domingo, 30 de junho de 2019
MQ
Às vezes, Mario Quintana descuidava-se um pouco e, terminada já sua prestidigitação, deixava aparecer ainda, entre o polegar e o médio, um fiapo de lua.
MQ
Quando eu já começava a me desencantar com o sol, a lua, as estrelas e outros ouros poéticos, Mario Quintana me reaproximou deles, redefiniu-os. Conhecia-os tão bem que era como se os tivesse inventado.
Percentagens
Sou como 98% dos escritores: acho que poderia ser Shakespeare; os outros 2% têm certeza de que são.
Mérito
Se eu fosse um pouco pior do que sou, um tantinho mais insignificante, poderia esperar que meu nome constasse num desses livros de recordes.
Hoje na revista Rubem
Algumas frases curtas, talvez com certo sentido.
https://rubem.wordpress.com/2019/06/30/poetas-e-mais-ocorrencias-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2019/06/30/poetas-e-mais-ocorrencias-raul-drewnick/
sábado, 29 de junho de 2019
Poderosa
Ao meio-dia e meio ou ao meio-dia e meia, aqui ou no Afeganistão, a gramática tem sempre razão.
Justiça
A gramática se reserva o direito de alterar todas as regras, assim que mostrarmos conhecer meia dúzia delas.
sexta-feira, 28 de junho de 2019
Equilíbrio
O velho poeta parnasiano gastou a primeira metade da vida fazendo sonetos e a metade final tentando justificá-los.
quinta-feira, 27 de junho de 2019
MQ
Mario Quintana lidava com a poesia como se fosse um menino soprando bolhinhas de sabão para o céu noturno e vendo uma a uma juntar-se às outras estrelas.
MQ
Em Mario Quintana a poesia era um ato corriqueiro como puxar um lenço, se bem que, no caso dele, isso sempre fizesse sair do bolso uma borboleta.
MQ
Diante de tudo que observava, Mario Quintana assumia sempre uma atitude: se aquilo ainda não
era, ele dava um jeito de transformá-lo em poesia.
era, ele dava um jeito de transformá-lo em poesia.
MQ
Quando voltava de seus namoricos com as nuvens cor-de-rosa, Mario Quintana trazia nos lábios fiapos de algodão-doce.
Altri tempi
Sua libido hoje ele só reconhecerá
se ela estiver de minissaia
e ostentar no seio o crachá.
se ela estiver de minissaia
e ostentar no seio o crachá.
Glória passageira
Dos acrósticos que lhe deram fama, gabou-se especialmente do que fez para a bela Katya Alexandra, antes de ela revelar apreço pelo dono de uma rede de supermercados com o qual prosaicamente se casou,
Subterfúgio
O poeta sem leitores consola-se com uma reflexão: fracassos não chegam à segunda edição.
Final infeliz
Afetado por problemas financeiros, o poeta parnasiano pegou a carruagem puxada por cisnes e levou seus sonetos da fase áurea para penhorar na caixa econômica.
quarta-feira, 26 de junho de 2019
Prudência
Abra a janela para o sol, mas nunca lhe dê uma intimidade que o deixe com a impressão de que pode tomar o lugar do gato no sofá.
Falsa musa
Ela me prometeu inspiração, mas apenas me deu
Meia dúzia de sonetos descabeladíssimos
Só aplaudidos por quem não os leu.
Meia dúzia de sonetos descabeladíssimos
Só aplaudidos por quem não os leu.
terça-feira, 25 de junho de 2019
Fria e distante
Não conhecerei Estocolmo, mas sei, por uma dessas inabaláveis intuições, que ela é fria como aquela mulher que, cortejada por príncipes e duques, espera o momento no qual o rei se aproximará dela com as palavras finalmente certas.
Ás na manga
É uma dessas loiras pirotécnicas que o Diabo mantém para emergências como, por exemplo, a de um escritor relutar em ceder a alma em troca apenas do Nobel.
O compromisso
Não gosta de piadas, não ri. Até sorrir lhe desagrada. Tem um pacto antigo com a tristeza e receia desrespeitá-lo. Vem ouvindo tantas histórias velhotes degenerados...
A alternativa
Andam lhe recomendando que deixe de pensar em literatura e se dedique a alguma tarefa menos aflitiva. "E vou me viciar em quê, aos oitenta? Em sexo?", ele pergunta, e nos seus olhos há uma tristeza de passarinho engaiolado.
segunda-feira, 24 de junho de 2019
Causa eficiente (p/ Rose Marinho Prado)
Os poemas concretistas teriam morrido pela ação da crítica, se não houvessem desmoronado pela lei da gravidade.
Mesmo quando
Era uma dessas mulheres diante das quais toda a erudição se envergonha por não conseguir nomear a beleza inquieta do mindinho do seu pé, mesmo quando circunstancialmente coberto por uma toalha de banho.
Menos eu
Ela gostava de desencaminhar meninos loirinhos. Nas fotos daquele tempo, vejo que eu era bem o tipo. Mas ela jamais me notou, nem nunca me levou até a cama em que sufocava de beijos as vítimas, antes de devorá-las.
Toninho Estadão
No início dos anos 60, o mundo girava em torno do número 28 da Major Quedinho, edifício do Estadão. Revoluções, regimes derrubados, governos empossados, catástrofes, tudo vinha pedir espaço no jornal, e as Olivettis, lançando fogo pelo teclado, eram massacradas pelos redatores que tentavam acompanhar o frenético giro do planeta, palco da aventura humana, de seus triunfos e abominações. Ali morreram Picassos, Kennedys, ali foram coroados reis e rainhas, ali se lançaram foguetes, ali se transplantou o primeiro coração e se ganharam e perderam Copas. O mundo girou ali até que o jornal, nos anos 70, o levou para girar no bairro do Limão. Algumas coisas mudaram nesse tempo. Antonio Carvalho Mendes, um daqueles rapazes que se atiravam sobre as Olivettis, passou a escrever no micro. No mais, continuou o mesmo. Ele era Estadão, sempre. Foi Estadão por 50 anos. Toninho morreu e, se teve uma frustração, foi a de não poder ter sido Estadão desde 1875, ano em que o jornal foi fundado.
RSVP
Sim, vocês estão certos. Venho tentando me livrar do vício da escrita. Toda espécie de ajuda será bem-vinda: correntes de fé, preces, exorcismos, pragas e até ameaças de leitores.
domingo, 23 de junho de 2019
sábado, 22 de junho de 2019
Charada (p/ Ludenbergue Góes)
Fiz sempre minha escolha
pela folhagem
não pela folha
pelo total
não pelo parcial
pela amplidão
não pela fração
Fui certeiro
de alma e de coração
a vida inteira
preferi sempre
ao barão o engenheiro
ao jornal o jornalão
e o limão sempre
à limeira.
pela folhagem
não pela folha
pelo total
não pelo parcial
pela amplidão
não pela fração
Fui certeiro
de alma e de coração
a vida inteira
preferi sempre
ao barão o engenheiro
ao jornal o jornalão
e o limão sempre
à limeira.
História
Com um andrade não
e com dois também ainda não
mas quando veio o terceiro
e era o drummond
a modernidade parou de relutar
e deixou-se proclamar
antes que fosse tarde.
e com dois também ainda não
mas quando veio o terceiro
e era o drummond
a modernidade parou de relutar
e deixou-se proclamar
antes que fosse tarde.
sexta-feira, 21 de junho de 2019
Onde Quintana
Porto Alegre
que inveja de ti.
Se pergunto por onde
Quintana andava
abrem-se os braços
indicando aqui lá ali.
E onde Quintana eu andava
em que inútil São Paulo
que nunca te vi?
que inveja de ti.
Se pergunto por onde
Quintana andava
abrem-se os braços
indicando aqui lá ali.
E onde Quintana eu andava
em que inútil São Paulo
que nunca te vi?
A mão
Na aglomeração, alguém passou a mão na pudica dona Sara e deixou no ar uma interjeição: ô tesãozinho de bunda magricela.
O modo
Se um dia você se zangar com o amor, diga-lhe as palavras que você usaria para censurar seu gato, mas diga-as baixinho, como se ele estivesse entregue ao sono ou você quisesse fazê-lo dormir.
quinta-feira, 20 de junho de 2019
Pegadinhas no Estadão
Seriam chamadas hoje de pegadinhas algumas brincadeiras que se faziam na revisão. Colocar nas costas de alguém - sub-repticiamente, é óbvio - um papel com dizeres como "motor amaciando" ou "passe-me a mão" era uma delas. Mas a que mais irritava era uma espora feita com o papel prateado dos maços de cigarros. Ficava igual às dos xerifes de filmes do Velho Oeste. Creio que foi Newton Bastos quem criou essas esporas que, tendo na sua face interna um pouco de cola, eram grudadas nos sapatos de revisores distraídos - alguns chegavam a notá-las apenas quando chegavam em casa e iam pôr o pijama. Como a revisão era um lugar de amansar loucos, dificilmente apareciam ali estranhos. Mas, uma noite, recebemos a visita de José Bonifácio Coutinho Nogueira, candidato a governador de São Paulo (como acontece até hoje, os revisores votavam, naquele tempo). Assim que ele entrou, naturalmente lhe aplicaram o par de esporas e com elas ele foi nos cumprimentando, um a um. Apesar dos inevitáveis risinhos que o acompanharam a cada passo, ele não teria notado as esporas. Foi seu cicerone - possivelmente um Mesquita, ou quem sabe o editor-chefe, ou o editor de política - quem interveio para dar um final satisfatório à situação. Ele avisou o candidato sobre as esporas, dizendo com extraordinário espírito que elas eram uma tradicional demonstração de carinho dada pelos revisores aos visitantes ilustres, uma espécie de comenda. José Bonifácio - conhecido também como Zé Bonitinho - foi simpático, assim como costumam ser todos os candidatos em campanha, e sorriu. Não lembro se agradeceu, mas que sorriu sorriu. Havia muitas dessas pegadinhas. Walter Santoro, citado já nestas memórias, tinha também a dele. Pegava o pente (era comum homens levarem pentes no bolso), aproximava-se silenciosamente da vítima, dava-lhe uma curtíssima pancada no sapato, na altura do peito do pé, e seguia em frente ou parava, olhando para o alto, disfarçando. Era engraçado ver a vítima agachar-se para procurar um objeto que não caíra. O ponto alto dessa pegadinha ocorreu numa tarde em que o servidor de café parou seu carrinho e começou a encher as xícaras. Walter deu-lhe uma pentada e, quando o homem se abaixou para ver o que havia caído, pulou do bolsinho do avental uma canetinha que ele sempre levava. Quando a Bic bateu no seu pé, ele a recolheu, fez uma cara de extremo espanto e nos disse: "Gente, eu preciso me cuidar, estou ficando louco. Eu senti a canetinha bater no meu pé antes dela cair do bolso." E, já que falei de café, farei uma rápida menção a um motorista que, chamado um domingo para levar um Mesquita à fazenda, perguntou se poderia fazer um desvio de cinco minutinhos e dar uma passada pela sua casa. Tinha esquecido a carta de motorista. A mulher do motorista fez questão de que o Mesquita desse uma entradinha, que ela ia preparar um café. Em dois minutos estava de volta à sala, com o café numa bandeja em que havia alguns biscoitinhos e três xícaras - todas com o brasão do jornal - que, certamente como recordação, haviam sido levadas pelo marido.
O inimigo de Roma
A página do Estadão em que era publicada a lista dos cinemas de São Paulo, os filmes que eles exibiam e os horários das sessões era chatíssima de revisar, mas Baptista Aguiar de Barros, se o chefe a confiasse a outro revisor, talvez fizesse uma greve de fome. Ele era apaixonado por cinema, e a revisão diária da página o entusiasmava de tal forma que ele encomendou um cartão que o apresentava como aquilo que de fato era: revisor especializado em cinema. Ele trabalhava em dupla com Dirceu do Nascimento Miele, outro apreciador da arte cinematográfica e dotado de um humor admirável. Barros lia a prova com tanto cuidado que, para não saltar nenhuma linha, usava uma régua. Era comum Miele ir fazendo comentários enquanto Barros lia. Um desses comentários ficou na minha lembrança, pelas gargalhadas que provocou. Barros leu o nome do cinema e, em seguida, o título do filme: Sozinho contra Roma. Miele imediatamente sacou: "Esse se fodeu!"
MAJOR QUEDINHO, 28
Te revi hoje
velho prédio
Primeiro vi de longe
lá no alto teu relógio
marcando um tempo
que já não conheço
e já não me reconhece
Já quase na Martins Fontes
eu fiquei um pouco diante
do mural de Di Cavalcanti
bem ao lado do qual
o letreiro luminoso
notícias do mundo trazia
de Chipre de Tenerife
do Egito e da Turquia
Mineiros morriam em minas
e em Minas havia drummonds
que em São Paulo não havia
mas num escritório da Barão
com brilho e precisão
o poeta Guilherme de Almeida escrevia
as crônicas que teu jornal
meu querido prédio velho
no dia seguinte publicaria
Te revi hoje
velho prédio
onde a pulsação
do mundo se ouvia
E penso que
se não houvesses existido
eu não teria conhecido
tantas coisas que conheci
e imagino
que Chipre e Tenerife
que Egito e Turquia
e tudo que no mundo havia
houve somente
para que em teu coração
se escrevesse diariamente
o sagrado e o profano
a miséria e a glória
a tragicômica história do ser humano.
Te revi hoje
velho prédio
Primeiro vi de longe
lá no alto teu relógio
marcando um tempo
que já não conheço
e já não me reconhece
Já quase na Martins Fontes
eu fiquei um pouco diante
do mural de Di Cavalcanti
bem ao lado do qual
o letreiro luminoso
notícias do mundo trazia
de Chipre de Tenerife
do Egito e da Turquia
Mineiros morriam em minas
e em Minas havia drummonds
que em São Paulo não havia
mas num escritório da Barão
com brilho e precisão
o poeta Guilherme de Almeida escrevia
as crônicas que teu jornal
meu querido prédio velho
no dia seguinte publicaria
Te revi hoje
velho prédio
onde a pulsação
do mundo se ouvia
E penso que
se não houvesses existido
eu não teria conhecido
tantas coisas que conheci
e imagino
que Chipre e Tenerife
que Egito e Turquia
e tudo que no mundo havia
houve somente
para que em teu coração
se escrevesse diariamente
o sagrado e o profano
a miséria e a glória
a tragicômica história do ser humano.
Propaganda enganosa
Num tempo (década de 1960) em que a Folha não dava a impressão de poder vir a ser o que é hoje e boa parte de seus exemplares encalhava, houve um dia no qual um fato - que não tinha nada a ver com jornalismo - fez o jornal se esgotar em todas as bancas. Foi um erro de revisão na seção de cinemas, e como foi que esse erro se espalhou fulminantemente por São Paulo é um mistério (não existia ainda internet). Andei um bocado antes de conseguir um exemplar. O jornaleiro, ao passá-lo a mim, sorriu: "Já sei. É o 'fodam nossas filhas', não é?" Era. Na lista de cinemas, no Cine Trianon (não sei se era esse mesmo, mas isso não invalida a veracidade da história), o que deveria ter sido publicado era:
Rialto - Rua Salustiano
de Talarico Neto, 211 - Fo-
ne 33-3333 - "Com quem an-
dam nossas filhas."
Caiu uma linha (a terceira) e a coisa ficou assim:
Rialto - Rua Salustiano
de Talarico Neto, 211 - Fo-
dam nossas filhas."
Não dava para não ler. Acredito que, assim como saiu, a informação sobre o filme tenha dobrado o número de espectadores.
Rialto - Rua Salustiano
de Talarico Neto, 211 - Fo-
ne 33-3333 - "Com quem an-
dam nossas filhas."
Caiu uma linha (a terceira) e a coisa ficou assim:
Rialto - Rua Salustiano
de Talarico Neto, 211 - Fo-
dam nossas filhas."
Não dava para não ler. Acredito que, assim como saiu, a informação sobre o filme tenha dobrado o número de espectadores.
Você gostaria (p/ Priscylla Mariuszka Moskevitch)
Como você gostaria de num sarau tocar Mozart no violino e me apresentar aos seus amigos como o que sou: uma espécie de macaco polonês que escreve poesia. E com que graça você diria que suas cachorras me adoram.
O temível Bonas
Ariovaldo Bonas, nas suas crônicas para o Estadão, tinha um humor capaz de derrubar viadutos. Quem fala de irreverência referindo-se a humoristas atuais, não leu o Bonas. Irreverência era aquilo. Suas frases mexiam com celebridades e nos dias seguintes davam trabalho às telefonistas do jornal, ocupadas em ouvir protestos de fãs-clubes. Aqui vão duas dessas frases, citadas de memória:
"Viola - Instrumento criado pelo padre Bartolomeu de Gusmão para encobrir a voz de Inezita Barroso."
"Marcello Mastroianni e Tarcísio Meira - Dizem que um deles é ator."
"Viola - Instrumento criado pelo padre Bartolomeu de Gusmão para encobrir a voz de Inezita Barroso."
"Marcello Mastroianni e Tarcísio Meira - Dizem que um deles é ator."
Erros antológicos
Circulavam entre os revisores histórias que ora se dizia terem ocorrido em tal jornal, ora em outro. No tempo em que era mais constante a presença de Gal Costa no noticiário, ficou famoso um título que, anunciando uma de suas apresentações, dizia: "Show de Gen. Costa em SP." Era uma época em que os militares andavam também mais citados e um linotipista, depois de ver diariamente corrigida pela revisão a abreviatura de general, de gal. pra gen., resolveu por sua própria conta fazer a alteração, porque o revisor encarregado de ler o texto não a fizera. E, assim, se atribuiu a um general Costa a condição de estrela da música popular. Outro episódio bastante citado era o dos dois revisores que, lendo um texto sobre automobilismo, especificamente sobre as 500 Milhas de Indianápolis, estranharam o local da prova e, tendo um deles apresentado o irrespondível argumento de que as corridas de automóvel se realizavam "ali para os lados de Santo Amaro", os dois (duas cabeças pensam melhor do que uma) rebatizaram a corrida: 500 Milhas de Indianópolis. E, num anúncio - este com certeza saiu no Estadão, porque eu o vi -, uma das picantes comédias de Dercy Gonçalves, por distração do revisor, tinha no horário publicado uma atração a mais para o público: às 21 horas em pinto, em vez de em ponto. Bem que Millôr Fernandes, numa de suas sacadas, definiu a função do revisor como um erro...
Sonetinho boboca
Não sabes tu quanta estima,
Quanta ternura e fervor,
Quanto afeto e quanto amor
Eu tenho por ti, menina.
Com boa ou medíocre rima,
Seja de que forma for,
Canto sempre em teu louvor,
Amada inspiração minha.
Te louvo assim, sem medida,
E já ouço, minha querida,
Que toda a gente se ri.
Não me importa nem um pouco,
Podem chamar-me de louco,
Escrevo só para ti.
Quanta ternura e fervor,
Quanto afeto e quanto amor
Eu tenho por ti, menina.
Com boa ou medíocre rima,
Seja de que forma for,
Canto sempre em teu louvor,
Amada inspiração minha.
Te louvo assim, sem medida,
E já ouço, minha querida,
Que toda a gente se ri.
Não me importa nem um pouco,
Podem chamar-me de louco,
Escrevo só para ti.
MQ
Em todas as fotos de Mario Quintana, até naquelas de sua última idade, há um sorriso sorrateiro que convida para travessuras e traquinagens.
MQ
Mario Quintana e a poesia mantinham um acordo. Nunca, em suas conversas, usavam palavras que não fossem tão claras, simples e belas como uma borboleta branca pousando num gramado soberanamente verde-escuro.
quarta-feira, 19 de junho de 2019
Duelo de titãs
Alguém na redação, já na Caetano Álvares, descobriu um número de telefone que era atendido por um homem que se dizia padre e se oferecia para prestar assistência psicológica. É óbvio que um gaiato (cujo nome não lembro, mas apostaria no Waldo Domingos Claro, redator de Internacional) aproveitou a oportunidade para se apresentar como alguém (falsamente) necessitado de ajuda. Começou dizendo que pretendia se matar, por não suportar mais a ausência do namorado (naturalmente fictício). O padre foi aconselhando, argumentando, até que perdeu a paciência e também a compostura. Desandou a berrar palavrões dos mais conceituados e ficou assim por pelo menos cinco minutos. Isso deu ideia a uma armação da qual participou involuntariamente o redator de assuntos trabalhistas e jurídicos, Itaboraí Feitosa Martins, conhecido pela competência na área e também pelo seu mau humor. Bastava alguém olhar para ele para provocar a frase: "Que é? Está olhando o quê? Cuidado, você está pensando em me jantar e eu já almocei você." Os novatos, os focas, e também alguns veteranos, tinham pavor dele. Uma noite, o gaiato que descobrira o número ligou para o padre, encenou novamente a história de sua paixão pelo namorado ausente e, no ponto em que o padre se pôs a mandá-lo para os quatro cantos da Terra, chamou o redator neurastênico: "Itaboraí, telefone pra você." Itaboraí foi bombardeado pelos palavrões do padre, que fervia em santa cólera. Imediatamente, como exigia seu temperamento, passou a responder com o mesmo ímpeto, mandando também o confessor para os quatro cantos da Terra e mais alguns. Foi um espetáculo.
Memória de um sábado
Aos sábados, na época em que o editor-chefe era Miguel Jorge, tornou-se comum - por se tratar de um dia mais tranquilo, porque grande parte da edição era preparada durante a semana - alguns redatores levarem os filhos ao jornal. Claro que os meninos e as meninas brincavam de fazer... jornal. Meus três filhos, Edu, Ana Maria e Raul, cada um a seu tempo, participaram dessa brincadeira. Com o mais jovem, Raul, ocorreram dois fatos engraçados. Um sábado, possivelmente por alteração das normas de segurança da portaria, advertiram-me de que ele não poderia subir comigo. Era uma situação esdrúxula. Se ele não pudesse mesmo entrar, eu também não poderia. Onde iria deixá-lo? Expliquei isso ao guarda e ele, depois de muita relutância, anotou meu nome e o do meu filho xará e permitiu enfim nossa entrada. Estávamos fazia menos de meia hora na redação quando Miguel Jorge recebeu um relatório da portaria detalhando o que ocorrera. Com o rigor e a exatidão devidos, dizia o texto que o "menor", apesar da reiterada proibição, subira comigo às 15 horas. No final, pediam-se providências. Miguel sorriu, pôs uma lauda na máquina (não havia ainda micros na redação) e respondeu dizendo que às 15h10 o "menor" havia sido contratado. Tiago, filho de Miguel, foi um assíduo companheiro de meu filho nessas jornadas de sábado. Uma tarde, cansados de fazer "jornal", improvisaram uma bola amassando algumas laudas, colocaram uma das latas de lixo como se fosse uma tabela de basquete e começaram o jogo. Tiago fez o primeiro arremesso. A bola bateu na borda da lata e saiu. Foi a vez de meu filho - e a bola também resvalou na lata e não entrou. Tiago, então, disse, com impecável precisão: "O jogo está quase a quase."
terça-feira, 18 de junho de 2019
O que o mundo disse a Sylvia Plath
Ocorreram-me algumas observações sobre um pensamento que parece ilustrar, mais do que nenhum, como Sylvia Plath via a literatura e o trabalho do poeta. O pensamento está no livro Poemas de Sylvia Plath, publicado pela Iluminuras, com tradução e notas de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, e é este:
"O que mais me apavora, penso, é a morte da Imaginação. Quando o céu lá fora é só cor-de-rosa e os telhados, negros: aquela mente fotográfica que paradoxalmente nos revela a verdade, mas a verdade do mundo, que nada vale. O que eu desejo é aquele espírito sintetizador, aquela força 'que dá forma' e que faz rebrotar prolificamente, criando suas próprias palavras com mais inventividade do que Deus. Se eu me sento aqui e não faço nada, o mundo prossegue batendo como um tambor flácido, sem significado."
Numa primeira análise, poderia talvez alguém menos afeito aos processos de que se serve a arte, e a poesia está aqui incluída num posto de honra, sentir certa presunção em Sylvia, ao se declarar insatisfeita, e até inconformada, com o mundo assim como ele se exibia aos seus olhos. Seria uma daquelas arrogâncias de que quase sempre são acusados os artistas. Uma análise um pouco mais aprofundada, porém, nos leva para o caminho oposto: a vontade do artista de, observando o que o mundo nos propicia, fruí-lo melhor, ir à essência das coisas. Esse ir à essência, custasse o que custasse, foi um projeto que só a morte fez Sylvia abandonar. Ela se atormentou dia a dia para descobrir o que o mundo dizia a ela, o que o mundo poderia realmente dizer a ela, e, traduzindo essa busca em poemas, dar aos leitores, além dessa visão, um aceno para eles tentarem também descobrir o que o mundo vive dizendo a nós. Ficaremos nos rejubilando, como se meteorologistas fôssemos, porque certa semana de setembro nos ofereceu dias maravilhosamente iguais em sua temperatura e beleza ou nos atiraremos à aventura de ver em cada dia aquilo que o diferencia de todos os outros, passados ou futuros? Nós somos os dias. Sylvia tentou uma viagem ao coração do mundo, assim como Virginia Woolf e Florbela Espanca. O mundo as devorou no fim, mas muito do que não sabíamos dele, de sua beleza e de sua pungência, foi revelado.
Receita
Se alegria em teu enterro queres,
arranja mais dois ou três inimigos
e mais três ou quatro mulheres.
arranja mais dois ou três inimigos
e mais três ou quatro mulheres.
MQ
Na calada da noite porto-alegrense, naqueles instantes únicos em que até o Guaíba dormia, Mario Quintana conspirava, com a lua e as estrelas, pela causa da poesia.
MQ
O tempo de Mario Quintana era hoje, e sua estação - com as mudanças levíssimas que às vezes ele fazia para conseguir mais sol e mais flores - sempre foi a primavera.
MQ
Tantos poetas - e, no entanto, é sempre o Quintana que eu pego na estante quando quero saber coisas de amor.
segunda-feira, 17 de junho de 2019
MQ
Aquele sorriso maroto nos lábios de Mario Quintana parecia o de quem estivesse ouvindo piadas picantes de um querubim.
MQ
Diante das frases de Mario Quintana, tão simples e graciosas, tenho sempre a tentação de compará-lo a um gato muito jovem perseguindo uma bolinha de pingue-pongue astuta e rápida como uma lebre.
MQ
Para conquistar corações, arte na qual ninguém o excedia, Mario Quintana usava só um sorriso, que pertencia a dois rostos: o dele e o de sua poesia.
domingo, 16 de junho de 2019
MQ
Em matéria de poesia, Mario Quintana era um autodidata. Que escola poderia ensinar-lhe o que dizem as estrelas, quando sussurram, e as rosas, quando suspiram?
MQ
Na literatura do Rio Grande do Sul, houve a fase do gaúcho montado, a do gaúcho a pé e, com Mario Quintana, a época do gaúcho alado.
MQ
Quando dizia que São Pedro pintava em Porto Alegre os mais belos crepúsculos do mundo, Mario Quintana, modéstia à parte, sabia do que estava falando. Ninguém entendia mais de céu e de Porto Alegre que ele.
MQ
Se uma pessoa, uma só, me disser que Mario Quintana distribuía migalhas de estrelas aos pombos, eu acreditarei - ainda que mil pessoas me assegurem, e provem, que nunca houve estrelas nem pombos em Porto Alegre.
Assim é
Eu não consigo entender
E você não se conforma,
Porém o ato de morrer
Já há muito tempo é a norma.
E você não se conforma,
Porém o ato de morrer
Já há muito tempo é a norma.
Lástima
Por uma mesquinha conspiração do tempo, o sertanejo universitário não figurou entre as implacáveis pragas bíblicas.
sábado, 15 de junho de 2019
MQ
Aos poucos, um tantinho por dia, Mario Quintana foi convencendo a poesia de que ela ficaria melhor de cabelos curtos, um sorriso mais juvenil e palavras ensolaradas.
MQ
Numa acareação entre Mario Quintana e a poesia, vieram à tona segredos antes só compartilhados pelos beija-flores e as rosas.
MQ
Mario Quintana escrevia como escreveria um bem-te-vi se tivesse o dom da palavra e quisesse exercê-lo.
MQ
Em Mario Quintana era tão forte o apelo da poesia que até seu cigarrinho, à noite, se dava fumaças de vaga-lume.
MQ
Não cometamos o exagero de dizer que, quando aparecia, Mario Quintana era mais caloroso e sorridente que o sol. Mas que empatava, empatava.
MQ
Mario Quintana era um desses alegres que, desconhecendo a avareza espiritual, se dão inteiros, como o passarinho que, tendo aprendido a gorjear, não quer interromper o canto, receando que a magia nunca se repita.
MQ
Ter havido Drummond, ter havido Quintana quer dizer que a beleza não é tão rara nem tão avarenta quanto às vezes se diz.
Por um triz
O concretismo teve quase tudo para dar certo: uma irrepreensível base teórica, a circunstância de se apresentar como suprema inovação, num momento em que se clamava agoniadamente pelo novo, e pelo menos três admiráveis poetas. Faltaram os poemas.
De Oswald de Andrade, sobre Manuel Bandeira
"... é um chato. Fez seis poemas muito bons, depois montou em cima deles e vem cavalgando todo esse tempo."
(De A alegria é a prova dos nove, organizado por Luiz Ruffato, publicação da Editora Globo.)
(De A alegria é a prova dos nove, organizado por Luiz Ruffato, publicação da Editora Globo.)
sexta-feira, 14 de junho de 2019
Praga
Rodada após rodada, o VAR reforça a impressão de que não é um instrumento para facilitar o acerto, mas um mecanismo para errar com critério.
MQ
O sentido das palavras depende de quem as pronuncia. Mario Quintana, mesmo quando queria dizer só algo, dizia tudo, como se tudo fosse a única coisa que as palavras pudessem dizer.
MQ
No seu tempo de filhote, Mario Quintana matava a mãe de susto quando escorregava de galho em galho.
Escola x escola
Curioso problema foi levado a juízo em um município rural paulista: um poeta concretista está sendo acusado pelos românticos de atrair pássaros com os falsos frutos de suas árvores de papel-crepom.
Problema de interpretação
Uma dúvida ainda não totalmente resolvida: podem uma estátua de Camões ou um busto de Shakespeare ser considerados poemas concretos?
Sãos e salvos
Mario Quintana foi um dos poetas que escaparam do parnasianismo. Paulo Leminski igualou a façanha, sobrevivendo ao concretismo.
Pontos de vista
Apontando a estante, o concretista exclamou:
"Este é o mais recente dos meus poemas."
O falso entendedor de arte apalpou o vaso vazio:
"Bonito. Mas ficaria melhor com as flores, eu acho."
"Este é o mais recente dos meus poemas."
O falso entendedor de arte apalpou o vaso vazio:
"Bonito. Mas ficaria melhor com as flores, eu acho."
Porcentagem
Nem sempre as aparências enganam, quando se trata de poemas concretistas. A maioria é aquilo mesmo: um nada cercado de pretensão por todos os lados.
De Oswald de Andrade sobre Cecília Meireles
"Nunca fui nem com a cara nem com a rima medida ou desmedida da sra. Cecília Meireles."
"A sra. Cecília Meireles é uma espécie de Morro de Santo Antônio, que atravanca o livre tráfego da poesia. Com sua celebridade madura, continua a fazer o mesmo verso arrumadinho, neutro e bem cantado, com fitinhas, ou melhor, com fitilhos e bordados. Sem dizer nada, sem transmitir nada. Mesmo sem sentir nada."
(Da antologia A alegria é a prova dos nove, seleção de Luiz Ruffato, Editora Globo.)
"A sra. Cecília Meireles é uma espécie de Morro de Santo Antônio, que atravanca o livre tráfego da poesia. Com sua celebridade madura, continua a fazer o mesmo verso arrumadinho, neutro e bem cantado, com fitinhas, ou melhor, com fitilhos e bordados. Sem dizer nada, sem transmitir nada. Mesmo sem sentir nada."
(Da antologia A alegria é a prova dos nove, seleção de Luiz Ruffato, Editora Globo.)
quinta-feira, 13 de junho de 2019
Lógica, onde estás, que não respondes?
O futebol não tem lógica, e a linguagem esportiva parece que também não, quando diz que o goleiro pagou geral para a defesa, que uma jogada desleal rendeu três jogos de suspensão ao zagueiro ou que é hora de correr atrás do prejuízo.
Em domicílio
O futebol virou um grande delivery. Os técnicos e os jogadores precisam entregar, entregar, entregar. Que pobreza de vocabulário.
Quadrinha toponímica
Na Índia, no Alto do Pari
Ou em Belém do Pará,
Serei eu teu marajá
E tu, minha marani.
Ou em Belém do Pará,
Serei eu teu marajá
E tu, minha marani.
Equívoco
Ao ouvir na tevê seu nome citado entre os favoritos ao prêmio anual de literatura, o octogenário poeta Tadeusz Martius Polonievski comentou com o gato: deve ser um homônimo.
quarta-feira, 12 de junho de 2019
MQ
Quintana é uma palavra que os amantes da poesia costumam dizer baixinho, tão reverentemente quanto dizem beleza, esperança e amor.
MQ
Quando Mario Quintana e a poesia andavam lado a lado, era difícil saber quem acertava o passo de quem. O certo é que nunca se desacertavam.
MQ
Se fosse uma história na qual houvesse uma estrela bem pequena e menosprezada pelas irmãs maiores, e ela resolvesse contar a alguém seus infortúnios, creio que seria a Mario Quintana que ela o faria.
terça-feira, 11 de junho de 2019
Numa boa
Comigo me acumpliciei
E logo que assim me vi
De mim fiz meu próprio rei
E servo meu me assumi.
E logo que assim me vi
De mim fiz meu próprio rei
E servo meu me assumi.
MQ
Segundo a lenda
tudo quanto
Mario Quintana dizia
não era senão
uma expressão
de pura poesia
Nem tudo
nem tanto
No entanto
tudo - até
o que não tinha
o rótulo de poesia -
assim soava
e assim parecia.
tudo quanto
Mario Quintana dizia
não era senão
uma expressão
de pura poesia
Nem tudo
nem tanto
No entanto
tudo - até
o que não tinha
o rótulo de poesia -
assim soava
e assim parecia.
MQ
Se por milagre ou merecimento os poetas se transformassem em passarinhos, Mario Quintana seria uma revoada.
segunda-feira, 10 de junho de 2019
Pela arte
Se pudesse, não sairia mais de casa. Agrada-me ficar aqui, lendo e cochilando, como convém à minha idade. Não tenho mais o que buscar lá fora. Recebo cada vez menos convites para bate-papos em colégios, e outros assuntos não me seduzem mais. Vou-me desinteressando do mundo, e ele me retribui na mesma moeda. Interessa-me a arte, só ela, e me censuro por não ter me dedicado mais a ela, ao conhecimento da pintura, da escultura, da arquitetura, da música. Se há alguma importância no homem, é o legado que ele deixa registrado na arte. Que obras maravilhosas é capaz de produzir quem não é nada além de pó. Quando o homem atinge a culminância de sua arte, faz cócegas nos pés de Deus.
Louis-Ferdinand Celine
Espantam-me certos clichês que se usam quando se citam alguns escritores, ressaltando-lhes o brilho apesar do caráter reprovável. Celine é talvez o exemplo mais expressivo. Pintam-no como um ser humano desprezível e estranham que ele pudesse ser um artista quase divino. A vida - assim como a arte - não é feita de bem ou de mal, mas de bem e de mal. Que Céline não tenha sido um santo ou um benemérito é, do ponto de vista da literatura, algo que se deve mais saudar do que deplorar. À arte não compete falar por ideologias, causas ou religiões. A arte não redime ninguém. Se os anjos quiserem se manifestar, que não o façam por intermédio de nós.
Nada resta além dos truques
Nesta fase da vida, não devo cobrar-me nada além de modestos trabalhos, coisas mais de artifício que de arte: um truquezinho aqui, um achado ali, uma rima bem-posta ali adiante. A arte não se contenta com isso, com esses pequenos enfeites com que se condecoram touros em feiras agropecuárias. A arte exige uma paixão que conheço bem e que sei já não poder sentir, nem agora nem nunca mais.
MQ
A poesia de Mario Quintana é como o arco-íris desenhado por um menino para estrear sua caixa de lápis de cor.
MQ
Se fossem construir um castelo, João Cabral se encarregaria da estrutura toda, Olavo Bilac da torre de marfim, onde a princesa pudesse contemplar e apanhar estrelas, e a Mario Quintana caberia escolher a princesa e as estrelas.
MQ
Às vezes Mario Quintana me aparece risonho como um guri, tocando flauta e dançando: pirulim, pirulim.
domingo, 9 de junho de 2019
Nada além de pouco
Sou um desses seres para os quais não faz sentido imaginar glórias nem fracassos, mas apenas sucessos medíocres e ridículas decepções.
Alívio
Se eu tivesse sido o poeta que na infância almejava ser, seria só mais uma daquelas enfadonhas histórias de persistência e superação.
Pista
Quem, em vez de dizer lugar agradável, diz recanto aprazível, de duas uma: ou é um escritor ou é alguém que julga ser.
MQ
Vi um pombo tão encasacado, tão cioso de seu porte e de sua dignidade, que só poderia estar indo tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Pensei o que diria Mario Quintana, que entendia desses passarões, e a cara que ele faria.
sábado, 8 de junho de 2019
MQ
Em Mario Quintana a tristeza era um acidente, como um desses primos que nos apoquentam a vida inteira e que no final das contas descobrimos que nem são primos nem nunca foram. Quintana era aparentado com a alegria.
MQ
A poesia era fiel a Mario Quintana, e ele retribuía, se bem que ela o censurasse às vezes por trocar certos olhares com a prosa, além de marotas piscadelas.
sexta-feira, 7 de junho de 2019
MQ
Se Mario Quintana fosse chuva, seria dessas que caem amenas, como se temessem afogar uma formiga, afundar um barquinho de papel ou despetalar uma rosa.
MQ
A beleza dos versos de Mario Quintana tem sempre um quê de menina travessa encarapitada numa árvore, mastigando uma fruta e cuspindo carocinhos.
MQ
Mario Quintana tinha um jeito de lidar com as palavras que poderia chamar-se de hábil garimpagem, se já não tivesse o nome de ternura.
MQ
Mario Quintana é um desses irresistíveis piscares de olhos, uma dessas lentas ajeitadas de cabelos que a poesia usa quando quer se mostrar mais graciosa.
quinta-feira, 6 de junho de 2019
MQ
A poesia de Mario Quintana é como o cheiro morno da primeira fornada de pãezinhos do dia, que o vento aspira avidamente, misturado com o aroma orvalhado das flores.
MQ
Mario Quintana tinha com as palavras uma dessas relações que o tempo sempre acaba transformando de amizade em amor.
MQ
Mario Quintana, que abominava as escolas literárias, se fosse para a Academia, se sentiria como um passarinho catalogado e engaiolado.
quarta-feira, 5 de junho de 2019
Modelo
Criei Deus á minha
imagem e semelhança -
ideais um pouco maiores
feições um tanto melhores
e nenhuma pança.
imagem e semelhança -
ideais um pouco maiores
feições um tanto melhores
e nenhuma pança.
MQ
Se um dia eu for para Pasárgada, sei que lá estará Mario Quintana. Será ele quem me apresentará ao rei, se o rei não for ele mesmo.
MQ
Assim como para Wislawa Szymborska, para Mario Quintana o prosaico era só mais uma das fontes da poesia.
MQ
O cotidiano era o território em que Mario Quintana travava suas batalhas. No meio delas podiam encontrar-se algumas pétalas esparramadas e às vezes uma borboleta voando, meio perdida. Nada que ele, com um retoque num verso ou em outro, não conseguisse arranjar.
MQ
Penso em Mario Quintana como se ele fosse um homem parado numa esquina de Porto Alegre, cortando e distribuindo fatias de sol. Fininhas, que são as melhores.
MQ
Mario Quintana era um dos pouquíssimos poetas capazes de atestar a autenticidade de um arco-íris sem recorrer a uma lupa.
MQ
Os melhores amigos de Mario Quintana eram as gurias de olhos sonhadores e os passarinhos metidos a tenores.
terça-feira, 4 de junho de 2019
MQ
Mario Quintana era um desses meninos que se apaixonam pela professora e desandam a dedicar-lhe poemas e a levar-lhe maçãs.
MQ
Se Mario Quintana fosse carioca, teria descoberto, bem antes que Tom e Vinicius, a Garota de Ipanema.
MQ
Em Mario Quintana tudo caía bem. Até a galhofa assumia um ar nobre, como as frases moleconas de Oscar Wilde.
MQ
Posso imaginar o menino Mario Quintana fazendo mil travessuras, menos a de sair com um estilingue caçando passarinhos.
MQ
A poesia, em Mario Quintana, se manifestava até nas vírgulas. Nas reticências ele era capaz de englobar uma tarde inteira de outono, com seus frutos e pássaros.
MQ
Desde o dia em que comecei a falar com Mario Quintana, os passarinhos passaram a me procurar para conversar sobre o sol e as flores.
MQ
Quando surpreendo em Luis Fernando Verissimo o olhar galhofeiro de Mario Quintana, sinto alívio: o bom humor gaúcho está salvo, assim como o chimarrão.
MQ
O melhor, em Mario Quintana, não era ele ter um espírito de passarinho. Era ele ter um espírito de passarinho novo, de passarinho filhote.
segunda-feira, 3 de junho de 2019
MQ
Manoel de Barros e Mario Quintana são dois passarinhos que deveriam estar nos contos de fadas, bicando miolo de pão das mãos da Branca de Neve e Rapunzel.
MQ
Se Mario Quintana tivesse heterônimos, um deles seria Colibri da Silva; outro, Rouxinol de Sousa.
A hora
É hora de recolher a Bic, o bloco, de dizer boa noite e chamar o sono. Talvez ele chegue logo hoje, embora nessas coisas de chamar eu seja nulo. Ninguém como os poetas antigos, os de verdade. Eles invocavam, clamavam, bradavam, e tanto lhes obedeciam as nuvens claras como cordeiros quanto as carrancudas, de tempestade. Houve poetas outrora. Valia a pena ler seus poemas. Os poetas atuais receiam expor sentimentos e, usando uma frase que anda em voga, quase se precisa suplicar que saiam do armário. Que saiam de cueca e gravata, ou de sunga e colares. Que saiam nus, pelados, despidos, mas que saiam e não tenham medo de dizer "Eu amo João" ou "Eu adoro Joana". Imagino que seriam mais lidos do que agora, que entoam louvores às pedras, ao cimento e ao sangue gelado das metrópoles. O amor se tornou um assunto vergonhoso para o poeta moderno. Será mais fácil que qualquer um deles se mate por uma dívida de condomínio do que por um encontro recusado. Tão científicos, os poetas de hoje. Endureceram-se e perderam a ternura. Lançam de três em três anos uma coletânea de textos mirrados como as desfalecentes modelos da SP Fashion Week. Poetas sem colesterol, enxutos. Qual deles fará um poema para o menino boliviano morto? Os poetas de agora são globais, mas a Bolívia, tenham paciência... Se morrerem meninos em Nova York, quem sabe.
domingo, 2 de junho de 2019
Ser escritor
Ser escritor
não é mais como antes
Escrever continua igual
uns escritores escrevem bem
alguns mal escrevem
e outros escrevem muito mal
O que acontece agora
e não acontecia antes
é que todos são
escritores itinerantes
caixeiros-viajantes
sempre com o passaporte na mão
Mal esvaziam a mala
precisam rearrumá-la
reenchê-la de livros
e de novo partir
porque há palestras a dar
cursos a ministrar
simpósios a presidir
reunião após reunião
em Portugal
na Alemanha
na Espanha
e no Japão
Os livros são hoje escritos
em hotéis de cinco estrelas
em saguões de aeroportos
nas pernas nas coxas
em assentos de aviões
Pobres escritores
adiando a obra-prima
o romance ideal
escrevendo somente
no espaço entre
um continente
e outro continente
entre um evento
e outro evento
em todas essas cidades
nessa única cidade
desse mundo global.
Escrever continua igual
uns escritores escrevem bem
alguns mal escrevem
e outros escrevem muito mal
O que acontece agora
e não acontecia antes
é que todos são
escritores itinerantes
caixeiros-viajantes
sempre com o passaporte na mão
Mal esvaziam a mala
precisam rearrumá-la
reenchê-la de livros
e de novo partir
porque há palestras a dar
cursos a ministrar
simpósios a presidir
reunião após reunião
em Portugal
na Alemanha
na Espanha
e no Japão
Os livros são hoje escritos
em hotéis de cinco estrelas
em saguões de aeroportos
nas pernas nas coxas
em assentos de aviões
Pobres escritores
adiando a obra-prima
o romance ideal
escrevendo somente
no espaço entre
um continente
e outro continente
entre um evento
e outro evento
em todas essas cidades
nessa única cidade
desse mundo global.
sábado, 1 de junho de 2019
A poesia como acontecimento
Diga a teoria o que disser
sobre a exata proporção
entre inspiração e transpiração
um poema pode muito bem
se fazer sozinho - se quiser.
A poesia é um vício tão antigo
uma cantilena tão reprisada
que qualquer aldeão
ou aldeã semialfabetizada
podem num instante
colher uma batelada.
Poesia sabe fazê-la o vento
sabe fazê-la o rio
sabe fazê-la o mar
pode fazê-la também o poeta
desde que aquilo que o poeta
faça seja poesia.
sobre a exata proporção
entre inspiração e transpiração
um poema pode muito bem
se fazer sozinho - se quiser.
A poesia é um vício tão antigo
uma cantilena tão reprisada
que qualquer aldeão
ou aldeã semialfabetizada
podem num instante
colher uma batelada.
Poesia sabe fazê-la o vento
sabe fazê-la o rio
sabe fazê-la o mar
pode fazê-la também o poeta
desde que aquilo que o poeta
faça seja poesia.
O mundo é dos escritores
Há escritores que um dia estão em Madri, no outro em Frankfurt e no seguinte em Bolonha. Empenham-se em divulgar a literatura, é o que dizem, e são reverenciados por isso. Terão tempo, ainda, de escrever? De vez em quando suas editoras, também devotadas ao trabalho de divulgação, anunciam o lançamento de um livro de crônicas ou artigos publicados no espaço de três anos nos jornais: mirradas setenta páginas. Viajar é preciso, escrever nem tanto. Um desses escritores não arranja quinze minutos nem para ocupar sua coluna quinzenal e é comum os leitores encontrarem a desculpa de que excepcionalmente seu texto não os encantará naquele dia. Como ele mais não escreve do que escreve, seria o caso de a desculpa vir nos raros dias em que seu texto aparece no jornal: excepcionalmente, publicamos hoje a crônica de Fulano de Tal. Houve um tempo em que os jornais eram mais importantes que os escritores.
Da necessidade de desconfiar
Desconfiem dos poetas rechonchudos, com bochechas de recém-nascidos. Desconfiem dos poetas limpinhos, educados, que têm na escrivaninha tudo bem arranjado, tudo à mão, para que a inspiração não os apanhe de surpresa. Desconfiem dos poetas que no meio das frases enfiam uma expressão em francês. Desconfiem dos poetas de unhas polidas e palavras educadas. Desconfiem dos poetas que dão palestras interessantes nas casas dos saberes, em três prestações de trezentos. Desconfiem dos poetas que celebram Deus e abafam palavrões no lenço aberto. Desconfiem dos poetas que falam de povo e de amor. Desconfiem dos poetas que têm sítios onde no fim de semana vão descansar de sua labuta poética. Desconfiem dos poetas que todo ano brindam seus leitores com lançamentos na Cultura da Paulista. Desconfiem dos poetas, de todos os poetas, dos que fazem sonetos e dos que não fazem, dos que rimam e dos que não rimam. Desconfiem dos poetas que falam de rosas sem nunca terem visto uma. Desconfiem dos poetas se em nenhum dos livros deles houver a palavra esterco. Desconfiem dos poetas, sempre. O que um homem é capaz de fazer para se livrar do trabalho!
A gaveta florida
No quarto onde morreu o poeta, há dias em que se sente um cheiro de flor. Não há jardim na casa, e a nova empregada perguntou à mulher do poeta como podia acontecer aquilo. A viúva abriu então uma gaveta. A empregada não entendeu. Não havia nada ali dentro. A mulher explicou que era lá que o poeta guardara por várias décadas seus escritos. "Quando ele morreu, dei tudo aquilo a um professor que me pediu. Isso faz já três anos, mas o cheiro não vai embora."