quinta-feira, 31 de março de 2016

Ponto de vista

Que formidável tu és.
Para inteira te admirar,
Devo de joelhos te olhar,
Ver-te a começar dos pés.

Razões

Na estante
três razões para desistir:
shakespeare, pessoa, dante.

Segundo tempo

Se, depois de um longo processo de reflexão, nos convencemos de que não somos nada além de um cisco no universo, começa a fase na qual devemos fechar os ouvidos para a voz que soa como a nossa e começa a nos dizer: "Será que foi a decisão certa? A humildade será mesmo o caminho?"

Uma frase de Liberato Vieira da Cunha

"É esse o problema com o túnel do tempo. Sempre desemboca na novela das nove."

(Do livro de crônicas O silêncio do mundo, publicado pela Editora AGE.)

quarta-feira, 30 de março de 2016

9h41

Aqui estou eu, sorrindo para o sol, como em tantas outras vezes. Cada um de nós sabe muito bem que somos feitos um para o outro: ambos falsos.

Destino

Agora perto do fim
Já não me cabe lembrar,
Muito menos lastimar,
O que a vida fez de mim.

Tudo, tim-tim por tim-tim,
Todo o prazer e o penar,
Todo o sofrer e o gozar,
Tinha de ser mesmo assim.

Sabichões

Impressionante como os filósofos conseguem dizer tantas coisas e formular tantas teorias sobre um ciclo tão simples e intransitivo como nascer, viver e morrer.

Quem?Literatura

Se puder morrer por amor, quem, por Deus, há de recusar essa honra? O amor nos mata aos poucos, pelo prazer dele e pelo nosso. A morte por amor é um longo definhamento, para que nada em nosso corpo, nem um poro sequer, seja privado de compartilhar essa experiência que só tem comparação com o êxtase místico.

Tripas

Amor respeitador
que não prende nem solta o intestino
pode ser até fino
mas será mesmo amor?

Frase

"Não fazer nada é uma atividade interior. Não é preguiça, é reflexão."

(Albert Cossery)

terça-feira, 29 de março de 2016

20h03

Fechar a loja. Quem haverá de querer ouvir mais tristezas? Amanhã talvez tenhamos motivo para um sorriso, pelo menos um, ainda que precisemos forçá-lo um pouco.

Chopin, Wislawa

Conheço pouco da história polonesa. Tenho apenas uma convicção: sei que Frédéric Chopin e Wislawa Szymborska bastariam, só ele e ela, mais ninguém, para justificar a existência da Polônia no mundo. Houve alguns generais, também, e políticos, como em todos os outros países.

Sinal dos tempos

Alguns poetas, da ala dos saudosistas, se queixam de que os adjetivos, principalmente os destinados a exprimir a beleza, não têm mais a antiga eficácia. E lamentam-se porque nem mesmo eles sentem o que sentiam quando chamavam a rosa de formosa ou majestosa.

Hollywood

Sou do tempo em que nove entre dez estrelas do cinema usavam sabonete Lever. A décima não tomava banho e por isso era sempre vilã nos filmes.

Leste

Desde que pendurei tua foto, meus olhos fitam a parede como se ali fosse aquele ponto, no horizonte, onde nasce o sol.

Tantos quantos

Ele a beijaria como se ela fosse uma mulher que tivesse sido amada por duzentos homens, trezentos, talvez mais. E em cada beijo tentaria fazê-la acender-se como se acendera em cada um dos mais investigativos beijos dos duzentos, dos trezentos ou talvez mais.

Mario Quintana

Mario Quintana apaixonava-se por tudo. E, se há algo a se dizer sobre essa paixão que manteve até o fim, é que foi sempre correspondido.

Um trecho de Ma Jian

"Você se lembra de estar parado no meio da Praça, o vento quente soprando em seu rosto. A Praça era como o quarto em que está deitado agora: um espaço quente com um coração vivo, aprisionado no centro de uma cidade gelada."

(Do romance Pequim em coma, tradução de Heloisa Mourão.)

segunda-feira, 28 de março de 2016

Mario Quintana

Quintana! Quintana! Quintana! O mais gaúcho dos triságios!

Dignidade

Não chame de ração a comida que você põe para o seu gato. É antipática a palavra: ração, como se gato fosse bicho.

Onde ela está

Nos apáticos está a sabedoria. Não se exaurem em busca de recompensas. Sorrir é um exercício do qual sempre se isentam, e adular não é um verbo que conheçam. Enquanto isso, os poetas, esses seres ridículos, tentam subornar a lua, se é noite, e o sol, se é dia.

À imagem de Deus

Hoje ele se olhou no espelho ao sair do banho e começou a rir ao ver seu ventre. Que desfaçatez é a dos que dizem ter sido o homem feito à semelhança de Deus. Com a idade que Deus já deve ter, ele sentiu piedade por Ele.

Norma

Vivamos a vida fechados dentro de nós, de tal forma que, quando morrermos, se viermos a fazer falta, venhamos a fazer falta só a nós.

Universitário

Quando um chega e ameaça
que vai fazer a primeira
e o segundo a segunda voz
Deus zele por nossos ouvidos e por nós.

Futuro

Depois da vida
hoje toda artificial
talvez possa um dia a morte
também ser apenas virtual.

Dois parágrafos de José Carlos Oliveira

"Para viver bem é preciso chegar aos trinta com a satisfação de se ter permitido todas as loucuras imagináveis na juventude. Principalmente no capítulo das mulheres. E só frequentar os amigos que suportam os nossos defeitos.
   Recomenda-se também uma boa gargalhada, a sós, no momento de se erguer da cama: 'Quanta bobagem tenho feito neste mundo! Quá, quá, quá!' A serenidade imperturbável conduz ao fanatismo, e este dá câncer."

(De O homem na varanda do Antonio's, edição da Civilização Brasileira.)


domingo, 27 de março de 2016

19h53

Quando as palavras não conseguem mais exprimir os sentimentos, estes se tornam tão pungentes, tão insuportavelmente agudos, que qualquer incitação ao suicídio, ainda que apenas sussurrada, retumba como a mais tentadora das ordens, como se fosse um imperativo da alma.

No Inferno com Ana Farrah Baunilha

Se o Diabo estiver me fazendo girar num espetinho, na fogueira, eu olharei em torno. Se Ana Farrah Baunilha estiver por ali, ufa, estarei no lugar certo.

O de sempre

Hoje, na revista Rubem (www.rubem.wordpress.com), falo de certezas, incertezas e miudezas. Façam de conta que vale a pena.

Mario Quintana

Se eu houvesse conhecido Manoel de Barros antes, não teria perdido tanto tempo com poetas que, como prestidigitadores circenses, tiravam versos da manga como se fossem borboletas. Se eu houvesse conhecido Mario Quintana antes, não teria perdido tempo nenhum.

Amor para crianças

O amor é aquela lagartixa agonizante que finge morrer aqui para ressuscitar ali adiante.

Frase

Viver é aquilo que os outros costumam fazer com facilidade.

Memória

O amor te salvou do câncer porque não tinha ainda se divertido contigo o bastante.

Estratégia

Se você for lidar com o amor, apresente-se logo como vassalo, para deixar que ele comece a exercer sua tirania em uma etapa mais importante que essa primeira, tão banal.

Inefável

Há na poesia um misticismo, um não sei quê, uma elevação que jamais conseguiremos definir e de cuja existência talvez chegássemos a duvidar, se não fossem Rilke, Yeats, Hölderlin.

Post mortem

Dirão: parece que ele foi poeta. Alguns concordarão: é, parece.

2017

Estaremos mortos, já, e nenhuma importância mais terá isto que hoje nos parece uma questão de vida ou morte.

Como antes

Ah, beber um copo de veneno aos golinhos, como antigamente se fazia, aproveitando para dizer, depois de cada um deles, o nome daquela a quem se dava a vida, por não se ter nada maior para oferecer.

Estilo

Morrer de amor é um desses atos que hoje estão na lista dos grandes espantos e originalidades.

Pega-pega

Menina, se o sol te chama,
seu convite não negues.
Vai lá fora pegá-lo
antes que ele venha e te pegue.

Pudor

Os poetas modernos receiam usar exclamações. Pretendem ter um coração forte. Achariam melhor não ter nenhum. Eu uso ainda o meu, velho e cansado, para contar a insuperável insignificância do amor e a maravilhosa sabedoria de suas tolices. Nesse sentido, e em todos os outros, sou um poeta que nasceu com duzentos anos de atraso.

Mais um poema de Marina Tsvetáieva

"Num mundo, onde cada
É curvo e sebento,
Conheço alguém
Como eu resistente.

Num mundo onde tantos
Tanto queremos,
Conheço alguém
Como eu poderoso.

Num mundo onde todos -
Podridão e hera,
Conheço alguém
Como eu verdadeiro -

Tu."

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)

sábado, 26 de março de 2016

Privilégio

Uma das distinções que mereço por minha idade é ter tanto doenças crônicas quanto anacrônicas.

Recidiva

O amor é presunçoso. Reivindica sempre a autoria das melhores épocas da vida de um homem e declara-se isento nas piores.

Amiguinho mais velho

Quem mais o amor gosta de contradizer são os homens que se dizem maduros. Ah, o prazer travesso com que ele os faz de cavalinhos, os chicoteia e manda-os relinchar e escoicear: hip, hip, vai, égua.

Resumo

O amor te comeu todo por dentro. És uma carcaça da qual restaram o sorriso amargo e os olhos espantados como os do menino que viu matarem sua mãe por vinte reais e um celular.

Hoje

As melhores palavras- amor, júbilo, esperança - murcharam em meus lábios. Hoje, quando digo bom dia, as migalhas de pão caem tristemente na toalha, e o sol não entra mais na cozinha para responder, como se nunca tivesse conhecido meu endereço.

Hors concours

Dos prêmios desisti.
Quem nasceu para cágado
Não chega a jabuti.

Um dos

Sou um desses homens que, mesmo depois de tanto tempo, ainda não conseguem aceitar a morte do amor. Nós o vimos morrer e sabemos em que data foi (somos poucos mas temos boa memória). Foi no dia 8 de dezembro de 1980, diante do edifício Dakota.

As melhores

Amo as palavras que te nomeiam: bela, magnífica, majestosa. Tenho com elas a mesma relação que une o jardineiro às suas flores. Há sempre alguma que lhe mereça maior atenção. Eu reservo a minha para aquelas três: bela, magnífica, majestosa, e digo-as como se estivesses aqui e, ouvindo-as, desta vez as aceitasses.

Um poema de Robert Louis Stevenson

"Hoje sopra o vento, e o sol e a chuva voam,
Sopra o vento sobre os pântanos hoje e agora,
Onde, junto aos túmulos dos mártires os pássaros cantam
E o meu coração recorda!

Solitários lugares onde se erguem os sombrios túmulos,
Lugares de pedra nos desolados baldios cor de vinho,
Colinas para os rebanhos, casas de silenciosas raças vencidas,
E ventos, austeros e puros:

Deixem-me contemplar uma vez mais ao morrer, as
Colinas do meu lar! Deixem-me ouvir uma vez mais o apelo,
E sobre os túmulos dos mártires o canto dos pássaros,
E nada mais."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sexta-feira, 25 de março de 2016

Maturidade

Houve um tempo no qual imaginei que poderia ser Machado de Assis. Dá para entender. Eu tinha quinze anos e era um presunçoso. Hoje posso dizer que sou um fracassado. Dá para entender. Tenho a maturidade dos setenta e sete.

Travo

Um dia virão dizer a você que ela foi morar na Índia com um rapazelho de vinte e dois anos. E você sentirá pena dele, além de uma inveja devastadora como um câncer.

Musas

Uma lhe pediu um soneto com lua, outra lhe encomendou uma ode com sol. E o poeta busca, na gavetinha de rimas, palavras menos óbvias que rua, nua, bemol e arrebol.

Coragem

Não se culpe, não hesite. Quando você renegar o amor, já terá sido por ele mil vezes traído e renegado.

Priscylla

Às vezes me perguntam quem é Priscylla Mariuszka Moskevitch. E a chamam de misteriosa. Posso dizer que muitos de vocês já a conhecem, muitos de vocês já a viram. Façam um esforço. Lembram-se daquela mulher de cabelos ruivos, jeans azul-marinho, blusa xadrez e mochila sobre quem vocês deixaram um olhar, numa tarde em que o sol paulistano parecia menos melancólico do que em outros dias? Pois bem. Era ela. Lembram-se? Ela passou por vocês, alheia à admiração que despertava, e seguiu, soberana, altiva, indiferente como todos os seres superiores que há muito se desobrigaram de sentir compaixão pelos que, por um fiapo de luz, em torno deles gravitam.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"O sol é um só. Por toda parte caminha,
Não o darei a ninguém. Ele é coisa minha.

Nem por um raio. Nem por um olhar. Nem por um instante. A ninguém. Nunca.

Que morram as cidades numa noite constante!

Nos braços vou apertar, que não possa girar!
Faço as mãos, os lábios, o coração queimar!

Se desaparecer na noite infinita, no encalço hei de correr...
Meu sol! A ninguém o darei!"

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)

quinta-feira, 24 de março de 2016

Paradoxo

Jesus, como pode ser menino um velho apaixonado!

Contingentes

Com quantos soldados
se faz uma guerra?
Com dois homens se faz a paz.

Paz

Declaro-me fatigado.
Que bom se não precisar
Nada fazer nem penar
Para estar morto e enterrado.

Etapas

Com o modernismo, especialmente a partir de Drummond, o prosaico passou a andar lado a lado com o poético, e logo os dois acertaram o passo. Não foi difícil. As quinquilharias parnasianas já havia muito não atravancavam a rua com sua pretensão de parecerem ouro.

Estoque

Há tantas palavras, dicionários e mais dicionários cheios delas. Cabe-nos escolher as que mais se prestem a exaltar o amor e usá-las, se possível todas, se necessário milhares de vezes, porque elas não foram criadas senão para isso, e mais intensamente brilham quanto mais são utilizadas.

Fácil

Morrer (não há como errar)
É fácil de definir:
É pouco mais que dormir,
É dormir e continuar.

Um soneto de Ivan Junqueira

"E se eu disser que te amo assim de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou te apraz o emprego de tais meios?

E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?

E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?

Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata."

(De Poesia reunida, edição de A Girafa.)

quarta-feira, 23 de março de 2016

Mario Quintana

Mario Quintana não procurava a simplicidade. Era bem o contrário.

Ditadura nunca mais?

Se é ao amor e às suas truculências que a frase se refere, estou fora. Não contem comigo. Posso por acaso esquecer a ardorosa marca dos seus dentes?

Mario Quintana

Os poetas são geralmente classificados em três categorias: a dos respeitados, a dos admirados e a dos amados. Mario Quintana pertence a uma quarta, a dos muito: muito respeitados, muito admirados e muito amados, tudo isso com uma obstinada simultaneidade.

Soneto autobiográfico

Escrever para quê? Para deixar
Um registro da minha iniquidade,
Do meu rancor, da minha falsidade,
De como pode alguém se degradar?

Escrever para quê? Para narrar
Como em mim foi postiça a dignidade
E como foi a marca da maldade
A que melhor em mim veio a calhar?

À arte me dediquei, sonhei com uma obra,
Por elas dei o coração e a vida,
E agora tudo que de tudo sobra

São os poemas no micro, abarrotado,
Nos quais eu conto, como neste, a lida
De um homem nulo e um poeta fracassado.

Soneto do poeta estouvado

O poeta é tão estouvado
Que é capaz de se estourar
Por não vê-la e tropeçar
Na placa que diz "Cuidado!".

E, sendo ao PS levado,
Pode-se dele esperar
Que se ponha a declamar
Um poema disparatado.

E pode até ocorrer
Que ele venha a requerer
À direção do hospital

Que lhe pague urgentemente,
Em moeda boa e corrente,
O seu direito autoral.

Amém

Que seja amor a última palavra que tenhas nos lábios, ainda que não a consigas pronunciar.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"Agosto - astros,
Agosto - estrelas,
Agosto, cachos
De uva e sorva
Tosco - agosto!

Socadinho, bem-amado
Qual criança e sua maçã,
Imperial, brincas, agosto,
Com teu nome imperial
Alisas, palma, o coração;
Agosto! - Coração!

Mês dos últimos beijos,
Dos últimos raios, das últimas rosas!
Dos dilúvios de estrelas -
Agosto - Mês
Dos dilúvios de estrelas!"

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)

terça-feira, 22 de março de 2016

Dos merecimentos do amor

O amor merece todos os exageros. Não erra quem o chama de fonte da vida ou de deus supremo. Nem quem depois, conhecendo-o melhor, o define pleonasticamente como bastardo filho da puta.

Acervo

Na gaveta
havia um cachimbo
uma luneta
uma bíblia amassada
duas fotos de marilyn pelada
uma da torre eiffel
toda iluminada
e bem no fundo
escondida
como se não
pertencesse à história
uma cadernetinha preenchida
com versos inconfessáveis
de poesia simplória.

Um poema de Robert Louis Stevenson

"É tarde, ó moleiro,
Os pássaros calaram-se,
A noite cai.
Na casa as luzes estão acesas.
Vês, no vale elas tremeluzem,
As luzes da casa.
É tarde, ó amantes,
A noite está aí.
O silêncio e a escuridão
Vestem a terra."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 21 de março de 2016

Soneto da cilada do amor

O amor aguça os sentidos.
Furtivo, à beira do rio,
Ouve um murmúrio, um cicio,
Um som de galhos mexidos.

Valeu a pena esperar.
Sua fome tão urgente
Ele agora, finalmente,
Poderá toda saciar.

Tão repetida e falada,
Tão antiga é essa cilada,
Quem há de a desconhecer?

Porém mesmo com essa fama
Há sempre um incauto que ama
E vai no rio beber.

Mario Quintana

Se houvesse um modo de reunir todas as estrelas do universo no seu amado céu de Porto Alegre, certamente Mario Quintana o teria descoberto.

Soneto do sangue que alimenta o amor

O amor é como um vampiro.
Guardai-vos quando ele sai
E buscando sangue vai
No seu incansável giro.

Em sua procura ansiosa,
Em busca dos imprudentes,
Tem sempre afiados os dentes
E a boca sempre sequiosa.

Tornou-se agora moderno
E seguindo o rito hodierno
Na veia insere um canudo

E com prazer, devagar,
Começa a bebericar.
Se puder, sorverá tudo.

"Hoje", de Ivan Junqueira

"A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível...
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores."

(De Poesia reunida, edição de A Girafa.)

domingo, 20 de março de 2016

20h31

Amor, morrerás de fome e de sede. Padecerás dores horríveis, gritarás por todos os santos, como eu padeço, como eu grito por ti.

Plágios

Os mais desavergonhados plágios que podemos cometer são os que têm como vítimas escritores mortos. Nós os saqueamos e, quando algum leitor denuncia o roubo, nós nos desculpamos dizendo que se trata de mera questão de influência, não de cópia.

Glória

Talvez deixemos uma frase, ao menos uma, que três ou quatro pessoas repitam com alguma admiração. Mas, lembrando-se de nós, de nossa deplorável figura, esses três ou quatro se entreolharão, desconfiados: será que foi ele, aquele lá mesmo, quem escreveu isso?

Pragmatismo

O poeta há de ser cruel com as tristezas. Aquelas que se mostram incapazes de render um bom poema devem ser descartadas sem segunda análise.

Inanidade

O amor alimenta-se dos mais frágeis de nós e nos exaure tão cruelmente que não nos sobra, no final, sequer a voz para agradecer-lhe por nos ter escolhido.

Certificado

Todo poema concreto que se preze deve vir acompanhado do material descritivo e do habite-se.

Defeito

Um poema concreto jamais será eterno, pela incontornável fadiga dos materiais.

"Eis outra janela", de Marina Tsvetáieva

"Eis outra janela,
Onde outros não dormem.
Talvez bebam vinho,
Ou sentem mansinho.
Ou apenas - duas
Mãos não se apartem.
Em cada casa, amigo,
Há um postigo assim.

Grito de encontro e de adeus -
Tu, janela na noite!
Talvez, cem candeias,
Talvez - só três velas...
Não há nenhuma paz
Também para mim,
Pois, em minha casa,
Aconteceu assim.

Reza, amigo, pela casa acordada,
Reza, pela janela iluminada!

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)

sábado, 19 de março de 2016

22h52

Aquela hora em que as esperanças de hoje desistiram já de lutar e se amontoam ao lado das outras, vencidas. Amanhã virão outras que, como todas, se dirão aptas a lidar com o amor e a fazê-lo se mostrar menos carrasco. Falharão também, mas quando chegarem não diremos isso a elas, pobres tolinhas inebriadas pela luz do sol.

14h33

Hora de ir para um parque, qualquer um. As palavras com que celebramos o amor devem ser ditas de preferência num deles, ainda que não compreendamos a linguagem usada pelas borboletas e pelos passarinhos nas respostas.

Cotação do dia (II)

Com democracia ou tirania, que ao menos uma rima, ainda que pobre, incite à poesia.

Cotação do dia

Posso queixar-me dos deuses? Eles me deram duas fontes de límpidas lágrimas, e o amor para alimentá-las.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"Ainda ontem, em meus olhos o teu olhar,
E hoje - me olhas de lado!
Ainda ontem, até o pássaro cantar , -
E hoje são corvos as cotovias!

Nada sei e tu, cheio de saberes,
És vivo, e eu pasmada,
Oh, clamor eterno das mulheres:
'Querido, o que foi que eu fiz?!'

Para ela as lágrimas são sangue -
Água em sangue, nas lágrimas se banha!
Não é mãe o Amor - e sim madrasta:
Não esperem justiça, nem barganha.

Os barcos levam os amados,
Afasta-os o branco caminho...
E fica o lamento sozinho:
'Querido, o que foi que eu fiz?!'

Ainda ontem - estava ajoelhado!
Me igualava ao império da China!
De repente, as mãos escancaradas,
Vai-se a vida - e resta uma moedinha!

Julgada por infanticídio
Estou - sem coragem, sem carinho.
É do inferno que eu me aproximo:
'Querido, o que foi que eu fiz?!'

Pergunto à mesa, pergunto ao leito:
'Para que eu aguento e me desgraço?'
'Cada beijo - um suplício:
Beijará outra', - respondem.

No fogo da vida me criaste,
Na estepe gelada me atiraste!
Eis o que tu, amado, me fizeste!
Querido, o que foi que eu fiz?

Eu sei de tudo - não me contradigas!
Já não vidente - já não ardente amiga!
Onde o amor se retira,
Chega a Morte-jardineira.

É o mesmo que sacudir a macieira!
A fruta madura cai na hora boa...
'Por tudo, por tudo me perdoa,
Querido, o que foi que eu fiz!'"

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)


sexta-feira, 18 de março de 2016

Das coisas e dos seres eternos

Às vezes, a triste fugacidade de tudo me faz pensar em exaltar somente coisas e seres eternos: o sol, a lua, as estrelas e os gatos.

Verde

Se a sua voz soar como a do mais ingênuo dos jovens, melhor para o poeta. Qualquer sinal de artifício ou premeditação se exibe como uma ferida na delicada pele da poesia.

Um daqueles

Ele gostaria de ter um daqueles corações antigos, românticos, cafonas, que, quando sangravam por amor, esparramavam no peito pétalas de rosa.

Trunfo

Um gato é sempre uma possibilidade de o sol poente se demorar um pouco mais na sala, deitado pachorrentamente com ele no sofá, espreguiçando-se também e esforçando-se para miar.

11h24

Se o amor está morto, por que o vento na ameixeira geme como ele gemia quando chamava por nós?

Mario Quintana

Acredito que, se Mario Quintana fosse escolher as dez mais antipáticas palavras da língua portuguesa, empáfia estaria entre elas, provavelmente no topo da lista. Empáfia é a atitude assumida pelos passarões toda vez que se dispõem a bordar o ar com seus gorjeios presunçosos.

Eu herói

Alguns falam de trajetória
outros de história
e exibem medalhas
e puxam memórias

Eu velho guerreiro
sem troféus nem feitos
dou-me por satisfeito
se acho sozinho
o caminho do banheiro.

"Feroz é o vento", de Ivan Junqueira

"Feroz é o vento que retine nos vitrais
e encurva os ramos e se enreda nos trigais
e se contorce entre as mandíbulas do mar
e arranca as ervas que rastejam nos quintais

Feroz é o vento, feroz
o seu cortejo de punhais, qual furiosa
orquestra de ciclópicos jograis
(as bruxas sopram no oboé das tíbias
e bailam duendes sobre o gume dos cristais)

Feroz, feroz é o vento
quando desperta seus esfíngicos fantasmas
e os sacode como sórdidos miasmas
às bordas do fugaz e inútil pensamento

Feroz é o vento.

(De Poesia reunida, edição de A Girafa.)

00h48

A insônia começa a arrastar sua corrente e a arfar como a alma penada de uma cadela.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Mario Quintana

Mario Quintana lidava com a poesia como se fosse um menino soprando bolhinhas de sabão para o céu noturno e vendo uma a uma juntar-se lentamente às outras estrelas.

Tarde demais

Quantos portas morreram de fome - e quantos ainda morrerão - antes de lhes ser concedida a fortuna crítica.

Júri

Quando sou eu o julgado,
Piedade nenhuma tenho.
Comigo me desavenho,
Me sentencio culpado.

Convivência

Nada tenho contra a velhice. Para ela é sempre meu primeiro sorriso da manhã, no espelho.

"Haicai", de Ivan Junqueira

"Na gaiola jaz
o pássaro
sem espaço."

(De Poesia reunida, edição de A Girafa.)


quarta-feira, 16 de março de 2016

Pombinhos

Como é encantador um casal  de velhinhos, quando não somos nenhum deles, nem ela nem ele, e os dois, apesar de um tanto trôpegos, logo se distanciam e nossos olhos já não conseguem acompanhar sua dupla beleza.

Categorias

Há muitos modos de ser
Um escritor. O melhor
Eu não sei, porém o pior
É escrever por escrever.

Quem?

Quem vai trazer-nos conforto?
Quem há de se preocupar,
Quem vai a mosca enxotar
Do rosto frio de um morto?

"Elegia fulminante", de Ivan Junqueira

"Ante meus olhos fatigados, a torre
da catedral se arremessa
        espasmo de pedra
e despedaça
        o tédio secular do infinito

Ao longe o vento inventa polifonias
e o mar agita suas crinas de espuma

       Súbito em chamas
       explode o espaço

Além do templo um anjo contempla
os destroços da criança que eu fui."

(De Poesia reunida, edição de A Girafa.)

terça-feira, 15 de março de 2016

RSVP

Um dia como este
em que nada mais se tem
a ganhar ou a perder
seria o dia ideal
para a Morte aparecer
para uma visita
um cafezinho
e um bate-papo sobre a vida.

Um terceto de Byron

"Mas palavras são coisas, e uma gotinha de tinta,
Caindo como orvalho sobre um pensamento, produz
O que faz milhares, talvez milhões, pensarem."

segunda-feira, 14 de março de 2016

Soneto em que se sugere a intermediação do poeta Glauco Mattoso num assunto de amor

Minha cara, o que eu posso oferecer-te
É um amor puro, terno, devotado,
Como eram os amores do passado,
Que não venha jamais desmerecer-te.

Quero cantar-te em poemas, em canções
Como aquelas que foram dedicadas
A cantar suas musas adoradas
Por Dante, por Petrarca e por Camões.

Se com isso podes te satisfazer,
Não te acanhes, é só bater e entrar.
Porém se tu só chegas ao prazer

Com algo mais carnal e pecaminoso,
Um conselho, querida, vou te dar:
Tu deves procurar Glauco Mattoso.

Estoque

Quem teima ainda em escrever
Sobre o amor, esse finório,
Revela apenas não ter
Riqueza seu repertório.

Um trecho de "Ecce homo", de Nietzsche

"Minha experiência me dá o direito de desconfiar em princípio dos impulsos chamados 'desinteressados', de todo o 'amor ao próximo', sempre disposto à palavra e ao ato. Eu o vejo em si como fraqueza, como caso especial da incapacidade de resistência aos estímulos - a compaixão  passa por virtude apenas entre os décadents."

(Tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)

domingo, 13 de março de 2016

Talvez

Esta noite
em alguma passagem do sonho
(talvez aquela
em que me acenavas
de um horizonte
tingido pelas rosas do crepúsculo)
eu devo ter me aproximado de ti
porque acordei com as pernas cansadas
e um fiapo de pétala na mão.

A nova primavera

Se nós pudéssemos ainda
iludir alguém
com aquela poesia
que a vovó amava
e a mamãe compreendia

Se nós pudéssemos ainda
no século 21
achar belos aqueles belos poemas
nos álbuns caprichadamente copiados
pelas canetas Parker 51

Se nós pudéssemos ainda
a primavera exprimir
como a primavera era
se nós pudéssemos ainda
nos iludir.

Hoje, na revista Rubem...

... falo um pouco de literatura, esse engodo que, como o amor, nos faz seguir caminhando (www.rubem.wordpress.com).

Um poema de Robert Louis Stevenson

"Eu, a quem Apolo visitou,
Ou fingiu visitar, agora, ao acabar o meu dia,
Anseio o repouso; não conhecer
O cansaço das mudanças, não ver
As incomensuráveis areias dos séculos
Beberem a embranquiçada tinta, nem ouvir o alto som
Da tumultuosa música das gerações."

(De Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 12 de março de 2016

Um pouco de história

Nos tempos idos era Deus
Quem governava a todos:
Aos que não O reconheciam,
Aos que O maldiziam
E a nós, seus discípulos queridos.

Aos poucos,
com Ele nos comparando
fomos nos achando parecidos,
depois mais parecidos,
até nos descobrirmos a Ele semelhantes.

A partir daí já éramos
Deus e nós os governantes
até que um de nós,
o mais esclarecido,
nos revelou que Deus tinha nascido
de uma audácia de nossa voz.

Demos-Lhe então
porque merecia
uma subsecretaria com jurisdição
sobre o departamento de orações,
além de liberdade de ação
no setor de ninharias.

"Carta de Chankay", de Mariana Ianelli

"De uma carta sem data de meu avô
Sobre as ruínas de Puruchuco, no Peru

Esse pouco roubado de uma urna
É quanto basta - esse pouco
Depurado de tragédia,
Um restante de partes desencontradas
Que produzem a saudade
Feito um cacho de uvas negras -

Fragmentos revolvidos, misturados
Ao prazer de ver nascer uma verdade,
A verdade de uma carta
Que escamoteia um século
E fantasticamente fala do presente
Como numa profecia desvendada.

Fala a carta de uma viagem a Chankay,
De um todo de areia e céu e, ao longe, o mar,
Fala de uma travessia no deserto
E do vaso de um túmulo violado
Por cujas fendas o vento silva num lamento
E nesse lamento um encanto mais potente
Do que a mágoa.

Arrepanhamos esses cacos magníficos,
Sem mais semelhança com o que morre,
Arrepanhamos de galerias profundíssimas
Um tempo já sem tempo de vaidades
E o sabor de roubar essa relíquia -
A saudade feito um cacho de uvas negras -
Nos ensina a gostar da nossa história."

(De O amor e depois, edição da Iluminuras.)

Os profetas

Nietzsche, assim como Whitman, fascina e encanta os jovens, porque todas as frases, tanto de um quanto do outro, soam com a imponência da verdade. Já não impressionam muito os leitores mais velhos, para os quais a verdade é um conceito sempre em mutação.

Pauta

Dois assuntos sobre os quais os estudiosos poderiam debruçar-se: os travessões em Emily Dickinson e as entrelinhas em Machado de Assis.

Ofícios

"Você trabalha com quê?"
"Literatura."
"Eu sempre tive curiosidade. É difícil?"

Cotação do dia

Daqui a muitos anos, quando já nem estivermos aqui, talvez alguém leia por acaso alguma coisa nossa e nos conceda ao menos o benefício da dúvida: "Ele era poeta?"

Uma pitada mais de Nietzsche

"Em todo verdadeiro homem se oculta uma criança: uma criança que quer brincar. Eia, mulheres! Descobri no homem a criança!"

(De Assim falou Zaratustra, tradução de Alex Marins, edição da Martin Claret.)

sexta-feira, 11 de março de 2016

Mario Quintana

De vez em quando, Mario Quintana, com aquele seu jeito, dava uns tapinhas no ombro da vida: "O que é isso? Que cara! Estou te achando tão séria hoje, minha amiga..."

Megalomania

Quererem expressar tudo é uma das grandes pretensões dos escritores. Maior do que ela só a presunção de exprimirem o nada.

Um dístico de John Donne

"Cheio do amor dela, possa eu antes tornar-me
Louco com um grande coração, que idiota sem nenhum."

(De "Elegia X - Sonho", do livro Elegias amorosas, tradução de Helena Barbas, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quinta-feira, 10 de março de 2016

Cotação do dia

Alguém que não foi entendido nem no que disse nem no que escreveu. Alguém que, se soubesse mesmo quem é, já teria dado um jeito de não ser mais nada.

Soneto da inconfiabilidade dos poetas

Quem há de dar-se completa,
De entregar-se de verdade,
Se conhecer a maldade
Que sempre existe num poeta?

Quem será tão sem razão
A ponto de acreditar
Que um poeta possa guardar
Compostura ou discrição?

Ele, com sua linguagem,
Mencionará uma viagem
Da qual voltou com uma estrela:

Terá nome de mulher,
Para poder, quem quiser,
Sem erro reconhecê-la.

"Predição", de Robert Bringhurst

"O corvo antecedeu a pomba
ao voar da arca e por sete dias
fez círculos sobre a arca, em busca de poleiro,
e por outros sete à espera da pomba."

(Tradução de João Cabral de Melo Neto, poema extraído de Nova poesia norte-americana - Quingumbo, publicado pela Editora e Livraria Escrita.)

quarta-feira, 9 de março de 2016

Como se fosse no confessionário

O afeto que venho recebendo - aqui e no "face" - tem sido tão surpreendentemente grande que eu já nem sei como proceder. Não responder a ele seria falta de educação. Agradecer pode ser interpretado como falta de vergonha, como um apelo para que ele se mantenha. O fato é que ele me tem feito muito bem. Sou inseguro, sonso, tonto como um menino de dez anos. Exponho-me quase a ponto de me desnudar emocionalmente. O que há aqui de virtual me estimula a fazer essas confissões. Creio que todos já saibam que sou um pateta sentimental, um homem que, dando corda demais à ficção e à fantasia, acabou enredado nelas e perdeu a noção da realidade de tal forma que há momentos nos quais penso que uma camisa de força logo será meu traje diário. Crio coisas, situações, e assumo comigo o compromisso de acreditar neles. A personagem principal desses desvarios é Priscylla Mariuszka Moskevitch, que já não sei se é criatura ou criadora. Os ideais românticos, que nos normais se esgarçam aos poucos, permanecem em mim desde a adolescência, ora como bênção, ora como praga. Creio já ter dito, aqui mesmo, que meus textos talvez sirvam mais à análise psiquiátrica do que à fruição literária. E, antes que isto enverede ainda mais pela sandice, quero agradecer a todos a gentileza de me aturarem. É algo que já nem eu venho conseguindo. A quem me achar reles e cabotino, digo que muitas vezes me sinto assim, também. Bom dia

Cotação do dia

É tarde, agora. Todo o tempo que tive para viver eu o gastei ocupando-me comigo, como se fosse um daqueles raros homens abençoados com uma alma.

"Uma flor entre as páginas", de Mariana Ianelli

"Olhai o jasmim como cresce
Entre o muro lamacento e o telhado,
Como continua a florir no meio dos campos gelados -

Nem o lírio dos Evangelhos
Nem a rosa branca de Rilke
Em todo o seu esplendor se vestiu como um deles."

(De O amor e depois, edição da Iluminuras.)

terça-feira, 8 de março de 2016

Mario Quintana

O que Mario Quintana tinha não era simplesmente humor. Era algo mais refinado, algo que só Oscar Wilde, Voltaire, Pitigrilli, Swift, Sterne, nosso Machado e mais meia dúzia de homens chegaram a conhecer. Mario Quintana tinha humour.

Leveza

O amor deve ser tocado
Qual se fosse um passarinho
Achado fora do ninho
Com o bico despedaçado.

Em tempo de crise

Naquela conta final
O amor é aquilo que sobra
Descontando o material,
Os impostos e a mão de obra.

O que é

Não conheço nada que tenha sido tão fartamente definido e continue tão completamente indefinível quanto o amor.

Soneto do amor como pretexto

Um dia chegará a hora
De nós a coragem termos
De enfim o amor maldizermos.
Um dia, mas não agora.

Agora, é melhor fingir
Que cativos ainda estamos
E no amor ainda confiamos,
Por mais que insista em mentir.

Para ele também mintamos,
Digamos que o idolatramos,
Que por ele morreremos.

E, concluída a persuasão,
Não percamos a ocasião:
Gozemos, ah, sim, gozemos.

Mais Nietzsche

"O grande poeta nutre-se apenas de sua realidade- até o ponto de depois não mais suportar a sua obra..."

(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da L&PM.)

segunda-feira, 7 de março de 2016

Colaboração

Um poeta não deve ser tão seguro de si, tão presunçoso que dispense um pouco de sorte e até um toque místico em seus poemas, se a fonte lhe parecer confiável.

Cautela

Queres dar o quê a quem?
Se estás pensando em mim, vê
Que pode ser como se
Não desses nada a ninguém.

Do que falo

Quando falo de amor
não falo dessa coisa morninha
gostosinha
bonitinha
dessa gosma melosa
dessas fotinhos digitais
desses arroubos sentimentais
dessas traminhas tediosas

Quando falo de amor
falo de recusa
falo de rejeição
falo de aflição
falo de tudo
quanto no amor
vale a pena
de tudo quanto nele
vale a vida
antes de se conquistar
e que conquistado
se transforma num
enredo pleno de enfado
nessas fotos de filhos e filhas
de netos e netas
de bisnetos e bisnetas
nesses almoços bocejantes
e nessas paulificantes
histórias de família.

"Os feridos", de Kerry Shawn Keys

"os feridos surgiram
carregando sacos

os sacos carregavam gritos
gritos

um grito fugiu

os feridos correram em círculos mudos

não podia gritar?
não podia sangrar?

os sacos, de geração em geração,
sempre souberam o que fazer
com um grito que foge

eles agarravam-no
sacudiam-no
enfiavam-no
pela boca do ferido."

(Tradução de Luiz Alberto Monjardim, poema extraído do livro Nova poesia norte-americana, publicado pela Editora e Livraria Escrita.)

domingo, 6 de março de 2016

Soneto levemente glaucomattosiano

Cantaste o amor, sua essência,
Sua beleza louvaste,
Suas graças exaltaste
E sua magnificência.

Chamando-o de ser divino,
Tu, para melhor louvá-lo
E para melhor cantá-lo,
Para ele fizeste um hino.

Defendeste-lhe o pudor
Com zelo e vigor insano
Só para hoje constatar

Que esse teu excelso amor
Jamais foi mais do que um cano
Ansioso por gotejar.

Estoque

Ao jovem escritor convém conhecer todas as palavras que puder, para saber quais as que deve e, principalmente, quais as que não deve usar.

Defesa

Não mereço punição.
Só faço o que acho que devo.
Sigo a minha vocação:
Não sei viver, só escrevo.

Jeito

Houve um tempo em que eu soube vestir todos os meus dias de domingo.

Questão de assunto

Não censurem um poeta por ele só falar de amor. Censurem-no se, não lhe bastando o amor, ele se ocupar com outros temas.

Retrato

Sou sonso por natureza,
Sou alienado, sou lento,
Sou avoado, desatento.
Pensar me cansa a beleza.

De boteco

A minha filosofia é toda baseada nas miudezas do amor, e dois copos de cerveja é tudo quanto dura sua eternidade.

Coautor

Muitas vezes o leitor é mais perspicaz que o autor e vê no texto grandezas que o texto não tem.

"Ensaio sobre Adão", de Robert Bringhurst

"Há cinco possibilidades. Primeira: Adão caiu.
Segunda: foi empurrado. Terceira: saltou. Quarta;
ao debruçar-se sobre o parapeito perdeu o equilíbrio. Quinta:
nada digno de nota aconteceu a Adão.

A primeira, de que caiu, é primária demais. A quarta,
medo, foi examinada e revelou-se inútil. A quinta,
de que nada aconteceu, não interessa. A solução é a alternativa:
saltou ou foi empurrado. E a diferença está apenas

na questão de saber se o demônio
age de dentro para fora ou de fora para
dentro: aí está
o verdadeiro problema teológico."

(Tradução de João Cabral de Melo Neto, poema extraído do livro Nova poesia norte-americana - Quingumbo, publicado pela Editora e Livraria Escrita.)

sábado, 5 de março de 2016

Reflexão do dia

Quem chora por amor é tolo. Quem não chora já morreu.

Corpo estranho

Chega o momento em que não consegues mais provocar nem a comoção do drama nem o riso da comédia. A plateia te vê como és, um homem já incapaz de expressar qualquer virtude ou vício. Acenas, ensaias algumas palavras, mas a única reação vem de um espectador que pergunta aos outros: como deixaram esse sonso subir no palco?

Dissimulação

Quando reconhecemos ser pó, nem sempre há sinceridade nisso: falamos da espécie, não do indivíduo.

Um tantinho mais de Zaratustra

"E na verdade, alma minha, quem te veria o sorriso sem se desfazer em lágrimas?"

(De Assim falou Zaratustra, tradução de Alex Marins, edição da Martin Claret.)

sexta-feira, 4 de março de 2016

Resumo

A glória do homem não dura,
É um raio de sol, um fio,
E depois o eterno frio
Sobre a sua sepultura.

Soneto em que se propõe perdoar o amor

Do amor convém não falar.
Dele já falaram tanto,
Contaram tudo, e no entanto
Resta ainda tanto a explicar.

Melhor sobre ele calar,
Não dizer mais nada quanto
Ao modo como usa o encanto
Para nos desencantar.

Nós, que o louvamos outrora,
Vamos censurá-lo agora,
Submetê-lo a punição?

Se ele nos traiu, também
Nós o traímos. De quem
Foi a a mais grave traição?

Números

Pelos resultados, continuar escrevendo não é persistência minha; é burrice.

Buquinagem

Esgueirar-se pelas estantes de um sebo é às vezes um prazer leve como uma pescaria e outras vezes tão excitante quanto uma busca sexual. Vi um dia um setentão no canto menos iluminado da sala apalpando um livro de Erica Jong e falando baixo com ele.

Truque

Existem mortos cujo rosto é olhado com estranheza pelos parentes, no velório. É como se no último momento tivessem tentado enganar a Morte.

Diálogo

O melhor é ir dizendo logo do que não se gosta. Facilita. Estar a favor de alguém ou de alguma coisa não costuma ser bem visto por ninguém.

Um pouco mais de Nietzsche

"Se quereis subir, servi-vos das vossas pernas! Não vos deixeis levar ao alto, não vos senteis nas costas nem na cabeça de outrem!
   Montaste a cavalo! Galopas agora em bom passo até o fim? Bem, meu amigo! Mas o teu pé coxo vai também a cavalo!
   Quando chegares ao teu fim, quando desceres do cavalo, homem superior, tropeçarás precisamente na tua altura."

(De Assim falava Zaratustra, tradução de Alex Marins, edição da Martin Claret.)

quinta-feira, 3 de março de 2016

Procrastinação

Enchemos o último parágrafo de vírgulas, intercalamos frases longas, recorremos aos pontos e vírgulas, para adiar o momento em que a Morte, eterna senhora do estilo, vier pôr o ponto-final.

Lembrança

Bom tempo foi aquele em que o amor me alimentava com fartura, para que eu cumprisse suas demandas noturnas e, se delas me descurasse, pudesse resistir ao rancor do seu chicote.

Comodismo

Quando chovia forte, Mário de Andrade, que dizia ser trezentos e cinquenta, não saía de casa. Mandava em seu lugar um dos trezentos e quarenta e nove outros.

Um trecho de Nietzsche

"Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para tás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo - todo idealismo é mendacidade ante o necessário - mas amá-lo..."

(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)

quarta-feira, 2 de março de 2016

Mario Quintana

Mario Quintana era mestre nas coisas que mais importam na vida: as simples.

"Poema em três partes", de Robert Bly

"I
Ah, numa manhã como essa eu penso que vou viver para sempre!
Estou envolto em minha carne mágica,
Como a grama está envolta em suas nuvens verdes.

II
Levantando da cama, onde sonhei
Longos passeios, castelos e carvões vermelhos,
O sol bate alegremente em meus joelhos;
Sofri e sobrevivi à noite
Banhado em água turva, como um tufo de grama qualquer.

III
As folhas fortes do bordo
Mergulhando nos ventos, nos convidam ao desaparecimento
Nas selvas do universo,
Onde deveremos sentar ao pé de uma planta
E viver para sempre como pó."

(Tradução de Luiz Olavo Fontes, extraído do livro Nova poesia norte-americana - Quingumbo, publicado pela Editora e Livraria Escrita.)

Alívio

Desconhecer o que viemos fazer aqui nos livra  de fadigas e decepções. Esqueçamos nossas presunções e gozemos a suprema delícia de não termos missão nenhuma.

Desonra

O eco dos antigos poetas
me chega ainda às vezes
e a límpida voz
com que me encantavam
soa agora atroz.

Eles hoje me dizem
que os meus ouvidos
com os versos deles
não mais condizem:
"Há muito não és um de nós."

Primazia

Pensar na morte é uma travessura que só os vivos podem fazer.

Selo de qualidade

Todos os poetas deveriam morrer por amor. É a única coisa que, em suas biografias, pode legitimá-los,

Questão

Que alma seria suficientemente tola para querer ser a minha?

"Mais um ano", de W.S. Merwin

"Nada tenho a lhe pedir,
Futuro, paraíso do pobre.
Ainda visto as mesmas coisas.

Continuo vendo o mesmo problema
Pela mesma luz,
Comendo a mesma pedra.

E as agulhas do relógio ainda espetam sem entrar."

(Tradução de Antonio Carlos Secchin, extraído de Nova poesia norte-americana - Quingumbo, publicação da Editora e Livraria Escrita.)

terça-feira, 1 de março de 2016

Sobretempo

Viverás ainda um pouco
para cantar
não mais o canto
nem o pássaro
mas o obstinado mutismo do ar.

Coerência

Se um homem desanda a discorrer sobre o amor e tem mais de sessenta anos, deve ser convidado a explicar do que, afinal, está falando.

Algaravia

Quem mais fala do amor e menos o define são os poetas.

Perfil

Sou presunçoso, invejoso, nocivo, cruel. E honesto.

Mario Quintana

Tenho a impressão de que, se um dia me encontrar com Mario Quintana, seremos dois meninos assobiando uma musiquinha numa rua comprida e ensolarada.

Interpretação

Vi certa vez um morto que parecia estar fingindo. Tinha apreensão no rosto, como se receasse ser desmascarado e precisasse abdicar de seu papel de protagonista.

Atavios

O maior erro que um homem comete é o de ver no amor um ser gracioso e querer vesti-lo de acordo com seu gosto. O amor não é um manequim, é uma ideia que, tendo parentesco com o absoluto, rejeita qualquer enfeite de ocasião.

Projeção

Fitar o rosto de um morto é o modo de obtermos o retrato mais preciso sobre o nosso futuro.

Cotação do dia

Sou um morto ainda com algumas memórias, as piores.

Uma frase de Nietzsche

"Uma coisa sou eu, outra são meus escritos."

(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)