Proxenetismo

Há poetas que ainda, aos oitenta e seis, vivem de explorar uma tristeza que inventaram com dezesseis.

Asilo (p/ Hugo Almeida)

 Hoje, no almoço, pensando em ludibriar os lábios, disse repentinamente a palavra primavera. Mas eles se mantiveram murchos. O único prodígio alcançado foi ter escapado deles um grão de arroz e voltar ingloriamente para o prato.

Saudade

Quem me dera que meus olhos fossem ainda aqueles tolos, incapazes de ver a falsidade dos domingos. 

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2024/12/22/a-boa-e-a-ma-sorte-raul-drewnick/

Resumo

Não saberia dizer

se me falta jeito ou sorte,

mas devo reconhecer:

viver nunca foi meu forte. 

Paz

 Como nos conforta saber

que tudo começa a fazer sentido

que ao nada tende o imenso

que ao silêncio tende o alarido.

Perfil

Para me definir

penso que o adjetivo adequado

é antigo ou antiquado.

Circense

 O melhor truque

que mister parkinson me ensinou

é aquele em que eu finjo ser

um boneco de posto

comemorando um gol.

Beleza

 Sempre foi uma mulher modesta. Quando menina, numa tarde de primavera, precisou caminhar três quarteirões para compreender que eram para ela as entusiasmadas saudações do bem-te-vi.

Dupla

 Com olhos de coautor

e minha tosca poesia

eu quis ver na rosa

mais do que uma flor.

Fiz o que pude e até mais

porém Deus jamais

reconheceu minha parceria.

Indícios

 Faz três dias que o gato morreu.

Ainda ontem o rubro asfalto

assinalava o ponto em que deu

seu último salto.

Hoje choveu e se alguém 

quiser ter dele outro sinal

que investigue pela região

caminhão por caminhão

para ver se em algum deles permaneceu

ainda algum pelo branco num pneu.

Do ramo

 Ainda não citaram o livro e ele

se antecipa: esse eu já li.

Chama a literatura

de aquela puta velha

e de Joaquim Maria

Machado de Assis.

Metas

Ainda há duas ou três coisas que pretendo fazer. Conhecer-me é uma delas. Até já combinei comigo: será na primeira segunda-feira chuvosa que houver. 

Ajuste

No processo de partilha, a mulher ficou com os gatos siameses; o poeta parnasiano, com os cisnes parisienses.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/12/08/algumas-faces-do-erro-raul-drewnick/

Excelência

 Você foi uma daquelas mulheres às quais, estando elas entre estrelas ou flores, ninguém comete o disparate de pedir o crachá.

A cena final

Há vinte anos seria mais exigente -

diria o texto há tanto tempo memorizado

ou talvez um melhor

magnificamente improvisado

e iria fechando os olhos devagar

como os fecharia o ator

que melhor os soubesse fechar

Hoje seria diferente -

cansado de esperar

não se importaria

em fechar os olhos depressa

sem tempo nem para gemer

nem para estrebuchar

O intruso

Na sala, onde o gato à tarde dormia, o sofá tem cada dia menos argumentos para estar. 

Precocidade

 Era menino, ainda, quando descobriu que a poesia era a melhor roupa com que podia vestir sua tristeza.

Filosofia canina

 O que o sexo une só as pedradas dos moleques conseguem desatar.

A hora

Sou um daqueles atores

que nunca sabem

se estão certos ou errados

em seu modo de atuar.

Quando a cena final chegar

e eu precisar simplesmente

fechar os olhos 

e parar de respirar

tenho receio de fazer uma burrada

que leve os outros atores a guardar

os lenços já empunhados

e obrigue o diretor a bradar

ah não de novo

e faça a peça voltar

àquela parte em que a cortina se abre

e o figurão de roupa escarlate

com sua voz mentolada 

surge para anunciar

com desfaçatez e alvissareiro

 que era uma vez. 

O principal

Há quem, tendo a alma furtada no metrô, só note sua falta, ao chegar em casa, depois de lastimar a perda do guarda-chuva.  

O mestre e seu mérito

Mister Parkinson não me considera um dos seus melhores discípulos, mas ainda não perdeu a esperança. Hoje elogiou meu desempenho na minha mais difícil atividade matinal desde que ele se tornou meu mestre: pôr a camisa. Disse que venho piorando um pouquinho dia a dia.

Castas

Há os autores normais. E há os autores de nariz empinado. Estes são os autores autorais.

O boêmio

O sol chegou tão furtivo e tardio esta manhã que imaginei o que ele andou fazendo à noite. Resolvi ir ao jardim perguntar às flores se sabiam de alguma coisa. Assim que abri a porta, senti um cheiro forte de rum. 

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2024/11/24/de-sol-ainda-que-so-um-pedacinho-raul-drewnick/ 

Astúcia

Quando receia não agradar, a ficção recorre a alguns truques. O mais comum deles é proclamar-se baseada em fatos reais. 

Detalhe

O escritor também sofre, como não? Com uma agravante: precisa sofrer com estilo.

Essência

Que por imposição da rima

se por outras razões não puder ser

viva sempre formosa a rosa

e formosa possa morrer. 

Espetáculo

Hoje, depois de meses, ele se lembrou do sol e foi espioná-lo por uma fresta da veneziana. Viu que ele não mudou nada. Ainda é aquele ator acordando diariamente o mundo e obstinando-se em reapresentar, como se o tivesse aperfeiçoado, seu único e inalterável espetáculo. 

Coautor

Aprendemos duas ou três artimanhas, escrevemos quatro ou cinco historinhas e, para lhes dar importância, agradecemos a Deus com alarde. Chamados a seis ou sete programas de tevê, lamentamos que Ele não pudesses participar deles, mas transmitimos Suas desculpas e abraços a todos  os telespectadores. 

Argumento

 Se o cansaço é uma boa desculpa, seja lá para o que for, tranquilize-se. Você está bem servido.

Cidadão

 É um desses tipos ordeiros, que respeitam as tradições. Economiza sorrisos de segunda a sábado, para usá-los na defesa do bom nome dos domingos.

A voz

 Se aquela voz misteriosa continuar a assediá-lo dia e noite, oferecendo sugestões para você melhorar sua escrita, pergunte quem está falando. Se ela disser qualquer nome que não seja William, mande-a resgatar a mãe no puteiro, com todos os palavrões de praxe.

Questão de época

 Se eu houvesse sido passarinho quando menino, já teria aprendido a cantar.

À moda da casa

 No meu caso, estilo foi a melhor maneira que encontrei para expressar minha inaptidão.

Cotação

Esta manhã o cérebro, ainda mal desperto, lhe ofereceu uma reflexão: se quiser ser passarinho, como lhe agradaria, precisará melhorar muito. 

Presunção

Aprendeu a reconhecer as armadilhas. Já não se proclama, como ontem, o mais humilde dos homens. Sabe que isso não era senão a mais abominável das presunções. 

Requisito

Às vezes, para se manter autêntico, o poeta parnasiano precisa esforçar-se um pouco. Nessas ocasiões, jamais recusa a companhia de um bom cisne, ainda que seja de mármore.

Dupla falta

No dia em que se desaveio com ela e disse que com ela se desaviu, o poeta rompeu não só com sua doce amada, mas também com a mais severa das damas: a gramática.

Índole

 A musa do poeta concretista tem coração de pedra.

Excelência

 O poeta concretista usa Cimento Votoran.

Ideologia

 O poeta concretista acordou envergonhado. Sonhou com um passarinho.

Credibilidade

 O mínimo que se pode esperar de um problema é que seja sério.

Castigo

O poeta viu-se hoje vítima de um de seus pequenos despotismos. Esquecendo que os havia proibido de frequentar a ameixeira, para preservar seus frutos, lastimou-se porque os passarinhos não foram cantar para ele esta manhã.

Fake

Ela quase se recusou a ir com o príncipe encantado. Ele parecia um vendedor de melancia e seu cavalo marrom, além de não ser alado, mancava um pouquinho enquanto ia soltando pelo caminho pedrinhas verdes, como se estivesse entrando num labirinto.

Inferno

 Hoje, às seis da manhã, foi acordado por um alarido dos diabos. Receou que fossem os adoradores do sol tentando mais uma vez fazê-lo juntar-se a eles. Mas era só um desses ladrões que nos subúrbios mantêm a tradição de ficar saltando de casa em casa, para pilhar as roupas anoitecidas nos varais.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/11/10/frases-anotadas-num-bloquinho-raul-drewnick/

O senão

 Depois de romper relações com o sol, tem uma tristeza: não saber mais como estão as rosas no jardim.

Estratégia

É um desses tipos que vivem bajulando a vida, sempre com segundas intenções. 

A pergunta

 Hoje, não pergunto mais o que farei com os dias; pergunto o que os dias farão de mim.

Descaso

O poeta só notou quanto havia negligenciado sua tristeza, quanto a havia maltratado, quando precisou dela um dia e ela o tinha abandonado.

Artífice

Hoje nem tanto, mas houve tempo em que o velho parnasiano se julgou capaz de, se Deus lhe pedisse, dar uma bela melhorada na cara do mundo.

Bumerangue

Você, que todo dia se queixa de estar cansado da vida, já pensou na hipótese de reciprocidade? 

Diplomacia

Para negociar com o velho poeta, a manhã e o sol enviaram hoje o mais gentil dos passarinhos. Ele cantou horas na ameixeira, mas a única resposta que teve foi: mas nem que mandem a pomba da paz.

Aureolado

 É um santo homem. Os únicos pecados de que poderia ser acusado foram cometidos na década de 1960: meia dúzia de sonetos que fez para uma dançarina cubana, todos tropeçantes, escorregantes e caintes,  mas felizmente publicados só no jornalzinho de um minúsculo município chamado Esperança - destruído por uma sucessão notável de políticos ineptos e inapeláveis voçorocas. 

Sobre pecados e perdões

Ter má memória é uma boa maneira de não precisar ficar importunando Deus para que nos perdoe os pecados.

Vésperas

Enquanto não vem o definitivo, vai se exercitando com seus soninhos de fim de tarde, no sofá. Já sabe que não haverá nada épico nem grandioso. Há muito desistiu de escrever uma daquelas frases que honram um morto, e legado é uma palavra que aguça seu escárnio. Descrente dos sinônimos, espera que se aceite como sua última declaração só uma sílaba: ai.

Partilha

A dificuldade básica, nos processos de separação de um casal de poetas líricos, é decidir a quem caberá ficar com o sol e quem levará a lua. Sem contar o cachorrinho Lulu e a gatinha Mimi.

Cautela

 Especializou-se em textos miúdos, aqueles nos quais é tão difícil identificar alguma poesia quanto negá-la.

Moleca

Não tinha cuspido nem metade dos palavrões que guardara para receber a manhã e ela, atrevida molecona, já estava dobrando a esquina, com a língua de fora e de mãos dadas com o sol. Restou-lhe, como sempre, ficar ruminando seu discurso sobre ancianidade e respeito. 

Mérito

Se algo merece uma alma aflita, que seja o dom de completar-se como passarinho e alcançar no céu o azul mais serenamente azul que escolher. 

Paz

Se soubéssemos, quando tudo começou a ruir, que haveria este tempo de quietude, esta brisa soprando misericordiosamente a pele do pó, não teríamos resistido tanto ao vento que nos fustigava.

Dupla sensação

 Ultimamente venho me sentindo meio alquebrado. Além de um tanto rebuscado.

Versatilidade

A idade às vezes aguça certas habilidades em nós. Hoje estou tão pronto para cair na cama quanto cair dela.

O apelido

Georges Simenon foi um escritor dos mais prolíficos. Produziu tantas novelas policiais que seu apelido bem poderia ser Olivetti. Uma máquina de escrever.

Ponto facultativo

Faz algum tempo já que, assim como havia feito com o sol, dispensou a esperança de estar presente em suas manhãs.

Horizonte

 Esta manhã, ocorreu-lhe pensar que, se tivesse asas, não precisaria ter rumo.

Aviso

 O velho escritor sente que é hora de parar. Já nem corre o risco de desagradar aos leitores. Não tem mais nenhum.

Ficha técnica

 Além da obsessão pela literatura, tenho esta mania de escrever.

Melhor assim

 Abrandando um pouco seu habitual tom dramático, ele resumiu hoje sua insatisfação com a vida numa frase simples: já gostou mais dos dias de sol.

Bis

Um dia, notou que, assim como o guarda-chuva esquecido no ônibus no último verão, tinha perdido toda a esperança. 

Prudência

 Nenhuma alma sensata aceitaria ser a minha.

Truque sujo

Hoje, além dos costumeiros pássaros na ameixeira, a manhã veio tentá-lo com um miado aflito de gato novo. Foi mais difícil manter a janela e o coração fechados.

Direito adquirido

Nascido e criado no seio da burguesia, ele espera que, quando chegar o dia, possa morrer asseado, quentinho e bem trajado.

Respeito

Não permita que em seus lábios as palavras vivam em promiscuidade. Jamais diga rosa logo depois de dizer monturo. 

Resolução

Depois de reconhecer que é mais preguiçoso que diligente, mais incapaz que eficiente e nada resiliente, pensou em desistir da literatura, mas, para não admitir um fracasso total, resolveu que será escritor, sim, mas no máximo bissexto.

Metamorfose

 Uma das folhas lançadas ao vento pela tempestade resiste ainda um momento, tenta assumir-se como pássaro e chega a flutuar como se fosse, antes de se afogar sem um gorjeio como as outras na enxurrada.

A diferença

 A vida é simples; difícil é viver.

Resumo

 De certos amores passados a limpo às vezes não sobram mais do que três ou quatro parágrafos em letra graúda, sem notas de rodapé.

Fase

 Estou naquela fase da vida em que o ceticismo não é um caminho; é o único.

Perfil

Nem sempre sou tão pusilânime quanto imaginam. Às vezes sinto ímpetos. De ceder, por exemplo, de capitular.

Exercícios

Cantar e assobiar é fácil. Quero ouvir quando chegar o tempo de gemer e estrebuchar. 

Política

 Tenho um trato com a vida. Não interfiro nos negócios dela, desde que ela não se intrometa nos meus.

Lição

Depois de tantas vezes ter sido

 caçada, alcançada e ferida,

ela hoje, sempre que pode,

se põe fora do alcance da vida.

Empatia

 Sou um daqueles tolos que, já primeira vez em que ouvem a palavra amor, se interessam pela causa.

Resposta

 Para dar uma resposta aos que o consideram indiferente às causas sociais, o poeta criou uma ONG destinada a cuidar da saúde das rosas.

Estilo

 Ao escritor principiante recomenda-se que dê preferência às frases curtas, bem curtas, e à medida que for evoluindo as encurte ainda mais. Os leitores atuais costumam enredar-se de tal forma em frases um pouco mais extensas que a certa altura não sabem se o sujeito está indo para a Penha ou se já foi e agora vai voltando para a Lapa ou vice-versa.

Subterfúgio

Não sou um perito na arte de viver, nem acho que venho disfarçando bem. 

Noviciado

 Nos últimos tempos, vive se avaliando no espelho e ruboriza como um garoto indo para o primeiro encontro amoroso. Receia que a Morte não vá com sua cara.

Ainda

Alguma coisa em mim ainda se move, tão ardilosa quanto uma falsa esperança. 

Passeio

Veste-se cada dia com mais capricho, como se fosse para uma cerimônia.. Apalpa a todo instante o peito, suspira e olha para a porta. Como se a Morte não tivesse mais o que fazer.

Casmurro

 Desde que se indispôs com o mundo, tem sido coerente. Hoje começou uma campanha de difamação dos domingos.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/10/27/sobre-ter-juizo-ou-nao-raul-drewnick/

Talião

Há algum tempo, já, sei que a melhor maneira de lidar com a vida é ignorá-la. Um caso de legítima defesa.

Pesquisa

Se tiver oitenta e seis anos e lhe pedirem que você diga, apresentando provas, se chegou a haver um período feliz em sua vida, recomendo que comece a pesquisa pelo ano em que você estava com dezoito ou, mais seguramente, com oito.

Precisão

Perderia a hora de acordar e também a de morrer, se não houvesse tão habilmente preparado o alarme para soar às dez horas, com tempo de sobra para embarcar num avião que decolou ao meio-dia e espatifou-se contra um morro dez minutos depois.

Autenticidade

 É um concretista de fato

um daqueles com os quais

a qualquer momento

você pode entrar em contato

e saber com minúcia de centavos

quanto custa um saco  de cimento.

Equívoco

 Alguns sinais mal interpretados em minha infância e em minha adolescência levaram muitos a acreditar que eu viria a ser um velho adorável. Sinto muito.

Quem somos?

Opinamos sobre tudo

somos os senhores do sim

e os detentores do não

O mundo estar bem assim ou não

depende de nossa opinião

Às vezes alguém levanta uma questão

(quem vocês pensam que são? Deus?)

e nós respondemos sim, por que não? 

Alma

 Já não precisa dizer a palavra alma. Basta senti-la desenhada nos lábios para fazê-los sorrir como um menino diante do esplendor de seu primeiro arco-íris.

Satélites

 Só naquela tarde, a terceira depois da morte do gato, ela se deu conta de que fazia setenta e duas horas que o sol não vinha se espreguiçar no sofá, ao lado dela. Apalpando os vazios à direita e à esquerda, sentiu nos dedos o frio da dupla traição.

Confissão

 Gostaria de não ter mais nenhum senso moral, nenhum compromisso ético. Gostaria de poder libertar-me, de dizer bom dia ou boa tarde sem que meu rosto se incendiasse de vergonha.

Aprendizado

 Venho aprendendo alguns truques. Virgulo menos e melhor e estou mais conciso. Ainda me atrapalho um pouco na arte viver.

Lembrança

 Posso dizer que a tristeza e eu fomos amigos de infância.

A palavra

 Aos oitenta você sabe o que sabia aos vinte: a palavra amor pode não salvar uma frase, nem melhorá-la, mas sempre há de justificá-la.

Estatística

Quantos tolos, além de ti, acham que é para eles que o sol desperta e canta o bem-te-vi? 

Compromisso

 Desde que, ainda adolescente, se enamorou da tristeza, vem se esmerando nas difíceis artes da fidelidade e dos meios-sorrisos.

Sinopse

Começou do início

aprendeu todos os truques do ofício

seu ofício transformou-se em mania

sua mania tornou-se devoção

sua forma seu conteúdo

sua devoção um vício

Para ser poeta tem tudo

falta-lhe a poesia.

Oitenta e cinco

Anda cada dia mais lerdo. Hoje, quando conseguiu encontrar os óculos para apreciá-la, a manhã já havia passado.

Maria Josefa

Sim, eu falei de rosas, por que não? Não eram murchos meus lábios e puro era ainda meu coração. Sim, eu falei de rosas, num tempo em que elas não se encolhiam diante de mim e não se recusavam a ser tocadas por minha mão. Sim, eu falei de rosas nesse tempo. Você estava lá, você não se encolheu, você me escutou. 

Destino

 A folha não tem como enganar-se.

É deixar-se levar

Ou deixar levar-se.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2024/10/13/com-ferro-sera-ferido-raul-drewnick/

Carapuça

Se alguém lhes dissesse que escrever é mais importante do que viver, vocês o chamariam, no mínimo, de idiota. É como me chamo.

Missão

Sou um desses rabiscadores de versos que, nomeando-se poetas, se julgam capazes de melhorar o mundo todo e seus arredores. Perguntem às rosas que opinião têm de mim. 

Draminha gramatical

Depois de pôr os pingos nos is, ficou sem tinta para colocar as crases nos às. 

Protagonista

 Achei exagerados os elogios, mas o diretor disse que são merecidos. Depois de um mês de ensaios, estou pronto para a estreia. Quando a caravana chegar à minha aldeia, os espectadores ouvirão os mais assustadores latidos da história do teatro.

Acerto de contas

Vontade de me pegar um dia, me arrastar pela orelha para um canto, dizer tudo que tenho aguentado esses anos todos, os contratempos, as aporrinhações que suportei, me xingar de tudo quanto possa, sair batendo os pés e nunca mais me olhar na cara.

Sem máscara

 Não procuras mais metáforas. Já foste estrela, e te apagaste, já foste barco, e naufragaste. És hoje o que és, e é o que te basta saber.

Câmbio

Não é bom negócio irritar um numismata. Ele está sempre pronto para responder na mesma moeda ou em outra qualquer. 

Genuinidade

Filatelista que se preza não tem vergonha de sê-lo. 

Apenas ele

Só o gramático sabe se, diante de um acontecimento insólito, pode ficar pasmo, pasmado ou pasmo e pasmado.

O único

 O gramático é aquele sujeito que chega ao meio-dia e meia para um encontro em que todos os outros convidados chegam ao meio-dia e meio.

Mortezinha

 Dormiu demais e acabou perdendo a hora de acordar.

Meta

 Se há uma coisa que eu gostaria de aperfeiçoar é a minha tristeza.

Endereço errado

Ouviu o bem-te-vi chamá-lo tão insistentemente esta manhã que resolveu reconciliar-se com a vida por um momento e correu para a janela. Teria respondido à saudação, se o bem-te-vi já não estivesse  cantando na casa do vizinho.  

Etiqueta

Eu gostaria de ter uns fracassos um pouquinho mais bem apresentáveis.

Finesse

Enquanto meus contemporâneos se empenhavam nas colossais tarefas de salvar o mundo ou destroçá-lo, eu, salta-pocinha dos salta-pocinhas, caminhava pelo jardim para ouvir o que tinham a me dizer as borboletas.

O guichê

Devo ser ingênuo, só posso. Atolado nos oitenta e cinco, confesso que às vezes ainda penso naquela história de futuro promissor e espero que se abra repentinamente o guichê no qual entregarei as credenciais todas que andei recebendo nesse tempo todo.

Manifesto

Se me perguntarem, responderei que sou místico. Tenho simpatia pela causa. 

Questão de pureza

Já fui jardineiro. Minhas mãos andaram em tantos livros que as rosas se recusam a ser plantadas por elas. 

Trégua

 Apesar das ressalvas do médico, ele se sente cada dia melhor. Os moinhos continuam a aparecer, mas só na sala, e ele aprendeu que, se fingir não vê-los, não o atacarão.

Molecagem

 Às vezes a vida ainda consegue fazê-lo abrir a janela. Mas é cada dia mais difícil. Funcionam só truques antigos, como aquele de mandar o sol tocar a campainha e gritar correio..

Curriculum vitae

Não, não é isso. Eu tenho feito alguma coisa na vida além de escrever. Olhe, eu carrego oitenta e cinco nas costas. Já pensou? Oitenta e cinco. Dá para ficar oitenta e cinco anos só escrevendo? Então. É o que eu lhe disse. Eu tenho feito algumas coisas. Que coisas? Ah, você não vai querer saber. Umas coisinhas.

O teatro (para Luiz Carlos Cardoso, Oswaldo Mendes e Regina Helena Paiva Ramos)

 Sou como todos  os que vieram antes e os que virão depois de mim. Acho, como eles acharam e acharão, que se deve fazer algo para o dono da companhia. Dos atores que eu conheci, uns, além das belas palavras que diziam, davam piruetas, uns faziam malabarismos, uns engoliam fogo, uns cuspiam estrelas e uns, sem apoios, ficavam flutuando no ar. Uns se foram queixando-se do escasso tempo que tiveram e uns sumiram sem protestar. Estou aqui há oitenta e cinco temporadas e fiz de tudo um pouco. Não sei se permaneço por agradar ou por desagradar. Ninguém viu jamais o dono da companhia - dizem que é um tal de Godot - nem que ideia ele tem do teatro. No início eu me empenhei, mas de uns anos para cá faço tudo igual, sempre igual. Parece que outro ator se apossou de minha pele. Já nem espero prêmio nem castigo, só aguardo a hora de descansar ou (quem sabe?) os que se foram antes de mim talvez tenham hoje outro patrão e possam me recomendar. Pode ser que seja um grupo de comediantes e eu acabe me saindo bem, imitando aquele burro zurrando poemas de amor para a lua.

Gongórico

 É um poeta estroina. Esbanja rimas, dissipa imagens, dilapida versos. Quando ri, estoura tímpanos; quando chora, derrama cachoeiras.

Gramática

O venturoso João amou Maria

de modo completo

até que um revisor

que não conhecia o amor

usando um entendimento incorreto

pôs uma vírgula depois do verbo

e o pobre João assim afastou

de seu objeto dileto.

A poesia hoje

Como mudou a poesia. Era aclamada, incensada, aplaudida. Hoje tem sorte se passar despercebida. 

Classe

Diante dos rouxinóis e das cotovias de Shakespeare, imagino a inveja que sentem meus pardais.

Sobre fatos poéticos

 Poetas costumam estar presentes em acontecimentos como a aparição de um arco-íris depois de um grito de socorro no parque ou a imagem de um menino atravessando a lua montado num pônei. Se alguém lhes atribuir a autoria, é possível que neguem.

A única

Se você sabe qual é a palavra, a única que eu usaria para tentar defender minhas oito décadas de insana busca, diga-me, por favor, que é beleza.

Exemplo

Foi um homem generoso. Na década de 1960, podendo vender sua cobiçada alma ao diabo, cedeu-a em troca de uma noite de amor com uma dançarina de rumba e uma caixa de charutos cubanos.

Justiça

Tenho consciência de quanto não valho. No Dia do Juízo Final, só me chamarão quando começarem a julgar os menores pecados. Não estarão mais na sala nem Steinbeck nem Saroyan. 

Norma

 Se possível, escreva sem premeditação ou, no máximo, como um ato de legítima defesa.

A recíproca

Não, meus amigos, não precisam se desculpar. Às vezes nem eu mesmo me entendo. 

A mão do dono

Seja seu único leitor, se você quiser continuar mandando em suas vírgulas. 

Ter para ter

 Às vezes eu me ponho a pensar como seria bom se eu tivesse o dom da perseverança, mas logo desisto.

Lógica

Não tenho bom senso; logo, existo.

Concorrência

 Esses escritores que vivem falando de Deus e em cada parágrafo se apresentam como seus devotos, gostaria de saber o que diriam se Ele concorresse com eles a uma vaga na Academia.

Autoapresentação

Sou um desses tipos que, se você estiver desprevenido, pode acabar levando a sério. Eu mesmo às vezes me surpreendo ainda comigo e, se me colocar diante do espelho, posso receber-me com um sorriso e até acreditar em minhas palavras, se as disser.

Elite

 Que nós eméritos peritos

doutores em filosofia

mestres em psicologia

nós especialistas em tudo

em forma e em conteúdo

saibamos nossa fama honrar

quando nos couber estrebuchar.

Relação

 De um fato, amor, eu me ufano,

Tu sabes bem do que falo:

Tu seres meu suserano

E eu ser, amor, teu vassalo.

Desmascarando o bom menino

 Famoso por ver pecado em tudo, o velho carola se intromete numa conversa em que duas de suas  vizinhas exaltam o sol como uma inesgotável fonte de uma vida saudável: "Vocês falam como ele fosse um bom menino. Será mesmo? Vocês veem o que ele faz de dia. Mas vocês sabem  que ele faz à noite?"

Sinopse

Viver foi meu mais imenso

E mais doído fracasso.

Viver não é o que eu penso

E nem aquilo que faço.

Lápide de um amante do futebol

 Foram aqueles três malditos pontos.

Plus

Um chato nem sempre é aquilo tudo que dizem. Às vezes é pior. 

Conluio

 Quando dois chatos se reúnem, nem sempre se trata de uma dupla sertaneja.

Função

 Um chato importuno não faz mais do que cumprir sua obrigação.

Impostura

 A vida às vezes se assemelha a um desses chatos que começam se declarando úteis e que, se lhes dermos ouvidos, acabam se arvorando em indispensáveis.

Modo de dizer

 Não foi em vão que leu os clássicos e cultivou arduamente o estilo. Quantos homens mais poderiam dizer com tanta classe, na oitava década de vida, que estão dando os derradeiros passos na estrada da existência?

Ponto forte

Com a idade, vamos descobrindo novos motivos para nos vangloriarmos. Por exemplo: ninguém tosse melhor do que nós. Netos vêm de longe para nos ouvir. 

Isenção

 Uma das vantagens de ser um velho é que ninguém mais pergunta o que você pensa da vida.

Modo de usar

Demora um pouco, mas você acaba aprendendo que a melhor maneira de lidar com os dias é deixá-los passar. 

Boletim médico

Tudo nele hoje é cansaço. Dez degraus lhe parecem vinte, cada gesto é uma façanha, todo sorriso é só meio. Ele vai aprendendo a se economizar. De manhã, não abre mais a janela para dizer bom dia ao sol.

Sobre a alma

 Penso quantas vezes já disse a palavra alma. Sejam quantas tiverem sido, sei hoje que em todas pequei por presunção. Alma não é palavra para estar em meus lábios. Meu nome não é Johann Sebastian Bach.

Sobre tristeza e caráter

As grandes tristezas, as verdadeiras, não arrefecem, não se atenuam, não se extinguem. Quem julga o tempo capaz de remediá-las não demonstra nada além de uma lastimável fraqueza de caráter.

O ardil

Desgostoso com o mundo e com a vida, decidiu fingir-se de morto. Obstinou-se nessa tarefa por meses adentro e anos afora, até que um dia não foi mais preciso. 

Conhecidos

Se eu me lembro do sol? Claro que sim. Não chegamos a ser amigos, coisa assim. Só conhecidos. Faz tempo. Mas o que tem o sol? Não me diga que ele morreu. Muita gente ia ficar triste. 

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/09/29/o-que-nao-se-deve-pedir-ao-amor-raul-drewnick/

Pecados

 Alguns pecados são graves; outros, veniais.

Os de Paris e os de Roma

São pecados capitais.

Meu tempo

Sou um homem do século XX.

Que tempo iluminado foi esse.

Havia livros, e até quem os lesse.

Sinais de vida

Você está vivo, quem há de duvidar? Não é você o velho que gasta os dias tropeçando pela casa, para tapar qualquer fresta por onde o mundo e o sol possam entrar?

Perfil

 Independentemente de alguma pequena virtude ou de algum indesculpável defeito que possam me atribuir, sou só o que sou: um macróbio.

Folha

Há de te agradecer a brisa que te levar. Te sentes hoje tão leve, tão mais fácil de soprar. 

Uns e outros

 Há os que dizem da vida o que ela é. E há os puxa-sacos, que a adulam para ver ela lhes abre as pernas.

Como ela é

 A vida não merece perdão. Nem eufemismo nem lambdacismo. Não é uma melda, é uma merda mesmo.

Jurisprudência

 Se alguém, onde quer que seja, sacar um soneto, aja com presteza. Invoque a Lei do Talião. Saque outro soneto, em legítima defesa.

Maria Josefa

O tempo não me trouxe o alívio suplicado

E ainda hoje, minha pobre amada, me arrepio

E me pergunto, triste, amargo, irresignado,

Se tu tiveste medo, se sentiste frio.

Viagem

Se o amor for o timoneiro,

Não tema a fúria do mar.

Ignore o mapa, o roteiro,

Será doce naufragar. 

Hipótese

 Podíamos ter podido

E até, quem sabe, ganhar.

Podíamos ter vivido,

Mas viver era lutar.

Fora de época

Venho reforçando, nestes meus últimos dias, a impressão de que nasci numa época errada. Disso advém todo o meu insucesso. Mau maior talento, esta tristeza que me canso de gabar, é um artigo de que o mundo parece não estar necessitando nem um pouco. Não preciso sair de casa para encontrá-la. Sentado no sofá, basta-me ligar a tevê para que comecem a jorrar na sala as lágrimas dos ultrajados, a baba rancorosa dos ressentidos, o inesgotável sangue dos inocentes.

Filantropo

Alguns me acham impiedoso,

Porém não sou tanto assim. 

Às vezes sou generoso,

Sinto pena até de mim.

Agenda

 Meu jovem, se a intenção é plagiar, tenho dois conselhos: 1) comece logo por Shakespeare; 2) depois é só continuar.

Na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2024/09/16/sobre-o-que-e-a-esperanca-raul-drewnick/ 

Jaculatória

Que nós, para terminar,

Façamos por merecer

A paz que há em definhar,

O prazer que há em jazer. 

Trajetória

Que fase pífia, esta minha.

Eu, que escrevi sonetões

E percorri quarteirões,

Empaco numa quadrinha.

Comunicado

Escutem-me, por favor,

Me deixem esclarecer:

Se o assunto não for o amor,

Não tenho nada a dizer.

Tarefa

Enquanto não morres, cabe-te ainda abrir as janelas toda manhã e aderir às jubilosas exclamações dos vizinhos: que belo dia.

Definição

Com Borges vim a aprender

Da morte o exato sentido.

Morrer é simples, morrer

É apenas haver vivido. 

De como lidar com a filosofia

Ontem à tarde, sentado na poltrona, com os olhos quase fechados de sono, tive um momento de inquietude, um desassossego que rapidamente ameaçou enredar-me numa antiga questão filosófica: o sentido da vida. Seja qual for, parece-me que dificilmente se chegará a ele pelo caminho da inércia. Sentindo-me culpado, abafei um bocejo e instiguei-me a enfrentar mais uma vez o problema de saber o significado da existência humana. Refleti, analisei, ponderei e chegando, como em tantas outras ocasiões, a conclusão nenhuma, pedi ajuda à psicologia e, para não me julgar totalmente derrotado, marquei minha posição com um lance ousado: saí da poltrona e fui sentar-me no sofá. Se tivesse à mão o chocolate que Fernando Pessoa recomendou à menina, eu o comeria com muito gosto.

Conforto

Ninguém mais hoje vem me visitar.

Ninguém mais sabe onde é que agora eu moro,

Ninguém mais sabe do que eu rio ou choro,

Estou tão morto quanto quero estar.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/09/01/o-inigualavel-ouro-da-juventude-raul-drewnick/

Perfil

Sou um desses tipos normais

dos quais sempre se espera menos

ou em casos excepcionais

muito menos mais.

Maria Josefa

 Comparar-te a uma flor

ou a uma estrela equiparar-te

não seria um disparate.

Já o fizeram com suas amadas

poetas de muito melhor arte.

Eu porém de minha parte

sei que te chamar de flor

ou estrela proclamar-te

seria só uma de tantas formas

de subestimar-te.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/08/18/o-que-o-poeta-e-raul-drewnick/

História

 Se cheguei, vi e venci,

Memória disso não guardo.

Não sei quanto ontem vali,

Mas sei quanto hoje não valho.

Perfil

Sou um tipo soturno, a tristeza sempre foi meu pecado. Nunca andei sequer nos arredores nem de domingos festivos nem de gloriosos feriados.

Maria Josefa

 Houve tardes - o sol há de lembrar-se -

em que ele pedia à noite que não viesse

ou que pelo menos tardasse

para que por mais uns instantes no parque

tua áurea majestade sobre nós reinasse.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/08/04/sobre-a-beleza-raul-drewnick/

Casmurro

É um desses tipos azedos que de segunda a sábado ficam juntando argumentos para contestar a beleza dos domingos. 

Vae victis

 Como não lastimar os mortos

quando o sol juvenil do domingo

vai buscá-los em casa

e já se foram

vai procurá-los na rua

e não os encontra

vai chamá-los no parque

e já não estão?

Expiação

 Os sonetos são o bode expiatório da poesia.

Maria Josefa

Hoje me peguei pensando nesta dor que tua morte me deixou. Ela não se cansa, não descansa, e, sem cansaço nem descanso, gaba-se de me doer cada vez mais. Não merecerá castigo uma dor assim, que não esmorece, não silencia, e se proclama orgulhosa, quase triunfal?

Maria Josefa

 Descansa, minha querida,

Repousa plácida, assim.

Desapega-te da vida,

Do sol, de tudo, de mim.

Maria Josefa

 Hoje que tu já não me acompanhas nos passeios matinais, o sol, como se tivesse se transformado num velho avarento, me segue sem entusiasmo pelas calçadas que levam à praia. Não encontra em mim aquele sorriso que lhe oferecias, nem a graça alegre dos teus passos à medida que se aproximavam do mar. O sol sabe que nunca mais verá como tu voltavas a ser menina quando tiravas a sandália para pisar as primeiras ondas.

Ofício

 De quem sai pelas ruas num carro caquético, apregoando pamonhas de Piracicaba, não se pode dizer que é um poeta, mas certamente é alguém que vive das palavras.

Maria Josefa

 Acredito, com uma esperança que é quase uma convicção, que para certos infortúnios, como a morte de um ser muito amado, nem o tempo consiga oferecer alívio ou consolação.

Fiscal

Cada dia acordava mais cedo, não para  proclamar a excelência do sol, mas para, apanhando a manhã ainda não de todo desperta, melhor apreciar-lhe os defeitos.

Vida

 Foram-se os dias felizes,

Tão céleres quanto vieram.

Os outros, os que não eram,

Em nós fixaram raízes.

Maria Josefa

 Mulher, não vos vejo mais,

Rainha, sou vosso cativo,

Só para servir-vos vivo,

Dizei-me, rainha, onde estais?

Posteridade

 Somente um tolo ou sandeu

Em coisa melhor crerá.

Se glória a vida não deu,

Tampouco a morte dará.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2024/07/21/sobre-viver-raul-drewnick/

Frase num bilhete amoroso

 Que, se um dia eu cair numa esparrela, que seja na sua.

Têmpera

É um daqueles parnasianos inquebrantáveis aos quais pode faltar um franguinho para o almoço, mas jamais um bom cisne para um soneto.

Inveja

 Dois motivos para eu invejar Camões: foi poeta; está morto.

Cartão de visita

 Eu serei sempre quem viu

Que tudo ao redor ruía

E se entregou à apatia

Até que tudo ruiu.

Convite

 A literatura é um dos melhores modos de aprender que o lado ruim da vida talvez seja o único.

Maria Josefa

 Rainha, nós perdão viemos rogar.

Erramos. Tão serena tu dormias

E tão bela tu estavas e sorrias

Que nenhum de nós quis te despertar.

Maria Josefa

Fui relapso com você nas grandes e também nas menores coisas. Soube pouco de você. Nada me absolverá dessa culpa, nada a aliviará. Como eu gostaria de ter agora resposta para pequenas dúvidas que me atormentam. Desde o dia em que você se foi, eu me pergunto se você era friorenta. E peço, e rogo, e rezo para que não, não, não.

Maria Josefa

 Há homens que tardam a se dar conta do que ocorre ao seu redor. Conheço um que, tendo vivido décadas sob a guarda de um anjo, só notou isso quando seu protetor, chamado para missão mais nobre, se foi.

Maria Josefa

Sei, já, que onde estás é um lugar encantado. Eu o vi esta noite, em um sonho que te conto agora. Eras uma menina e estavas sentada numa nuvem, com outras meninas. Um pouco acima, uma mulher que chamavam de mestra. Ela olhou para suas pequenas alunas e convidou: "Meninas, vamos saudar a nova colega?" As garotas se levantaram alegremente: "Bom dia, estrela."

Régua

Sonetista é aquele tipo para quem a vida sempre cabe num decassílabo. 

Maria Josefa

Quando falo de ti ou contigo, gostaria que não estivesse presente a literatura. Que eu nunca venha a usar teu nome como o clown do circo de periferia usa a buzina para pedinchar o aplauso do sonolento espectador do último degrau da arquibancada.

Maria Josefa

 Fomos buscar-te hoje ali onde te consumiu o fogo. Nós te colocamos no centro da mesa, na sala, e trouxemos para fazer-te companhia o vaso com a flor-de-maio. Lá ficarás até o dia em que, cumprindo tua vontade, te levaremos para espargir-te no mar que amavas tanto.

Maria Josefa

 Sobre teu caso com a vida

O que eu te posso dizer

É que tu amaste viver

E foste correspondida.

Ser

Tantas coisas fui

quantas julguei ter sido

Fui grande

fui nem tanto

fui talvez

De tudo quanto fui

ou julguei ser

sou hoje nada

sou hoje só ex. 

Maria Josefa

Certa noite um homem, incumbido de zelar por uma rosa silvestre, julgando irrelevante a tarefa e muito fria a brisa, foi para sua casa e, depois de tomar um chá, adormeceu. De manhã, despertado por um vento feroz e uma voz acusadora como uma maldição, soube que não havia mais nem rosa nem tarefa, Eu sou esse homem, minha rosa.

Requisitos

 Aos jovens de hoje falta aquela coragem básica, aquela tolice desembestada, aquela sandice que devem ter os que merecem morrer de amor.

Maria Josefa

Soldado teu

sobrevivi a ti minha rainha formosa

para que voz nenhuma do mundo

possa negar sem resposta

tua alma de pássaro

tua essência de anjo

tua identidade de rosa. 

Maria Josefa

 Por que foi, minha rainha,

Que quando tu me deixaste

E a alma contigo levaste

Também não levaste a minha?

Maria Josefa

Se já não mais os desta hora,

Se não mais os desta vida,

Que sonhos sonhas agora,

Minha bela adormecida?

Maria Josefa

Depois que você se foi, cheguei a pensar que ele não viria mais. Mas o sol tem aparecido toda manhã e, vendo fechadas as janelas que você lhe abria, desce ao jardim para perguntar às flores o que aconteceu. Depois, segue seu caminho, desenxabido como o menino doentinho a quem jamais terão a coragem de dizer que sua professora nunca voltará.

Maria Josefa

 Se hoje escrevo mal ou bem,

Já não me importa saber.

Hoje escrevo para quem

Já não pode mais me ler.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2024/07/07/essa-especie-de-amor-raul-drewnick/

Maria Josefa

 Habituado às pequenas gentilezas

com que viciavas este menino teu mimado -

ajudar-me a dar o nó da gravata

a fechar os botões da camisa

a colocar os pés nos sapatos -

eu se pudesse falar-te agora

começaria provavelmente

não pelas fastidiosas juras de amor

mas por perguntar-te miudezas

A primeira seria se tiveste medo

a segunda se estás com frio.

Sabedoria

 Minha maior sagacidade é ter aprendido a não ficar esperando mais notícias depois de receber a pior.

Maria Josefa

No fim já não falavas comigo

Eu dizia te amo

tu não respondias

eu repetia te amo

tu não dizias nada

E eu tolo pensei 

que eras outra vez

a menina que quando se zangava 

me punha de castigo

e jurava nunca mais falar comigo.

Maria Josefa

Sei agora que devia

ter tentado acordá-la

mas você estava tão corada

tão rosa tão menina

que eu quis acreditar

que fosse só uma

brincadeira uma travessura

que você estava a me aprontar.

Maria Josefa

O amor terá o nome que lhe deres.

O meu, quando eu o chamo, deixa no ar

As sílabas que cantam ao chamar

 A mais gentil de todas as mulheres.

Maria Josefa

 Em um ano agora já da categoria dos remotos

1958 talvez 1959 ou 1960

em algum lugar desta gélida São Paulo

na Sé ou na Ipiranga quem sabe na Barão

o sol a seguia reverente

como um súdito acompanhando sua rainha

Foi essa a imagem que me veio

e eu disse a você e você

me beliscou e me disse seu bobinho

Eu guardei o seu beliscão 

como um súdito guarda 

o lenço que furtou da sua rainha

e fomos caminhando assim 

o sol sobre seus cabelos

eu orgulhoso à sua sombra

até um cinema qualquer

para um filmezinho de domingo

Foi um sinal o primeiro

dessa descuidada majestade

que você nunca reconheceu

mas que me iluminou e aqueceu

até seu brilho derradeiro.

Predadores

Quem há de confiar ainda em ti?

O que tiveste de mais precioso

teu melhor ouro teu tesouro

deixaste que entrassem em tua casa

empilhassem tudo em uma caixa

e se fossem enquanto

sentado em tua covardia

ouvias os cantos jubilosos dos predadores.

Maria Josefa

 Minha alma se foi hoje. Não lhe custará chegar ao céu. Jamais custou aos passarinhos.

Alegação final

Ter amado a beleza e ter vivido para buscá-la pode parecer uma justificativa fútil e pretensiosa para a existência de um homem. Eu não tenho outra.

Gata

Tive, há muitos anos, uma dessas gatas de hábitos morosos, às quais o tempo sempre concede uns instantes a mais, para que, ao se espreguiçarem, possam estender todo seu garbo no sofá.

Sagrado

 O Corinthians é um daqueles assuntos dos quais só a alma e o coração devem tratar.

O tirano gentil

Devo ser justo com mister Parkinson. Ele às vezes me surpreende. Como ontem. Eu estava anotando uma lista de compras. Quando a terminei, ele elogiou minha letra. Eu me comovi. Agora leia para mim o que está escrito, que eu não estou entendendo, ele pediu. Mister Parkinson é assim. Tem seus instantes de bom humor.

Questões

 A vida é uma questão de jeito,

A morte é uma questão de tempo.

O fim

 Na etapa agora, a final,

O mal me parece bem,

O bem me parece mal,

E mais nenhum me convém.

Maria Josefa

 Na noite daquele inolvidável maio, quando eu disse teu nome no parque, o vento, abrandando-se em brisa, foi compartilhá-lo com as flores.

Preferência

Meu ato preferido é descansar.

Nada existe que agrade mais a mim

Que estar deitado, adormecido assim,

Tão morto quanto um vivo pode estar. 

Hipótese

Eu fui talvez, algum dia,

Um homem predestinado

Que melhor homem seria

Se não tivesse gorado.

Óbvio

Ninguém sabe mais do seu futuro

do que o profeta e o morituro. 

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/06/09/artimanhas-do-destino-raul-drewnick/

Maria Josefa

Que belo é teu nome. Não

Há nenhum capaz de ser

Tão suave, tão doce, tão

Ameno de se dizer. 

Ocaso

Declinas como um sol de outono 

derramando o último ouro seu num lago.

Emudeces como os lábios agradecidos de um monge

aquietando-se depois de uma oração.

E se definhares amada minha hás de definhar

como depois de um longo e feliz reinado uma rainha. 

Reprise

Se eu merecer ir para onde fores, talvez haja ali domingos como aqueles de 1958 e possamos andar de mãos e corações dados, como andávamos por esta nossa São Paulo a caminho do Cine Metro, quando a mais doce das tolices nos declarou enamorados.

Maria Josefa

Toda vez que digo teu nome, preciso dizê-lo baixo. Se o digo alto, logo em meus lábios pede passagem, enciumada, outra palavra: amor. 

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/05/26/de-glorias-e-gloriolas-raul-drewnick/

Por quem

 Sol esplêndido

quando brilhas assim

pelos vitoriosos 

pelos ditosos

pelos venturosos

sei que não brilhas por mim.

Quadrinha

Sonhei que tinha morrido.

Fiquei feliz, pode crer,

Como nunca havia sido

E nunca mais hei de ser.

Acontecimentos

Nesta fase da vida eu, já descrente das grandes descobertas, venho me encantando com acontecimentos miúdos. Sei que posso comer com a colher tão bem quanto fazia quando tinha um ano e que é mais difícil vestir uma camiseta do que escrever um poema.

Metros finais

A diferença é que em outras épocas da vida eu estaria implorando por salvação. 

Modo de usar

 Quem lida com poesia deve ter dedos leves e sabedoria para usá-los.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/05/12/papagaiadas-raul-drewnick/

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2024/04/28/sexo-em-cinco-pilulas-raul-drewnick/

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/04/14/esse-william-shakespeare-raul-drewnick/

Impressão

 No dia em que nos couber a vez, talvez descubramos que morrer não será propriamente uma novidade.

Glórias

Com os outros sucedem fatos notáveis -

aclamações

consagrações

condecorações

Comigo decepções

humilhações

desilusões -

só fatos comuns

só coisas viáveis.

 

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/03/31/um-tantinho-de-mario-quintana-raul-drewnick/

Licença para sonetar

Difícil é a vida de quem hoje resolve fazer um soneto. Muito antes de escrevê-lo, deve ir pensando no melhor pretexto para apresentá-lo quando o concluir e escolher ouvintes que, se não forem receptivos, não sejam totalmente hostis. Uma das desculpas mais frequentes é lançar o descalabro na conta de um súbito acesso de sentimentalismo, e as principais vítimas costumam ser os amigos mais próximos. 

O melhor

O melhor que me acontece

Não é quando o mundo chama

Por mim, quando me reclama.

É quando o mundo me esquece.

Mister Parkinson e eu

Aos poucos, vou descobrindo em mister Parkinson fraquezas que, por seu orgulho, ele jamais admitiria. Hoje eu o surpreendi nos cinco minutos agônicos em que, debatendo-se espasmodicamente, ele conseguiu afinal enfiar-se na camiseta para a caminhada matinal. Fingi não ter visto nada, vesti-me também, como pude, e saímos para o sol da manhã, assobiando, ele um pouquinho melhor do que eu.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/03/17/o-que-voce-viu-em-mim-raul-drewnick/

A causa

 Há vários anos já sem ver um arco-íris, o velho poeta deplora a avareza dos deuses, quando deveria lastimar-se pela crescente incapacidade dos seus próprios olhos.

Resiliência

Venho resistindo à infame tentação de debitar a mister Parkinson minha incapacidade de escrever duas linhas decentes sobre seja que assunto for. Mas meu espírito cristão anda fraquejando.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/03/03/os-salvadores-do-mundo-raul-drewnick/

Sobre alma e dores

 Hoje eu me peguei pensando que também a alma talvez seja um daqueles fenômenos típicos e exclusivos da juventude. Senti saudade do tempo em que ela, nos percalços amorosos, me doía docemente. Que diferença das dores prosaicas de agora: de estômago, de garganta, de panturrilha, de rim.

A tentação da poesia

 Às vezes a poesia, furtivamente, ainda me acena e tenta enredar-me de novo em seus encantos. Fala-me de amor, como antigamente, e me pergunta como pude me esquecer de tantas coisas mágicas que vivemos. Chama-me de ingrato, acusa-me de não ter alma e, sabendo como sou sentimental, cantarola uma daquelas melodias que cantávamos outrora, e incita-me a dançar como dançávamos em nossa época dourada.. Foi assim hoje. Eu caminhava aspirando o morno aroma do verão, quando ela veio, com seus ardis. Quase me entreguei. Mas mister Parkinson, sempre atento ao que é bom ou mau para mim, puxou-me rapidamente e, como um pai zeloso afastando o filho de um lupanar, me trouxe em segurança para casa.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/02/18/a-palavra-felicidade-raul-drewnick/

Batalha final

 As árvores morrem de pé

e assim também os bravos.

Eu porém herói moderno

quero morrer de modo hodierno

num hospital conceituado

num leito executivo

com ar condicionado.

Fase

Comigo ninguém se importa mais -

nem os amigos devotados

nem os inimigos figadais. 

A tarefa

Tem ainda, como aos dezoito anos, um bloquinho e uma caneta, mas não mais a ambição de salvar o mundo pela poesia. Dizem-lhe que o mundo já foi salvo inúmeras vezes, que continuam a salvá-lo e vão citando os nomes dos salvadores. Ele os anota no bloquinho. São tantos. Logo não haverá mais espaço para nada, se um dia o mundo lhe pedir socorro.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/02/04/como-lidar-com-um-gramatico-raul-drewnick/

O gosto

Hoje no jardim você se lembrou do dia em que a abelha enciumada feriu sua boca quando você disse a palavra amor. Hoje você não a diz mais. Você receia o gosto que possa ter o pão nos seus lábios, depois que você a disser.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/01/21/o-bardo-entre-nos-raul-drewnick/

Cota

 Agora que já ao fim

Me submeto, e aos seus rituais,

Os dias farão de mim

O que quiserem - ou mais.

Epifania

Chamei por Deus e a resposta foi um bulício na ameixeira, como se em um dos seus galhos estivesse nascendo um passarinho.

Rotina

Depois de seis décadas de exercício da literatura, há momentos em que ele boceja sobre um texto e se sente como um funcionário público exemplar a caminho da segunda aposentadoria. 

Autoajuda

 Assim como o sucesso, o fracasso é às vezes fruto de uma tenaz, incondicional e obstinada perseverança.

Ingratidão

Sempre dei menos do que me deram.

Não posso queixar-me. Tive amigos,

Os amigos não me tiveram. 

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2024/01/07/o-pecado-de-casimiro-de-abreu-raul-drewnick/

Ontem/hoje

Zombei de tantos, escarneci de tantos, e no entanto agora só não babo também na gravata porque minhas mãos não conseguem colocá-la no pescoço.