quinta-feira, 30 de novembro de 2017
Latinista
Que acontecimento foi! Aquele fotógrafo chato e pernóstico voltando de uma viagem ao Xingu ansioso para exibir suas imagens de índios in natura...
História
O chato mal informado nos esclarece que o padre Manuel da Nóbrega, nos seus últimos tempos, andou pela televisão.
Hierarquia
Entre os participantes de uma festa, os chatos estão na categoria das surpresas desagradáveis.
Audácia!
O chato que presume ser engraçado nos convida para almoçar e, dizendo estar sem mantimentos, sugere que levemos para a casa dele nossa gata mais gorda.
Sem hora para acabar
Todos já foram embora há duas horas e meia, mas o chato, que nem parente é, continua a beber nosso uísque, sob o argumento de que a noite ainda é uma criança.
Desde cedo
É um aprendiz de chato o menino que, vendo o coelho sair da cartola, acusa o mágico: "É truque!"
Intimidade
O chato que pretende passar por erudito menciona o Padre Vieira como se tivesse sido batizado por ele.
Modo de ser
Assim como se diz de um líder, um defunto não deve impor respeito; deve conquistá-lo aos poucos.
Memória
Às vezes a melhor impressão que temos de um morto é a caixa de bombons que ele nos dava há duas décadas.
Aparência
A mulher, zelosa das tradições familiares, mexe nos lábios do marido morto, para desacertar o que parece um sorriso irônico.
Rotina
Com o tempo, os padecimentos de um mártir começam a parecer normais, e é preciso inventar para ele suplícios mais convincentes.
Trovinha (para Rose Marinho Prado)
Para os românticos,
um pastel de vento;
para os concretistas,
um de cimento.
um pastel de vento;
para os concretistas,
um de cimento.
In corpore sano
O chato metido a atleta quer a todo custo nos arrastar até o Ibirapuera para um cooper e certamente se ofenderá se lhe perguntarmos o que é cooper.
Para ser
Empenhou-se a vida inteira para ser reconhecido como humorista. Morreu, e quem hoje ainda fala dele diz: era um gaiato, não era mesmo?
Reputação
Justiça seja feita: de um morto se pode dizer quase tudo, menos que é chato, se bem que...
Conselheiros
Os chatos sempre sabem o que é melhor para nós - desde a marca de miojo até o roteiro das férias.
Clubístico (para Paulo Roberto Unzelte)
Lembro-me de um chato futebolístico que na minha infância tentou me convencer a ser torcedor da Portuguesa.
Prudência
Nunca se apresse em dar dez a um chato. Nessa área, como em todas as outras, sempre podem aparecer surpresas.
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
No meu futuro estado
Pode ser que morto eu suma
pode ser que não.
No meu futuro estado
talvez você volte a me ver
(com prazer ou desprazer)
um tantinho modificado
pálido fantasmagórico definhadinho
na casa verde no limão
ou na irrepetível major quedinho.
pode ser que não.
No meu futuro estado
talvez você volte a me ver
(com prazer ou desprazer)
um tantinho modificado
pálido fantasmagórico definhadinho
na casa verde no limão
ou na irrepetível major quedinho.
Por que não?
Quando o chato vai embora, nós nos arrependemos de não ter mandado um abraço àquela senhora que o abrigou nove meses no ventre.
Oratória
Mesmo nas reuniões de condomínio, o chato empolado, antes de tratar dos assuntos da pauta, faz uma saudação às autoridades civis, militares e eclesiásticas.
O teste
Um chato, antes de ler seu discurso de duas horas e meia, levou dezessete minutos mexendo no microfone: "Alô, testando, um dois, três, alô, alô, alô."
Birrento
Chato é aquele que, no meio de uma conversa que se transforma em debate, passa a acreditar em Deus só para nos contrariar.
A salvação
Um chato (qualquer chato) só não salva o mundo porque não lhe dão atenção, embora há muito tempo ele tenha uma teoria que tenta e continuará tentando expor até o último dos dias de sua vida, longa como costuma ser a vida de todos os chatos.
Acepção (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Chamar um trocadilho de infame é quase sempre um pleonasmo.
Infelizmente não
Depois que os chatos vão embora, as festas poderiam melhorar muito, se eles não fossem invariavelmente os últimos a sair.
Nariz empinado
O chato esclarecido nos trata como se fôssemos um daqueles que não acreditam na história de o homem ter ido à Lua. Além, claro, da certeza que tem de não sabermos quem foi Gramsci.
Experiência
O chato desmemoriado é o que nos chama hoje de Lucas e amanhã de Lúcio, e nas duas vezes nos toma dinheiro emprestado.
Da família
Se um chato nos diz que é nosso parente, é bom concordar logo, antes que ele comece a provar.
Prova
Um chato é uma prova de que qualquer história pode piorar, ainda que contada pela vigésima ou trigésima vez pelo mais perfeccionista dos narradores.
Questão de memória
O problema é que os chatos nunca se lembram hoje do que nos contaram ontem ou anteontem.
Datadas
As novidades que o chato tem para nos contar costumam ser da década de 1980 ou antes. Quantas vezes ele já tentou nos informar sobre a renúncia do Jânio?
Cota
Em quinze minutos um chato esgota nosso estoque anual de paciência e nos faz pensar seriamente no que podemos ter feito na encarnação passada.
Melhor assim
Há também o chato que vive nos perguntando: lembra daquilo que você fez? E, embora não tenhamos ideia do que que ele fala, dizemos que sim, para evitar lembranças desagradáveis.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
Perfeccionista
Terrível é aquele chato que se orgulha de ser e está sempre procurando se aperfeiçoar.
Poliglota
Um chato é capaz de dialogar com suas vítimas em pelo menos três idiomas, sem contar o inglês.
Caminho
Por coincidência, como eles dizem, os chatos estão sempre indo para onde vamos nós, ainda que não estejamos indo a lugar nenhum.
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
Precipitação
Quem pela primeira vez usou a expressão sejam todos bem-vindos era certamente de um tempo em que ainda não havia chatos.
Desde criancinha
E há aquele chato que para nos convencer de que foi criança tira da gaveta o álbum de fotos.
Oratória
O chato é aquele que nos almoços de confraternização pede o microfone para dizer algumas singelas porém sinceras palavras.
Sabichão
Um chato está sempre disposto a nos explicar novamente a causa da inclinação da Torre de Pisa.
Tática
A poesia nos faz pensar que somos melhores do que somos. A questão, depois, é convencer os outros.
Pecados meus
Rir me faz mal, o humor me constrange. São traições contra a minha alma. Quando as cometo, eu me pergunto por que me submeti mais uma vez à tentação. Devo permanecer fiel à minha tristeza.
Bem-informado
Um chato sempre sabe o nome daquele primo nosso que foi preso contrabandeando no Paraguai.
Lembrança colegial
Um chato sempre sabe o nome daquele professor que nos deu nota zero na prova de redação em mil novecentos e nada.
Gershwin
Se um chato nos aborda na rua, se passar por ali a mais tonitruante e descompassada banda escolar nós a receberemos com aplausos e lágrimas de gratidão.
domingo, 26 de novembro de 2017
CV
O curriculum vitae de um chato tem sempre, além das vinte e tantas páginas de praxe, outras tantas de adendos.
Dúvida
Um chato sempre nos faz pensar naquela história de o homem ter sido criado à imagem e à semelhança de Deus.
Tarde demais
De repente, o escritor se descobriu tão velho que não tinha mais tempo de melhorar sequer dois adjetivos no seu necrológio.
Uma esquina depois
As melhores respostas são aquelas que só nos ocorrem depois que o efeito das perguntas já passou.
Pleno direito
Ninguém dirá, vendo um gato escarrapachado num sofá, que ele não merece o sono que tem.
Comodista
O adjetivo próspero merece ser assim chamado: dá uma aparecidinha em dezembro, regala-se nas festas e depois tira onze meses de férias.
Agrados
Se não tratarmos bem nossa memória, se não a bajularmos, se não lhe dermos ocasionalmente uma gorjetinha, o que ela dirá de nós?
Início de "O marechal de costas", de José Luiz Passos
"Absolutamente tudo, as conchas, uma flor que se abre, a maré sulcando a areia na praia, traz de volta a Floriano a imagem de uma vagina."
(Edição da Alfaguara.)
(Edição da Alfaguara.)
sábado, 25 de novembro de 2017
Faro policial
Um chato desconhecido conversa cinco minutos com a gente e já descobre que estamos sem emprego e divorciados.
Talento
Ninguém melhor que um chato para contar pela décima vez uma piada na mesma noite sem mudar uma vírgula.
Coluna um
O lugar vago ao nosso lado, numa viagem de São Paulo ao Quinto dos Infernos, será certamente ocupado por um chato que chegará no último minuto e nos pedirá a janelinha.
A questão
Podemos não odiar aqueles que nos ensinaram a temer a morte só para que continuássemos a participar de sua vida mesquinha?
Poeminha lírico-gramatical (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)
De todos, você é meu maior bem.
Não há nada nem ninguém
Que mais do que você me impacte.
Eu a admiro e adimiro,
Com suarabácti e sem suarabácti.
Não há nada nem ninguém
Que mais do que você me impacte.
Eu a admiro e adimiro,
Com suarabácti e sem suarabácti.
Quem?
Quem há de, estando em seu juízo
E sob o império do amor,
Trocá-lo pelo que for?
O amor é inferno e paraíso.
E sob o império do amor,
Trocá-lo pelo que for?
O amor é inferno e paraíso.
Etiqueta
Melhor falar agora dos mortos, para não causar constrangimento quando eles e eu formos colegas.
Início de "A resistência", de Julián Fuks
"Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado. Se digo assim, se pronuncio essa frase que por muito tempo cuidei de silenciar, reduzo meu irmão a uma condição categórica, a uma atribuição essencial: meu irmão é algo."
(Companhia das Letras.)
(Companhia das Letras.)
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Nó no cérebro (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
A gramática nos confunde tanto, com suas normas e contranormas, que numa granja, há algum tempo, se lia numa tabuleta: "Vendem ovos-se."
Aquela sensação (para Djanira Pio)
Não há estreante que sinta mais frio na barriga do que um defunto.
Final de uma mensagem no face
Desta nossa relação
Como manter o entusiasmo?
Nunca tive uma ereção,
Jamais tiveste um orgasmo.
Como manter o entusiasmo?
Nunca tive uma ereção,
Jamais tiveste um orgasmo.
O pior
Na velhice o pior
Não é perder o nexo.
É ver aquela cara no espelho
E aguentar a zombaria do sexo.
Não é perder o nexo.
É ver aquela cara no espelho
E aguentar a zombaria do sexo.
A forma
A melhor forma de morrer de amor ainda é aquela romântica: dando mil e um suspiros antes do suspiro final.
Quatro versos de Emily Brönte
"Oh! deixe-me morrer... e que logo se acabe
A terrível disputa entre o corpo e a alma.
Que o mesmo Sono para sempre absorva
A derrota do bem e o mal triunfante!"
(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)
A terrível disputa entre o corpo e a alma.
Que o mesmo Sono para sempre absorva
A derrota do bem e o mal triunfante!"
(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)
No fim
No fim, você não se faz mais aquelas perguntas que o homem há milênios vem repetindo. E arrepende-se do tempo que perdeu ao fazê-las.
Um pouco mais
Cada um de nós já sentiu, numa noite qualquer, que para morrer de tristeza nos bastaria só um pouco mais de merecimento e convicção.
Tema
Falar de amor ainda é válido para qualquer poeta. Certas antiguidades nunca perdem completamente o encanto.
O máximo
Ainda que venham a chamá-lo de ridículo, seja estuporadamente exagerado nas emoções, ou é melhor renunciar a todas.
Possibilidade (para Ana Clara Beauvoir)
Se às vezes você pensa que morrerá de amor, pode ser, sim, mais um desses venturosos casos de predestinação.
Definição (para Ana Farrah Baunilha)
Morrer de amor há de ser um processo lento, doloroso e honesto.
Pela beleza
Pela beleza façamos tudo.
Se para a merecermos for preciso
Que ela pense sermos o que não somos,
Sejamos tudo que ela pensar
E, se for preciso mais,
Não hesitemos. Mintamos.
Se para a merecermos for preciso
Que ela pense sermos o que não somos,
Sejamos tudo que ela pensar
E, se for preciso mais,
Não hesitemos. Mintamos.
Estações
Sim, era essa a palavra.
Ela reinou tão gloriosa
Que pareceu única,
E foi, e era,
Até morrer no verão.
Outono e inverno
Minhas palavras agora são.
Ela reinou tão gloriosa
Que pareceu única,
E foi, e era,
Até morrer no verão.
Outono e inverno
Minhas palavras agora são.
Hoje no portal do Estadão
Homenagem a um herói do meu bairro.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/meu-vila-morais/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/meu-vila-morais/
quinta-feira, 23 de novembro de 2017
Conceito
É uma ideia antiquada, e talvez por isso é que eu a aprecie tanto: a poesia sempre tem algo de sagrado.
Cotejo
Aos suspiros das donzelas
só se equiparavam os dos poetas românticos
quando apaixonados por elas.
só se equiparavam os dos poetas românticos
quando apaixonados por elas.
Aquela história antiga
Os melhores frutos são os que não chegamos a colher ou aqueles que estiveram em nossa mão um momento antes de nos serem furtados.
Na medida (para Celina Portocarrero e Jiro Takahashi)
A sabedoria de um haicai está em ser rápido o suficiente para não dar chance nenhuma à retórica.
Manuseio
Nos livros policiais
o mais marcante
na primeira página e nas demais
são as impressões digitais.
o mais marcante
na primeira página e nas demais
são as impressões digitais.
A tirana (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Soberba em sua onisciência,
a gramática não tem
boa vontade, paciência,
nem piedade por ninguém.
a gramática não tem
boa vontade, paciência,
nem piedade por ninguém.
Anfiguri (para Celina Portocarrero)
Um dos dois moinhos gigantes
chamava-se Miguel;
o outro, Cervantes.
chamava-se Miguel;
o outro, Cervantes.
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
Versatilidade
Shakespeare escrevia também textos cômicos, quando estava sem inspiração para tragédias.
Atuação
Não se deve exigir demais de um morto. Seja ele quem for, convém lembrar que se trata sempre de um estreante.
Revelação
A família de certos defuntos só fica sabendo quem eles na verdade foram quando, no velório, recebe mais parabéns do que condolências.
Obviedade
Pesando a questão bem pesada
e sendo bem realista,
melhor ser niilista
do que não ser nada.
e sendo bem realista,
melhor ser niilista
do que não ser nada.
Soneto da razão e dos seus efeitos
Quer a tenhamos, quer não,
Tudo de que nos gabamos
E tudo que lastimamos
Atribuímos à razão.
Em tudo quanto fazemos
Garantimos tê-la usado
E como guia tomado,
Acertemos ou erremos.
Quem há de nos acusar,
Quem irá nos culpar,
Quem será tão inclemente?
No mundo não há ninguém,
Como nós, que erre tão bem
E tão conscienciosamente.
Tudo de que nos gabamos
E tudo que lastimamos
Atribuímos à razão.
Em tudo quanto fazemos
Garantimos tê-la usado
E como guia tomado,
Acertemos ou erremos.
Quem há de nos acusar,
Quem irá nos culpar,
Quem será tão inclemente?
No mundo não há ninguém,
Como nós, que erre tão bem
E tão conscienciosamente.
terça-feira, 21 de novembro de 2017
Sabedoria (para Rose Marinho Prado)
Wislawa Szymborska disse bem: o que falta a todos nós, em qualquer tempo, é sempre a juventude.
Atração
Bem na hora do recreio, o prodígio saudado pelos alunos do jardim de infância com respingos de saliva e sanduíche: "Viva o arco-íris!"
Cobrança
A mulher, encarando com severidade o defunto: "Se era para morrer de enfarte, por que você não foi naquele primeiro, em 1998? 1998, Arlindo! Eu tinha o quê? Cinquenta e... Me deixe calcular."
Especialista
Uma sobrinha do defunto, editora de moda de uma revista, deu uma espiada nele, franziu o nariz e o definiu: passável.
Simplicidade
A única qualidade que se exige de um defunto é a resignação. Um terno decente também ajuda.
segunda-feira, 20 de novembro de 2017
Engano (para Alfredo Aquino)
Depois que me meti a escrever, nunca mais achei fascinante a vida de escritor.
Mártires (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Quem odeia as crases não conhece a história daquelas abnegadas que vivem à margem e morrem à míngua.
Má-fé
Os passarinhos ainda não descobriram que, quando um poeta os recruta, geralmente é para cantarem de graça e morrerem no último verso.
Contágio (para Henrique Fendrich)
Seguindo o mau exemplo do defunto, duas de suas tias velhas começaram a cochilar.
Temperamento
A mulher no velório, elogiando o defunto: "Toda a vida ele foi assim tranquilo. Sempre na dele."
Bônus
Nos velórios pobres, a maior vantagem dos defuntos é estarem livres do cafezinho da garrafa térmica.
Versão
A literatura é só uma ocupação à qual eu finjo me dedicar desde o dia em que descobri que não tinha nada a fazer.
A Morte e Romeu
Quando a Morte chamou Romeu,
Romeu à janela chegou
E desastradamente respondeu:
"O Romeu não estou."
Romeu à janela chegou
E desastradamente respondeu:
"O Romeu não estou."
Frutos (para Ana Farrah Baunilha e Silvana Guimarães)
Ah amores adolescentes -
aquelas uvas, aquelas maçãs,
aquelas línguas, aqueles dentes.
aquelas uvas, aquelas maçãs,
aquelas línguas, aqueles dentes.
Assim é (para Ana Clara Beauvoir)
Qualquer que seja o vício,
ele sempre parece
muito melhor no início.
ele sempre parece
muito melhor no início.
Parnaso (para Celina Portocarrero)
Para chegar com bom hálito ao céu, o poeta morreu mastigando rosas.
Aprendizado (para Rosa Marinho Prado)
Um poeta começa mentindo a si mesmo. É a mais difícil etapa do seu aprendizado.
Joint-venture (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Planejando cacofonias
constituíram sociedade
Carlos Rodolfo Dias
e Zuleica Garcia de Andrade.
constituíram sociedade
Carlos Rodolfo Dias
e Zuleica Garcia de Andrade.
Henry Miller no "Trópico de Câncer"
"Elza está sentada no meu colo. Seus olhos são como pequenos umbigos. Contemplo-lhe a grande boca, tão úmida e brilhante, e cubro-a. Agora ela está cantarolando ... "Es waer so schoen gewesen..." Ah, Elza, você não sabe o que isso significa para mim, seu Trompeter von Säckingen. Sociedades alemãs de Canto, Schwaben Hall, o Turnverein... links um, rechts um... e depois uma batida na bunda com a ponta de uma corda."
(Tradução de Aydano Arruda, publicado pela Ibrasa.)
(Tradução de Aydano Arruda, publicado pela Ibrasa.)
domingo, 19 de novembro de 2017
Vício (para Rose Marinho Prado)
Alguns políticos, ainda que mortos, se metem a discursar, sempre naquele mau português.
Esperteza
Ao ver que a Morte o chamava,
Romeu à porta atendeu
E disse a ela que Romeu
Na casa já não morava.
Romeu à porta atendeu
E disse a ela que Romeu
Na casa já não morava.
O predileto (para Aden Leonardo, Arlene Colucci, Arlete Franco e Tuca Kors)
Se eu fosse um gato, seria
De todos os que você tivesse -
Sete ou setenta e sete -
O que você preferiria.
De todos os que você tivesse -
Sete ou setenta e sete -
O que você preferiria.
Declaração de princípios
Me dá azia a filosofia.
De pensar, morreu um burro.
Eu, por mim, rumino e zurro.
De pensar, morreu um burro.
Eu, por mim, rumino e zurro.
Hoje na revista Rubem eu...
... trato da morte e de outras ocorrências.
https://rubem.wordpress.com/2017/11/19/a-morte-e-outras-ocorrencias-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2017/11/19/a-morte-e-outras-ocorrencias-raul-drewnick/
Projeto
Se eu me pusesse a latir
E me esmerasse em pulinhos,
Você não, mas os vizinhos
Talvez viessem me acudir.
E me esmerasse em pulinhos,
Você não, mas os vizinhos
Talvez viessem me acudir.
Empáfia
Chegamos à literatura outro dia. Aprendemos alguma coisa. Já sabemos, por exemplo, que não é de uma hora para outra que surge um Shakespeare, se bem que...
Início de "Nostromo", de Joseph Conrad
"Ao tempo do domínio espanhol, e durante muitos anos depois, a cidade de Sulaco - a beleza luxuriante dos laranjais atesta-lhe a antiguidade - jamais tinha sido mais importante comercialmente do que um porto de cabotagem com um razoável entreposto de couros de boi e anil. As habituais calmarias de seu vasto golfo haviam afastado dali os desajeitados galeões de longo curso usados pelos conquistadores, que para se moverem exigiam apenas que o vento soprasse de rijo; um navio moderno, com perfil de clíper, avança rapidamente a um simples drapejar de velas."
(Tradução de Donaldson M. Garschagen, publicado pela Record.)
(Tradução de Donaldson M. Garschagen, publicado pela Record.)
sábado, 18 de novembro de 2017
Regulamento
Se, esteja onde estiver, em dez minutos um poeta não mencionar a palavra amor, deverá ser obrigado a apresentar seu crachá.
O velho
Chega o dia no qual o velho, descrendo já irremediavelmente da literatura, da vida e da esperança, morreria sem queixa. Você tem pena, mas não pode fazer nada por ele. O velho é você.
Uns e outros
Os poetas antigos gabavam-se de sua intimidade com as flores e as estrelas. Os modernos fingem não conhecê-las.
sexta-feira, 17 de novembro de 2017
MM
"A Marilyn Monroe era uma delícia. Como uma taça de champanhe", exemplifica o velho poeta, dando um gole satisfeito e babando guaraná em sua gravata parnasiana.
Belle époque
O velho poeta suspira quando se refere às estrelas de Hollywood da década de 1960. E discorre sempre sobre a tese segundo a qual, para homenageá-las como mereciam, também as rosas e os diamantes dessa época foram os mais preciosos de todos os tempos.
Sobre a inutilidade (para Silvana Guimarães)
Esperar é um dos verbos que já não me dizem nada. Tudo em que haja uma insinuação de esperança é hoje incompatível comigo, como o apelo do menino indiano que vai morrer amanhã e a canção pousada no bico de um passarinho empalhado.
Rima de ouro (para Rose Marinho Pado)
O supremo feito do preciosismo poético foi alcançado por Júlio Salusse, quando rimou cisne com tisne.
Frutos
Provei apressadamente demais os frutos da juventude. Não me lembro do esplendor e do gosto que tinham, e os adjetivos com que tento reavivá-los me soam falsos e ineptos como soa tudo mais em minha amarga velhice.
Criação
Ouvindo qualquer romancista explicar seu processo de criação, fica-se imaginando como Deus conseguiu fazer tudo aquilo que Lhe atribuem.
Frase de Guimarães Rosa
"Mas, com o comum correr cotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito."
(De Primeiras estórias, publicado pela Nova Fronteira.)
(De Primeiras estórias, publicado pela Nova Fronteira.)
quinta-feira, 16 de novembro de 2017
Por pouco (para Rose Marinho Prado)
O concretismo quase cumpriu seu objetivo de fazer a poesia retroceder à era da pedra lascada.
Saudade
Saudade do tempo em que, ainda não viciado pela literatura, eu podia dizer simplesmente: estou cansado. Assim, sem adjetivos nem advérbios.
Representante
Um gato, seja o tempo qual for, e esteja onde estiver, sempre responderá pela beleza, se perguntarem por ela.
Noviciado
Cheguei a acreditar que tivesse algo a dizer. Eu era um menino, então, tolo como todos foram em todos os tempos.
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
Abjeção
Ter a literatura como passatempo nos dá engulhos quando lembramos tantos escritores que se consumiram por ela.
O pesadelo
A literatura só lhe deixou pesadelos. Num dos mais frequentes, ele está à mesa. No prato, uma rosa. Ele a apanha e enfia na boca murcha. Morde-a, engole-a. Sente gosto de sangue. Pega o guardanapo e imprime nele o desenho de seus lábios de vampiro.
Ouropéis
O que há de pior nas frases de efeito é poderem dar a impressão de que a literatura deve concentrar-se em produzir esses brinquinhos que brilham por um instante nas mãos dos vendedores de bijuteria.
Contagem
Se formos falar em cicatrizes
tenho meia dúzia e tantas
mais muitas que não contei
e outras tantas das quais escapei
por apenas alguns trizes.
tenho meia dúzia e tantas
mais muitas que não contei
e outras tantas das quais escapei
por apenas alguns trizes.
Paraíso (para Luiz Roberto Guedes)
Sonho, certas noites, com salas embriagadas de ópio. Sou estranhamente jovem, nos sonhos, e neles surgem, desnudamente angelicais e demoniacamente despidas, virgens com tranças de ouro.
Direito (para Mariana Ianelli)
Seja de qual escola for o poema, sempre deve haver espaço nele para uma flor.
Para sempre (para Silvana Guimarães)
Se você alguma vez lidou com a poesia, ainda que apenas como leitor relutante, sempre haverá quem descubra isso, anos depois, pelo modo de você olhar para uma rosa, ou de ela olhar para você.
Cicatriz (para Celina Portocarrero)
A poesia há de permanecer em alguma parte do nosso corpo, mesmo que só nós saibamos onde ela está, como um daqueles sinais que cada um de nós guarda para provar que foi menino um dia e andou descuidadamente de bicicleta.
A lei (para Marisa Lajolo)
Até a retórica abandona os cães velhos. Há muito não lato para as caravanas.
Camões, por que não?
"Tu só, tu, puro Amor, com força crua
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano."
(Os lusíadas, canto III, Livraria Figueirinhas, Porto.)
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano."
(Os lusíadas, canto III, Livraria Figueirinhas, Porto.)
terça-feira, 14 de novembro de 2017
Estorvo
Os mais detestáveis fantasmas são aqueles que, por diferença de fuso horário ou desvio de caráter, nos aparecem no café da manhã, com bafo de uísque e fome de mil leões.
Utilidade redescoberta
Quando o fantasma o acordou de madrugada e disse chamar-se Bill, ele, com um gesto, lhe pediu que esperasse e abriu o criado-mudo para pegar o manual de conversação em inglês.
Cautela
Siga o Diabo, mas nunca se deixe levar por pessoas que dizem amar o vernáculo. São capazes de chamá-lo de xucro e de açoitá-lo na primeira esquina, por causa de um pronome mal colocado.
Horror
À meia-noite, na casa adormecida, a galinha sem pescoço começa a berrar, na natureza-morta da sala.
É o que é
Convém dar o nome certo às coisas. Sempre que a gramática nos chama para conversar, já sabemos: lá vem aporrinhação.
Camus relatando sua chegada ao Rio em 1949
"A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o Pão de Açúcar, com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lamentável Cristo luminoso."
(Tradução de Valerie Rumjanek Chaves, publicado pela Record.)
(Tradução de Valerie Rumjanek Chaves, publicado pela Record.)
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
Uma pitada de Guimarães Rosa
"Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era lindo! - tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria."
(De Primeiras estórias, Nova Fronteira.)
(De Primeiras estórias, Nova Fronteira.)
Cárcere
Quando a língua de sua torturadora estalava, ele deixava a pele abrir-se como uma flor à chuva.
Sintonia fina
Havemos de ter tal entendimento com o Amor que só o morderemos com a certeza de sermos recompensados.
O preço
O Diabo, nos seus tempos de aprendiz, andou nos oferecendo riqueza. Depois descobriu que nos vendemos por menos: por uma glória qualquer, mesmo que seja uma gloriazinha municipal.
Deixe estar
Se uma frase estiver lhe parecendo boa, faça o seguinte. Proíba a entrada dos oportunistas de sempre: os adjetivos e os advérbios.
Necrológio
Com as redes sociais, não precisamos mais esperar o jornal do dia seguinte para saber qual é a opinião que temos sobre certos defuntos.
Mario Quintana (para Silvia Galant François)
Mario Quintana tinha uma cara de anjo travesso (ou diabrete?) casamenteiro.
domingo, 12 de novembro de 2017
Presente de domingo
O caderno "Aliás", do Estadão - que domingo a domingo vem mantendo a proeza de se igualar em qualidade ao pranteado "Sabático"-, traz hoje, entre outros, tão bons quanto, um gostosíssimo artigo de Paulo Nogueira sobre o mestre Nabokov.
Valor (para Antero Greco, Carlos Roberto Motta e Wagner Kotsura)
Tão bem-posto estava
o escritor no caixão
que ao menos como defunto
merecia uma reimpressão.
o escritor no caixão
que ao menos como defunto
merecia uma reimpressão.
Causa própria (para Alfredo Aquino)
Minha simpatia pelos fracos foi sempre, mais que um princípio filosófico ou uma posição literária, uma atitude de autodefesa.
Mesa-redonda (para Marcos Micheletti, Maurício Noriega e Milton Leite)
Do defunto apaixonado por futebol disseram, no velório, uns com maldade, outros com compaixão, que estava indo para a segunda divisão.
De Guimarães Rosa
"No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade."
(De Primeiras estórias, Editora Nova Fronteira.)
(De Primeiras estórias, Editora Nova Fronteira.)
sábado, 11 de novembro de 2017
O sonho
Não o mereço e provavelmente não o terei. Mas sonho com um final desses que chamam de morte de passarinho.
Classificado (para Rose Marinho Prado)
Se é conforto o que você quer,
do piso ao teto,
escolha um poema concreto.
do piso ao teto,
escolha um poema concreto.
Analfabetismo digital
Na hora de morrer,
meu medo é me enganar,
o botão errado apertar
e nada me acontecer.
meu medo é me enganar,
o botão errado apertar
e nada me acontecer.
Haicai (para Celina Portocarrero e Jiro Takahashi)
Com medo de não chegar
no meio do caminho
resolveu voltar.
no meio do caminho
resolveu voltar.
Mario Quintana (para Silvia Galant François)
Subitamente apaixonado, e querendo impressionar a amada com o antigo truque da poesia, ele, depois de naufragar em meia dúzia de tentativas, fez o mesmo que tantos jovens já há algumas décadas: furtou Mario Quintana.
Reflexão de Albert Camus
"Tristeza por sentir-me ainda tão vulnerável. Daqui a 25 anos, terei 57. Portanto, 25 anos para fazer a minha obra e encontrar o que procuro. Depois, a velhice e a morte. Sei qual é o mais importante para mim. E encontro, ainda, o meio de ceder às pequenas tentações, de perder tempo em conversas vãs ou passeios estéreis. Dominei duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade de que tanto necessito."
(De Diário de viagem, tradução de Valerie Rumjanek Chaves, publicação da Record.)
(De Diário de viagem, tradução de Valerie Rumjanek Chaves, publicação da Record.)
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
Cotação do dia (para Angela Brasil)
A minha é a alma de um lacaio. Submissa, complacente, serviçal. Se ninguém a lanceta, a espeta, a violenta, eu tenho o ímpeto de perguntar a Deus: por quê? Nasci para as derrotas e para o menosprezo que as acompanha. Fui feito para servir bebida aos vitoriosos, elegantemente apoiado em minhas patas de trás.
Hoje no portal do Estadão
Falo de pastéis, legumes, frutas e de assobios.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/que-bom-e-assobiar/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/que-bom-e-assobiar/
quinta-feira, 9 de novembro de 2017
quarta-feira, 8 de novembro de 2017
Sentido oculto (para Rose Marinho Prado)
Tratando-se de literatura, e especialmente de poesia, o leitor deve estar disposto a supor que, se uma palavra, uma frase, uma página, e até um livro inteiro parecerem sem sentido, talvez nisso mesmo estejam sua beleza e seu significado.
Início de "Para você não se perder no bairro", de Patrick Modiano
"Quase nada. Como uma picada de inseto que parece bem fraca no começo. Ao menos é o que você se diz, em voz baixa, para se tranquilizar. O telefone tocou por volta das quatro horas da tarde na casa de Jean Daragane, no quarto que ele chamava de 'escritório'. Tinha adormecido no sofá do fundo, para se proteger do sol. E aquela campainha, cujo som ele perdera o costume de ouvir havia muito tempo, soava ininterruptamente Por que tanta insistência? Talvez tivessem esquecido de desligar o fone do outro lado da linha. Por fim, resolveu se levantar e se dirigiu ao canto do quarto onde ficavam as janelas e o sol batia muito forte."
(Tradução de Bernardo Ajzenberg, publicação da Rocco.)
(Tradução de Bernardo Ajzenberg, publicação da Rocco.)
terça-feira, 7 de novembro de 2017
segunda-feira, 6 de novembro de 2017
Solução (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Em períodos de indecisão
nada como um sujeito determinado
e um verbo de ação.
nada como um sujeito determinado
e um verbo de ação.
Na língua
Nunca lambi estrelas
nem mordi o dorso da lua.
Para a história do palato
mofina é minha contribuição.
Na língua tenho ressaibos de rua,
de calçadas enxovalhadas,
de detergentes baratos
e de panos de chão.
nem mordi o dorso da lua.
Para a história do palato
mofina é minha contribuição.
Na língua tenho ressaibos de rua,
de calçadas enxovalhadas,
de detergentes baratos
e de panos de chão.
Uma colherada de Joseph Conrad
"Destino. Meu destino! Coisa esquisita é a vida - esse misterioso arranjo de lógica cruel para um objetivo fútil. O máximo que se pode esperar dela é algum conhecimento de si mesmo - que chega tarde demais - uma colheita de inextinguíveis arrependimentos."
domingo, 5 de novembro de 2017
De Julio Cortázar
"Dez anos depois, enquanto eu me distancio pouco a pouco de O jogo da amarelinha, uma infinidade de rapazes aparentemente chamados a estar longe dele se aproximam do risco de seus quadrados de giz e jogam a pedra em direção ao Céu. E esse céu, e isto é o que nos une, eles e eu chamamos de revolução."
(De Papéis inesperados, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, publicado pela Civilização Brasileira.)
(De Papéis inesperados, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, publicado pela Civilização Brasileira.)
sábado, 4 de novembro de 2017
O mensageiro
O amor-próprio é aquela parte de nós
aquele nosso último território
ao qual não voltaram ainda
nossos informantes com seu relatório.
Devemos estar perdendo
como estivemos sempre
mas essa parte de nós
esse território último
entre os derradeiros
julga ouvir gritos de júbilo
vindos de onde devem estar vindo
nossos retardatários mensageiros.
aquele nosso último território
ao qual não voltaram ainda
nossos informantes com seu relatório.
Devemos estar perdendo
como estivemos sempre
mas essa parte de nós
esse território último
entre os derradeiros
julga ouvir gritos de júbilo
vindos de onde devem estar vindo
nossos retardatários mensageiros.
Praga (para Cássio Mattar)
Há quantos domingos aquela ameaça (sempre concretizada) de pobreza cultural: $$ vem aí!
Memórias do cárcere
Passei os oito últimos anos aqui, recluso neste blog. No início foi não muito mais que um passatempo. Transformou-se aos poucos em um projeto literário e depois em obsessão. Todas as decepções pessoais, que exigiam respostas também pessoais, acabaram vindo para este espaço, com a minha conivência. Na tentativa de me enganar e iludir também os leitores, fui introduzindo as banalidades de minha vida aqui, como se fossem literatura. Não eram, não foram, não são. Pode falar de vida quem há oito anos vive encarcerado, escravizado por uma estapafúrdia ambição?
You do something to me
Pode alguém ouvindo Cole Porter
jurar amor se não for
jurar amor até a morte?
jurar amor se não for
jurar amor até a morte?
Ao vivo
No encontro ele descobriu que Elis
era a forma resumida de Elisabete
e que era mais bonita na internet.
era a forma resumida de Elisabete
e que era mais bonita na internet.
NY
Você me diria I love you
e como se estivéssemos
num filme antigo da metro
na quinta avenida estrondaria
a mais bela cacofonia -
rhapsody in blue.
e como se estivéssemos
num filme antigo da metro
na quinta avenida estrondaria
a mais bela cacofonia -
rhapsody in blue.
Início do conto "Miss Algrave", de Clarice Lispector
"Ela era sujeita a julgamento. por isso não contou nada a ninguém. Se contasse, não acreditariam porque não acreditavam na realidade. Mas ela, que morava em Londres, onde os fantasmas existem nos becos escuros, sabia da verdade.
Seu dia, sexta-feira, fora igual aos outros. Só aconteceu sábado de noite. Mas na sexta fez tudo igual como sempre. Embora a atormentasse uma lembrança horrível: quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam tudo para ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era."
(Do livro A via crucis do corpo, Editora Artenova.)
Seu dia, sexta-feira, fora igual aos outros. Só aconteceu sábado de noite. Mas na sexta fez tudo igual como sempre. Embora a atormentasse uma lembrança horrível: quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam tudo para ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era."
(Do livro A via crucis do corpo, Editora Artenova.)
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
Perversidade
Tenho a índole rancorosa dos órfãos.
Agradeço o alimento que me vem de mãos alheias
mas sempre que para mim se estendem
imagino que não me importaria
se as visse retorcidas em agonia
depois de me darem o pão
todo em migalhas dividido
como se eu fosse seu bicho preferido.
Agradeço o alimento que me vem de mãos alheias
mas sempre que para mim se estendem
imagino que não me importaria
se as visse retorcidas em agonia
depois de me darem o pão
todo em migalhas dividido
como se eu fosse seu bicho preferido.
Do meu tamanho
A rosa dos ventos,
quem dela precisa?
A mim me basta
uma flor qualquer
soprada por qualquer brisa.
quem dela precisa?
A mim me basta
uma flor qualquer
soprada por qualquer brisa.
Ressurreição
Acenos dúbios já não me atraem,
Recusas de amor já não me ferem,
Estou pronto agora para os anjos,
Se depois de tudo os anjos ainda me quiserem.
Recusas de amor já não me ferem,
Estou pronto agora para os anjos,
Se depois de tudo os anjos ainda me quiserem.
Cotação do dia (2)
Deixar de respirar seria a solução mais condizente com a minha inexpressividade. Quem sabe. Falta-me algum treino.
Cotação do dia
Sou o produto mais antigo da lojinha de saldos. Já ninguém me apalpa. Sinto-me como a má consciência de um estuprador de freiras na África da década de 1960.
Xiita (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
O pior tipo de gramático é o que chega e, com aquele olhar vencedor, nos pergunta não se conhecemos o idioma, o que talvez nos fosse possível, mas o santo vernáculo.
Os novos (para Silvana Guimarães)
Despojaram a poesia de todos os ornamentos e viram que ela parecia um musical sem música. Souberam então que era aquele o caminho.
Hoje no Estadão
A ciumenta Jussara interpreta um sonho.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/jussara-lendo-sonhos/
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
Fantasia
Eu estaria morto, mas ela, sempre alheia ao que se refere a mim, me perguntaria algo a que eu, ainda sem me dar bem conta do meu estado, daria uma resposta. Ela diria "nossa, que voz, você parece um morto". E eu lhe agradeceria por me haver prestado atenção.
Rom-rom (para Aden Leonardo, Arlene Colucci, Arlete Franco e Tuca Kors)
Às vezes penso que gostaria de ser um gato bem gordo e dorminhoco. O nome não importa muito. Teria sido dado pela dona e soaria bem, como tudo mais que ela dissesse.
Tarefa final
Tenho talvez ainda algum tempo para escrever minhas memórias. Felizmente estão todas num arquivo só, sob um título sucinto: infortúnios.
Quase
Fui visitar a Poesia
e quem me recebeu foi um serviçal:
que eu não a levasse a mal,
mas que pena, estava de quarentena.
e quem me recebeu foi um serviçal:
que eu não a levasse a mal,
mas que pena, estava de quarentena.
Aviso aos consumidores
Não tenho tempo para burilar,
para abrandar a forma dura.
Minha poesia é vulgar,
meus poemas in natura.
para abrandar a forma dura.
Minha poesia é vulgar,
meus poemas in natura.
Desmascaramento
Que choque sentiremos nós
que aflição
quando alguém na multidão
nos chamar de farsantes
e quem nos chamar
nos chamar com a nossa voz.
que aflição
quando alguém na multidão
nos chamar de farsantes
e quem nos chamar
nos chamar com a nossa voz.
No mínimo (para Silvana Guimarães)
Um bom poeta lírico deve ter no currículo pelo menos meia dúzia de infortúnios amorosos - reais ou inventados.
O morto em maiúsculas (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Nunca lembra se o defunto se chamava Adolfo, Astolfo ou Rodolfo. Nem sequer o conheceu. Viu o nome num anúncio fúnebre grande e, porque estudava gramática na época, imediatamente se pôs a rir. Os pais não entenderam. O que podia haver de engraçado assim no jornal? Ele apontou o nome: era um cacófato! Continuaram sem compreender, apesar da maiúscula evidência das letras: ADOLFO (OU ASTOLFO, OU RODOLFO) DIAS.
Modo de ver (para Silvana Guimarães)
Olhares eróticos devem ser lentos, mornos e, se possível, razoavelmente dissimulados.
Valor (para Silvana Guimarães)
Um poeta deve ter sempre um truque merecedor ao menos de meia entrada, ainda que velhos sejam seu coelho e sua cartola.
Laia (para Rose Marinho Prado)
Certos rufiões ainda esperam da literatura casa, comida e roupa lavada.
Arrependimento
Que triste é hoje recordar aquelas palavras
- paixão, calor, fogo, obsessão -
que nos ditava o amor
com seu tom exacerbado.
Devíamos tê-las ignorado.
- paixão, calor, fogo, obsessão -
que nos ditava o amor
com seu tom exacerbado.
Devíamos tê-las ignorado.
Não mais
Termos buscado a beleza é uma desculpa quase sempre bem aceita para os fracassos artísticos. É assim como uma formalidade social. Não gosto de usá-la. Soa-me falsa mesmo quando exibo minhas feridas.
De Milan Kundera, sobre umbigos
"As coxas, os seios, a bunda têm em cada mulher uma forma diferente. Esses três lugares de ouro não são apenas excitantes, eles exprimem ao mesmo tempo a individualidade de uma mulher. Você não pode se enganar sobre a bunda de quem ama. Você reconhecerá a bunda amada no meio de uma centena de outras. Mas não poderá identificar pelo umbigo a mulher que ama. Todos os umbigos são parecidos."
(De A festa da insignificância, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, Companhia das Letras.)
(De A festa da insignificância, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, Companhia das Letras.)
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
Justiça seja feita
Que boas mães são as mulheres que faltam a encontros. Sempre cuidando dos filhos.
Apatia (para Ana Clara Beauvoir)
A obediência a preceitos morais é às vezes questão apenas de falta de vitaminas e sais minerais.
Inocuidade
Por favor, não me mandem fotos de homens e mulheres pelados, ou quase. Já passei da fase.
Ah, é? (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Desculpa clássica de quem escorrega numa crase: no meu tempo não era assim.
Modelo (para Ana Clara Beauvoir)
Eu gostaria de ser um velhote simpático, desses que aparecem lambiscando colheres de pau nas embalagens de chocolate em pó.
Delicadeza
Não se preocupe com o que virá.
Se você vier a ser um defunto desmazelado,
quem lhe dirá?
Se você vier a ser um defunto desmazelado,
quem lhe dirá?
Na praia (para Silvana Guimarães)
Sonhar com gaivotas
tem sido meu sonho mais comum.
Elas passam e gritam
idiota idiota idiota
embora eu seja só um.
tem sido meu sonho mais comum.
Elas passam e gritam
idiota idiota idiota
embora eu seja só um.
"Deus", poema de Djanira Pio
"Criamos
um Deus justo.
E agora temos medo dele."
(Do livro Condição, Edizione Universum.)
um Deus justo.
E agora temos medo dele."
(Do livro Condição, Edizione Universum.)