terça-feira, 6 de agosto de 2013

A bela e a fila

A fila tinha ocupado todos os espaços que podia dentro do banco e, sob o olhar preocupado dos seguranças, havia avançado para a calçada, onde rapidamente alcançara a esquina. Um camelô apareceu oferecendo amendoim torradinho e outro, mais sortido, apregoando balas, bombons, chicletes, chocolates. Um rapaz melancólico perguntou se era ali que pagavam o seguro-desemprego. Um senhor irritado quis saber se era lá que se desbloqueavam os cruzados. Uma garota assanhadíssima passou e disse à amiga, mais assanhada ainda, que aquele devia ser um dos postos de venda de ingressos para o show do Lulu Santos, enquanto a outra suspirava; "Ah, o Lulu..."
   Eu sabia que ali não se pagava seguro-desemprego, não se liberavam cruzados nem se vendiam ingressos para show nenhum e foi isso mesmo que expliquei à furiosa e bela mulher, de trinta anos no máximo, que tinha chegado para me livrar da vergonhosa situação de último da fila.
   - Se não é nada disso, por que então essa confusão toda aqui hoje? O governo baixou algum pacote?
   Procurei acalmar a graciosa, cujos olhos verdes faiscavam de indignação. Disse-lhe que não havia nenhum pacote, nem sequer ameaça de pacote. Simplesmente era data de pagamento dos trocados que alguém, com mania de grandeza, batizou um dia de benefícios da Previdência. E, justamente numa ocasião como aquela, o sistema do banco resolvera lerdear. Não era mesmo uma praga?
   A formosa investigou a fila com seus olhos de puro verde-fúria, resmungou uma interjeição daquelas grandes, que não cito por pudor, e disse:
   - Você não acha que esses ve...?
   Quando ela interrompeu a pergunta, imaginei que tivesse sido descoberto. Mas a bela logo completou:
   -... que esses velhinhos deveriam ter uma fila só para eles, para não atrapalhar os outros clientes, como nós?
   Restituído assim ao mundo, por falha de avaliação dos magníficos olhos, achei melhor não vexar sua dona com a revelação de que eu era só mais um velhinho atrás de benefício. Para diminuir suas chances de me desmascarar, decidi suspender a conversa no ponto em que estava e concentrei-me no diálogo do homem e da mulher à minha frente. Os cabelos brancos dos dois indicavam que eram ambos do meu time.
   - Este mês o meu dinheirinho não vai dar nem para o cigarro - disse, tossindo, o homem. - Uma vergonha: 35 mil!
   - Eu não posso me queixar - respondeu a mulher. - São só 50 mil, mas como não fumo...
   - 50 mil? Então a senhora é uma marajá, dona, dona...
   - Marani.
   -... dona Marani.
   - Odete.
   - Odete ou Marani?
   - Odete. O que eu quis dizer é que o feminino de marajá é marani. Mulher não pode ser marajá.
   - Ah, quer dizer, então, que as mulheres que exploram o governo se chamam maranis?
   Com ar de ofendida, a mulher encerrou o assunto por ali. Sem a conversa para acompanhar, lembrei-me da bela de olhos verdes. Olhei para trás. Ela não estava. Pensei que tivesse desistido, mas um minuto depois eu a vi saindo do banco. Quando passou por mim, com o polegar para cima, ela cochichou:
   - Faça como eu. Fale com o gerente. Com todos esses velhinhos, se você não se mexer, não vai sair daqui nem amanhã.

(Crônica publicada em 4/6/91 no Estadão, incluída no livro Antes de Madonna, publicado pela Editora Olho D'Água.)

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