Não diga que igual a 2020
não haverá ano algum
antes de conhecer 2021.
A poesia resolveu abandoná-lo quando ele, pelo lamentável aspecto físico e pela decadência mental, já fazia lembrar aqueles pombos moribundos rejeitados pelos outros como se representassem uma vergonha para todos.
Faço uma liquidação de estoque.
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Acredito que, quando são chamadas para entrar num poema, as palavras sintam um alvoroço especial, esperando ser reveladas em sua plenitude. Cabe ao poeta não decepcioná-las.
Entre Shakespeare e mim
Existe uma diferença
Que seria até pequena,
Não fosse tão grande assim.
Aos vinte anos, punha toda sua esperança de sucesso na literatura. Aos oitenta, atribui a ela a culpa pelo seu fracasso.
Que Deus, se me perdoar os pecados e me achar digno de algum prêmio, conserve este resto de energia que me mantém quase vivo e, se quiser tomar-me algo em troca, me despoje desta senectude, ainda que alguns atribuam a ela minha presumida sabedoria.
A História se repete em forma de farsa. Quem sacudia o mundo eram os godos, os visigodos e os ostrogodos. Agora são os perdigotos.
Eu gostaria de ser aquele maluco que se gaba de ter uma tarde apanhado um filhote de arco-íris e brincado com ele até devolvê-lo à chuva. Ou então o outro que jura ter conversado com Mario Quintana na manhã em que o poeta lhe apareceu no quintal da casa e começou a cantar na ameixeira.
Desde que se transformou em poeta social, não olha mais para o alto: o céu, o sol, a lua - e até Deus - não passam agora, para ele, de itens de uma poesia ultrapassada.
Toda vez que o orgulho sugerir que nos apresentemos como escritores, lembremos que Shakespeare foi exatamente isso.
Alguém, um desses críticos que aparecem até num velório, disse que parecia faltar compenetração ao morto.
Digam o que disserem os modernistas, os leitores ainda desconfiam dos poemas em que não há pelo menos um pouco de tristeza.
Quando, por imposição do tempo, começou a empenar, o majestoso poema concretista passou a ser chamado de Torre de Pisa.
A literatura é sempre uma ocorrência que chama a atenção numa biografia, mesmo que no final das contas seja só mais um entre os projetos que nunca passaram disso na história do biografado.
Dizer palavras era a traquinagem favorita da condessa. Ela criava teatrinhos em que, atuando ao mesmo tempo como ofensora e ofendida, xingava e se xingava com uma satisfação que a fazia parecer uma molecona de treze anos. Se Deus resolvesse censurá-la, ela talvez não dissesse nada, mas no mínimo Lhe mostraria a língua.
É uma pomba presunçosa. Não se mistura às outras, não voa com elas. Descende daquelas celebérrimas protagonistas do soneto de Raimundo Correia.
Esboços de crônicas.
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Quis ser único, mas fui igual a todos aqueles que se declararam amantes da poesia e não souberam expressá-la senão sob a mais primitiva das formas: a da admiração embevecida. Jamais tive o talento e o prazer de representá-la.
Faz três dias que a gata morreu, mas o gato vadio continua vindo, toda noite. Fica miando no quintal, chamando. Depois, miando mais forte, põe-se a arranhar a porta da sala. Hoje a mulher, exasperada, abre a porta e joga nele um jarro de água. Habituado ao tempo em que era recebido com afeto e uma tigelinha de ração, ele vai se afastando desolado como só um gato rejeitado pode estar. Já longe da casa, dá um miado tristíssimo, que arrepiaria a lua, se a lua se importasse com ninharias.
O poeta lastima-se: o mundo é cruel. Não há o que possa consolá-lo. Está há dois dias sem conseguir escrever. Merece um jovem de dezoito anos incompletos sofrer tanto?
Se você acredita que um pedaço de papel e uma canetinha podem fazer coisas prodigiosas, talvez você seja um sonhador, ou um poeta - possivelmente os dois.
Talvez tivesse dado certo, se eu aceitasse a poesia como ela era, sem querer adorná-la com meus pechisbeques de camelô e minhas sedas de mascate.
Sabendo que Shakespeare é inatingível, dê pelo menos meia dúzia de passos diários no caminho que ele percorreu. Conte bem. Mais de meia dúzia é presunção.
Nas embalagens de provérbios deveria constar, com destaque, uma informação sobre o teor de verossimilhança ou de veracidade.
De um homem equilibrado, forjado pelos bons exemplos e pelas normas da autoajuda, podem esperar-se grandes coisas - dificilmente algo relacionado com a arte poética.
Nos últimos tempos, chegaram a me chamar de poeta. Incrível como algumas pessoas se deixam enganar por palavras, se quem as diz ostenta, por astúcia ou por acaso, aparência de honestidade.
Quando chegar sua hora de morrer, tenha compostura. Não chore, não suplique, não implore. Use a fantasia, se ainda a tiver, e pense que sua fama chegou ao Céu, ou ao Inferno, e que Deus, ou o Diabo, está ansioso para lhe apertar a mão e lhe pedir um autógrafo.
O maior sonho do chato deslumbrado com celebridades é conseguir uma foto autografada de Deus.
A retórica espera seu momento.A poesia está próxima do final e ela guarda seu ouro para esparramá-lo nos últimos versos. Que ninguém venha a achar a literatura uma coisa fácil
Tenho um tique
certo modo
meio que um jeito
de fazer isso
que vocês chamam de poesia.
Falta-me alguma coisa
um detalhe
uma insignificância
que não seria nada
se não fosse talvez
o único detalhe com importância
a única coisa fundamental.
Concluída sua obra monumental, Deus pensou em redigir um documento e deixar registrados, ponto a ponto, os detalhes de sua criação. Chegou a tentar, duas ou três vezes, mas uma voz interior O aconselhou a desistir. Era o primeiro pressentimento de que no futuro haveria gramáticos e críticos literários.
Deve-se considerar que, quando fez tudo quanto fez, Deus não tinha noção dos rumos que a arte tomaria. Por isso, certamente, é que não lhe ocorreu a ideia de pôr uma colossal garrafa de Coca-Cola girando em torno do sol.
O chato é generoso por natureza. Não nos chama só de cretino ou idiota, se pode chamar-nos de cretino, de idiota e de imbecil.
Acorde passarinho
o dia já brilha
o sol já se levantou
acorde logo passarinho
senão você vai
chegar tarde para o haicai.
Sim, continuo escrevendo,
se escrever é fazer
essas coisas que eu faço
e que vocês se perguntam
como ele faz para fazer
tudo isso parecer
cada vez pior do que parecia
em qualquer outra versão,
em qualquer outro dia?
De que me adiantaria falar inglês? Diante de Scarlett Johansson, o máximo que eu conseguiria fazer seria ficar mudo.
Conhecer-se a si mesmo era o tipo de coisa que só poderia interessar a um grego velho que não tivesse mais nada para fazer.
Tenho me esmerado tanto em minhas lamúrias que receio estar me transformando naquilo que Inês Pedrosa chamou um dia de profissional da tristeza.
Sempre tive esta vocação de clown. Por uma dúzia de aplausos, ou até meia, posso mostrar-lhes minha alma peladinha como a puta mais rampeira da praça da Liberdade.
Começar a levar-se a sério costuma ser o primeiro passo que alguém dá no rumo do humorismo.
Há poetas nos quais é possível desde a juventude ver, pela precisão com que dividem a vida em sílabas cantantes, que merecerão ser as estátuas que um dia haverão de ser.
Se bem que nada, nem nos seus áureos anos de juventude, justifique essa esperança, ele crê ainda que a vida e a poesia sejam capazes de lhe oferecer algo prodigioso, um acontecimento mais notável que simplesmente continuar respirando (mal como sempre) e escrevendo (pior do que nunca).
Em matéria de chatice, ainda não surgiu neste século nada mais acachapantemente representativo do que o sertanejo universitário.
Um drama familiar.
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Reconheçamos: o chato costuma conhecer quase tão bem nossas virtudes quanto nossos defeitos, embora fale um pouco menos delas.
Chatos são aqueles que insistem em nos acompanhar, mesmo que estejamos indo para o inferno.
Posso ser frio. talvez, se precisar, mas dificilmente calculista. Falta-me a necessária matemática.
Nada mais agora é como antes.
Os pecados da carne deixaram a cama
E foram para as mesas dos restaurantes.
Fazer poesia é a minha maneira de dizer que procuro a beleza. Pena que eu não consiga dizer isso melhor.
Poesia é uma dessas palavras que pronunciamos com reverência, mesmo quando são, como tantas vezes sucede, causa de nossas mais fundas decepções. Amor é outra.
Hoje não acredita mais na poesia, mas houve tempo em que até a subterfúgios menores, como a adoção de um cavanhaque, ele recorreu para tentar seduzi-la.
Curiosas são aquelas expressões que os gramáticos justificam e absolvem por considerá-las consagradas pelo uso. Pernas para que te quero é uma, digam o que disserem.
Um gramático pode naturalmente mudar de opinião, mesmo que seja só para nos contrariar.
Quando o passarinho velho adoeceu e já nem cantava nem saltitava na gaiola, o concretista resolveu dar-lhe espaço num poema.
Então, um dia, ele toma aquela decisão que teria sido melhor adotar sessenta anos antes e faz aos leitores, enfim, o favor de parar de escrever.
Não, triste não será estarmos mortos.
Será triste estar morta nossa voz
E não podermos com ela proclamar
Que mortos mais perfeitos e completos
O mundo nunca viu e nem verá.
História de menino e gato
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Quando os jovens lhe perguntam o que é a literatura, responde que ela é tudo. Não é mais o que acha, mas o que presumivelmente se espera de quem há décadas diz viver para escrever.
Ter fé em Deus é o mesmo que acreditar na literatura. Mas nem nela nem Nele se pode confiar muito, se o milagre pedido for o de escrever como Shakespeare.
Espero que tu me entendas
E por favor não te ofendas
Se eu te pedir como prendas
Só tuas partes pudendas.
Que bizarro era ver aqueles homens balofos e calvos babando rimas nos ouvidos displicentes daquelas mulheres nem tão belas assim e fazendo-lhes a insossa proposta: quereis, tesouro meu, ser minha musa?
Contrariando os alarmismos, a poesia tem sobrevivido às rimas e à ausência delas, à tirania da métrica e aos desregramentos do versilibrismo, aos poetas glabros e aos vates desgrenhados.
Os poetas românticos tratavam de morrer cedo, com receio de se tornarem velhotes execráveis.
Tinha já desfeito ruidosa e litigiosamente cinco casamentos quando anunciou que estava se preparando para o sexto. Um amigo espirituoso perguntou: contra quem?
Morríamos de tudo -
de esperança
de vida
de alegria
de amor
de mulher.
Morremos de tudo -
de desesperança
de medo
de melancolia
de uma ninharia
de um vírus qualquer.
Quando passaram eu os chamei
aonde vocês estão indo perguntei
não sei respondeu um
e os outros também não sei
e então eu me lembrei
dos tantos que em março vi passar
que iam não sabiam para onde
de todos que não vi voltar.
Não sei como isso acontece.
Às vezes ainda respiro,
Como se estivesse vivo
E como se ainda pudesse.
Merece castigo quem
Ignora as normas e fere-as
Dizendo que ano que vem
Vai para uma bela férias.
Depois dos oitenta, a prática da literatura passa a ser considerada um pecado menor, como fumar escondido dos netos.
Pode-se dizer que em termos gerais
Shakespeare logo terá currículo igual ao meu:
nasceu, viveu, escreveu, morreu.
Quem escreve somatória
Em lugar de somatório,
Demonstra bom repertório,
Não merece palmatória.
Que inveja dão aqueles que, numa festa, dizem "eu lido com o mercado de capitais" ou "meu trabalho é na inspetoria de portos". Soa bem alguém dizer "meu negócio é a literatura"?
Hoje você já pode dizer que se dedica à literatura. Ninguém dá importância ao que faz ou deixa de fazer um homem de oitenta e dois anos.
Temos no corpo ainda algumas marcas do tempo em que o amor nos tomou por servos. Olhá-las é o que nos resta. Que se conservem, como lembrança de uma época em que nossa carne jovem merecia atenção. Que dentes, que chicotes a escolheriam hoje para nela deixar seus testemunhos amorosos?
Se um oitentão nos diz que se dedicou desde a adolescência à literatura, deve-se louvá-lo. Há modos bem menos penosos de viver.
O que de melhor pode acontecer a um poeta romântico é topar com uma mulher majestosa e fatal que, rendo tido más experiências com os homens e havendo jurado vingar-se, se lance como uma leoa sobre ele e o devore sem perdão.
Já tive algum sucesso, no tempo em que julgava que a literatura, como tudo na vida, era só uma questão de jeito.
As palavras me escarnecem,
Se afastam de mim, me esquecem.
Se as chamo não me obedecem,
Se as busco desaparecem.
Que a palavra amor te embriague sempre que a disseres, e que a digas sempre que te perguntarem que maravilhosa loucura é essa que te move e que faz de ti a criatura única que és.
Passagens de alguns poemas antigos, pelo seu brilho único, não pareciam escritas por mãos humanas. Foi num tempo, infelizmente curto, em que os deuses, enfastiados com a inépcia dos poetas, às vezes lhes davam uma ajuda.
Há mortos tão impecáveis no seu desempenho, tão convincentes que, se estivessem num palco e não num velório, precisariam erguer-se de vez em quando para agradecer os aplausos do público.
Uma história cheia de adiposidades.
https://rubem.wordpress.com/2020/11/01/baleia-e-a-mae-raul-drewnick/
Há um tipo de escritor que, fazendo da literatura uma rameira, a enfeite de sedas, lhe ensine modos oblíquos de seduzir e a coloque nas esquinas do mundo. Observando-a do outro lado da rua, ele abre seu sorriso milionário sempre que um carro para e ela vai se vender mais uma vez.
Aos vinte, era a esperança. Aos oitenta, o que o move ainda no rumo da poesia é a mais obstinada, cega e tola teimosia.
Tão imponente se mostrava
com o peito de flores condecorado
que se não estivesse morto
seria pelo mundo invejado.
Seja sensato. Mantenha os olhos sempre abertos para tudo. E não se esqueça de que até a sensatez admite exceções. E lembre que o amor é uma delas.
Era um defunto cuja idade os cabelos brancos denunciavam. Mas o rosto sem rugas e corado permitia supor uma infância e uma adolescência tratadas com biscoitinhos de aveia e leite de búfala.
Amante das palavras, a mais preciosa de todas ele, com medo de que a furtem, jamais deixa que lhe saia dos lábios. Receia dizer, num descuido ou na inconfidência de um sonho, essa palavra mágica, esse tesouro, esse nome de mulher.
Que infames foram os tempos nos quais, ao vermos uma mulher, o primeiro adjetivo que nos ocorria era bela. Como se a um passarinho só pudéssemos atribuir os dons de voar e cantar.
Se o Amor não é o teu senhor
Por que aceitas seu chicote,
Por que lhe abres tua carne,
Por que lambes sua mão?
Se ela não sabe que eu a amo,
Não saberá por quem sofro,
Não saberá por quem choro,
Não saberá por quem morro.
Sempre tive certa verve humorística, que fui desenvolvendo aos poucos. Quando, com vinte e dois anos, eu disse que seria poeta, sorriram. Ao repetir a piada com oitenta e dois, gargalharam.
Dependendo dos lábios de quem a proclama, a meia-idade pode ser não mais que uma meia-verdade.
Quando adolescente, era um perdulário nos seus sonhos eróticos. Lembra-se de num deles haver recusado um convite de Marilyn Monroe porque estava com um ménage marcado com Sophia Loren e Brigitte Bardot.
Às vezes me ocorrem boas ideias. Hoje, por exemplo, me veio uma: a de que o melhor que posso fazer pela poesia é não fazê-la mais.
Além de velho e medíocre, era um poeta deselegante e ingrato. Atribuía seu insucesso não aos versos trôpegos e dissonantemente rimados, mas à insuficiente inspiração que lhe proporcionavam suas arredias musas.
Reconheço que não era inteiramente poético o pensamento que me veio no dia em que, tendo prendido a mão numa porta, a condessa se pôs a beijar o dedo ferido: ai, pobrezinho, está doendo muito, está?
E há o caso daquele poeta contraditório que, apresentando-se como defensor dos sonetos, atua ao mesmo tempo contra a causa: toda semana comete pelo menos um, daqueles bem descabelados.
Recentemente convertido às causas sociais, o poeta ainda não se sente seguro de sua escolha. Povo, liberdade e justiça são palavras que não lhe provocam um arrepio nem umedecem seus olhos como ainda ocorre quando pensa em mulheres, flores e passarinhos.
Quem se queixa da vida aos oitenta
Prepare-se para o que virá depois,
Aos oitenta e um e aos oitenta e dois.
Hoje, reconstituindo episódios de sua vida amorosa, ele se sentiu decepcionado e se perguntou se atribuía a culpa ao seu desempenho de jovem ou à sua memória de velho.
Meus leitores andam preocupados
Mas não precisam, nem devem.
Escritores velhos costumam morrer
E escritores mortos não escrevem.
https://rubem.wordpress.com/2020/10/18/a-barriguinha-raul-drewnick/
A história de uma barriguinha
Jamais chega vivo a um porto
Quem chega sem seus ideais.
Meu mar há muito está morto,
Meu porto agora é jamais.
O poeta parnasiano
ao se tornar poeta social
imbuiu-se de uma barba revolucionária
de algumas frases de Che Guevara
e com comichões marciais
trocou por exclamações
todos os seus pontos finais.
Se eu resolvesse escrever uma novela policial, a indispensável mulher ambiciosa, sem princípios e fatal teria como modelo a condessa. Eu seria o milionário que também jamais falta num livro desses, ou o detetive ou qualquer outro tipo - de preferência aquele que fosse mais facilmente atraído, tentado e seduzido pela atraente, tentadora e sedutora mulher.
Morramos nós do que for,
Que seja de algo ditado,
Imposto e determinado
Pelo tribunal do amor,
Pois, sendo ele o julgador,
O castigo mais pesado
Há de ser por nós julgado
Um presente de valor.
A morte mais impiedosa
Será para nós preciosa
Se vier pela sua mão.
Decida o que decidir,
Não iremos resistir,
Não lhe diremos que não.
Um amigo, que como eu se apaixonou pela condessa no seu tempo, comentou recentemente que ela, se quisesse, teria comido inteirinho qualquer homem. Concordei e nos olhamos melancolicamente, com o mesmo pensamento: por que ela, tendo podido, não havia, para nosso prazer e glória, nos devorado?
A condessa tinha o dom, se suspirava, de tornar pecaminoso até o ato de levar aos lábios um pedaço de pão.
Se notam que o escritor está começando um romance erótico, os advérbios se põem à disposição imediatamente, apressadamente, voluptuosamente, lubricamente, desavergonhadamente.
Antigamente, até o mais novato dos passarinhos de um parque reconhecia lá de cima um poeta. Hoje este, para entrar, precisa exibir a carteirinha e o recibo do sindicato.
Hoje teve uma recaída romântica. Mastigava um sanduíche, uma situação mais do que comum, quando certa mulher, a quem dedicara muitos dias e vários maus sonetos, lhe veio à lembrança e lhe arrancou um suspiro que não podia ser atribuído ao pão nem ao presunto. Pensativo e imaginativo, ele olhou para o teto e seus lábios ficaram livres pata sussurrar reverentemente um nome.
Que falta de consideração e de estilo têm aqueles que relatam em detalhes seus pecadilhos de gula, desamor ao próximo e cobiça e resumem em duas ou três palavras seus pecados de fornicação.
Dizem os parnasianos que Deus andou garatujando alguns sonetos e que eles eram quase tão bons quanto os de Olavo Bilac.
Agora me contento com miudezas. Como aquele homem que, tendo sonhado desde menino com viagens fabulosas, passa os dias na poltrona, girando um globo terrestre e visitando todos os lugares nos quais gostaria de estar antes de precisar ir ao definitivo.
Há cem anos um soneto bem-sucedido bastava para garantir a fama de um poeta. Hoje, metade de um já provoca protestos e passeatas.
Aqueles que enaltecem a velhice e depreciam a juventude precisam ter certa desfaçatez ou idade bastante para isso.
Quando dois tolos bem tolos se encontram, é provável que pelo menos um deles seja poeta.
Os amores não correspondidos
dormem do lado de fora
famintos sedentos encolhidos
latindo como cães perdidos
sem nenhuma esperança nos latidos.
Se eu fosse mulher
julieta em vez de romeu
nunca me aceitaria
jamais me toleraria
nunca me permitiria
nem sequer ser vista
com um tipo como eu.
Fizeram o amor
com tanto enfado
que tendo terminado
se atiraram imediatamente
culposamente
a uma nova versão
mais ampla e bem acabada.
Os últimos poetas românticos ainda falavam da alma, porém os leitores começavam a perceber que, assim como acontecera com o amor, faziam versos nos quais não se notava mais nenhuma convicção.
Chegam a ser cruéis, agora, seus sonhos. No mais recente, quando ele se aproximava de um grupo de mulheres, elas se dispersaram. Ao acordar, ele se lembrou de uma piada na qual algumas cachorrinhas que conversavam numa esquina se punham repentinamente em fuga: ih, vamos, vamos logo, que vem vindo aquele cachorro bobo de nariz gelado.
Quando a bela Ismália enlouqueceu, uma prima feiosa e despeitada comentou: antes ela do que eu.
Depois de cada uma das mil trezentas e oitenta e três reformas pelas quais passou a gramática nos últimos vinte e tantos anos, a pergunta esperançosa e aflita, sempre acompanhada por uma decepcionante resposta, é: acabaram com a crase?
Um texto sobre a vaidade.
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Chegou a acreditar que a Morte fosse uma ruiva voluptuosa, e antecipava como seriam prazerosos seus momentos derradeiros quando viesse o dia. Hoje prefere imaginar que a Morte seja só uma voz discreta e assexuada, que não lhe dirá nada além de uma palavra: vamos.
Ama Pessoa, Shakespeare e Dante,
Aqueles livros todos que não leu
Mas enchem de imponência sua estante.
O poeta lírico não precisa conhecer muitas palavras. Com mais ou menos cem - se uma delas for amor, ele pode garantir-se por toda a carreira, se ela, como as rosas dos seus poemas, não for muito duradoura.
Como um passarinho no céu azul e outras singelezas, o haicai passa ao poeta uma falsa impressão de facilidade.
Me digam por favor que vida é esta.
Sinto-me como um defunto inconveniente
Enterrado há dez anos numa floresta.
Esteve tão ocupado com a literatura que a vida só merecia sua atenção esporadicamente, muito esporadicamente.
Do vírus somos joguetes.
Ele escarnece de nós,
Zomba de nossas ogivas,
Mija em nossos foguetes.
Surpreende-me a facilidade com que se altera a minha cotação: num dia sou longevo; no outro, sou decrépito.
Seu sonho é escrever uma daquelas frases curtas, belas e definitivas que costumam com toda a justiça ser atribuídas a Clarice Lispector.
Sentiremos frio
muito frio
e perguntaremos
por que nunca nos disseram
que seria assim
e os outros mortos nos responderão
que era sim
e sempre foi
triste escuro e frio
desde Eva e Adão.
No seu processo de autoconhecimento, descobriu que não era poeta quando não tinha mais idade nem forças para ser trapezista, outro sonho de sua juventude.
Na entrevista, o autor de romances pornográficos declarou não ser candidato ao Nobel, por não se considerar um artista, mas só um modesto servidor da indústria do entretenimento.
Seria muito mais fácil, coerente e agradável dedicar a vida à literatura se ela fosse loira, longilínea e langorosa.
É um desses escritores que amam o que fazem, um legítimo produto da era da autoajuda. Se apresentam algum reparo ao seu estilo, diz que, se aceitasse lições de alguém, seria de Shakespeare. Com uma condição: somente se fossem aulas presenciais. Quanto ao que chama de logística, deixa uma advertência. Shakespeare que venha de carruagem, de tílburi, como puder, porque ele, francamente, não está nada disposto a viajar.
Deus lhe apareceu certa manhã, quando ele tinha doze anos. Mostrou as credenciais e com aquela voz trovejante anunciou: você vai ser um grande escritor, depois eu explico. Em seguida embarcou de novo na nuvem em que tinha descido. Isso foi há setenta anos, e Ele ainda não voltou.
A crônica da quinzena
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Quando, por força dos achaques, passou a viver na sala, a família notou que o sofá, recém-comprado, já não parecia tão vistoso quanto era na loja.
Apesar do descrédito com que costumam ser vistos, alguns velhos poetas têm pelo menos uma notável virtude. Aos oitenta anos, continuam tão inocuamente promissores quanto aos dezoito.
Com a carteirinha, a cesta básica e outros benefícios legais, os poetas desdenharam as flores e os passarinhos e alistaram-se entre os arautos das causas sociais.
Uma noite dessas teve um sonho reminiscente que não foi adiante por um simples desacerto entre números: era 1958, e a mulher a quem ele abria a porta do carro tinha os vinte anos que ele deveria ter então, mas logo viram que ele tinha pelo menos sessenta anos mais.
Nada, nem na infância nem na adolescência, indicava que viria a ser uma estátua na praça principal.
Quando tinha meus vinte anos, eu podia ficar até os trinta sem escrever nada e dizer simplesmente que havia tirado umas feriazinhas. É o que eu devia ter feito. Talvez gostasse tanto das férias que as estendesse até os oitenta. Seria uma bênção para a literatura e um ganho inestimável para os leitores.
Aquela aflição que dava o soneto quando se aproximava o terceto final e o cisne parecia estar destinado ao sacrifício, para maior brilho da chave de ouro.
O jovem leitor vê hoje uma foto de Drummond e não acredita que ele, com aquela cara de mineirinho sossegado, tenha ousado desafiar a velha guarda da poesia e, enxotando os cisnes parnasianos, escolher para os seus poemas protagonistas improváveis como aquele leiteiro, tão eficazes dramaticamente quanto uma donzela suicida de Shakespeare.
É um poeta daqueles antigos. A inspiração o abandonou e há muito ele já não escreve, mas ainda hoje, se sai à rua, é importunado por algum passarinho ou borboleta que pedem participação num soneto.
Antes de se lançar como sonetista
o poeta deve arranjar ou um pseudônimo
ou um bom advogado criminalista.
A literatura poderia chamar-se Eleanor, Elisabeth ou Lindsay e seria tão eficaz quanto qualquer uma dessas mulheres para enfeitiçar um homem, mas muito menos excitante.
Sexo é o tipo de assunto
Que só não interessa a quem
Não estiver mais completamente vivo
Ou já for parcialmente defunto.
Dizer que a vida toda estivemos procurando a beleza é uma presunção que talvez perdoem a quem, como nós, não tem feito nada senão aquilo que é uma obrigação de qualquer escritor: escrever.
Maria amava Mabel
e Mabel amava Maria.
Seria só uma
demonstração de amor
se não fosse um
gracioso exemplo de aliteração.
Quando tocada em seu ponto mais alto, a poesia é, em comparação com a prosa, uma nota de violino soando triunfante sobre o grosseiro ribombar de um trator.
As coisas não são como pareciam.
Eu pensava que usava as palavras
E as palavras é que me consumiam.
Se eu usasse bigode, poderia talvez parecer mais simpático na orelha do meu livro de poesia, se eu lançasse um.
Se eu houvesse começado a escrever mais cedo, não teria para acrescentar ao meu currículo nada além de mais dois ou três anos de aprendizado tão infrutíferos quanto os demais.
O amor seria uma boa justificativa para a sua cara de sonso e esses suspiros fundos, se você estivesse em 1958 e tivesse vinte anos.
Você dizia aquela palavra de sempre e ela despertava um demônio sedento de sexo. Ele se atirava aos seus pés com seus dois metros e punha-se ao seu dispor. Quero tudo, você lhe ordenava, e ele lhe dava tudo até você acordar. Era o seu sonho preferido naquela época. Com pequenas variações, repetia-se. Tantos anos depois, você gostaria de pôr o pé novamente no pescoço do escravo e lhe ordenar: quero tudo. Ele a esqueceu, o formidável e incansável homem, tão diferente daquele que esparrama a carne gorda de marido sobre você, nas noites de sexo protocolar.
Para a menina mais linda, o mais belo nome.
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Se em teus lábios esteve alguma vez a palavra amor, ela deve ter deixado neles uma lembrança, um murmúrio, uma inquietação que um dia pode voltar a se exprimir. Nesse dia talvez lhe dês mais atenção.
Quando diz que é poeta porque assim pede o destino, não é só uma questão de charme. É uma forma de terceirizar uma culpa.
Venturosamente acabou a era dos poetas declamadores, que faziam trovejar palavras sobre o público antes de respingá-lo com perdigotos.
Se lhe perguntam que tipo de amante ele é, sorri com falsa humildade e diz que se enquadra entre os ambidestros.
A netinha de seis anos só sentiu pena do avô já na segunda hora do velório, quando chegou de fora, promissora como um pecado, a voz anunciando pipoca quentinha.
Tão corada e pimpona estava no velório que mais parecia uma substituta sem talento do que a defunta propriamente dita.
Se Deus quiser um dia nos punir
Por julgar nosso afeto demasiado,
Que saiba nossos erros repartir
De forma justa e modo equilibrado.
Que não venha a ti culpas atribuir
Maiores que as que eu tenho confessado
E com clareza saiba discernir
Que a todo teu responde um meu pecado.
Se nós, com nossa incauta demasia,
Ateamos fogo ao fogo que já havia,
Por puro amor ou por devassidão,
Não sabemos dizer, e nem queremos.
O castigo ou louvor que merecemos
Soframos ou gozemos com paixão.
É um poeta modesto. Se precisa de uma estrela, só faz o pedido ao almoxarifado poético se não puder reaproveitar uma antiga.
Ora, façam-me o favor.
Se, para salvar a minha poesia,
Eu precisasse recorrer à autoajuda
E matar um leão por dia,
Não seria um poeta,
Seria um caçador..
Eu esperar grandes coisas da literatura não é um despropósito. Estranho seria ela esperar alguma coisa de mim.
Se Deus houvesse criado também o futebol, eu censuraria o excesso de verde que pôs em toda parte.
Preocupado em desvincular-se do seu vergonhoso passado lírico, o poeta social depara-se com um problema de ordem linguística. Não lhe está parecendo satisfatório substituir rouxinol e cotovia por pardal ou andorinha .
Desde que se tornou um poeta social, é sempre com uma espécie de entusiasmo cívico que toma um ônibus ou entra num elevador.
Por pior que seja o que tens a dizer,
Podes falar, que eu te escuto.
Nihil himanum alienum mihi puto.
O poeta concreto, com o buril na mão,
encara tristemente o bloco de pedra:
falta de inspiração..
Saudade das rimas. Tão agradável era lidar com elas que às vezes chegávamos ao fim do poema sem perceber como e sem lembrar o que tínhamos querido dizer no início dele.
A poesia já se anima a espreitar pela janela. Tem admirado a coragem dos passarinhos, que voam como sempre e saltitam nas calçadas, e imagina que logo ousará também sair, embora ainda não esteja convencida de poder confiar novamente no sol.
Entre nós meninos fez sucesso
Uma pequena e anônima ode:
Tua tia é rica porque p(f)ode!
Desde março são números desiguais.
Num dia morremos um pouco menos,
No outro dia morremos um pouco mais.
Os sonetos foram o cartão de visita dos poetas. Um era conhecido como "aquele dos cisnes", outro como "o das pombas", um terceiro como "o tal das estrelas". Isso antes de de se descobrir que os sonetos não eram propriamente poesia.
Depois dos oitenta anos, a prática da literatura pode se transformar num hábito tão inócuo quanto os remédios da manhã, o cochilo da tarde e o chazinho da noite.
Tenho com a poesia uma dívida antiga que, para felicidade dos leitores, ela não parece interessada em cobrar.
Desde que nos aflige a pandemia,
Mudou nosso conceito de viver
E morrer nos parece agora ser
Nosso único dever e serventia.
Estamos, seja noite, seja dia,
Resignados a ouvir e obedecer
Ao papel que nos deram e morrer
Sem contestação e sem rebeldia.
Num tempo em que se zomba da verdade
E a quantidade vence a qualidade
E vale o que não tem valor nenhum,
Resistamos enquanto respirarmos
Antes de pelos dados nos tornarmos
Mil e tantos mais tantos e mais um.
Alguns defuntos têm uma aparência tão amistosa que, quando o velório chega ao inevitável momento das piadas, aqueles que as vão contando não se preocupam em baixar a voz e até sorriem para eles, como se ainda pudessem ser incluídos entre os ouvintes.
O haicai é um acontecimento tão discreto em sua excepcionalidade que pode passar como se fosse apenas mais uma expressão do belo e não a presença da própria beleza, como ela era no início, sem os falsos brilhos com que os homens ousaram enfeitá-la.
Que falta fazem aqueles poetas apaixonadamente românticos que não receavam declarar amor a uma mulher, a duas, a mil, a todas, sem nenhuma preocupação com o que alguém pudesse vir a pensar deles - ou delas.
Um poeta, se não puder ser tímido, há de ser discreto. Mas, quando disser palavras como rosa ou mulher, deverá parecer a todos que ninguém poderia dizê-las melhor.
Havia na família um contrabandista e um fazedor de versos, ambos não muito importantes em seu ramo de atividade.
Nas fases, cada vez mais comuns, em que receia nunca mais conseguir escrever algo decente, pensa em esquecer todas as promessas e em resvalar de novo para a sombria e pecaminosa região na qual os sonetos esperam ainda atrair alguém com seus ardis de velha marafona.
Loira longilínea é hoje para ele muito menos uma personagem dos seus sonhos eróticos do que uma agradável aliteração.
O cansaço pode ser um bom conselheiro dos escritores. Enquanto os jovens sangram em verborragias, que os mais experientes se acomodem na poltrona e cochilem, porque às vezes o silêncio é a melhor literatura.
Não relê o que escreve. Não por se presumir perfeito, mas pelo receio ver abalada sua confiança de escritor.
Há de merecer perdão quem escreveu insanamente por sessenta anos, se alegar só ter tido isso ou não ter tido nada mais para fazer.
Os seios da condessa eram pequenos mas atrevidos. Fosse qual fosse a blusa que os cobrisse, espetavam nela os bicos promissores.
Na primeira vez em que viu uma mulher nua, era um menino xucro de curso primário e, não conseguindo definir o que era aquilo, riu. Na segunda, e em todas as vezes seguintes, tinha já a consciência de que se tratava de epifanias.
O escritor Fulano de Tal
veio ao mundo
a tantos de tanto
de tantos e tantos
em sua cidade natal
e escreveu bem
e viveu mal
até deixar o mundo
em tantos de tanto
de tantos e tantos
em sua cidade mortal.
Sou só quem eu sou.
Se pela rua vou,
O sol não muda de lugar
Para estar na calçada onde estou.
Todo escritor minimamente honesto deve perguntar-se todo o tempo por que escreve e por que não para de escrever.
Talvez seja só mais uma forma de me apresentar melhor, à medida que meu retrato se torna mais completo, mas venho achando que certas deformidades de caráter e periclitações de consciência são, no final das contas, o que tive de mais autêntico e humano.
Cada vez que me reanaliso, encontro uma pessoa pior. E entendo, com maior nitidez, que meus esforços literários foram uma tentativa de, advogando em causa própria, absolver-me sob a alegação de ter buscado sempre a beleza.
O normal é isto aqui se tornar cada vez mais um diário, com uma nova tendência: não mais a de compartilhar aspirações e sonhos, mas a de falar sobre a crescente impossibilidade de mantê-los.:
Querer ainda ser artista, assim como outros quereres, não é uma coisa que eu possa dizer hoje como dizia ontem ou anteontem.
Pode ser só impressão minha, mas sempre julguei, em termos gerais, a poesia muito mais nobre do que a prosa. Se as duas fossem passageiras de um navio naufragado, seria aceitável que a prosa se salvasse a bordo de um escaler. Já à poesia só se permitiria que atingisse terra firme nadando, num mar de ondas colossais e famintos tubarões.
Os textos que tenho escrito ultimamente são tão desprovidos de brilho que seria presunção demais querer que haja leitores para eles. Bastam duas ou três testemunhas, ainda que sejam de acusação.
A morte do leiteiro de Drummond foi uma vitória do modernismo na poesia. Antes, ninguém se atrevia a abrir espaço, num poema, a um personagem tão prosaico.