Apagar tudo, esquecer,
Deitar, cochilar, sonhar,
Entrar no lago e afundar,
Beber toda a água e morrer.
domingo, 30 de novembro de 2014
Prestação de contas aos leitores do blog
Nesses últimos cinco anos, tenho tocado aqui a tecla do desencanto. Não poderia tocar outra. Os ideais se foram, e a vida se tornou um mero desenrolar de dias. Este blog, que é uma espécie de diário desses cinco anos, não poderia ser senão o que tem sido. Dez por cento dele - a parte representada por textos alheios - podem ter sido interessantes para os leitores. No mais, sempre esta automortificação e estas confissões de um morituro. Como já fiz outras vezes, peço desculpas. E, ainda que seja estranho, recomendo novamente que é melhor não me lerem mais. O que tenho escrito aqui, se algum valor tiver, será o da sinceridade. Se a alguém interessarem os textos, será à minha família, na improvável hipótese de ela os ler, e ao meu psicanalista. Creio que, como todos os escritores, até os verdadeiros, o que faço tenha a intenção de me render palmas. Para recebê-las, eu seria capaz de, se fosse uma celebridade, prometer bônus a quem me lê, como talvez anunciar em primeira mão meu suicídio, dez minutos antes de cometê-lo. Como sou anônimo até entre meus vizinhos, continuo só com os duvidosos trunfos das derrotas diárias e da narração delas, com a minha parca literatura.
Leitmotiv
Em tudo quanto eu escrevo,
Só tenho o amor entre os temas.
Ele é e será o enlevo
E a inspiração dos meus poemas.
Só tenho o amor entre os temas.
Ele é e será o enlevo
E a inspiração dos meus poemas.
Porque sim
Quando penso nos motivos pelos quais amo a literatura, sinto-me tentado a responder como as crianças: porque sim. A idade adulta tem o inconveniente de precisarmos dar explicações, enumerarmos causas, empilharmos argumentos para responder a perguntas que ficariam muito bem respondidas com essas duas palavras: porque sim.
Torneios sexuais
Estarmos mortos é tudo
Que no final sobrará
De tanto dá mas não dá,
De pode, sim, mas, contudo.
Que no final sobrará
De tanto dá mas não dá,
De pode, sim, mas, contudo.
Saldo
Com as nossas perdas lançadas
E os prazeres subtraídos,
Com as contas todas fechadas,
Estamos todos fodidos.
E os prazeres subtraídos,
Com as contas todas fechadas,
Estamos todos fodidos.
Fora de tudo
Já morto estou. Não reclamem
Se eu faltar às bacanais.
Não me convidem, não chamem,
Que eu não irei nunca mais.
Se eu faltar às bacanais.
Não me convidem, não chamem,
Que eu não irei nunca mais.
No asilo
Na hora de tomar a sopa, nós atuamos como uma orquestra. Sorvemos todos ao mesmo tempo: dezesseis velhotes ávidos afugentando as duas horrorizadas irmãs de caridade que nos servem. Elas saem correndo do refeitório e só voltam quando não há mais gota nenhuma em nenhum dos pratos. Quando chegam com a sobremesa, ainda está no rosto delas o asco que provocamos. Sorrimos. Não é maldade. Vejo mais como uma travessura. Pobres irmãs. Amar o próximo é uma desgraça.
Definição
O amor, se pensarmos bem,
Com toda a nossa isenção,
É só uma distração
Enquanto a morte não vem.
Com toda a nossa isenção,
É só uma distração
Enquanto a morte não vem.
Liquidação
Vou colocando aqui tudo que me calha escrever. Logo haverá na frente do blog uma placa: passa-se o ponto.
Mordida
Quando ela me leva à beira da insanidade, mordo meu pulso como se fosse sua jugular. Depois sopro sobre ele palavras adocicadas.
Cotação do dia (2)
Quando penso na morte, é como se surpreendesse um vento benfazejo abrindo a cortina do quarto.
Portos
Eu, que a vida esperdicei
Na busca insana de portos,
Agora só buscarei
O reino ignoto dos mortos.
Na busca insana de portos,
Agora só buscarei
O reino ignoto dos mortos.
Extrato
No fim, apenas sobrou
Um pouco do que fui eu.
Minha alma me abandonou
E meu corpo apodreceu.
Um pouco do que fui eu.
Minha alma me abandonou
E meu corpo apodreceu.
Os domingos
Os domingos mais tristes são esses de sol pleno, como os de hoje, que insinuam caminhos que não percorreremos.
Ana C.
Ninguém melhor que você
Para chamar a ternura,
Para cantar a amargura,
Ninguém melhor, Ana C.
Para chamar a ternura,
Para cantar a amargura,
Ninguém melhor, Ana C.
Sanguessuga
O amor é aquele patife
Que nos lesa totalmente,
Contínua e implacavelmente,
Desde o berço até o esquife.
Que nos lesa totalmente,
Contínua e implacavelmente,
Desde o berço até o esquife.
Estilo de vida
"Se eu lucrar dez reais por dia com as paçoquinhas e as balas de goma, já tá bom. Eu não sou luxento."
Umbra
Agora que para as frutas
Já não te servem os dentes,
Melhor a sombra desfrutas
Ao som das folhas cadentes.
Já não te servem os dentes,
Melhor a sombra desfrutas
Ao som das folhas cadentes.
O quê?
Não tenho nada a dizer.
Não sei do ser ou não ser.
O que há de novo em viver,
O que há de novo em morrer?
Não sei do ser ou não ser.
O que há de novo em viver,
O que há de novo em morrer?
Inépcia
Para cantar a beleza,
Não usemos nossa voz.
Para encontrar a pureza,
Não a busquemos em nós.
Não usemos nossa voz.
Para encontrar a pureza,
Não a busquemos em nós.
Um poema de Guiilaume Apollinaire
"O maio o belo maio enfeitou as ruínas
De hera de vinha virgem e roseiras
Do Reno vento agita os vimeiros nas beiras
E o junco falador e as flores nuas das vinhas."
(De Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)
De hera de vinha virgem e roseiras
Do Reno vento agita os vimeiros nas beiras
E o junco falador e as flores nuas das vinhas."
(De Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)
sábado, 29 de novembro de 2014
Chaves
Tuas piadas todas, Chaves,
E os gestos de tua mão
Se transformarão em aves
E pelo céu voarão.
E os gestos de tua mão
Se transformarão em aves
E pelo céu voarão.
Por
Por minhas noites de insônia,
Pelos meus dias de drama,
E porque és meu amor, me ama,
Mesmo que com parcimônia.
Pelos meus dias de drama,
E porque és meu amor, me ama,
Mesmo que com parcimônia.
Espelho
Sempre que me encaro assim,
Vejo que só um sandeu
Exatamente como eu
Daria importância a mim.
Vejo que só um sandeu
Exatamente como eu
Daria importância a mim.
Cotação do dia (III)
É triste quando nos falta coragem para a única viagem que realmente muda alguma coisa.
Futuro
Não sei de nada, nem quero.
Na vida não mais me fio.
Só na morte hoje confio,
E por ela anseio, e espero.
Na vida não mais me fio.
Só na morte hoje confio,
E por ela anseio, e espero.
Poesia e prosa
Há quem considere poesia só a romântica. Venturosos estudantes, tímidas colegiais, vovozinhas zelosas, para quem os maus hábitos, a libertinagem e os pecados em geral, se encontram eco na literatura, é sempre pelo sombrio caminho da prosa.
Pecado
Meu vício mais sério sempre foi a poesia. Meu contato inicial com ela foi morno, lânguido, doentio. Só viria a ter impressão igual anos depois, numa rua de ar salgado, posta a serviço do lenocínio.
Cotação do dia
Sinto-me cansado, imundo,
Tenho nojo de ser eu.
Eu não entendi o mundo
E o mundo não me entendeu.
Tenho nojo de ser eu.
Eu não entendi o mundo
E o mundo não me entendeu.
"Carta a um candidato aos exames imperiais", de Yu Xuanji
"Fiz poesia, triste e quieta no meu canto
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso
Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais.
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria
Acaba a música, rompeu-se o instrumento
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina
É primavera, passa ao rio este momento."
(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso
Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais.
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria
Acaba a música, rompeu-se o instrumento
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina
É primavera, passa ao rio este momento."
(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
Fernanda Lima
Se o tema a ser discutido
For beleza ou obra-prima,
Mencionar Fernanda Lima
Faz sempre todo o sentido.
For beleza ou obra-prima,
Mencionar Fernanda Lima
Faz sempre todo o sentido.
Indiferença
Era frio. Dava de ombros
A tudo, e a nada ligava.
Nem o edifício exaltava
Nem lamentava os escombros.
A tudo, e a nada ligava.
Nem o edifício exaltava
Nem lamentava os escombros.
Final
Do grande amor morreu tudo.
Lembrança dele não há,
Senão muito vaga, já
Sem forma e sem conteúdo.
Lembrança dele não há,
Senão muito vaga, já
Sem forma e sem conteúdo.
Vir a ser
Não é o que foi que eu choro.
Isso já está esquecido.
O que me dói e eu deploro
É o que podia ter sido.
Isso já está esquecido.
O que me dói e eu deploro
É o que podia ter sido.
Rosas
Se penso em ti, uma rosa
Desperta no meu jardim.
Se em mim não pensas, formosa,
Uma rosa morre em mim.
Desperta no meu jardim.
Se em mim não pensas, formosa,
Uma rosa morre em mim.
Cotação do dia
Em São Paulo, carretas desatinadas derrubam viadutos, enquanto o amor falha mais uma vez e não cumpre a promessa de remover montanhas.
Trecho de Katherine Mansfield
"Estou escrevendo para você do Café Mathieu. Está um dia divino, quente. Estou sempre pensando, e pensando em você, meu querido, e desejando, e desejando - você sabe o quê."
(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan,)
(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan,)
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
Desencontros
Enquanto ela busca um homem
E ele procura Mercedes,
O amor sucumbe de fome
E o afeto morre de sede.
E ele procura Mercedes,
O amor sucumbe de fome
E o afeto morre de sede.
Emoticons
Bom nos comunicarmos só assim, com esses emoticons. Te mando uma careta, me respondes com outra, e vamos indo. Palavras, nunca mais. As palavras nos assassinaram.
Último
Ele a beijou como quem
Todo o gosto já perdeu
E a si mesmo prometeu
Nunca mais beijar ninguém.
Comme il faut
Não há por que me gabar.
Amei com todo o fervor,
Até matar-me de amor.
Há outro modo de amar?
Amei com todo o fervor,
Até matar-me de amor.
Há outro modo de amar?
Tédio
São longas as tardes aqui no asilo. O sol parece que dorme lá em cima e esquece de ir embora. Já tentamos antecipar o horário, mas as irmãs nunca servem o jantar antes das sete.
No asilo
Ontem morreu aquele velhote que sempre contava a mesma história, do tempo em que foi casado com a Greta Garbo. Ele dizia assim: "Quando contraí núpcias com a Greta..."
Cotação do dia
Sinto-me como o personagem de um romance russo. Ouvindo Tchaikovsky no salão, você, condessa, espera há três dias que eu morra aqui fora, de fome, na neve.
Com e sem
O amor é aquela balela
Sempre igual, do início ao fim:
Insuportável sem ela
E com ela muito ruim.
Sempre igual, do início ao fim:
Insuportável sem ela
E com ela muito ruim.
Condescendência
Mesmo que ele fosse um ogro
bom seria se o pai de Scarlett Johansson
fosse meu sogro.
bom seria se o pai de Scarlett Johansson
fosse meu sogro.
Prado
Gostaria, quando falo de amor, que se abrisse diante de mim um verdíssimo prado, por onde pudesse correr meu coração, esta lebre alvoroçada.
Livros
O de odes não concluirei
E o de sonetos jamais.
A vida desperdicei
Toda em quadrinhas e haicais.
E o de sonetos jamais.
A vida desperdicei
Toda em quadrinhas e haicais.
Seis versos de Friedrich Hölderlin
"Os meus pais? E os amigos, se ainda forem vivos, de outras coisas
Desfrutam, já não me pertencem.
Chegarei, como sempre, e pronunciarei os antigos
Nomes bem-amados, interpelarei o coração, para vibrar como dantes,
Mas eles estarão em silêncio. Assim o tempo muitas coisas
Une e separa. Eles julgam-me morto e eu a eles."
(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
Desfrutam, já não me pertencem.
Chegarei, como sempre, e pronunciarei os antigos
Nomes bem-amados, interpelarei o coração, para vibrar como dantes,
Mas eles estarão em silêncio. Assim o tempo muitas coisas
Une e separa. Eles julgam-me morto e eu a eles."
(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
Fresta
Se você espiar sorrateiramente, me verá andando pela sala à noite e declamando meu triságio: amor, amor, amor.
É o que era
Rememorando agora, o amor parece o que era: uma tolice, uma fantasia. Pena que não tenha durado um pouco mais.
Limiar
Quando o amor me leva à beira da insanidade, mordo meu pulso como se fosse sua jugular. Depois sopro sobre ele palavras adocicadas.
Cartas
Da gaveta, onde por trinta anos dormiram, as cartas de amor foram parar num lixão em que destoam como lírios num matadouro.
Cotação do dia
Os passarinhos têm vindo ciscar no meu colo. Não descobriram uma santidade que não tenho, mas sabem que minhas mãos não têm mais força para magoá-los.
Sim e não
O amor, por definição,
É coisa dessas assim
Que dizem não quando sim,
E dizem sim quando não.
É coisa dessas assim
Que dizem não quando sim,
E dizem sim quando não.
Amor meu
Amor meu, belo, esplêndido, inocente,
Amor intenso, pleno de grandeza,
Amor meu, paradigma da beleza,
Tão vivo, e morto tão precocemente.
Amor intenso, pleno de grandeza,
Amor meu, paradigma da beleza,
Tão vivo, e morto tão precocemente.
Às vezes
Às vezes, como hoje, olho-me no espelho e digo: aí está mais um que foi aniquilado pelo amor. E uma felicidade absurda me invade.
Negativo
Quando eu me for lembrarás
De mim, talvez. Pobrezinha!
Para uma boa coisinha,
Ou duas, tantas tão más.
De mim, talvez. Pobrezinha!
Para uma boa coisinha,
Ou duas, tantas tão más.
Mimo
Que me desprezes aceito.
Quem sou para censurar-te?
Mas olha: para louvar-te,
Sangro a alma e rasgo o peito.
Quem sou para censurar-te?
Mas olha: para louvar-te,
Sangro a alma e rasgo o peito.
Um poema de Emily Dickinson
u
"Tão antiga quanto Deus,
A Verdade é Sua identidade gêmea
E, assim como Ele, suportará
Uma coeternidade.
E haverá de perecer no dia
Em que Deus, carregado, sair
Da mansão universal
Como divindade sem vida."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
uu
terça-feira, 25 de novembro de 2014
O que é
Viver é apenas fazer
Tudo aquilo que nos cabe,
Por dever ou por prazer,
Antes que viver acabe.
Tudo aquilo que nos cabe,
Por dever ou por prazer,
Antes que viver acabe.
Léu
De repente eu me vi na rua, esmolando. O farnel que ela me deu durou três dias - um pouco menos que o seu amor.
Saudosismo
Certas noites, chega aos mortos no Araçá uma música que os mais velhos definem como foxtrote.
Um trecho de François Ponge
"A beleza das flores que murcham: as pétalas se retorcem como sob a ação do fogo: é bem isso, aliás: uma desidratação. Retorcem-se para deixarem ver as sementes às quais decidem dar sua chance, o campo livre.
É então que a natureza se apresenta perante a flor, força-a a se abrir, a se desabotoar: ela se crispa, se retorce, recua, e deixa triunfar a semente que sai dela que a havia preparado."
(Do livro O partido das coisas, tradução de Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson, publicado pela Iluminuras.)
u
Cotação do dia
Dizer amor, pronunciar amor, proclamar amor, não porque seja minha sina, mas porque já não sei fazer outra coisa.
Scarlett Johansson (2)
Diante de Scarlett Johansson eu seria capaz de falar aramaico, se conseguisse dizer alguma coisa.
Pacto
Então fiquemos assim:
Eu te amo adoidadamente,
Mesmo que provavelmente
Nem gostes muito de mim.
Eu te amo adoidadamente,
Mesmo que provavelmente
Nem gostes muito de mim.
O amor em dados contábeis
Mesmo quando o assunto é o amor
Com suas complicações,
Podemos obter quinhões
Se for bom o contador.
Apesar dos seus senões,
De ser régio esbanjador,
O amor pode ser, se for
Glosado, compensador.
Assim como no demais,
O menos pode ser mais
E a simulação, verdade.
O que agrada nós lançamos,
O que incomoda ignoramos.
Viva a contabilidade!
Com suas complicações,
Podemos obter quinhões
Se for bom o contador.
Apesar dos seus senões,
De ser régio esbanjador,
O amor pode ser, se for
Glosado, compensador.
Assim como no demais,
O menos pode ser mais
E a simulação, verdade.
O que agrada nós lançamos,
O que incomoda ignoramos.
Viva a contabilidade!
De Manoel de Barros
"O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia."
(Do livro Poesia completa, publicado pela LeYa.)
e uma árvore
serve para poesia."
(Do livro Poesia completa, publicado pela LeYa.)
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Interdição
Ele não pode mais dizer amor. Quando diz, as quatro letras se transformam em pétalas, e as pessoas começam a pedir uma nova mágica.
Ainda
Às vezes o vento ainda nos traz um lamento do amor, assim como a consciência insiste em evocar o miado do gatinho que deixamos vinte anos atrás na casa abandonada.
Eu gostaria de ser torturado
Por cento e nove libidinosas loiras que imaginassem haver em casa um cofre com o inefável segredo da poesia.
Eu me desonraria
Por uma loira deliberadamente lenta, que me obrigasse a pedir, pelo amor de Deus, que enfiasse logo as garras em meu pescoço tenro.
Eu renegaria a moral
Por uma loira de dentes agudos que me fizesse ter a vontade de ser um delicioso cordeiro de receita.
Eu me deixaria subornar
Por uma loira que, na hora de passar batom, colocasse uma camadazinha a mais, por saber como gosto de morango.
Eu me deixaria corromper
Por uma loira que conhecesse a arte de sorrir com terceiras intenções, equilibrando uma gotinha de saliva no lábio superior.
O erro
Perdemo-nos quando fomos
Sonhar o que não devíamos,
Querer o que não podíamos,
Almejar o que não somos.
Sonhar o que não devíamos,
Querer o que não podíamos,
Almejar o que não somos.
Conselho
Diante do amor, convém ser tolo como a menina que pergunta quem desenhou no céu o arco-íris.
Volume morto
Vivi já tudo que pude.
De mim só esperem mais
Virtudes excepcionais
Se na morte houver virtude.
De mim só esperem mais
Virtudes excepcionais
Se na morte houver virtude.
Frase de Manoel de Barros
"Camaleões são pertencidos pelas cores; eles se aperfeiçoam das paisagens."
(De Poesia completa de Manoel de Barros, publicação da LeYa.)
(De Poesia completa de Manoel de Barros, publicação da LeYa.)
domingo, 23 de novembro de 2014
Promessa
Prometi à minha mãe ser um grande escritor. Ter morrido em 1970 isentou-a de se decepcionar.
Mais
Chorar por amor é um desses espinhos que só extraímos da carne para enterrá-lo mais fundo e mais prazerosamente.
Hábito
Dizer sempre alguma coisa, ainda que seja insignificante como isto que você lê. Não é uma vocação, é um hábito que os amigos talvez consintam em suportar.
Um poema de Emily Dickinson
"Eu fui um pintassilgo, nada mais;
Pintassilgo, nada menos -
A pequena nota musical desprezada,
Em seu lugar a inscrevia.
Por andar tão junto ao solo,
Ninguém me procurava;
Era tão tímido que não me acusavam de nada -
Um pintassilgo deixa pegadas mínimas
No assoalho da fama."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
u
Pintassilgo, nada menos -
A pequena nota musical desprezada,
Em seu lugar a inscrevia.
Por andar tão junto ao solo,
Ninguém me procurava;
Era tão tímido que não me acusavam de nada -
Um pintassilgo deixa pegadas mínimas
No assoalho da fama."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
u
www.rubem.wordpress.com
Na crônica de hoje, na revista Rubem, falo de um menino que não quer um piano, quer uma mãe.
Verde
Sob o espantado olhar do menino de quatro anos, o cavalo, sem deter o galope, lança meia dúzia de pepitas fumegantes que explodem e rolam no solo. A cada uma o menino festeja: verde, verde, verde.
O castelo, a princesa
O castelo existe ainda. Também a princesa, que me espera com os olhos afogados em lágrimas. Eu sempre disse isso, mas só agora, aqui, meus colegas e os doutores acreditam.
Um poema de Guillaume Apollinaire
""ADEUS
Colhi um ramo de urze
O outono morreu lembra-te
Não nos veremos mais na terra
Odor do tempo ramo de urze
E lembra-te de que te espero."
(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)
Colhi um ramo de urze
O outono morreu lembra-te
Não nos veremos mais na terra
Odor do tempo ramo de urze
E lembra-te de que te espero."
(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)
sábado, 22 de novembro de 2014
Poesia é
Poesia não tem roteiro.
É dado lançado à sorte,
É barco sem timoneiro,
É itinerário sem norte.
É dado lançado à sorte,
É barco sem timoneiro,
É itinerário sem norte.
Recado
Se vocês encontrarem Pâmella Martinelli Merchyora, digam-lhe que ela me matou, embora ela já saiba. Faz bem ao ego dela e afia suas unhas.
Agora que
Agora que o amor morreu, quando olho para ele o vejo tão fraco, tão desprezível. Deus, como ele pôde me atormentar tanto? Quantas cordas, quantas lâminas, quantos venenos ele me incitou a usar para merecê-lo. Sobrevivi para a tristeza de vê-lo assim, como um trapo. Pobre amor, por que resisti à tentação de tuas cordas, de tuas lâminas, de teus venenos?
Emperiquitadas
As frases imponentes têm mais pose que beleza. As de autoajuda vêm sempre engravatadas.
Fernanda Lima
Quantas palavras vale uma imagem de Fernanda Lima? Talvez uma só: beleza, multiplicada por mil.
Eu também
Eu também ousei pronunciar a palavra "amor", com estes lábios que lamberam a pele morna da devassidão.
Tudo, e tudo de novo
Dizer tudo que se devia e se queria, com as vogais afogadas de lágrimas, e ouvir da amada o pedido: me diz tudo de novo, tudo.
Conivência
Se ouvimos os passos do amor nos seguindo, sentimos um frisson de ovelha e nossas pernas se recusam a andar.
Heroísmo
Roubar um beijo com gosto de hortelã, na última fileira do cinema, nos igualava aos heróis do faroeste.
Manoel de Barros
"Esfregar pedras na paisagem."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
Autoestima
Se a encontrarem por aí, digam-lhe que ela me matou. Ela sabe, mas é sempre bom para a sua autoestima.
Obsessão
Ai, doce obsessão querida,
Me deixa os dias fruir,
Me deixa à noite dormir,
Me deixa viver a vida.
Me deixa os dias fruir,
Me deixa à noite dormir,
Me deixa viver a vida.
Já ou ainda
Tu serás, ou terás sido,
Não importará saber,
Ou belo instante a viver,
Ou belo instante vivido.
Tão, tão, tão, tão
Tão doce te abraçaria,
Tão doce, tão docemente,
E leve, tão levemente,
Tão leve te beijaria.
Tão doce, tão docemente,
E leve, tão levemente,
Tão leve te beijaria.
Ontem
Recordando o que vivi,
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.
Pecado original
O grande infortúnio de minha vida foi presumir, adolescente, que escrever pudesse ser o meu destino.
Três meses
Dona Olga, toda madrugada, acorda com a algazarra dos gatos enlouquecidos pelo cio, na rua. Faz três meses que isso acontece. Ela se queixa ao marido, grita para ele ir acabar com aquilo. Faz três meses que ele morreu.
Indícios
Quando os amigos começam a morrer, ou a se mudar para Pindamonhangaba, é sinal de que não estamos agradando.
Só se
Querida, quando voltares
Dali de onde agora estás,
Somente me encontrarás
Se a terra fundo cavares.
Dali de onde agora estás,
Somente me encontrarás
Se a terra fundo cavares.
"Ode vingativa", de Manoel de Barros
"Ela me encontrará pacífico, desvendável
Vendável, venal e de automóvel.
Ela me encontrará grave, sem mistérios, duro
Sério, claro como o sol sobre o muro.
Ela me encontrará bruto, burguês, imoral,
Capaz de defendê-la, de ofendê-la e perdoá-la;
Capaz de morrer por ela (ou então de matá-la)
Sem deixar bilhete literário no jornal.
Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico
Anticristão e, talvez, campeão de xadrez.
Ela me encontrará forte, primitivo, animal
Como planta, cavalo, como água mineral."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
Vendável, venal e de automóvel.
Ela me encontrará grave, sem mistérios, duro
Sério, claro como o sol sobre o muro.
Ela me encontrará bruto, burguês, imoral,
Capaz de defendê-la, de ofendê-la e perdoá-la;
Capaz de morrer por ela (ou então de matá-la)
Sem deixar bilhete literário no jornal.
Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico
Anticristão e, talvez, campeão de xadrez.
Ela me encontrará forte, primitivo, animal
Como planta, cavalo, como água mineral."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
O único
Só eu mesmo, amor, para te receber com flores depois de voltares com a bolsinha cheia de fumo e essa mordida de marinheiro sueco no ombro.
Cotação do dia
Um trapo que limpa uma estante que não é tua, esfregado por uma que não é nenhuma de tuas mãos.
Herói
No sonho te vi num navio que levava escravas para os jogos sexuais de milionários em Madri. Lutei para resgatar-te, e acordei gritando teu nome e mordendo meu pulso, como se fosse o pulso do capitão.
Em vão
Para aumentar o que somos,
Nós inventamos o heroísmo.
Ah, como tolos nós fomos...
Nascemos para o ostracismo.
Nós inventamos o heroísmo.
Ah, como tolos nós fomos...
Nascemos para o ostracismo.
Praga
O amor é pior do que um vício.
Te dá um pouco, promete
Mais, te ganha, te submete,
Te atira no precipício.
Te dá um pouco, promete
Mais, te ganha, te submete,
Te atira no precipício.
Como deve
O amor há de ser lembrado como deve: como se estivesse vivo ou como se fosse possível ressuscitá-lo.
Cinco pepitas de Manoel de Barros
"As árvores me começam."
"Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde."
"Os patos prolongam meu olhar... Quando passam levando a tarde para longe eu acompanho..."
"Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem voz."
"Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silencio estica os lírios."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
"Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde."
"Os patos prolongam meu olhar... Quando passam levando a tarde para longe eu acompanho..."
"Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem voz."
"Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silencio estica os lírios."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
Ciúme
Ela rejeita o amor como alguém que rejeita um gato que mia à porta, por ser novo e belo seu sofá vermelho.
Regressão
Sua solidão começou a ser frequentada por mulheres que a memória ia buscar nos livros sujos da adolescência. Uma delas, a mais habitual, usava espartilho.
Geografia
O amor é aquela aparição que você espera em Amsterdã, Nova York, Kuala Lumpur ou em uma esquina de São Miguel Paulista.
Cotação do dia
Nas redes, corre um aviso para os amigos: ele está muito mal. E um pedido: elogiem seus sonetos, ainda que nenhum deles tenha chave de ouro.
Gps
Poesia com ideias é passarinho com gps: dobre à direita, na pitangueira, dê dez batidas de asa e pouse na ameixeira. Ali, cante.
Ingenuidade
Apenas eu para crer
Que o amor fosse um sentimento
Imune ao esquecimento
E ao destino de morrer.
Que o amor fosse um sentimento
Imune ao esquecimento
E ao destino de morrer.
Quase
A beatitude do amor foi o máximo que nossa alma almejou. Chegou perto de alcançá-la, ou assim pensou. Não alcançou.
Coragem
Amor, quem há de dizer-te
Que és o rei da crapulagem,
Quem há de ter a coragem,
Patife, de maldizer-te?
Que és o rei da crapulagem,
Quem há de ter a coragem,
Patife, de maldizer-te?
Antes do amor
Naquele tempo eu não tinha
Problema de identidade.
A minha alma era só minha
E eu a gastava à vontade.
Problema de identidade.
A minha alma era só minha
E eu a gastava à vontade.
Script
É sempre igual o roteiro
Da peça chamada vida.
Os sonhos morrem primeiro,
A carne morre em seguida.
Da peça chamada vida.
Os sonhos morrem primeiro,
A carne morre em seguida.
Heráclito
Jamais beberei da chuva em lábios tão preciosos. Jamais me banharei de novo num rio como o daquela tarde, que subia à calçada alimentado pelas nuvens generosas.
Ego
Tantas coisas tão belas, pássaros, flores, canções. Por que insistimos em falar de nossa imagem refletida no lago?
Trecho de Manoel de Barros
"Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
terça-feira, 18 de novembro de 2014
Sem nexo
Curioso aconselharem que nos preparemos para a morte, quando nunca chegamos a estar preparados para a vida.
O que era
Rememorado agora, o amor parece o que era: uma tolice, uma fantasia. Pena que não tenha durado um pouco mais.
Medula
Nos meus sonhos, o que mais excita é o farfalhar dos vestidos de seda, que fazem algum charme antes de se deixarem vencer pelos meus dedos.
Parágrafo inicial de "Estado de graça", de Ann Patchett
"A notícia da morte de Anders Eckman chegou por aerograma, uma fina folha de papel azul forte que tanto fazia as vezes de papel de carta como, estando dobrado e colado nas extremidades, de envelope. Quem imaginaria que ainda existia esse tipo de coisa? Aquela folha simples viajara do Brasil até Minnesota para comunicar o falecimento de um homem, uma nesga de material tão insubstancial que apenas o selo parecia ancorá-lo a este mundo. O Sr. Fox segurava a carta quando entrou no laboratório a fim de dar a notícia para Marina. Assim que ela o viu à porta, sorriu, e ele, diante daquele sorriso, hesitou."
(Tradução de Maria Carmelita Dias, publicação da Intrínseca.)
(Tradução de Maria Carmelita Dias, publicação da Intrínseca.)
Sotaque
Mexeram em meus dentes e hoje, se pronuncio amor, a palavra soa como se dita por uma mercenária do sexo.
Maçãs
Sou um tolo. Como um menino, levei maçãs diariamente ao amor, como se ele fosse uma professora velha e subornável. Ela as deu, todas, a homens de dentes pontudos e famintos.
Sensatez
Sensato é o homem que usa as palavras somente quando o silêncio já não pode dizer nada por ele.
Tempo e ocasião
Se há muito tempo não
Consegues fazer um poema,
Esta é uma boa ocasião
De mudares o sistema.
Se não houver mutação
Nem mesmo com o novo esquema,
Morrer é uma solução,
Um belo estratagema.
Consegues fazer um poema,
Esta é uma boa ocasião
De mudares o sistema.
Se não houver mutação
Nem mesmo com o novo esquema,
Morrer é uma solução,
Um belo estratagema.
Um trecho de Lolita Pille
"Eu sou uma putinha. Daquelas mais insuportáveis, da pior espécie; uma sacana do 16ème, o melhor bairro de Paris, e me visto melhor que a sua mulher, ou a sua mãe. Se você trabalha num lugar "metido", ou é vendedora numa butique de luxo, com toda a certeza gostaria que eu morresse; eu, e todas as minhas iguais. Mas a gente não mata a galinha dos ovos de ouro. De forma que a minha espécie insolente irá perdurar e proliferar..."
(Do livro Hell - Paris-75016), tradução de Julio Bandeira, publicado pela Intrínseca.)
(Do livro Hell - Paris-75016), tradução de Julio Bandeira, publicado pela Intrínseca.)
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
Cotação da noite
Não é difícil fazer.
É só à porta chegar,
Bater leve e perguntar:
"É aqui que se vem morrer?"
É só à porta chegar,
Bater leve e perguntar:
"É aqui que se vem morrer?"
Resgate
Se encontra na areia uma estrela, o pescador a arremessa de volta ao céu. Tem pena desses filhotes que se descuidam e vivem despencando.
Temor
A pedra, quando o poeta se aproxima, encolhe-se. Receia ser tirada de sua placidez e começar a viver inquietações de flor ou de pássaro.
Um trecho de Mariana Ianelli
"Folhear um dicionário analógico é, de partida, entrar na palavra cosmurgia. Usando uma expressão de Gonçalo Tavares, é algo assim como ingressar num 'armazém metafísico' e perder-se numa baralhada de reflexões com energia para gerar muitas vidas. Uma única palavra tem o efeito do grão que faltava para precipitar o sal dos mares: centenas, milhares de possibilidades e aproximações que estavam ali, no fundo do silêncio, só esperando o mote para ser glosado, o primeiro sopro que desperta e põe a máquina do mundo em movimento."
(Da crônica "Ciclópico, desmesurado, fenomenal", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
(Da crônica "Ciclópico, desmesurado, fenomenal", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
Como?
Esse que fala não sou eu. Como eu poderia maldizer o amor, que se inscreveu em meu corpo com rabiscos de chicote?
Outro jeito
Porque é impossível distribuir beleza a todos, talvez se possa repartir igualitariamente a feiura.
"Dorowa", de Manoel de Barros
"Homens bebem à mesa
De um cabaré de Curitiba.
A obesa Marcelle, instalada,
Engole álcool de coxas flácidas.
A esquelética Lili,
No fim da noite, exausta
Fala mole e tomba
De grandes olheiras no chão.
Ó Dorowa teus 15 anos
Entre ombros de homens bêbados
No cabaré de Curitiba!
Ó Dorowa, teus 15 anos.
Lili, Marcelle, Dorowa.
Dorowa não, Doroty...
Ó vós, que um dia chegardes
Ao cabaré de Curitiba:
Dormi com a Dorowa,
Que está dentro da Doroty.
Dormi com a Dorowa,
Ela está no fundo da Doroty.
Sabei arrancá-la de lá
Na pureza dos 15 anos.
Não deixeis Dorowa morrer,
Ela é a alma que sustenta os poetas.
Não deixeis Dorowa morrer
Como rosa em peito de suicida."
(Do livro Poesia completa, publicado pela Leya.)
De um cabaré de Curitiba.
A obesa Marcelle, instalada,
Engole álcool de coxas flácidas.
A esquelética Lili,
No fim da noite, exausta
Fala mole e tomba
De grandes olheiras no chão.
Ó Dorowa teus 15 anos
Entre ombros de homens bêbados
No cabaré de Curitiba!
Ó Dorowa, teus 15 anos.
Lili, Marcelle, Dorowa.
Dorowa não, Doroty...
Ó vós, que um dia chegardes
Ao cabaré de Curitiba:
Dormi com a Dorowa,
Que está dentro da Doroty.
Dormi com a Dorowa,
Ela está no fundo da Doroty.
Sabei arrancá-la de lá
Na pureza dos 15 anos.
Não deixeis Dorowa morrer,
Ela é a alma que sustenta os poetas.
Não deixeis Dorowa morrer
Como rosa em peito de suicida."
(Do livro Poesia completa, publicado pela Leya.)
domingo, 16 de novembro de 2014
Cotação do dia (4)
Aos domingos a vida, essa bruxa decrépita, tem o desplante de se exibir como se fosse uma fada, e coloca flores em nossa lapela.
Cotação do dia
Aquele que foi amado não era nenhum de nós. Era alguém muito melhor, que um dia começou a se parecer conosco.
Caminho
Como poeta e como homem
eu sempre piorei
Para todos nós
é assim que acontece
Piorar é a lógica
Se fosse o contrário
a morte seria um merecimento.
eu sempre piorei
Para todos nós
é assim que acontece
Piorar é a lógica
Se fosse o contrário
a morte seria um merecimento.
Vida
Sejamos justos. A vida
Não é nem boa nem ruim.
Desde o início até o fim,
Somente quer ser vivida.
Não é nem boa nem ruim.
Desde o início até o fim,
Somente quer ser vivida.
Um poema de Manoel de Barros
"Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias
de areia de formiga e musgo - elas podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro -
elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas.)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.)
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
de areia de formiga e musgo - elas podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro -
elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas.)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.)
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
sábado, 15 de novembro de 2014
Ardil
Deitada no quarto, ela ouve os dedos na porta da frente. Aguça o ouvido. Não é ele. Mais uma vez é o vento, aquele farsante.
Menos uma
Toda noite ele aponta o céu e diz que está faltando uma estrela. Ninguém se dá ao trabalho de contar. Ele sorri. De volta para casa, coloca a estrela com as outras, no quartinho dos fundos.
Desculpas
Quando perguntam ao vento por que ele já não dá aquele assobio agudo que parecia uma flauta, ele responde que está velho e perdeu os dentes da frente.
"Os girassóis de Van Gogh", de Manoel de Barros
"Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas
Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.
E como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas
Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.
E como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
Três versos de Manoel de Barros
"Os mortos se andorinham longemente...
Eu me horizonto.
Eu sou o horizonte dessas garças."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
Eu me horizonto.
Eu sou o horizonte dessas garças."
(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)
No ar
A poesia está no ar, não para ser apanhada como um passarinho, mas para ser inspirada com as narinas da alma.
As três palavras
Tivemos um modo de dizer que nos amávamos. Era simples: eu te amo. Talvez tenhamos dito demais, e as palavras se gastaram.
Rivais
Ela tem oitenta e dois e espera superar os oitenta e três, idade com a qual há três meses morreu a amiga com quem ela disputava todos os prêmios no colégio.
Cúmplices
O amor há de ter sempre mãos de assassino e contar com nossa garganta benevolente e cúmplice.
Verdugo
O amor é aquela chibata
Que nos faz, ao estalar,
Pedir, rogar, suplicar:
Mais, mais, me fere, me mata.
Que nos faz, ao estalar,
Pedir, rogar, suplicar:
Mais, mais, me fere, me mata.
E que
Quando enfim chegar o dia,
Que Deus piedoso não negue
As bênçãos da eucaristia
E que o Diabo me carregue.
Que Deus piedoso não negue
As bênçãos da eucaristia
E que o Diabo me carregue.
Futuro
"Um pouco mais embaixo, aí", ela pediu, e ele já se pôs a imaginar por quanto tempo viria a pagar por aquele gozo.
Pauta
Manoel de Barros morreu, mas o assunto mais importante de hoje é a formação da equipe econômica.
Penúltimo passo
No ônibus e no metrô todos agora me olham como se eu fosse porcelana - não por minha beleza, mas por minha fragilidade.
"Na enseada de Botafogo", de Manoel de Barros
"Como estou só. Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja...
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.
Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!
Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?"
(Do livro Poesia completa, publicado pela LeYa.)
Falo com o mar na rua suja...
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.
Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!
Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?"
(Do livro Poesia completa, publicado pela LeYa.)
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Sonsice
Feliz com a minha sonsice: ter acreditado no amor como o mais fanático e irracional dos crentes. Nada ter gozado, a não ser o inigualável dulçor da alma flagelada.
Cotação da noite
A voz do amor é cada vez mais fraca, como se viesse de um mudo encarcerado numa masmorra do século XIX.
Que o pé
Se formos humilhados, como merecemos, que o pé em nossa nuca, a nos fazer lamber o chão, seja o do amor.
Trapo
O amor nos trata de tal forma, tanto nos amarrota, que no fim não servimos nem para pano de chão.
Manu e Manô
Há algum tempo, foi-se Manu. Neste tempo, hoje, se foi Manô. Tempos ingratos, tempos funestos.
"Coisas mansas", de Manoel de Barros
"Coisas mansas, de sela, andavam por
ali bebendo água...
Ventava
sobre azaleias
e municípios
Ventinho de pelo!
Monto nele e vou
experimentando a manhã nos galos...
Ó este frescor! como um afluente
de tua boca..."
(De Poesia completa de Manoel de Barros, publicada pela LeYa.)
ali bebendo água...
Ventava
sobre azaleias
e municípios
Ventinho de pelo!
Monto nele e vou
experimentando a manhã nos galos...
Ó este frescor! como um afluente
de tua boca..."
(De Poesia completa de Manoel de Barros, publicada pela LeYa.)
Casas Bahia
O amor é aquele bandido que esvaziou nossa casa. Um mês depois já repusemos tudo em dez parcelas e ficamos esperando que ele volte.
Tolice
Acharam-me tolo. Como um menino, levei diariamente maçãs ao amor, como se ele fosse uma professora velha. Ela as dava a homens de dentes pontudos e famintos.
"Vietnã", de Wislawa Szymborska
"Mulher, como você se chama? - Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? - Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? - Não sei.
Desde quando está está aqui escondida? - Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? - Não sei.
De que lado você está? - Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. - Não sei.
Tua aldeia ainda existe? - Não sei.
Esses são teus filhos? - São.
Quando você nasceu, de onde você vem? - Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? - Não sei.
Desde quando está está aqui escondida? - Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? - Não sei.
De que lado você está? - Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. - Não sei.
Tua aldeia ainda existe? - Não sei.
Esses são teus filhos? - São.
quarta-feira, 12 de novembro de 2014
O amor é um navio
O amor é como um navio
Singrando o mar mansamente
Na hora mais clara e mais quente
De um belo dia de estio.
Ninguém, ao vê-lo, dirá,
Porque impossível seria,
Que logo essa calmaria
Tormento e fúria será.
Mas um instante mais tarde
Já o navio em chamas arde
E não há mais salvação.
As esperanças queimaram,
Os sonhos já se afogaram
E só lembranças serão.
Singrando o mar mansamente
Na hora mais clara e mais quente
De um belo dia de estio.
Ninguém, ao vê-lo, dirá,
Porque impossível seria,
Que logo essa calmaria
Tormento e fúria será.
Mas um instante mais tarde
Já o navio em chamas arde
E não há mais salvação.
As esperanças queimaram,
Os sonhos já se afogaram
E só lembranças serão.
Dilema
Se a vida não me convém
E a morte não me socorre,
Eu vivo assim como quem
Nem bem vive e nem bem morre.
E a morte não me socorre,
Eu vivo assim como quem
Nem bem vive e nem bem morre.
Katherine Mansfield
"Preciso aprender a me esquecer."
(Do livro Felicidade e outros contos, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)
(Do livro Felicidade e outros contos, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Nadir
Tentei odes, epopeias,
Com todas as forças minhas.
Agora, só melopeias,
Sonetos bobos, quadrinhas.
Com todas as forças minhas.
Agora, só melopeias,
Sonetos bobos, quadrinhas.
Marketing
Se viver a própria idade fosse um bom conselho para os macróbios, não precisaria ser dado nem renovado a cada instante.
Destinos
O amor, pela sua mão,
Nos leva à última morada:
Ou para a Consolação
Ou para a Quarta Parada.
Nos leva à última morada:
Ou para a Consolação
Ou para a Quarta Parada.
O que os olhos veem agora
Os olhos, que contemplaram
Os arcos-íris dourados
E os montes alcandorados,
Há muito já se fanaram.
O belo que contemplaram
São fatos tão já passados
Que parecem inventados
E quase já se apagaram.
Agora veem somente
O que está à sua frente
E o que à sua frente está
A beleza desmerece
E louvores não merece,
E nunca merecerá.
Os arcos-íris dourados
E os montes alcandorados,
Há muito já se fanaram.
O belo que contemplaram
São fatos tão já passados
Que parecem inventados
E quase já se apagaram.
Agora veem somente
O que está à sua frente
E o que à sua frente está
A beleza desmerece
E louvores não merece,
E nunca merecerá.
Amém
Agora, perto do fim,
Sem mais esperança e sem
Nenhum alívio também,
Morrer é o que resta, assim.
Sem mais esperança e sem
Nenhum alívio também,
Morrer é o que resta, assim.
Três fragmentos de Yu Xuanji
"Ascende o odor do incenso ao altar de jade
Levo um convite solene à mansão dourada."
"Alegra-se a alta nuvem, entre sonhos tristes
O olhar do céu permanece, um olor mais que flores."
"Campos abrem-se em estradas: a primavera
traça sinais de música na paisagem."
(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
Levo um convite solene à mansão dourada."
"Alegra-se a alta nuvem, entre sonhos tristes
O olhar do céu permanece, um olor mais que flores."
"Campos abrem-se em estradas: a primavera
traça sinais de música na paisagem."
(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
Rusga
Amor, qual é o problema?
Por que você me ofendeu,
Por que você me mordeu
E recusou o meu poema?
Por que você me ofendeu,
Por que você me mordeu
E recusou o meu poema?
Espera
Agora, após suportar
Na terra o fardo do inferno,
Nos resta só esperar
Que venha o descanso eterno.
Na terra o fardo do inferno,
Nos resta só esperar
Que venha o descanso eterno.
Melhor não
Não há mais claro consenso
Que o de se reconhecer
Que o amor não precisa ter
Nunca razão nem bom-senso.
Que o de se reconhecer
Que o amor não precisa ter
Nunca razão nem bom-senso.
domingo, 9 de novembro de 2014
Para onde
Largar tudo, abandonar tudo, e ir para onde, com este corpo que os urubus já começaram a seguir?
Alguns
O velho lobo ainda tem alguns dentes, que doem quando ele vai beber água no riacho. As lebres já não fogem quando o veem.
Cotação do dia (2)
Como ao ser humano, por teimosia, custa dizer uma palavra curta como adeus, mesmo que seja a um moribundo.
www.rubem.wordpress.com
No texto de hoje, rememoro figuras e fatos do meu tempo de revisor no jornal O Estado de S. Paulo. Eu estava vivo nessa época. Depois, nunca mais.
Soneto da hora certa da morte
É coisa mais que sabida,
Mas convém sempre lembrar
Que, custe ou não a chegar,
A morte é um fato da vida.
Conforme venha a calhar,
É bem ou mal recebida,
E suplicada ou temida
Segundo a hora e o lugar.
Não querem que ela se apresse
Aqueles que o amor aquece
Com seu festivo fulgor.
Os outros, os desamados,
Aguardam, esperançados,
Que venha quanto antes for.
Mas convém sempre lembrar
Que, custe ou não a chegar,
A morte é um fato da vida.
Conforme venha a calhar,
É bem ou mal recebida,
E suplicada ou temida
Segundo a hora e o lugar.
Não querem que ela se apresse
Aqueles que o amor aquece
Com seu festivo fulgor.
Os outros, os desamados,
Aguardam, esperançados,
Que venha quanto antes for.
Como ela nos quer
A poesia nos quer fracos, chorosos, vencidos. Não são os conquistadores que a fazem, são as vítimas, abençoadas vítimas que em tudo veem a alegoria da dor e da perda.
Solução
Morrer é um modo certeiro
De fugir de dissabores
Como o da escassez de amores
E o da falta de dinheiro.
De fugir de dissabores
Como o da escassez de amores
E o da falta de dinheiro.
Marcha lenta
Num tempo de mensagens instantâneas, ele perdeu todas as batalhas do amor pela lerdeza dos pés dos seus versos.
Um poema de Emily Dickinson
"Ele chegou afinal, mais ágil porém a Morte
Havia ocupado a casa:
A pálida mobília já disposta,
Junto com sua paz metálica -
Ó fiel geada, que observaste a data!
Tivesse o Amor sido tão pontual,
A alegria teria feito mais alto o portão
E bloqueado sua entrada."
(D livro Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)
Havia ocupado a casa:
A pálida mobília já disposta,
Junto com sua paz metálica -
Ó fiel geada, que observaste a data!
Tivesse o Amor sido tão pontual,
A alegria teria feito mais alto o portão
E bloqueado sua entrada."
(D livro Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)
sábado, 8 de novembro de 2014
Perfil
Por sua falsa conduta,
Pelo seu jeito escarninho,
Por ser covarde e mesquinho,
O amor é um filho da puta.
Pelo seu jeito escarninho,
Por ser covarde e mesquinho,
O amor é um filho da puta.
Um trecho de Mariana Ianelli
"Do estado de repouso ao livro de páginas abertas, os encontros variam, traem metódicos critérios, vencem a distância de oceanos e séculos, produzem aqui e ali uma mistura muito peculiar de essências. Entre chegadas e partidas, os destinos são tão incertos e fortuitos quanto os de uma existência. São as muitas vidas de cada livro. Uma das razões, talvez, por que os gastos gostam tanto de bibliotecas."
(Da crônica "Sete mil vidas", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
(Da crônica "Sete mil vidas", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
Gafes vocabulares
Na nova crônica no portal do Estadão (www.estadao.com.br, blog Escreviver), falo de situações terríveis como aquela de dizer granito quando se quer falar granizo.
Cotação do dia
Entrar num barco que nos levasse longe e nos deixasse num lugar aonde não chegasse jamais a voz do amor com suas mentiras.
A vida como ela é
O frio, depois do fogo,
Depois das luzes, a treva,
A isso é que a vida nos leva,
A morte é parte do jogo.
Depois das luzes, a treva,
A isso é que a vida nos leva,
A morte é parte do jogo.
Síntese
Aos poucos os dissabores,
Os de gosto fraco ou forte,
Juntam todos os sabores
No ácido sabor da morte.
Os de gosto fraco ou forte,
Juntam todos os sabores
No ácido sabor da morte.
Soneto da obsessão pela arte (versão final)
Nós, seres mais que imperfeitos,
Tivemos a pretensão
De erguer com os nossos defeitos
A torre da perfeição.
Confiamos em nossa mão,
Nos nossos dedos perfeitos
E também na exatidão
E em todos os seus preceitos.
Erguemos o monumento
E não há nenhum momento
Em que deixemos de crer
Que ele, na sua grandeza
E na soberba beleza,
Nasceu para eterno ser.
Tivemos a pretensão
De erguer com os nossos defeitos
A torre da perfeição.
Confiamos em nossa mão,
Nos nossos dedos perfeitos
E também na exatidão
E em todos os seus preceitos.
Erguemos o monumento
E não há nenhum momento
Em que deixemos de crer
Que ele, na sua grandeza
E na soberba beleza,
Nasceu para eterno ser.
Mr. C
Aos poucos fomos deixando
Que o verme crescesse em nós
E aos poucos fosse calando
Nosso sangue, nossa voz.
Que o verme crescesse em nós
E aos poucos fosse calando
Nosso sangue, nossa voz.
"Carta a um candidato aos exames imperiais", de Yu Xuanji
"Fiz poesia, triste e quieta no meu canto
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso
Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria
Acaba a música, rompeu-se o instrumento
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina
É primavera, passa ao rio este momento."
Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso
Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria
Acaba a música, rompeu-se o instrumento
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina
É primavera, passa ao rio este momento."
Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
Wislawa
Wislawa Szymborska devolve à poesia sua melhor voz. Nela o épico não tem vez, a não ser que o encontremos numa xícara ou em outro objeto corriqueiro. Não há tambores. Wislawa não escreve odes.
Dostoiévski
Em Dostoiévski, tudo é tormento. Ele trata seus personagens com o rancor de um deus contestado.
Lágrimas
Se gemeis pouco e baixinho,
De modo indeciso e tosco,
Ninguém vos dá um carinho,
Ninguém se importa convosco.
De modo indeciso e tosco,
Ninguém vos dá um carinho,
Ninguém se importa convosco.
Soneto da hora de pagar os gozos
Digo a ti, que em tudo vias,
Até no pior, um motivo
Para cantar alegrias
Pela bênção de estar vivo.
Digo a ti, que amor juraste
Ao deus da eterna beleza
E que o seu som desfrutaste,
Assim como o da riqueza.
Digo a ti que o que fruíste
Nada, nem ninguém, existe
Que apagar possa esse gozo.
Mas nada irás mais gozar.
Chegou a hora de pagar
Cada momento gozoso.
Até no pior, um motivo
Para cantar alegrias
Pela bênção de estar vivo.
Digo a ti, que amor juraste
Ao deus da eterna beleza
E que o seu som desfrutaste,
Assim como o da riqueza.
Digo a ti que o que fruíste
Nada, nem ninguém, existe
Que apagar possa esse gozo.
Mas nada irás mais gozar.
Chegou a hora de pagar
Cada momento gozoso.
Modus operandi
Escrevo como quem traz
A alguém inútil conforto,
Como um menino que faz
Carinho num gato morto.
A alguém inútil conforto,
Como um menino que faz
Carinho num gato morto.
O "a"
Os homens que o amor matou
Têm o "a" tatuado no peito
E o olhar quase satisfeito
De quem sofreu mas gozou.
Têm o "a" tatuado no peito
E o olhar quase satisfeito
De quem sofreu mas gozou.
Um trecho de Mariana Ianelli
"Quem sabe um dia eu me esqueça, quem sabe, depois de tudo, a vida fique cinzenta, já vi isso acontecer a muita gente, esse desencanto, essa focinheira, esse cansaço de quem não tem mais lá no fundo dos olhos além de um poço seco. Mas digamos que não aconteça, que eu ponha os meus olhos nos teus sempre com o mesmo bulício de água fresca. Digamos que seja assim, que todas as noites eu compareça, como se fosse cada noite uma estrela dentro de uma única noite imensa. Digamos, por enquanto: este encontro é possível."
(Da crônica "Carta para o amigo", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
(Da crônica "Carta para o amigo", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
Soneto da doce amargura (versão final)
Não pensa certo quem pensa
Em todos os sonhos pôr
Nos braços frouxos do amor.
Não há mais errônea crença
Do que essa, de se supor
Que para a tristeza imensa
Ele nos dê recompensa,
Alívio ou seja o que for.
O amor, por definição,
Tem somente a obrigação
De a nossa vida afligir.
Ver nessa aflição doçura
Ou nela achar amargura
Cabe a nós, só, decidir.
Em todos os sonhos pôr
Nos braços frouxos do amor.
Não há mais errônea crença
Do que essa, de se supor
Que para a tristeza imensa
Ele nos dê recompensa,
Alívio ou seja o que for.
O amor, por definição,
Tem somente a obrigação
De a nossa vida afligir.
Ver nessa aflição doçura
Ou nela achar amargura
Cabe a nós, só, decidir.
Mensagens
Pelo eterno amor, fanado,
Pelo projeto, falido,
Pelo castelo, destruído,
A morte manda o recado.
Pelo projeto, falido,
Pelo castelo, destruído,
A morte manda o recado.
Do seu jeito
Calado, e sem se mover,
Deitado na própria cama,
O morto, sóbrio, proclama
Que a morte é um modo de ser.
Deitado na própria cama,
O morto, sóbrio, proclama
Que a morte é um modo de ser.
Cotação do dia (3)
Um morto como outro qualquer, sem nenhum traço de romantismo. Nenhum poema no último terno.
Cotação do dia (2)
Mais nenhum sinal vital além do sorriso tolo deixado pela última palavra pronunciada: amor.
Soneto do amor larápio (versão final)
Caminhava eu calmamente
Sem pensar nada ou supor,
Quando sorrateiramente
Fui seguido pelo amor.
Esse doce malfeitor
Mostrou-se tão eficiente
Que me tornou seu credor
Após tornar-me indigente.
Seu furto eu agradeci
E meu caminho segui
Sem nunca vê-lo outra vez.
Ah, se revê-lo eu pudesse
E roubar-me ele quisesse
Como nesse dia fez.
Sem pensar nada ou supor,
Quando sorrateiramente
Fui seguido pelo amor.
Esse doce malfeitor
Mostrou-se tão eficiente
Que me tornou seu credor
Após tornar-me indigente.
Seu furto eu agradeci
E meu caminho segui
Sem nunca vê-lo outra vez.
Ah, se revê-lo eu pudesse
E roubar-me ele quisesse
Como nesse dia fez.
Norte
Chega na vida um momento
Em que qualquer rumo ou rota,
Toda ideia ou sentimento
Nos levam para a derrota.
Em que qualquer rumo ou rota,
Toda ideia ou sentimento
Nos levam para a derrota.
Razão
Amor, quem há de entender,
Quem há de ter convicção,
Se tu és nossa razão
De viver ou de morrer?
Quem há de ter convicção,
Se tu és nossa razão
De viver ou de morrer?
O outro lado
Pela versão dos vencidos,
Os que foram vencedores
São apenas impostores
Pelo acaso protegidos.
Os que foram vencedores
São apenas impostores
Pelo acaso protegidos.
Quatro versos de Walt Whitman
"Walt Whitman, um cosmos,o filho de Manhattan,
Turbulento, carnal, sensual, comendo, bebendo e procriando,,
Não é um sentimental, não olha de cima os homens nem as mulheres nem se afasta deles,
Não é mais modesto do que imodesto."
(De Canto de mim mesmo, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
Turbulento, carnal, sensual, comendo, bebendo e procriando,,
Não é um sentimental, não olha de cima os homens nem as mulheres nem se afasta deles,
Não é mais modesto do que imodesto."
(De Canto de mim mesmo, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
Triste é
Triste é o tempo em que se fala da paixão entre goles de chá morno e a memória parece um texto iluminado por uma vela trêmula.
Fernanda Lima
Fernanda Lima é um dos preciosos momentos em que a poesia se deixa ver em sua inteireza.
Tantos melhores
O cachorro olha com desdém o poeta e as flores que trouxe. Já viu outros de muito melhor aspecto sendo escorraçados. E as flores cheiram mal, como os sonetos no bolso.
Fim de noite
A luz do quarto da amada se apagou. Na esquina, o poeta olha para as estrelas, que não lhe oferecem consolo. O último bonde, o de Drummond, também já se foi.
Soneto do dia perfeito (versão final)
Se o amor ainda nos quisesse
Como quis naquele dia.
Ouviria nossa prece
E decerto a aprenderia.
De novo o sol brilharia
Que nenhum de nós esquece,
E a nossa melancolia
Quem sabe se desfizesse.
Se o amor ainda nos prezasse
Talvez um modo encontrasse
De o tempo fazer voltar
E depois de ter refeito
Aquele dia perfeito
Fizesse o tempo parar.
Como quis naquele dia.
Ouviria nossa prece
E decerto a aprenderia.
De novo o sol brilharia
Que nenhum de nós esquece,
E a nossa melancolia
Quem sabe se desfizesse.
Se o amor ainda nos prezasse
Talvez um modo encontrasse
De o tempo fazer voltar
E depois de ter refeito
Aquele dia perfeito
Fizesse o tempo parar.
Ubiquidade
Para que me serviria a ubiquidade? A ideia de estar ao mesmo tempo em dois lugares me aflige. Gostaria de estar todos os momentos em lugar nenhum.
A conta
A vida nos desaponta.
Vencidos, desiludidos,
No fim fazemos a conta
Dos dias todos perdidos.
Vencidos, desiludidos,
No fim fazemos a conta
Dos dias todos perdidos.
Quartas
Nem todas as quartas são só chatas. Algumas se esmeram um pouco mais e tornam-se enfadonhas.
Escrever
Escrever é um ofício ingrato. As palavras recusam-se a se unir, desentendem-se, estranham-se e, quando por fim parecem perto de um acordo, não há tempo de anotá-las. Soltam-se, desprendem-se e, mostrando a língua, vão embora apressadas, como pássaros à tarde.
Nota final
Os sonhos, todos desfeitos,
As flores, todas fanadas,
Os feitos, todos malfeitos,
As messes, todas goradas.
As flores, todas fanadas,
Os feitos, todos malfeitos,
As messes, todas goradas.
"Deixando-se levar", de Yu Xuanji
"Nenhum laço me prende; sempre livre,
vou sem destino, leve entra as paragens
Nuvens se abrem entre lua e rio,
amarras frouxas, barco em pleno mar
No Templo Liang, tanger o alaúde,
no pavilhão recita-se o poema
Ter por abrigo as grutas de bambus
e nas veredas, pedras companheiras
Preciosos são o pardal, a andorinha
São ar a prata e o ouro, seus castelos
A primavera oferta verde o vinho,
à noite a lua aquieta-se à janela
O passo estanca à fonte transparente
e em seu espelho, à imagem, deixo o grampo
Na cama, ébria, os livros me rodeiam
Cabelo aliso ao pente, enfim levanto-me."
(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
vou sem destino, leve entra as paragens
Nuvens se abrem entre lua e rio,
amarras frouxas, barco em pleno mar
No Templo Liang, tanger o alaúde,
no pavilhão recita-se o poema
Ter por abrigo as grutas de bambus
e nas veredas, pedras companheiras
Preciosos são o pardal, a andorinha
São ar a prata e o ouro, seus castelos
A primavera oferta verde o vinho,
à noite a lua aquieta-se à janela
O passo estanca à fonte transparente
e em seu espelho, à imagem, deixo o grampo
Na cama, ébria, os livros me rodeiam
Cabelo aliso ao pente, enfim levanto-me."
(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
terça-feira, 4 de novembro de 2014
A melhor atitude
É insanidade querer levar vantagem no trato com o amor. A melhor atitude diante dele é a bem-aventurada sonsice.
Em ponta de faca
O último romântico morreu há dois séculos, e eu, abjeto farsante, insisto em contestar essa evidência.
A hora
Chegou a hora das deliciosas insônias de amor. Amanhã de manhã nosso rosto estará como o dos santos e o dos pecadores.
Porto
Literatura, meu porto,
Que busco sem encontrar,
Receio a ti aportar
Só quando estiver já morto.
Que busco sem encontrar,
Receio a ti aportar
Só quando estiver já morto.
Cotação do dia
Uma sensação bizarra, como se eu fosse um morto que, tendo escapado do cemitério, quisesse voltar e não encontrasse o caminho.
Aquela
O amor é aquela doçura
Indizível, inefável,
Imorredoura, infindável,
Que só dura enquanto dura.
Indizível, inefável,
Imorredoura, infindável,
Que só dura enquanto dura.
"No Festival do Nove-Duplo, sob a chuva", de Yu Xuanji
" A sebe derrama-se - amarelo - crisântemos
A flor encontra outra flor - neste espelho, um eco
Junto ao terraço, sob chuva e vento, o chapéu
caiu-me, o cálice em ouro não mais alcanço."
(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
A flor encontra outra flor - neste espelho, um eco
Junto ao terraço, sob chuva e vento, o chapéu
caiu-me, o cálice em ouro não mais alcanço."
(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
Eu
Eu sou aquele sonso
parado na estação Vergueiro
debaixo do aguaceiro
naquela tarde
Se tivesses ido
te lembrarias de mim.
parado na estação Vergueiro
debaixo do aguaceiro
naquela tarde
Se tivesses ido
te lembrarias de mim.
Vida
Não há segredo. Nascemos,
Lutamos muito, e bem quando
Estamos nos adaptando,
Acaba o tempo, e morremos.
Lutamos muito, e bem quando
Estamos nos adaptando,
Acaba o tempo, e morremos.
Soneto dos inúteis apelos (versão final)
Quando eu chamava por ti,
Andavas pelo Gabão,
Viajavas pelo Taiti,
Pela Índia ou pelo Japão.
Sempre que ajuda eu pedi,
Tu me disseste que não.
Cuidavas de órfãos no Haiti,
Na China ou no Paquistão.
Enquanto eu agonizava,
A tua missão se ampliava,
Se estendia aos animais.
Ah, por ti eu chamei tanto
(Sabes como, quando e quanto).
Hoje não te chamo mais.
Andavas pelo Gabão,
Viajavas pelo Taiti,
Pela Índia ou pelo Japão.
Sempre que ajuda eu pedi,
Tu me disseste que não.
Cuidavas de órfãos no Haiti,
Na China ou no Paquistão.
Enquanto eu agonizava,
A tua missão se ampliava,
Se estendia aos animais.
Ah, por ti eu chamei tanto
(Sabes como, quando e quanto).
Hoje não te chamo mais.
Cena final
Quando o amor, na cena final, nos enterra seu punhal prateado, o júbilo grita em nós por todos os poros.
Sina
Logo na primeira vez em que vemos as longas mãos do amor, nossa garganta sabe qual é seu destino.
Cotação do dia
Se o amor não tivesse me matado, eu o estaria louvando ainda, e escolhendo no caminho flores para que ele as afogasse no seu jarro.
Empréstimo
Estamos gentilmente emprestados à vida, até que a morte resolva exercer seu direito de proprietária.
Tormento
A luxúria insatisfeita enrola-se em si mesma, toca-se toda, se contorce, se estrangula, se asfixia, se tritura, se devora lentamente como uma sucuri.
Júri
Um poeta tem sempre alguma testemunha para defendê-lo: um veleiro adormecido, um gato cego, um arco-íris.
Trajetória
Queremos um nome
depois o renome
depois a glória
uma página na história
uma estátua na praça
Por isso a juventude
a honra a virtude
foram já todas vendidas
e achamos que isso é vida
enquanto a vida passa.
depois o renome
depois a glória
uma página na história
uma estátua na praça
Por isso a juventude
a honra a virtude
foram já todas vendidas
e achamos que isso é vida
enquanto a vida passa.
"Excesso", de Wislawa Szymborska
"Foi descoberta uma nova estrela,
o que não significa que ficou mais claro
nem que chegou algo que faltava.
A estrela é grande e longínqua,
tão longínqua que é pequena,
menor até que outras
muito menores que ela.
A estranheza não teria aqui nada de estranho
se ao menos tivéssemos tempo para ela.
A idade da estrela, a massa da estrela, a posição da estrela,
tudo isso quiçá seja suficiente
para uma tese de doutorado
e uma modesta taça de vinho
nos círculos aproximados do céu:
o astrônomo, sua mulher, os parentes e os colegas,
ambiente informal, traje casual,
predominam na conversa os temas locais
e mastiga-se amendoim.
A estrela é extraordinária,
mas isso ainda não é razão
para não beber à saúde das nossas senhoras
incomparavelmente mais próximas.
A estrela não tem consequência.
Não influi no clima, na moda, no resultado do jogo,
na mudança de governo, na renda e na crise de valores.
Não tem efeito na propaganda nem na indústria pesada.
Não tem reflexo no verniz da mesa de conferência.
Excedente em face dos dias contados da vida.
Pois o que há para perguntar,
sob quantas estrelas um homem nasce,
e sob quantas logo em seguida morre.
Nova.
- Ao menos me mostre onde ela está.
- Entre o contorno daquela nuvenzinha parda esgarçada
e aquele galhinho de acácia mais à esquerda.
- Ah, exclamo."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
o que não significa que ficou mais claro
nem que chegou algo que faltava.
A estrela é grande e longínqua,
tão longínqua que é pequena,
menor até que outras
muito menores que ela.
A estranheza não teria aqui nada de estranho
se ao menos tivéssemos tempo para ela.
A idade da estrela, a massa da estrela, a posição da estrela,
tudo isso quiçá seja suficiente
para uma tese de doutorado
e uma modesta taça de vinho
nos círculos aproximados do céu:
o astrônomo, sua mulher, os parentes e os colegas,
ambiente informal, traje casual,
predominam na conversa os temas locais
e mastiga-se amendoim.
A estrela é extraordinária,
mas isso ainda não é razão
para não beber à saúde das nossas senhoras
incomparavelmente mais próximas.
A estrela não tem consequência.
Não influi no clima, na moda, no resultado do jogo,
na mudança de governo, na renda e na crise de valores.
Não tem efeito na propaganda nem na indústria pesada.
Não tem reflexo no verniz da mesa de conferência.
Excedente em face dos dias contados da vida.
Pois o que há para perguntar,
sob quantas estrelas um homem nasce,
e sob quantas logo em seguida morre.
Nova.
- Ao menos me mostre onde ela está.
- Entre o contorno daquela nuvenzinha parda esgarçada
e aquele galhinho de acácia mais à esquerda.
- Ah, exclamo."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
domingo, 2 de novembro de 2014
Mãos e dedos
No início, o amor parece ter dez dedos em cada mão. No fim, parece ter um dedo só, o polegar que ele ergue ao ir embora, como se tudo estivesse bem.
Leveza
Nunca os passos do amor são mais leves do que quando ele pega a mala e vai embora, de madrugada.
Coisa bonita
Belo não é bem a palavra. Belo é um termo um tanto pretensioso. O menino que eu sou gostaria de escrever uma coisa bonita, que pudesse ser apalpada como um gato.
Gostou?
A imagem mais persistente que tenho dos artistas, de qualquer um, é a de uma criança querendo chamar a atenção da mãe.
Fernandas
Se quero uma bela rima,
Procuro Fernanda Lima,
Se o que desejo é um haicai,
Busco Fernanda Takai.
Procuro Fernanda Lima,
Se o que desejo é um haicai,
Busco Fernanda Takai.
Porta
O amor, lobo faminto, ronda nosso quarto. Já devorou nossas ovelhas, restamos nós. Nosso coração bate, estouvado e esperançoso. É frágil a madeira da porta.
Tipo
Amor, querido pilantra,
Teu assobio é canção,
Teus acres termos meu mantra,
Teu rude beijo meu pão.
Teu assobio é canção,
Teus acres termos meu mantra,
Teu rude beijo meu pão.
Encontro
Se fosse ali pela João Mendes, talvez você topasse ir ao primeiro andar do sebo do Messias, e eu compraria para você uma das revistas Krypta que a assustavam na infância, e tentaria resgatar um dos seus arrepios fazendo uma careta, embora esta fosse totalmente dispensável.
Oxalá
Tempo virá em que todo poeta, mesmo aquele que tenha escrito só uma quadrinha ou um soneto estropiado, casará com uma rainha. E haverá mais rainhas do que pitangas nas pitangueiras.
Quarentena
As autoridades sanitárias isolaram a casa do homem que morreu por amor. A família recorreu, mas seus 217 sonetos o acusaram com veemência.
Ternuras da alma
São inesgotáveis as ternuras da alma. Quando já parecem extintas, se o amor as espreme escorre ainda alguma e fica suspensa na blusa, enquanto não a sopra o vento.
"Alguns gostam de poesia", de Wislawa Szymborska
"Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.
Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.
De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.
Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.
De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
sábado, 1 de novembro de 2014
Intruso
O cara metido a poeta é aquele chato que se imiscui na conversa dos outro, no tweeter, e fica falando de espécies extintas: rosas, pássaros, amor.
Visita
Chegaste ontem, minha cara,
Tu e tua juventude.
Bateste, e eu abrir não pude:
O inverno já me levara.
Tu e tua juventude.
Bateste, e eu abrir não pude:
O inverno já me levara.
Ser
Excluindo-se a fúria e o som,
Pode haver algum sentido,
Talvez até algum bom.
Pode haver, mas eu duvido.
Pode haver algum sentido,
Talvez até algum bom.
Pode haver, mas eu duvido.
Odalisca
Enquanto ela ainda ensaiava
Tirar o primeiro véu,
Já o sultão estrebuchava
No quadragésimo céu.
Tirar o primeiro véu,
Já o sultão estrebuchava
No quadragésimo céu.
Cúmplices
Os poetas garantem ter um pacto com as rosas e os passarinhos. As rosas não desmentem e os passarinhos não negam.
Mãos
Também a nós
certas noites
nos vem o desejo de morrer
Nossas mãos parecem aptas
a nos dar o repouso
e chegamos a imaginá-las
atando a corda
desembrulhando a gilete
empalmando os comprimidos
Mas é novembro
o Natal vem chegando
depois o novo ano
e em fevereiro
quem sabe passemos afinal
o carnaval na Bahia
Reenfiamos a mão
debaixo do cobertor
e adiamos outra vez
a homenagem que faríamos
ao amor
e à sua crueldade.
certas noites
nos vem o desejo de morrer
Nossas mãos parecem aptas
a nos dar o repouso
e chegamos a imaginá-las
atando a corda
desembrulhando a gilete
empalmando os comprimidos
Mas é novembro
o Natal vem chegando
depois o novo ano
e em fevereiro
quem sabe passemos afinal
o carnaval na Bahia
Reenfiamos a mão
debaixo do cobertor
e adiamos outra vez
a homenagem que faríamos
ao amor
e à sua crueldade.
Como ele a vê
Ainda hoje, toda vez que
Os olhos nela ele põe
E sua magia vê,
Ele encantado supõe
Que ela deve pertencer
A uma facção misteriosa,
À dinastia do ser,
À confraria da rosa.
Faz tempo que a conheceu
E sempre lhe pareceu,
Já desde o primeiro dia,
Que ela é a voz do coração,
As sílabas da canção
E o espírito da poesia.
Os olhos nela ele põe
E sua magia vê,
Ele encantado supõe
Que ela deve pertencer
A uma facção misteriosa,
À dinastia do ser,
À confraria da rosa.
Faz tempo que a conheceu
E sempre lhe pareceu,
Já desde o primeiro dia,
Que ela é a voz do coração,
As sílabas da canção
E o espírito da poesia.
Preservação
Um poeta, com sua sonsice, nos dá sempre o ímpeto de sacudi-lo. Só não o fazemos para não assustar os bem-te-vis que costumam fazer ninho no seu chapéu.
Dia D
O dia de nossa desgraça é aquele no qual descobrimos que não servimos mais nem para morrer de amor.
Pátina
A poesia anda hoje tão fora de moda quanto uma menina de doze anos tocando piano numa festa de família, com um gato no colo.
"A alegria da escrita", de Wislawa Szymborska
"Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?
Vai beber da água escrita
que lhe copia o focinho como papel-carbono?
Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?
Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade
sob meus dedos apura o ouvido.
Silêncio - também essa palavra ressoa pelo papel
e afasta
os ramos que a palavra 'bosque' originou.
Na folha branca se aprontam para o salto
as letras que podem se alojar mal
as frases acossantes,
perante as quais não haverá saída.
Numa gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho semicerrado
prontos a correr pena abaixo,
rodear a corça, preparar o tiro.
Esquecem-se de que isso não é a vida.
Outras leis, preto no branco aqui vigoram.
Um pestanejar vai durar quanto eu quiser,
e se deixar dividir em pequenas eternidades
cheias de balas suspensas no voo.
Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece.
Sem meu querer nem uma folha cai
nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.
Existe então um mundo assim
sobre o qual exerço um destino independente?
Um tempo que enlaço com correntes de signos?
Uma existência perene por meu comando?
A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
Vai beber da água escrita
que lhe copia o focinho como papel-carbono?
Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?
Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade
sob meus dedos apura o ouvido.
Silêncio - também essa palavra ressoa pelo papel
e afasta
os ramos que a palavra 'bosque' originou.
Na folha branca se aprontam para o salto
as letras que podem se alojar mal
as frases acossantes,
perante as quais não haverá saída.
Numa gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho semicerrado
prontos a correr pena abaixo,
rodear a corça, preparar o tiro.
Esquecem-se de que isso não é a vida.
Outras leis, preto no branco aqui vigoram.
Um pestanejar vai durar quanto eu quiser,
e se deixar dividir em pequenas eternidades
cheias de balas suspensas no voo.
Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece.
Sem meu querer nem uma folha cai
nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.
Existe então um mundo assim
sobre o qual exerço um destino independente?
Um tempo que enlaço com correntes de signos?
Uma existência perene por meu comando?
A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)