domingo, 30 de novembro de 2014

Expectativas

Apagar tudo, esquecer,
Deitar, cochilar, sonhar,
Entrar no lago e afundar,
Beber toda a água e morrer.

Prestação de contas aos leitores do blog

Nesses últimos cinco anos, tenho tocado aqui a tecla do desencanto. Não poderia tocar outra. Os ideais se foram, e a vida se tornou um mero desenrolar de dias. Este blog, que é uma espécie de diário desses cinco anos, não poderia ser senão o que tem sido. Dez por cento dele - a parte representada por textos alheios - podem ter sido interessantes para os leitores. No mais, sempre esta automortificação e estas confissões de um morituro. Como já fiz outras vezes, peço desculpas. E, ainda que seja estranho, recomendo novamente que é melhor não me lerem mais. O que tenho escrito aqui, se algum valor tiver, será o da sinceridade. Se a alguém interessarem os textos, será à minha família, na improvável hipótese de ela os ler, e ao meu psicanalista. Creio que, como todos os escritores, até os verdadeiros, o que faço tenha a intenção de me render palmas. Para recebê-las, eu seria capaz de, se fosse uma celebridade, prometer bônus a quem me lê, como talvez anunciar em primeira mão meu suicídio, dez minutos antes de cometê-lo. Como sou anônimo até entre meus vizinhos, continuo só com os duvidosos trunfos das derrotas diárias e da narração delas, com a minha parca literatura.

Leitmotiv

Em tudo quanto eu escrevo,
Só tenho o  amor entre os temas.
Ele é e será o enlevo
E a inspiração dos meus poemas.

Porque sim

Quando penso nos motivos pelos quais amo a literatura, sinto-me tentado a responder como as crianças: porque sim. A idade adulta tem o inconveniente de precisarmos dar explicações, enumerarmos causas, empilharmos argumentos para responder a perguntas que ficariam muito bem respondidas com essas duas palavras: porque sim.

Classe

À poesia nunca fica bem abrir as pernas. É mais coisa da prosa.

Torneios sexuais

Estarmos mortos é tudo
Que no final sobrará
De tanto dá mas não dá,
De pode, sim, mas, contudo.

Saldo

Com as nossas perdas lançadas
E os prazeres subtraídos,
Com as contas todas fechadas,
Estamos todos fodidos.

Fora de tudo

Já morto estou. Não reclamem
Se eu faltar às bacanais.
Não me convidem, não chamem,
Que eu não irei nunca mais.

Simplicidade

A luz é opaca,
A sorte é incerta,
A carne é fraca,
A morte é certa.

No asilo

Na hora de tomar a sopa, nós atuamos como uma orquestra. Sorvemos todos ao mesmo tempo: dezesseis velhotes ávidos afugentando as duas horrorizadas irmãs de caridade que nos servem. Elas saem correndo do refeitório e só voltam quando não há mais gota nenhuma em nenhum dos pratos. Quando chegam com a sobremesa, ainda está no rosto delas o asco que provocamos. Sorrimos. Não é maldade. Vejo mais como uma travessura. Pobres irmãs. Amar o próximo é uma desgraça.

Definição

O amor, se pensarmos bem,
Com toda a nossa isenção,
É só uma distração
Enquanto a morte não vem.

Liquidação

Vou colocando aqui tudo que me calha escrever. Logo haverá na frente do blog uma placa: passa-se o ponto.

Mordida

Quando ela me leva à beira da insanidade, mordo meu pulso como se fosse sua jugular. Depois sopro sobre ele palavras adocicadas.

Se ela

Se ela demora para dizer amor, seus viciados lábios fazem beicinho.

Estoque

Se não fosse o amor, o que eu faria com minhas lágrimas?

Antigamente

De homens como eu se dizia que não tinham conteúdo, só verniz.

Cotação do dia (2)

Quando penso na morte, é como se surpreendesse um vento benfazejo abrindo a cortina do quarto.

Portos

Eu, que a vida esperdicei
Na busca insana de portos,
Agora só buscarei
O reino ignoto dos mortos.

Extrato

No fim, apenas sobrou
Um pouco do que fui eu.
Minha alma me abandonou
E meu corpo apodreceu.

Jeito

Morrer de amor é uma das coisas que melhor faço.

Dupla ação

O amor, porque somos seu brinquedo, nunca nos mata sem nos ressuscitar.

Cotação do dia

Se os amigos nos observassem melhor, saberiam que há muito estamos mortos.

Os domingos

Os domingos mais tristes são esses de sol pleno, como os de hoje, que insinuam caminhos que não percorreremos.

Ana C.

Ninguém melhor que você
Para chamar a ternura,
Para cantar a amargura,
Ninguém melhor, Ana C.

Sanguessuga

O amor é aquele patife
Que nos lesa totalmente,
Contínua e implacavelmente,
Desde o berço até o esquife.

Empréstimo

Estamos aqui emprestados pela morte. Ela é quem sabe o prazo e as condições.

Estilo de vida

"Se eu lucrar dez reais por dia com as paçoquinhas e as balas de goma, já tá bom. Eu não sou luxento."

Orçamento

"Vô, levanta e vai cochilar um pouco na sala, que a Naldinha chegou com um freguês."

Perfeito

O amor é a ocupação ideal para um sonso como eu. Vê a minha cara.

Umbra

Agora que para as frutas
Já não te servem os dentes,
Melhor a sombra desfrutas
Ao som das folhas cadentes.

O quê?

Não tenho nada a dizer.
Não sei do ser ou não ser.
O que há de novo em viver,
O que há de novo em morrer?

Equívoco

Escrever bem quase nunca é fazer literatura.

Formigas

O chicote do amor deixa uma trilha de açúcar em nossa carne.

Inépcia

Para cantar a beleza,
Não usemos nossa voz.
Para encontrar a pureza,
Não a busquemos em nós.

Um poema de Guiilaume Apollinaire

"O maio o belo maio enfeitou as ruínas
De hera de vinha virgem e roseiras
Do Reno vento agita os vimeiros nas beiras
E o junco falador e as flores nuas das vinhas."

(De Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)

sábado, 29 de novembro de 2014

Chaves

Tuas piadas todas, Chaves,
E os gestos de tua mão
Se transformarão em aves
E pelo céu voarão.

Por

Por minhas noites de insônia,
Pelos meus dias de drama,
E porque és meu amor, me ama,
Mesmo que com parcimônia.

Opção

A insanidade é uma questão de escolha. E ele já há muito tempo a fez.

Espelho

Sempre que me encaro assim,
Vejo que só um sandeu
Exatamente como eu
Daria importância a mim.

Cotação do dia (III)

É triste quando nos falta coragem para a única viagem que realmente muda alguma coisa.

Verniz

Uso a poesia para dar uma feição triste à minha insanidade.

Futuro

Não sei de nada, nem quero.
Na vida não mais me fio.
Só na morte hoje confio,
E por ela anseio, e espero.

Poesia e prosa

Há quem considere poesia só a romântica. Venturosos estudantes, tímidas colegiais, vovozinhas zelosas, para quem os maus hábitos, a libertinagem e os pecados em geral, se encontram eco na literatura, é sempre pelo sombrio caminho da prosa.

Pecado

Meu vício mais sério sempre foi a poesia. Meu contato inicial com ela foi morno, lânguido, doentio. Só viria a  ter impressão igual anos depois, numa rua de ar salgado, posta a serviço do lenocínio.

Cotação do dia

Sinto-me cansado, imundo,
Tenho nojo de ser eu.
Eu não entendi o mundo
E o mundo não me entendeu.

Mantra

Acredito ainda no meu mantra: amor, amor, amor. Digo, repito, espero. Amor, amor, amor.

"Carta a um candidato aos exames imperiais", de Yu Xuanji

"Fiz poesia, triste e quieta no meu canto
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso

Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais.
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria

Acaba a música, rompeu-se o instrumento
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina
É primavera, passa ao rio este momento."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Fernanda Lima

Se o tema a ser discutido
For beleza ou obra-prima,
Mencionar Fernanda Lima
Faz sempre todo o sentido.

Parafraseando George Best

Gastei noventa por cento da vida com o amor. O resto eu desperdicei.

Uniforme

Na minha camisa de força há um coração atravessado por uma flecha.

Propina

Não precisa abrir a mala. Quero a minha parte em amor.

Tenho a caneta, o caderno,
O peito pleno de amor.
Sou apaixonado, terno,
Falta-me ser escritor.

Sensível

Sou o cara mais sonso do mundo: sinto o amor em cada poro.

Proporção

Besta não é quem sofre por amor. É quem sofre pouco.

Tanto faz

Continuarei falando de amor. Ninguém se importa, mesmo

Indiferença

Era frio. Dava de ombros
A tudo, e a nada ligava.
Nem o edifício exaltava
Nem lamentava os escombros.

Final

Do grande amor morreu tudo.
Lembrança dele não há,
Senão muito vaga, já
Sem forma e sem conteúdo.

Vir a ser

Não é o que foi que eu choro.
Isso já está esquecido.
O que me dói e eu deploro
É o que podia ter sido.

Rosas

Se penso em ti, uma rosa
Desperta no meu jardim.
Se em mim não pensas, formosa,
Uma rosa morre em mim.

Cotação do dia

Em São Paulo, carretas desatinadas derrubam viadutos, enquanto o amor falha mais uma vez e não cumpre a promessa de remover montanhas.

Trecho de Katherine Mansfield

"Estou escrevendo para você do Café Mathieu. Está um dia divino, quente. Estou sempre pensando, e pensando em você, meu querido, e desejando, e desejando - você sabe o quê."

(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan,)

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Desencontros

Enquanto ela busca um homem
E ele procura Mercedes,
O amor sucumbe de fome
E o afeto morre de sede.

Emoticons

Bom nos comunicarmos só assim, com esses emoticons. Te mando uma careta, me respondes com outra, e vamos indo. Palavras, nunca mais. As palavras nos assassinaram.

Último

Ele a beijou como quem
Todo o gosto já perdeu
E a si mesmo prometeu
Nunca mais beijar ninguém.

Comme il faut

Não há por que me gabar.
Amei com todo o fervor,
Até matar-me de amor.
Há outro modo de amar?

Tédio

São longas as tardes aqui no asilo. O sol parece que dorme lá em cima e esquece de ir embora. Já tentamos antecipar o horário, mas as irmãs nunca servem o jantar antes das sete.

No asilo

Ontem morreu aquele velhote que sempre contava a mesma história, do tempo em que foi casado com a Greta Garbo. Ele dizia assim: "Quando contraí núpcias com a Greta..."

Sonso

Em matéria de amor eu sou como um menino de dez anos, mas sem juízo nenhum.

Cotação do dia

Sinto-me como o personagem de um romance russo. Ouvindo Tchaikovsky no salão, você, condessa, espera há três dias que eu morra aqui fora, de fome, na neve.

Com e sem

O amor é aquela balela
Sempre igual, do início ao fim:
Insuportável sem ela
E com ela muito ruim.

Ampulheta

Perdoem-me se falo cada vez mais de amor. Tenho cada vez menos tempo.

Condescendência

Mesmo que ele fosse um ogro
bom seria se o pai de Scarlett Johansson
fosse meu sogro.

Prado

Gostaria, quando falo de amor, que se abrisse diante de mim um verdíssimo prado, por onde pudesse correr meu coração, esta lebre alvoroçada.

Livros

O de odes não concluirei
E o de sonetos jamais.
A vida desperdicei
Toda em quadrinhas e haicais.

Seis versos de Friedrich Hölderlin

"Os meus pais? E os amigos, se ainda forem vivos, de outras coisas
Desfrutam, já não me pertencem.
Chegarei, como sempre, e pronunciarei os antigos
Nomes bem-amados, interpelarei o coração, para vibrar como dantes,
Mas eles estarão em silêncio. Assim o tempo muitas coisas
Une e separa. Eles julgam-me morto e eu a eles."

(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Atestado

O amor ainda é o melhor modo de alguém ser reconhecido como insano.

Fresta

Se você espiar sorrateiramente, me verá andando pela sala à noite e declamando meu triságio: amor, amor, amor.

Persistência

Eu lhe diria só uma coisa: que sou ainda o mesmo tolo de cinco anos atrás.

Assunto

Louco, idiota, cretino, sonso ou tonto, continuarei falando de amor.

É o que era

Rememorando agora, o amor parece o que era: uma tolice, uma fantasia. Pena que não tenha durado um pouco mais.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é uma dessas circunstâncias em que o belo se exerce na sua plenitude.

Aquele, sim

Sou aquele que o amor espezinhou. Tenho as marcas ainda. São meu orgulho.

Eu

Eu sou aquele chato que só fala de amor e, quando para, continua a falar.

Limiar

Quando o amor me leva à beira da insanidade, mordo meu pulso como se fosse sua jugular. Depois sopro sobre ele palavras adocicadas.

É

O amor é essa loucura que me mantém respirando.

Se ela

Se um dia ela escrever amor em meu peito, que seja com as unhas de intenso escarlate.

Causas

A literatura e o amor são as mais graves deformações do meu caráter.

Cartas

Da gaveta, onde por trinta anos dormiram, as cartas de amor foram parar num lixão em que destoam como lírios num matadouro.

Cotação do dia

Os passarinhos têm vindo ciscar no meu colo. Não descobriram uma santidade que não tenho, mas sabem que minhas mãos não têm mais força para magoá-los.

Sim e não

O amor, por definição,
É coisa dessas assim
Que dizem não quando sim,
E dizem sim quando não.

Amor meu

Amor meu, belo, esplêndido, inocente,
Amor intenso, pleno de grandeza,
Amor meu, paradigma da beleza,
Tão vivo, e morto tão precocemente.

Às vezes

Às vezes, como hoje, olho-me no espelho e digo: aí está mais um que foi aniquilado pelo amor. E uma felicidade absurda me invade.

Haicai

O vento no cio
Espreita e febril se deita
No dorso do rio.

Negativo

Quando eu me for lembrarás
De mim, talvez. Pobrezinha!
Para uma boa coisinha,
Ou duas, tantas tão más.

Mimo

Que me desprezes aceito.
Quem sou para censurar-te?
Mas olha: para louvar-te,
Sangro a alma e rasgo o peito.

Negociação

Beijar o chicote do amor nem sempre poupa as costas.

Um poema de Emily Dickinson




















u


"Tão antiga quanto Deus,
A Verdade é Sua identidade gêmea
E, assim como Ele, suportará
Uma coeternidade.

E haverá de perecer no dia
Em que Deus, carregado, sair
Da mansão universal
Como divindade sem vida."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)










uu

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O que é

Viver é apenas fazer
Tudo aquilo que nos cabe,
Por dever ou por prazer,
Antes que viver acabe.

Léu

De repente eu me vi na rua, esmolando. O farnel que ela me deu durou três dias - um pouco menos que o seu amor.

Ainda

Às vezes ainda o amor me sacode, como os espasmos de uma lagartixa moritura.

E ele

O amor é como um zumbi.
Tantas vezes o matei,
Tantas vezes o enterrei,
E ele continua aqui.

Saudosismo

Certas noites, chega aos mortos no Araçá uma música que os mais velhos definem como foxtrote.

Um trecho de François Ponge




"A beleza das flores que murcham: as pétalas se retorcem como sob a ação do fogo: é bem isso, aliás: uma desidratação. Retorcem-se para deixarem ver as sementes às quais decidem dar sua chance, o campo livre.
   É então que a natureza se apresenta perante a flor, força-a a se abrir, a se desabotoar: ela se crispa, se retorce, recua, e deixa triunfar a semente que sai dela que a havia preparado."

(Do livro O partido das coisas, tradução de Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson, publicado pela Iluminuras.)












u

Xucro

Em matéria de amor eu sou como um menino de dez anos, mas sem juízo nenhum.

Cotação do dia

Dizer amor, pronunciar amor, proclamar amor, não porque seja minha sina, mas porque já não sei fazer outra coisa.

Memória

Um dia, perto do fim,
Talvez de mim lembrarás
E terna me chamarás
De Ânderson ou Serafim.

Scarlett Johansson (2)

Diante de Scarlett Johansson eu seria capaz de falar aramaico, se conseguisse dizer alguma coisa.

Scarlett Johansson (1)

Scarlett Johansson! E há quem duvide da existência de Deus! E do Diabo!

Haicai (p/ Fernanda Takai)

Relembra a primícia,
O tato leve, o contato,
A breve carícia.

Haicai

O vento no cio
Espreita e febril se deita
No dorso do rio.

Pacto

Então fiquemos assim:
Eu te amo adoidadamente,
Mesmo que provavelmente
Nem gostes muito de mim.

Haicai

Agora já não
Desliza na pele lisa
A palma da mão.

O amor em dados contábeis

Mesmo quando o assunto é o amor
Com suas complicações,
Podemos obter quinhões
Se for bom o contador.

Apesar dos seus senões,
De ser régio esbanjador,
O amor pode ser, se for
Glosado, compensador.

Assim como no demais,
O menos pode ser mais
E a simulação, verdade.

O que agrada nós lançamos,
O que incomoda ignoramos.
Viva a contabilidade!

De Manoel de Barros

"O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia."

(Do livro Poesia completa, publicado pela LeYa.)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Interdição

Ele não pode mais dizer amor. Quando diz, as quatro letras se transformam em pétalas, e as pessoas começam a pedir uma nova mágica.

Deus e amor são palavras que só devemos pronunciar em estado de graça.

Ainda

Às vezes o vento ainda nos traz um lamento do amor, assim como a consciência insiste em evocar o miado do gatinho que deixamos vinte anos atrás na casa abandonada.

Alô

Não sei o caminho para Conselheiro Lafaiete, mas se você me chamar eu chego aí num minuto.

Eu gostaria de ser torturado

Por cento e nove libidinosas loiras que imaginassem haver em casa um cofre com o inefável segredo da poesia.

Eu me desonraria

Por uma loira deliberadamente lenta, que me obrigasse a pedir, pelo amor de Deus, que enfiasse logo as garras em meu pescoço tenro.

Eu renegaria a moral

Por uma loira de dentes agudos que me fizesse ter a vontade de ser um delicioso cordeiro de receita.

Eu venderia a pátria

Por uma loira bregona de unhas longuíssimas cutucando ouro no fundo da orelha.

Quanto à corrupção,

Prefiro a do sexo. Que prazer há em manusear um pacotão de dólares?

Eu sujaria meu nome

Por mulheres que só ousasse tocar com a reverente ponta dos dedos.

Eu me deixaria subornar

Por uma loira que, na hora de passar batom, colocasse uma camadazinha a mais, por saber como gosto de morango.

Eu me deixaria corromper

Por uma loira que conhecesse a arte de sorrir com terceiras intenções, equilibrando uma gotinha de saliva no lábio superior.

Ele

O Diabo crê na fraqueza da carne e na curiosidade dos sentidos.

Selfie

Que sorte nós temos por andar sempre em nossa companhia.

Cotação do dia

Pronto para a travessia, desde que seja a última.

O erro

Perdemo-nos quando fomos
Sonhar o que não devíamos,
Querer o que não podíamos,
Almejar o que não somos.

Que tal?

Esta segunda me veio com seus dentes de falso ouro e uma pergunta: gostou?

Bela viola

A autoajuda é um mascate de gravata borboleta e cueca furada.

Sons

Cautela com os sons tonitruantes. O bumbo sufoca a voz do violino.

Conselho

Diante do amor, convém ser tolo como a menina que pergunta quem desenhou no céu o arco-íris.

Volume morto

Vivi já tudo que pude.
De mim só esperem mais
Virtudes excepcionais
Se na morte houver virtude.

Frase de Manoel de Barros

"Camaleões são pertencidos pelas cores; eles se aperfeiçoam das paisagens."

(De Poesia completa de Manoel de Barros, publicação da LeYa.)

domingo, 23 de novembro de 2014

Promessa

Prometi à minha mãe ser um grande escritor. Ter morrido em 1970 isentou-a de se decepcionar.

Mais

Chorar por amor é um desses espinhos que só extraímos da carne para enterrá-lo mais fundo e mais prazerosamente.

Hábito

Dizer sempre alguma coisa, ainda que seja insignificante como isto que você lê. Não é uma vocação, é um hábito que os amigos talvez consintam em suportar.

Um poema de Emily Dickinson

"Eu fui um pintassilgo, nada mais;
Pintassilgo, nada menos -
A pequena nota musical desprezada,
Em seu lugar a inscrevia.

Por andar tão junto ao solo,
Ninguém me procurava;
Era tão tímido que não me acusavam de nada -
Um pintassilgo deixa pegadas mínimas
No assoalho da fama."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)







u

www.rubem.wordpress.com

Na crônica de hoje, na revista Rubem, falo de um menino que não quer um piano, quer uma mãe.

Tecnologia

Virá um tempo em que para morrer bastará apertarmos uma tecla verde no celular.

Verde

Sob o espantado olhar do menino de quatro anos, o cavalo, sem deter o galope, lança meia dúzia de pepitas fumegantes que explodem e rolam no solo. A cada uma o menino festeja: verde, verde, verde.

O castelo, a princesa

O castelo existe ainda. Também a princesa, que me espera com os olhos afogados em lágrimas. Eu sempre disse isso, mas só agora, aqui, meus colegas e os doutores acreditam.

Tão poucas

As humilhações que o amor nos impõe são sempre tão bem-vindas. Pena serem tão raras.

Um poema de Guillaume Apollinaire

""ADEUS

Colhi um ramo de urze
O outono morreu lembra-te
Não nos veremos mais na terra
Odor do tempo ramo de urze
E lembra-te de que te espero."

(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)

sábado, 22 de novembro de 2014

Poesia é

Poesia não tem roteiro.
É dado lançado à sorte,
É barco sem timoneiro,
É itinerário sem norte.

Recado

Se vocês encontrarem Pâmella Martinelli Merchyora, digam-lhe que ela me matou, embora ela já saiba. Faz bem ao ego dela e afia suas unhas.

Passatempo

O amor, se considerado como um entretenimento, é uma indignidade.

Agora que

Agora que o amor morreu, quando olho para ele o vejo tão fraco, tão desprezível. Deus, como ele pôde me atormentar tanto? Quantas cordas, quantas lâminas, quantos venenos ele me incitou a usar para merecê-lo. Sobrevivi para a tristeza de vê-lo assim, como um trapo. Pobre amor, por que resisti à tentação de tuas cordas, de tuas lâminas, de teus venenos?

Emperiquitadas

As frases imponentes têm mais pose que beleza. As de autoajuda vêm sempre engravatadas.













A verdade

A verdade, no fim. é sempre tão monótona. Trocá-la pelos mitos é tão idiota.

Fernanda Lima

Quantas palavras vale uma imagem de Fernanda Lima? Talvez uma só: beleza, multiplicada por mil.

Eu também

Eu também ousei pronunciar a palavra "amor", com estes lábios que lamberam a pele morna da devassidão.

Tudo, e tudo de novo

Dizer tudo que se devia e se queria, com as vogais afogadas de lágrimas, e ouvir da amada o pedido: me diz tudo de novo, tudo.

Itens

Humilhar-se por amor, ajoelhar-se, beijar pés pretensiosos - não há prazeres maiores.

Anotação

Sim, fui escravo do amor. Foi a melhor época de minha vida.

Conivência

Se ouvimos os passos do amor nos seguindo, sentimos um frisson de ovelha e nossas pernas se recusam a andar.

Heroísmo

Roubar um beijo com gosto de hortelã, na última fileira do cinema, nos igualava aos heróis do faroeste.

Cotação do dia

Ter morrido há tanto tempo nos dá certa segurança.

Manoel de Barros

"Esfregar pedras na paisagem."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Cotação da noite

Chamam o que escrevo de versinhos. É o que eles são.

Autoestima

Se a encontrarem por aí, digam-lhe que ela me matou. Ela sabe, mas é sempre bom para a sua autoestima.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é uma maravilhosa explosão de encantamento.

Obsessão

Ai, doce obsessão querida,
Me deixa os dias fruir,
Me deixa à noite dormir,
Me deixa viver a vida.

Já ou ainda

Tu serás, ou terás sido,
Não importará saber,
Ou belo instante a viver,
Ou belo instante vivido.

Tão, tão, tão, tão

Tão doce te abraçaria,
Tão doce, tão docemente,
E leve, tão levemente,
Tão leve te beijaria.

Ontem

Recordando o que vivi,
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.

Álibi

Se você não se importa com o mundo, finja sempre estar dormindo. É um bom álibi.

O que dirão

Dirão de mim: ah, era aquele que escrevia aquelas coisinhas.

Pecado original

O grande infortúnio de minha vida foi presumir, adolescente, que escrever pudesse ser o meu destino.

Madrugada

Na caçamba, o relógio descartado não perturba o sono do gato morto.

Três meses

Dona Olga, toda madrugada, acorda com a algazarra dos gatos enlouquecidos pelo cio, na rua. Faz três meses que isso acontece. Ela se queixa ao marido, grita para ele ir acabar com aquilo. Faz três meses que ele morreu.

Indícios

Quando os amigos começam a morrer, ou a se mudar para Pindamonhangaba, é sinal de que não estamos agradando.

Só se

Querida, quando voltares
Dali de onde agora estás,
Somente me encontrarás
Se a terra fundo cavares.

"Ode vingativa", de Manoel de Barros

"Ela me encontrará pacífico, desvendável
Vendável, venal e de automóvel.
Ela me encontrará grave, sem mistérios, duro
Sério, claro como o sol sobre o muro.

Ela me encontrará bruto, burguês, imoral,
Capaz de defendê-la, de ofendê-la e perdoá-la;
Capaz de morrer por ela (ou então de matá-la)
Sem deixar bilhete literário no jornal.

Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico
Anticristão e, talvez, campeão de xadrez.
Ela me encontrará forte, primitivo, animal
Como planta, cavalo, como água mineral."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O único

Só eu mesmo, amor, para te receber com flores depois de voltares com a bolsinha cheia de fumo e essa mordida de marinheiro sueco no ombro.

Cotação do dia

Um trapo que limpa uma estante que não é tua, esfregado por uma que não é nenhuma de tuas mãos.

Herói

No sonho te vi num navio que levava escravas para os jogos sexuais de milionários em Madri. Lutei para resgatar-te, e acordei gritando teu nome e mordendo meu pulso, como se fosse o pulso do capitão.

Em vão

Para aumentar o que somos,
Nós inventamos o heroísmo.
Ah, como tolos nós fomos...
Nascemos para o ostracismo.

Praga

O amor é pior do que um vício.
Te dá um pouco, promete
Mais, te ganha, te submete,
Te atira no precipício.

Como deve

O amor há de ser lembrado como deve: como se estivesse vivo ou como se fosse possível ressuscitá-lo.

Mario e Manoel

Mario Quintana e Manoel de Barros não voavam por modéstia.

Cinco pepitas de Manoel de Barros

"As árvores me começam."

"Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde."

"Os patos prolongam meu olhar... Quando passam levando a tarde para longe eu acompanho..."

"Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem voz."

"Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silencio estica os lírios."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ciúme

Ela rejeita o amor como alguém que rejeita um gato que mia à porta, por ser novo e belo seu sofá vermelho.

Regressão

Sua solidão começou a ser frequentada por mulheres que a memória ia buscar nos livros sujos da adolescência. Uma delas, a mais habitual, usava espartilho.

Escrever

Escrever é uma atividade com a qual nos cansamos e maçamos os outros.

Colaboração

O amor continua a nos enganar, mas que esforço fazemos para ajudá-lo.

Geografia

O amor é aquela aparição que você espera em Amsterdã, Nova York, Kuala Lumpur ou em uma esquina de São Miguel Paulista.

Cotação do dia

Nas redes, corre um aviso para os amigos: ele está muito mal. E um pedido: elogiem seus sonetos, ainda que nenhum deles tenha chave de ouro.

Gps

Poesia com ideias é passarinho com gps: dobre à direita, na pitangueira, dê dez batidas de asa e pouse na ameixeira. Ali, cante.

Ingenuidade

Apenas eu para crer
Que o amor fosse um sentimento
Imune ao esquecimento
E ao destino de morrer.

Quase

A beatitude do amor foi o máximo que nossa alma almejou. Chegou perto de alcançá-la, ou assim pensou. Não alcançou.

Coragem

Amor, quem há de dizer-te
Que és o rei da crapulagem,
Quem há de ter a coragem,
Patife, de maldizer-te?

Antes do amor

Naquele tempo eu não tinha
Problema de identidade.
A minha alma era só minha
E eu a gastava à vontade.

Script

É sempre igual o roteiro
Da peça chamada vida.
Os sonhos morrem primeiro,
A carne morre em seguida.

Heráclito

Jamais beberei da chuva em lábios tão preciosos. Jamais me banharei de novo num rio como o daquela tarde, que subia à calçada alimentado pelas nuvens generosas.

Despacho

Toda frase que comece com "O amor é" merece o carimbo de importante.

Ego

Tantas coisas tão belas, pássaros, flores, canções. Por que insistimos em falar de nossa imagem refletida no lago?

Trecho de Manoel de Barros

"Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Sem nexo

Curioso aconselharem que nos preparemos para a morte, quando nunca chegamos a estar preparados para a vida.

Utilidade

Os riachos existem para transformar as folhas em barcos.

Se

Se eu te trocasse, seria só por uma estrela com certificado de origem.

O que era

Rememorado agora, o amor parece o que era: uma tolice, uma fantasia. Pena que não tenha durado um pouco mais.

Como se

E no entanto alguns falam do amor como se fosse coisa corriqueira.

Cotação do dia (2)

Para quem sofre, um dia a mais traz sempre o alívio de ser um dia a menos.

Medula

Nos meus sonhos, o que mais excita é o farfalhar dos vestidos de seda, que fazem algum charme antes de se deixarem vencer pelos meus dedos.

Parágrafo inicial de "Estado de graça", de Ann Patchett

"A notícia da morte de Anders Eckman chegou por aerograma, uma fina folha de papel azul forte que tanto fazia as vezes de papel de carta como, estando dobrado e colado nas extremidades, de envelope. Quem imaginaria que ainda existia esse tipo de coisa? Aquela folha simples viajara do Brasil até Minnesota para comunicar o falecimento de um homem, uma nesga de material tão insubstancial que apenas o selo parecia ancorá-lo a este mundo. O Sr. Fox segurava a carta quando entrou no laboratório a fim de dar a notícia para Marina. Assim que ela o viu à porta, sorriu, e ele, diante daquele sorriso, hesitou."

(Tradução de Maria Carmelita Dias, publicação da Intrínseca.)

Cotação do dia

Sentindo a vida pela lógica fria da matemática: mais um dia.

Hem?

Se o amor viesse me procurar, eu lhe perguntaria três vezes: eu, eu, eu? E mais uma: eu?

Arte

Meu mais precioso troféu de amor é a camisa em que desenhaste tua boca com batom.

Sotaque

Mexeram em meus dentes e hoje, se pronuncio amor, a palavra soa como se dita por uma mercenária do sexo.

Maçãs

Sou um tolo. Como um menino, levei maçãs diariamente ao amor, como se ele fosse uma professora velha e subornável. Ela as deu, todas, a homens de dentes pontudos e famintos.

Sensatez

Sensato é o homem que usa as palavras somente quando o silêncio já não pode dizer nada por ele.

Tempo e ocasião

Se há muito tempo não
Consegues fazer um poema,
Esta é uma boa ocasião
De mudares o sistema.

Se não houver mutação
Nem mesmo com o novo esquema,
Morrer é uma solução,
Um belo estratagema.

Partes iguais

Escrever é uma atividade com a qual nos cansamos e cansamos os outros.

Um trecho de Lolita Pille

"Eu sou uma putinha. Daquelas mais insuportáveis, da pior espécie; uma sacana do 16ème, o melhor bairro de Paris, e me visto melhor que a sua mulher, ou a sua mãe. Se você trabalha num lugar "metido", ou é vendedora numa butique de luxo, com toda a certeza gostaria que eu morresse; eu, e todas as minhas iguais. Mas a gente não mata a galinha dos ovos de ouro. De forma que a minha espécie insolente irá perdurar e proliferar..."

(Do livro Hell - Paris-75016), tradução de Julio Bandeira, publicado pela Intrínseca.)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Cotação da noite

Não é difícil fazer.
É só à porta chegar,
Bater leve e perguntar:
"É aqui que se vem morrer?"

Segunda

Segunda-feira propícia ao ócio e transgressões desse tipo.

Resgate

Se encontra na areia uma estrela, o pescador a arremessa de volta ao céu. Tem pena desses filhotes que se descuidam e vivem despencando.

Temor

A pedra, quando o poeta se aproxima, encolhe-se. Receia ser tirada de sua placidez e começar a viver inquietações de flor ou de pássaro.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Folhear um dicionário analógico é, de partida, entrar na palavra cosmurgia. Usando uma expressão de Gonçalo Tavares, é algo assim como ingressar num 'armazém metafísico' e perder-se numa baralhada de reflexões com energia para gerar muitas vidas. Uma única palavra tem o efeito do grão que faltava para precipitar o sal dos mares: centenas, milhares de possibilidades e aproximações que estavam ali, no fundo do silêncio, só esperando o mote para ser glosado, o primeiro sopro que desperta e põe a máquina do mundo em movimento."

(Da crônica "Ciclópico, desmesurado, fenomenal", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)

Como?

Esse que fala não sou eu. Como eu poderia maldizer o amor, que se inscreveu em meu corpo com rabiscos de chicote?

História

Aquele que tu amaste não era eu. Era alguém que por um instante pareceu merecer-te.

Te

Te amei com toda a alma. Pena que ela seja tão mesquinha e insignificante.

Outro jeito

Porque é impossível distribuir beleza a todos, talvez se possa repartir igualitariamente a feiura.

"Dorowa", de Manoel de Barros

"Homens bebem à mesa
De um cabaré de Curitiba.
A obesa Marcelle, instalada,
Engole álcool de coxas flácidas.

A esquelética Lili,
No fim da noite, exausta
Fala mole e tomba
De grandes olheiras no chão.

Ó Dorowa teus 15 anos
Entre ombros de homens bêbados
No cabaré de Curitiba!
Ó Dorowa, teus 15 anos.


Lili, Marcelle, Dorowa.
Dorowa não, Doroty...

Ó vós, que um dia chegardes
Ao cabaré de Curitiba:
Dormi com a Dorowa,
Que está dentro da Doroty.

Dormi com a Dorowa,
Ela está no fundo da Doroty.
Sabei arrancá-la de lá
Na pureza dos 15 anos.

Não deixeis Dorowa morrer,
Ela é a alma que sustenta os poetas.
Não deixeis Dorowa morrer
Como rosa em peito de suicida."

(Do livro Poesia completa, publicado pela Leya.)

domingo, 16 de novembro de 2014

Portaria

À minha oficina de poeta têm acesso preferencial os bem-te-vis e os beija-flores.

Cotação do dia (4)

Aos domingos a vida, essa bruxa decrépita, tem o desplante de se exibir como se fosse uma fada, e coloca flores em nossa lapela.

Cotação do dia (3)

Pendurou-se na corda, como se quisesse ver melhor o domingo.

Cotação do dia

Aquele que foi amado não era nenhum de nós. Era alguém muito melhor, que um dia começou a se parecer conosco.

A poesia

A poesia tem só discípulos, sempre. Poesia não se ensina, poesia se aprende.

O que é

A poesia é a brisa que eriça os pelinhos do lago.

Peneira

A poesia não deve dizer nada que não tenha passado pela alma.

Caminho

Como poeta e como homem
eu sempre piorei

Para todos nós
é assim que acontece

Piorar é a lógica

Se fosse o contrário
a morte seria um merecimento.

Vida

Sejamos justos. A vida
Não é nem boa nem ruim.
Desde o início até o fim,
Somente quer ser vivida.

Um poema de Manoel de Barros

"Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias
de areia de formiga e musgo - elas podem um dia milagrar de flores.

(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)

Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro -
elas podem um dia milagrar violetas.

(Eu sou beato em violetas.)

Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!

(O abandono me protege.)

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

sábado, 15 de novembro de 2014

Sinceridade

A poesia é a melhor maneira de alguém se dizer.

Narcisismo

A mania que têm os sábados de se acharem precursores dos domingos.
































































Ardil

Deitada no quarto, ela ouve os dedos na porta da frente. Aguça o ouvido. Não é ele. Mais uma vez é o vento, aquele farsante.

Menos uma

Toda noite ele aponta o céu e diz que está faltando uma estrela. Ninguém se dá ao trabalho de contar. Ele sorri. De volta para casa, coloca a estrela com as outras, no quartinho dos fundos.

Correlação

Se ouço a palavra amor, penso num lugar distante.

Desculpas

Quando perguntam ao vento por que ele já não dá aquele assobio agudo que parecia uma flauta, ele responde que está velho e perdeu os dentes da frente.

O pão




































Comeria o pão que o Diabo amassou, se ele me tivesse dado.














"Os girassóis de Van Gogh", de Manoel de Barros

"Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas

Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.

E como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Foco

Eu olhava para ti, na Paulista. Os tolos, para o arco-íris.

Três versos de Manoel de Barros

"Os mortos se andorinham longemente...
Eu me horizonto.
Eu sou o horizonte dessas garças."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

De quê?

Se não falarmos do amor, de que falaremos? Do amor?

No ar

A poesia está no ar, não para ser apanhada como um passarinho, mas para ser inspirada com as narinas da alma.

As três palavras

Tivemos um modo de dizer que nos amávamos. Era simples: eu te amo. Talvez tenhamos dito demais, e as palavras se gastaram.

Rivais

Ela tem oitenta e dois e espera superar os oitenta e três, idade com a qual há três meses morreu a amiga com quem ela disputava todos os prêmios no colégio.

História

Faz cinquenta anos que o amor se transformou num esporte noturno.

Pimba

Se um urubu apontar
Bem de baixo para cima,
Por mérito meu, ou rima,
Na certa vai me acertar.

Cúmplices

O amor há de ter sempre mãos de assassino e contar com nossa garganta benevolente e cúmplice.

Verdugo

O amor é aquela chibata
Que nos faz, ao estalar,
Pedir, rogar, suplicar:
Mais, mais, me fere, me mata.

E que

Quando enfim chegar o dia,
Que Deus piedoso não negue
As bênçãos da eucaristia
E que o Diabo me carregue.

Eleitos

O amor é um infortúnio que só atinge os bem-aventurados.

Futuro

"Um pouco mais embaixo, aí", ela pediu, e ele já se pôs a imaginar por quanto tempo viria a pagar por aquele gozo.

JSR

O nome que melhor te caberia é Joaquina Silvéria dos Reis.

Pauta

Manoel de Barros morreu, mas o assunto mais importante de hoje é a formação da equipe econômica.

A terceira

"Você é a mulher da minha vida, eu tenho certeza. Só senti isso duas vezes."

Penúltimo passo

No ônibus e no metrô todos agora me olham como se eu fosse porcelana - não por minha beleza, mas por minha fragilidade.

Os dois

Manoel de Barros era um passarinho ciscador, da mesma espécie de Mario Quintana.

"Na enseada de Botafogo", de Manoel de Barros

"Como estou só. Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja...
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.

Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!

Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?"

(Do livro Poesia completa, publicado pela LeYa.)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Sonsice

Feliz com a minha sonsice: ter acreditado no amor como o mais fanático e irracional dos crentes. Nada ter gozado, a não ser o inigualável dulçor da alma flagelada.

Cotação da noite

A voz do amor é cada vez mais fraca, como se viesse de um mudo encarcerado numa masmorra do século XIX.

Que o pé

Se formos humilhados, como merecemos, que o pé em nossa nuca, a nos fazer lamber o chão, seja o do amor.

Trapo

O amor nos trata de tal forma, tanto nos amarrota, que no fim não servimos nem para pano de chão.

Manu e Manô

Há algum tempo, foi-se Manu. Neste tempo, hoje, se foi Manô. Tempos ingratos, tempos funestos.

"Coisas mansas", de Manoel de Barros

"Coisas mansas, de sela, andavam por
ali bebendo água...
Ventava
sobre azaleias
e municípios

Ventinho de pelo!
Monto nele e vou
experimentando a manhã nos galos...

Ó este frescor! como um afluente
de tua boca..."

(De Poesia completa de Manoel de Barros, publicada pela LeYa.)

O preço

Morri cem vezes por você, amor. Morri pouco.

Mapa

Como é bonita a marca dos teus dentes em minha alma.

Mãos à obra

Se você ainda não sofreu por amor, o que você está esperando?

Casas Bahia

O amor é aquele bandido que esvaziou nossa casa. Um mês depois já repusemos tudo em dez parcelas e ficamos esperando que ele volte.

Tolice

Acharam-me tolo. Como um menino, levei diariamente maçãs ao amor, como se ele fosse uma professora velha. Ela as dava a homens de dentes pontudos e famintos.

Sensatez

Sensato é quem usa as palavras somente quando o silêncio já não pode dizer nada por ele.

"Vietnã", de Wislawa Szymborska

"Mulher, como você se chama? - Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? - Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? - Não sei.
Desde quando está está aqui escondida? - Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? - Não sei.
De que lado você está? - Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. - Não sei.
Tua aldeia ainda existe? - Não sei.
Esses são teus filhos? - São.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O amor é um navio

O amor é como um navio
Singrando o mar mansamente
Na hora mais clara e mais quente
De um belo dia de estio.

Ninguém, ao vê-lo, dirá,
Porque impossível seria,
Que logo essa calmaria
Tormento e fúria será.

Mas um instante mais tarde
Já o navio em chamas arde
E não há mais salvação.

As esperanças queimaram,
Os sonhos já se  afogaram
E só lembranças serão.

Roleta

O amor é um entretenimento fatal para quem o leva a sério.

Esquina

 O amor, como tantos vícios, depende sempre de um fornecedor: o de idiotas.

Esmero

A especialidade do poeta parnasiano é produzir estrelas melhores que as originais.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é a prova de que a crença na beleza nem sempre é inócua ou improfícua.

Paradoxo

A única razão para vivermos é de uma irracionalidade atroz: o amor.

Dilema

Se a vida não me convém
E a morte não me socorre,
Eu vivo assim como quem
Nem bem vive e nem bem morre.

Escambo

Se derem um passarinho a um poeta concretista, ele o trocará por um saco de cimento.

Katherine Mansfield

"Preciso aprender a me esquecer."

(Do livro Felicidade e outros contos, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)





terça-feira, 11 de novembro de 2014

Nadir

Tentei odes, epopeias,
Com todas as forças minhas.
Agora, só melopeias,
Sonetos bobos, quadrinhas.

Marketing

Se viver a própria idade fosse um bom conselho para os macróbios, não precisaria ser dado nem renovado a cada instante.

Destinos

O amor, pela sua mão,
Nos leva à última morada:
Ou para a Consolação
Ou para a Quarta Parada.

O que os olhos veem agora

Os olhos, que contemplaram
Os arcos-íris dourados
E os montes alcandorados,
Há muito já se fanaram.

O belo que contemplaram
São fatos tão já passados
Que parecem inventados
E quase já se apagaram.

Agora veem somente
O que está à sua frente
E o que à sua frente está

A beleza desmerece
E louvores não merece,
E nunca merecerá.

Adeus

Adeus aos meus ideais
Que tanto me atormentaram,
Depois me abandonaram
E não voltaram jamais.

Amém

Agora, perto do fim,
Sem mais esperança e sem
Nenhum alívio também,
Morrer é o que resta, assim.

Três fragmentos de Yu Xuanji

"Ascende o odor do incenso ao altar de jade
Levo um convite solene à mansão dourada."


"Alegra-se a alta nuvem, entre sonhos tristes
O olhar do céu permanece, um olor mais que flores."


"Campos abrem-se em estradas: a primavera
traça sinais de música na paisagem."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Rusga

Amor, qual é o problema?
Por que você me ofendeu,
Por que você me mordeu
E recusou o meu poema?

Espera

Agora, após suportar
Na terra o fardo do inferno,
Nos resta só esperar
Que venha o descanso eterno.

Fim

A degradação do corpo chega a estágios em que até respirar parece inútil e obsceno.

Melhor não

Não há mais claro consenso
Que o de se reconhecer
Que o amor não precisa ter
Nunca razão nem bom-senso.

domingo, 9 de novembro de 2014

Para onde

Largar tudo, abandonar tudo, e ir para onde, com este corpo que os urubus já começaram a seguir?

Alguns

 O velho lobo ainda tem alguns dentes, que doem quando ele vai beber água no riacho. As lebres já não fogem quando o veem.

Cotação do dia (2)

Como ao ser humano, por teimosia, custa dizer uma palavra curta como adeus, mesmo que seja a um moribundo.

www.rubem.wordpress.com

No texto de hoje, rememoro figuras e fatos do meu tempo de revisor no jornal O Estado de S. Paulo. Eu estava vivo nessa época. Depois, nunca mais.

Contraste

Ao contrário do futebol, na vida a prorrogação e os pênaltis provocam só bocejos.

Soneto da hora certa da morte

É coisa mais que sabida,
Mas convém sempre lembrar
Que, custe ou não a chegar,
A morte é um fato da vida.

Conforme venha a calhar,
É bem ou mal recebida,
E suplicada ou temida
Segundo a hora e o lugar.

Não querem que ela se apresse
Aqueles que o amor aquece
Com seu festivo fulgor.

Os outros, os desamados,
Aguardam, esperançados,
Que venha quanto antes for.

Como ela nos quer

A poesia nos quer fracos, chorosos, vencidos. Não são os conquistadores que a fazem, são as vítimas, abençoadas vítimas que em tudo veem a alegoria da dor e da perda.

Solução

Morrer é um modo certeiro
De fugir de dissabores
Como o da escassez de amores
E o da falta de dinheiro.

Vocação

A filosofia não existe para apresentar soluções. Existe para sofisticar os problemas.

Marcha lenta

Num tempo de mensagens instantâneas, ele perdeu todas as batalhas do amor pela lerdeza dos pés dos seus versos.

Um poema de Emily Dickinson

"Ele chegou afinal, mais ágil porém a Morte
Havia ocupado a casa:
A pálida mobília já disposta,
Junto com sua paz metálica -

Ó fiel geada, que observaste a data!
Tivesse o Amor sido tão pontual,
A alegria teria feito mais alto o portão
E bloqueado sua entrada."

(D livro Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)

sábado, 8 de novembro de 2014

Perfil

Por sua falsa conduta,
Pelo seu jeito escarninho,
Por ser covarde e mesquinho,
O amor é um filho da puta.

Nem Ele

Nem Deus nos põe de quatro como o amor.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Do estado de repouso ao livro de páginas abertas, os encontros variam, traem metódicos critérios, vencem a distância de oceanos e séculos, produzem aqui e ali uma mistura muito peculiar de essências. Entre chegadas e partidas, os destinos são tão incertos e fortuitos quanto os de uma existência. São as muitas vidas de cada livro. Uma das razões, talvez, por que os gastos gostam tanto de bibliotecas."

(Da crônica "Sete mil vidas", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)

Gafes vocabulares

Na nova crônica no portal do Estadão (www.estadao.com.br, blog Escreviver), falo de situações terríveis como aquela de dizer granito quando se quer falar granizo.

Cotação do dia

Entrar num barco que nos levasse longe e nos deixasse num lugar aonde não chegasse jamais a voz do amor com suas mentiras.

A vida como ela é

O frio, depois do fogo,
Depois das luzes, a treva,
A isso é que a vida nos leva,
A morte é parte do jogo.

Síntese

Aos poucos os dissabores,
Os de gosto fraco ou forte,
Juntam todos os sabores
No ácido sabor da morte.

Soneto da obsessão pela arte (versão final)

Nós, seres mais que imperfeitos,
Tivemos a pretensão
De erguer com os nossos defeitos
A torre da perfeição.

Confiamos em nossa mão,
Nos nossos dedos perfeitos
E também na exatidão
E em todos os seus preceitos.

Erguemos o monumento
E não há nenhum momento
Em que deixemos de crer

Que ele, na sua grandeza
E na soberba beleza,
Nasceu para eterno ser.

O fim

O lobo percebeu hoje que está velho, quando uma corça o chamou de tio.

Mr. C

Aos poucos fomos deixando
Que o verme crescesse em nós
E aos poucos fosse calando
Nosso sangue, nossa voz.

"Carta a um candidato aos exames imperiais", de Yu Xuanji

"Fiz poesia, triste e quieta no meu canto
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso

Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria

Acaba a música, rompeu-se o instrumento
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina
É primavera, passa ao rio este momento."

Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Wislawa

Wislawa Szymborska devolve à poesia sua melhor voz. Nela o épico não tem vez, a não ser que o encontremos numa xícara ou em outro objeto corriqueiro. Não há tambores. Wislawa não escreve odes.

Dostoiévski

Em Dostoiévski, tudo é tormento. Ele trata seus personagens com o rancor de um deus contestado.

Lágrimas

Se gemeis pouco e baixinho,
De modo indeciso e tosco,
Ninguém vos dá um carinho,
Ninguém se importa convosco.

Soneto da hora de pagar os gozos

Digo a ti, que em tudo vias,
Até no pior, um motivo
Para cantar alegrias
Pela bênção de estar vivo.

Digo a ti, que amor juraste
Ao deus da eterna beleza
E que o seu som desfrutaste,
Assim como o da riqueza.

Digo a ti que o que fruíste
Nada, nem ninguém, existe
Que apagar possa esse gozo.

Mas nada irás mais gozar.
Chegou a hora de pagar
Cada momento gozoso.

Modus operandi

Escrevo como quem traz
A alguém inútil conforto,
Como um menino que faz
Carinho num gato morto.

Ficha

Escrevo pelo rancor,
Assim como um assassino
Mata pois quando menino
Lhe recusaram amor,

O "a"

Os homens que o amor matou
Têm o "a" tatuado no peito
E o olhar quase satisfeito
De quem sofreu mas gozou.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Quem sabe um dia eu me esqueça, quem sabe, depois de tudo, a vida fique cinzenta, já vi isso acontecer a muita gente, esse desencanto, essa focinheira, esse cansaço de quem não tem mais lá no fundo dos olhos além de um poço seco. Mas digamos que não aconteça, que eu ponha os meus olhos nos teus sempre com o mesmo bulício de água fresca. Digamos que seja assim, que todas as noites eu compareça, como se fosse cada noite uma estrela dentro de uma única noite imensa. Digamos, por enquanto: este encontro é possível."

(Da crônica "Carta para o amigo", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.) 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Soneto da doce amargura (versão final)

Não pensa certo quem pensa
Em todos os sonhos pôr
Nos braços frouxos do amor.
Não há mais errônea crença

Do que essa, de se supor
Que para a tristeza imensa
Ele nos dê recompensa,
Alívio ou seja o que for.

O amor, por definição,
Tem somente a obrigação
De a nossa vida afligir.

Ver nessa aflição doçura
Ou nela achar amargura
Cabe a nós, só, decidir.

22h10

A noite ainda é uma criança. O que está fazendo na rua? Não tem mais juizado, não?

Já ou depois

O livre-arbítrio pode ser mais importante na hora de morrer que na hora de viver.

Cotação da tarde

Quem chorará pelas pobres flores que irão embora conosco?

Mensagens

Pelo eterno amor, fanado,
Pelo projeto, falido,
Pelo castelo, destruído,
A morte manda o recado.

Do seu jeito

Calado, e sem se mover,
Deitado na própria cama,
O morto, sóbrio, proclama
Que a morte é um modo de ser.

Fernanda Lima

Para saber como a beleza anda, o caminho é seguir os passos da Fernanda.

Cotação do dia (3)

Um morto como outro qualquer, sem nenhum traço de romantismo. Nenhum poema no último terno.

Cotação do dia (2)

Mais nenhum sinal vital além do sorriso tolo deixado pela última palavra pronunciada: amor.

Farinhas

O amor e a mentira são farinhas do mesmo saco, e quem come uma engole a outra.

Soneto do amor larápio (versão final)

Caminhava eu calmamente
Sem pensar nada ou supor,
Quando sorrateiramente
Fui seguido pelo amor.

Esse doce malfeitor
Mostrou-se tão eficiente
Que me tornou seu credor
Após tornar-me indigente.

Seu furto eu agradeci
E meu caminho segui
Sem nunca vê-lo outra vez.

Ah, se revê-lo eu pudesse
E roubar-me ele quisesse
Como nesse dia fez.

Norte

Chega na vida um momento
Em que qualquer rumo ou rota,
Toda ideia ou sentimento
Nos levam para a derrota.

Razão

Amor, quem há de entender,
Quem há de ter convicção,
Se tu és nossa razão
De viver ou de morrer?

O outro lado

Pela versão dos vencidos,
Os que foram vencedores
São apenas impostores
Pelo acaso protegidos.

Contrassenso

A lógica do amor é destrambelhada. Sua especialidade são os trancos e os barrancos.

Quatro versos de Walt Whitman

"Walt Whitman, um cosmos,o filho de Manhattan,
Turbulento, carnal, sensual, comendo, bebendo e procriando,,
Não é um sentimental, não olha de cima os homens nem as mulheres nem se afasta deles,
Não é mais modesto do que imodesto."

(De Canto de mim mesmo, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Triste é

Triste é o tempo em que se fala da paixão entre goles de chá morno e a memória parece um texto iluminado por uma vela trêmula.

Úmnico

O amor é sempre um bom assunto, e algumas vezes - as melhores - o único.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um dos preciosos momentos em que a poesia se deixa ver em sua inteireza.

Destino

À noite, diante da casa da amada, o poeta encontrou seus versos jogados na caçamba.

Tantos melhores

O cachorro olha com desdém o poeta e as flores que trouxe. Já viu outros de muito melhor aspecto sendo escorraçados. E as flores cheiram mal, como os sonetos no bolso.

Fim de noite

A luz do quarto da amada se apagou. Na esquina, o poeta olha para as estrelas, que não lhe oferecem consolo. O último bonde, o de Drummond, também já se foi.

Carne viva

O chicote do amor tatuou seu nome em minha alma.

Solamente una vez

Certa manhã, o amor me sorriu. Nunca mais, depois.

Bênção

Se você padece por amor, parabéns. É o melhor de todos os padecimentos.

Soneto do dia perfeito (versão final)

Se o amor ainda nos quisesse
Como quis naquele dia.
Ouviria nossa prece
E decerto a aprenderia.

De novo o sol brilharia
Que nenhum de nós esquece,
E a nossa melancolia
Quem sabe se desfizesse.

Se o amor ainda nos prezasse
Talvez um modo encontrasse
De o tempo fazer voltar

E depois de ter refeito
Aquele dia perfeito
Fizesse o tempo parar.

Ubiquidade

Para que me serviria a ubiquidade? A ideia de estar ao mesmo tempo em dois lugares me aflige. Gostaria de estar todos os momentos em lugar nenhum.

A conta

A vida nos desaponta.
Vencidos, desiludidos,
No fim fazemos a conta
Dos dias todos perdidos.

Quartas

Nem todas as quartas são só chatas. Algumas se esmeram um pouco mais e tornam-se enfadonhas.

Escrever

Escrever é um ofício ingrato. As palavras recusam-se a se unir, desentendem-se, estranham-se e, quando por fim parecem perto de um acordo, não há tempo de anotá-las. Soltam-se, desprendem-se e, mostrando a língua, vão embora apressadas, como pássaros à tarde.

Nota final

Os sonhos, todos desfeitos,
As flores, todas fanadas,
Os feitos, todos malfeitos,
As messes, todas goradas.

"Deixando-se levar", de Yu Xuanji

"Nenhum laço me prende; sempre livre,
vou sem destino, leve entra as paragens
Nuvens se abrem entre lua e rio,
amarras frouxas, barco em pleno mar
No Templo Liang, tanger o alaúde,
no pavilhão recita-se o poema
Ter por abrigo as grutas de bambus
e nas veredas, pedras companheiras
Preciosos são o pardal, a andorinha
São ar a prata e o ouro, seus castelos
A primavera oferta verde o vinho,
à noite a lua aquieta-se à janela
O passo estanca à fonte transparente
e em seu espelho, à imagem, deixo o grampo
Na cama, ébria, os livros me rodeiam
Cabelo aliso ao pente, enfim levanto-me."

(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal  e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A melhor atitude

É insanidade querer levar vantagem no trato com o amor. A melhor atitude diante dele é a bem-aventurada sonsice.

Em ponta de faca

O último romântico morreu há dois séculos, e eu, abjeto farsante, insisto em contestar essa evidência.

A hora

Chegou a hora das deliciosas insônias de amor. Amanhã de manhã nosso rosto estará como o dos santos e o dos pecadores.

Última refeição

Já decidi: uma xícara de café e um pãozinho de queijo.

Porto

Literatura, meu porto,
Que busco sem encontrar,
Receio a ti aportar
Só quando estiver já morto.

Salva-vidas

Quando viu as estrelas caindo no mar, afligiu-se. Não conseguiria recuperar todas.

Cotação do dia

Uma sensação bizarra, como se eu fosse um morto que, tendo escapado do cemitério, quisesse voltar e não encontrasse o caminho.

Aquela

O amor é aquela doçura
Indizível, inefável,
Imorredoura, infindável,
Que só dura enquanto dura.

"No Festival do Nove-Duplo, sob a chuva", de Yu Xuanji

" A sebe derrama-se - amarelo - crisântemos
A flor encontra outra flor - neste espelho, um eco
Junto ao terraço, sob chuva e vento, o chapéu
caiu-me, o cálice em ouro não mais alcanço."

(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Eu

Eu sou aquele sonso
parado na estação Vergueiro
debaixo do aguaceiro
naquela tarde

Se tivesses ido
te lembrarias de mim.

Vida

Não há segredo. Nascemos,
Lutamos muito, e bem quando
Estamos nos adaptando,
Acaba o tempo, e morremos.

Soneto dos inúteis apelos (versão final)

Quando eu chamava por ti,
Andavas pelo Gabão,
Viajavas pelo Taiti,
Pela Índia ou pelo Japão.

Sempre que ajuda eu pedi,
Tu me disseste que não.
Cuidavas de órfãos no Haiti,
Na China ou no Paquistão.

Enquanto eu agonizava,
A tua missão se ampliava,
Se estendia aos animais.

Ah, por ti eu chamei tanto
(Sabes como, quando e quanto).
Hoje não te chamo mais.

Cena final

Quando o amor, na cena final, nos enterra seu punhal prateado, o júbilo grita em nós por todos os poros.

Sina

Logo na primeira vez em que vemos as longas mãos do amor, nossa garganta sabe qual é seu destino.

Cotação do dia

Se o amor não tivesse me matado, eu o estaria louvando ainda, e escolhendo no caminho flores para que ele as afogasse no seu jarro.

Empréstimo

Estamos gentilmente emprestados à vida, até que a morte resolva exercer seu direito de proprietária.

Tormento

A luxúria insatisfeita enrola-se em si mesma, toca-se toda, se contorce, se estrangula, se asfixia, se tritura, se devora lentamente como uma sucuri.

Júri

Um poeta tem sempre alguma testemunha para defendê-lo: um veleiro adormecido, um gato cego, um arco-íris.

Trajetória

Queremos um nome
depois o renome
depois a glória
uma página na história
uma estátua na praça

Por isso a juventude
a honra a virtude
foram já todas vendidas
e achamos que isso é vida
enquanto a vida passa.

"Excesso", de Wislawa Szymborska

"Foi descoberta uma nova estrela,
o que não significa que ficou mais claro
nem que chegou algo que faltava.

A estrela é grande e longínqua,
tão longínqua que é pequena,
menor até que outras
muito menores que ela.
A estranheza não teria aqui nada de estranho
se ao menos tivéssemos tempo para ela.

A idade da estrela, a massa da estrela, a posição da estrela,
tudo isso quiçá seja suficiente
para uma tese de doutorado
e uma modesta taça de vinho
nos círculos aproximados do céu:
o astrônomo, sua mulher, os parentes e os colegas,
ambiente informal, traje casual,
predominam na conversa os temas locais
e mastiga-se amendoim.

A estrela é extraordinária,
mas isso ainda não é razão
para não beber à saúde das nossas senhoras
incomparavelmente mais próximas.

A estrela não tem consequência.
Não influi no clima, na moda, no resultado do jogo,
na mudança de governo, na renda e na crise de valores.

Não tem efeito na propaganda nem na indústria pesada.
Não tem reflexo no verniz da mesa de conferência.
Excedente em face dos dias contados da vida.

Pois o que há para perguntar,
sob quantas estrelas um homem nasce,
e sob quantas logo em seguida morre.

Nova.
- Ao menos me mostre onde ela está.
- Entre o contorno daquela nuvenzinha parda esgarçada
e aquele galhinho de acácia mais à esquerda.
- Ah, exclamo."

(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

domingo, 2 de novembro de 2014

Mãos e dedos

No início, o amor parece ter dez dedos em cada mão. No fim, parece ter um dedo só, o polegar que ele ergue ao ir embora, como se tudo estivesse bem.

Degeneração

Quando não falo de amor, sinto-me como alguém que trai seu ofício.

Leveza

Nunca os passos do amor são mais leves do que quando ele pega a mala e vai embora, de madrugada.

Frase

Nunca diga ao amor que ele é a razão de sua vida. Ele achará pouco.

De A a Z

Amor não é uma palavra, é um dicionário.

Coisa bonita

Belo não é bem a palavra. Belo é um termo um tanto pretensioso. O menino que eu sou gostaria de escrever uma coisa bonita, que pudesse ser apalpada como um gato.

Vogal

Em São Paulo, está difícil pôr os pingos nos "is".

SP

São Pedro não revela um pingo de compaixão.

Cantareira

A chuva é uma dessas coisas que às vezes acontecem.

Gostou?

A imagem mais persistente que tenho dos artistas, de qualquer um, é a de uma criança querendo chamar a atenção da mãe.

Entulho

O poeta entupiu o twitter com as pétalas de suas falsas rosas.

Fernandas

Se quero uma bela rima,
Procuro Fernanda Lima,
Se o que desejo é um haicai,
Busco Fernanda Takai.

Fato do dia

Com essa seca, está difícil pôs os pingos nos "is".

Porta

O amor, lobo faminto, ronda nosso quarto. Já devorou nossas ovelhas, restamos nós. Nosso coração bate, estouvado e esperançoso. É frágil a madeira da porta.

Tipo

Amor, querido pilantra,
Teu assobio é canção,
Teus acres termos meu mantra,
Teu rude beijo meu pão.

Encontro

Se fosse ali pela João Mendes, talvez você topasse ir ao primeiro andar do sebo do Messias, e eu compraria para você uma das revistas Krypta que a assustavam na infância, e tentaria resgatar um dos seus arrepios fazendo uma careta, embora esta fosse totalmente dispensável.

Oxalá

Tempo virá em que todo poeta, mesmo aquele que tenha escrito só uma quadrinha ou um soneto estropiado, casará com uma rainha. E haverá mais rainhas do que pitangas nas pitangueiras.

Quarentena

As autoridades sanitárias isolaram a casa do homem que morreu por amor. A família recorreu, mas seus 217 sonetos o acusaram com veemência.

Ternuras da alma

São inesgotáveis as ternuras da alma. Quando já parecem extintas, se o amor as espreme escorre ainda alguma e fica suspensa na blusa, enquanto não a sopra o vento.

"Alguns gostam de poesia", de Wislawa Szymborska

"Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação."

(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

sábado, 1 de novembro de 2014

Intruso

O cara metido a poeta é aquele chato que se imiscui na conversa dos outro, no tweeter, e fica falando de espécies extintas: rosas, pássaros, amor.

Visita

Chegaste ontem, minha cara,
Tu e tua juventude.
Bateste, e eu abrir não pude:
O inverno já me levara.

Ser

Excluindo-se a fúria e o som,
Pode haver algum sentido,
Talvez até algum bom.
Pode haver, mas eu duvido.

Odalisca

Enquanto ela ainda ensaiava
Tirar o primeiro véu,
Já o sultão estrebuchava
No quadragésimo céu.

Cotação do dia (2)

Ter morrido por amor foi a melhor coisa que poderia acontecer à minha vida.

Cotação do dia

Morto, morto, morto pela maravilhosa morte do amor.

Cúmplices

Os poetas garantem ter um pacto com as rosas e os passarinhos. As rosas não desmentem e os passarinhos não negam.

Mãos

Também a nós
certas noites
nos vem o desejo de morrer

Nossas mãos parecem aptas
a nos dar o repouso
e chegamos a imaginá-las
atando a corda
desembrulhando a gilete
empalmando os comprimidos

Mas é novembro
o Natal vem chegando
depois o novo ano
e em fevereiro
quem sabe passemos afinal
o carnaval na Bahia

Reenfiamos a mão
debaixo do cobertor
e adiamos outra vez
a homenagem que faríamos
ao amor
e à sua crueldade.

Como ele a vê

Ainda hoje, toda vez que
Os olhos nela ele põe
E sua magia vê,
Ele encantado supõe

Que ela deve pertencer
A uma facção misteriosa,
À dinastia do ser,
À confraria da rosa.

Faz tempo que a conheceu
E sempre lhe pareceu,
Já desde o primeiro dia,

Que ela é a voz do coração,
As sílabas da canção
E o espírito da poesia.

Preservação

Um poeta, com sua sonsice, nos dá sempre o ímpeto de sacudi-lo. Só não o fazemos para não assustar os bem-te-vis que costumam fazer ninho no seu chapéu.

Nostalgia

Morrer de amor era um costume que os livros antigos registram.

Dia D

O dia de nossa desgraça é aquele no qual descobrimos que não servimos mais nem para morrer de amor.

Pátina

A poesia anda hoje tão fora de moda quanto uma menina de doze anos tocando piano numa festa de família, com um gato no colo.

"A alegria da escrita", de Wislawa Szymborska

"Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?
Vai beber da água escrita
que lhe copia o focinho como papel-carbono?
Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?
Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade
sob meus dedos apura o ouvido.
Silêncio - também essa palavra ressoa pelo papel
e afasta
os ramos que a palavra 'bosque' originou.

Na folha branca se aprontam para o salto
as letras que podem se alojar mal
as frases acossantes,
perante as quais não haverá saída.

Numa gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho semicerrado
prontos a correr pena abaixo,
rodear a corça, preparar o tiro.

Esquecem-se de que isso não é a vida.
Outras leis, preto no branco aqui vigoram.
Um pestanejar vai durar quanto eu quiser,
e se deixar dividir em pequenas eternidades
cheias de balas suspensas no voo.

Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece.
Sem meu querer nem uma folha cai
nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.

Existe então um mundo assim
sobre o qual exerço um destino independente?
Um tempo que enlaço com correntes de signos?
Uma existência perene por meu comando?

A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal."

(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)