rosto de si mesmo perdido -
Esse edifício transparente e musical
Onde se vê um pássaro sobre ruínas."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
terça-feira, 1 de setembro de 2015
Mario Quintana
Pode ser Mario Quintana Poeta, ou Quintana Mario Poeta, ou Poeta Quintana Mario, ou qualquer outra variação, desde que nela se subentenda a palavra Passarinho.
Mario Quintana
Mario Quintana era um desses alegres que, desconhecendo a avareza espiritual, se dão inteiros, como o passarinho que, tendo aprendido a gorjear, não quer interromper o canto, temendo que a magia nunca se repita.
Pensar
Pensar que certa manhã ele chamou de meu sol essa mulher que ontem escancarou rispidamente a porta e lhe ordenou: "Sai!" Pensar que ela não se comoveu com as lágrimas dele e o empurrou: "Sai!" Pensar que, ao ser assim enxotado para a rua sob um convicto meio-dia, ele pôde fazer mais uma vez a comparação e, embora inutilmente, dizer à mulher, que já batia a porta: "Meu sol!"
"Fruto caído", de Mariana Ianelli
"Um dia uma paragem
Um rendilhado de sombras
Uma fonte na canção das folhas
E nada mais tem a cor do luto -
Um dia um fruto caído
O licor ungido na língua
O sangue fabricando amor
A morte é um escarlate súbito."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Um rendilhado de sombras
Uma fonte na canção das folhas
E nada mais tem a cor do luto -
Um dia um fruto caído
O licor ungido na língua
O sangue fabricando amor
A morte é um escarlate súbito."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Cotação do dia
Ele fechou os olhos e confiou cegamente no amor. Hoje, quando anda pela rua, sua bengala toca pedrinhas baças que antes lhe pareciam de ouro.
Fraude
Viver tanto para descobrir que mesmo aquele momento tão antigo em sua vida, aquela manhã dezembrina de esplendor único, talvez tenha sido fruto apenas de um perseverante e tendencioso trabalho da memória.
Enterro
Antes de colocar a tampa na caixa de sapatos, a menina diz à mãe: "Olha como ele ficou bonito com essas flores. Não parece que ele vai miar?"