terça-feira, 31 de maio de 2016
23h05
Fechar a loja, antes que eu acabe dormindo aqui. Por mais que me agradem estes objetos, estas quinquilharias de amor, é hora de um homem estar em sua casa. O pobre Pierrre, esse prestimoso gato que há algum tempo nomeei gerente, ficará tomando conta de tudo. Ele se afeiçoou aos objetos de tal forma que cada manhã o encontro dormindo num canto. Esta manhã estava deitado sobre um livro de poemas de Mario Benedetti que me é muito caro, pelo autor e por quem o deixou em minhas mãos, numa época melhor que esta. Hora de sair. Nem conversarei com a lua. É tempo de ir me desapegando de todas as coisas queridas.
Cotação do dia
Ridículo? Patético? Se é assim que vocês me veem, estou no caminho certo. Para melhorar, talvez só falte um pouco mais de capricho, duas mortes de gatos meus, os mais queridos naturalmente, e três ou quatro desilusões amorosas.
Dodói
Minha alma às vezes, como hoje, gostaria de ser uma gata que por uma súbita e autoinduzida doença almejasse ter, por inteiro, o afeto que não é o mesmo depois de sua dona conhecer o homem que há um mês anda pela casa como se tudo nela - - a cama, as poltronas e até o sofá - fosse dele.
Águias imperiais
Com que presunçosa desfaçatez dizemos estar participando de um momento histórico para a humanidade. Não olhamos para o nosso rabo, nem desconfiamos ser nosso o rosto idiota que o espelho nos devolve. Somos todos cleópatras e júlios césares.
O que estraga o amor
O que o amor tem de pior é, não morrendo na hora certa, chegar àquela fase na qual os dois pombinhos se transformam num galo velho e numa galinha gorda.
"Livre-arbítrio", de Lourença Lou
"nunca o tinha visto de verdade
nem percebido
quantos muros tinha que escalar
para me sentir em seu abraço
eu era só entrega
caçadora
de histórias e afagos e leões
um dia me cansei
decidi matar ou morrer
pus-lhe uma faca na garganta
seus olhos me gritaram
o que eu não queria ouvir
:morri
foi assim que me libertei."
(De Equilibrista, publicado pela Editora Penalux.)
nem percebido
quantos muros tinha que escalar
para me sentir em seu abraço
eu era só entrega
caçadora
de histórias e afagos e leões
um dia me cansei
decidi matar ou morrer
pus-lhe uma faca na garganta
seus olhos me gritaram
o que eu não queria ouvir
:morri
foi assim que me libertei."
(De Equilibrista, publicado pela Editora Penalux.)
segunda-feira, 30 de maio de 2016
O ideal
Morrer deveria ser
Tão doce e tão conveniente
Que quiséssemos morrer
Muito mais frequentemente.
Tão doce e tão conveniente
Que quiséssemos morrer
Muito mais frequentemente.
Esquina
Uma esmolinha
por favor.
Pode ser uma moedinha,
pode ser uma notinha,
pode ser uma fatiazinha
ainda que já mastigadinha
de amor.
por favor.
Pode ser uma moedinha,
pode ser uma notinha,
pode ser uma fatiazinha
ainda que já mastigadinha
de amor.
Relax
Não tenhas medo, não vou te assaltar. Sei que aquele teu coração, que eu tanto amei, tu já o deste há muito tempo aos marinheiros.
"Poema para um anjo torto", de Lourença Lou
"eu era ainda menina quando
ele veio debaixo do braço de um tio
tinha os lábios finos
lábios grossos
e rosto da minha família
mas o que ele mais tinha
eram imagens que eu nunca vira
desenhadas com palavras escritas
mergulhei em seus rios imagéticos
e quando saí pra respirar
eu era definitivamente de itabira."
(De Equilibrista, publicado pela Editora Penalux.)
ele veio debaixo do braço de um tio
tinha os lábios finos
lábios grossos
e rosto da minha família
mas o que ele mais tinha
eram imagens que eu nunca vira
desenhadas com palavras escritas
mergulhei em seus rios imagéticos
e quando saí pra respirar
eu era definitivamente de itabira."
(De Equilibrista, publicado pela Editora Penalux.)
Ofício
Escrever. Há de ter um homem, entrando já na última trilha do seu caminho, coragem para dizer, como se estivesse comentando ser padeiro ou pedreiro, que é isso que ele faz desde os quinze anos, com a mais obstinada, aguda e estúpida obsessão?
Assim
A palavra amor deveria ser dita sempre por nós como se estivéssemos murmurando uma cantiga de ninar para uma rosa assustada, numa noite sacudida por trovões.
Embuste
Deveria haver uma palavra mais forte e intensa do que danação para exprimir os tormentos pelos quais passa a alma desde que conhece o amor, ainda que o conheça, como costumeiramente ocorre, numa dessas manhãs gloriosas e douradas nas quais somente alguns anos depois alguém, rememorando-a, pode ver apenas mais um dos embustes do demônio para arrastar um homem ao seu reino de trevas e de infortúnios.
Uma quadrinha de Fernando Pessoa
"Tenho uma pena que escreve
Aquilo que eu sempre sinta.
Se é mentira, escreve leve.
Se é verdade, não tem tinta."
Aquilo que eu sempre sinta.
Se é mentira, escreve leve.
Se é verdade, não tem tinta."
domingo, 29 de maio de 2016
Na mesma
Tu podes ficar tranquila.
Nada perdeste.
Eu estou ainda mais
Tolo e inútil
Do que quando me conheceste.
Nada perdeste.
Eu estou ainda mais
Tolo e inútil
Do que quando me conheceste.
Reserva
Guardemos ao menos
um fio de voz
para dizer à Morte
nosso nome
quando ninguém mais
puder dizê-lo por nós.
um fio de voz
para dizer à Morte
nosso nome
quando ninguém mais
puder dizê-lo por nós.
Um poema de Fernando Pessoa
"E sinto que a minha morte,
Minha dispersão total,
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital."
Minha dispersão total,
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital."
sábado, 28 de maio de 2016
O amanhã
Sabemos que seremos pó. Nada podemos fazer. É o que nos espera no futuro. Só nos resta orar para que ele não tarde a vir, que ele não engane a expectativa de nossos ossos cansados.
Fidelidade
Não troque a sua tristeza
tão antiga e consolidada
pelos sorrisos frívolos do amor
e sua fala adocicada.
tão antiga e consolidada
pelos sorrisos frívolos do amor
e sua fala adocicada.
Um poema de Fernando Pessoa
"Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer."
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer."
sexta-feira, 27 de maio de 2016
Balanço
Quando digo que a literatura é o que me resta, não estou glorificando o escritor que não sou. Estou lastimando o homem que poderia ter sido.
Nós
Sim
nós nos interessamos
por livros
pela arte
por abstrações
e por noções
ainda que muito vagas
da beleza
e cintilações
ainda que esparsas
da verdade.
nós nos interessamos
por livros
pela arte
por abstrações
e por noções
ainda que muito vagas
da beleza
e cintilações
ainda que esparsas
da verdade.
Garoto-propaganda
Quem se não eu
um poeta
de careca luzidia
poderia cantar
o brilho ímpar
o charme sem par
da alopecia?
um poeta
de careca luzidia
poderia cantar
o brilho ímpar
o charme sem par
da alopecia?
Classe
No tempo do classicismo, até os cachorros, que se chamavam cães, usavam uma linguagem mais refinada: não latiam; ladravam.
"Eros universo", de Fernando Pessoa
"Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci..."
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci..."
0h23
Acordo na loja. Dormi sobre um exemplar de Os sofrimentos de Werther, de Goethe. A história do infortunado rapaz me impressiona ainda, depois de tantas leituras. Morrer por amor, esse é o resumo do livro. A porta esteve aberta até agora, e ninguém se interessou em vir furtar os despojos sentimentais que mantenho aqui. Tranco a loja e saio para a noite. Levo o livro comigo para casa, como se houvesse ainda algum sofrimento que eu não tivesse extraído dele.
quinta-feira, 26 de maio de 2016
Imagem
Minha equipe de produção acha que eu seria visto com melhores olhos se contratasse um maquiador.
O sinal
Notou que havia algo errado não quando começou a falar com os livros ao passar pela estante, mas quando eles passaram a não responder.
Parcimônia
Economizemos
Digamos só sim
quando o sim bastar
e só não
quando for a ocasião
Não gastemos
palavras em vão.
Digamos só sim
quando o sim bastar
e só não
quando for a ocasião
Não gastemos
palavras em vão.
"O epitáfio de Swift", de W.B. Yeats
"Swift navegou até ao seu repouso;
Não pode aí a feroz indignação
Lacerar-lhe o peito.
Imita-o se fores capaz,
Entorpecido viajante do mundo;
Ele serviu a liberdade humana."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Não pode aí a feroz indignação
Lacerar-lhe o peito.
Imita-o se fores capaz,
Entorpecido viajante do mundo;
Ele serviu a liberdade humana."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)
quarta-feira, 25 de maio de 2016
Vocação zero
Tenho me esforçado para ser humorista, mas não levo jeito. Às vezes ainda fico triste quando riem de mim.
Na real
Então, alguns anos depois da lua de mel, você é acordado por uma tosse de mulher, tão catarrenta que poderia ser a de um marinheiro velho com os pulmões arruinados por fumar cachimbo.
Soneto do retrato definitivo
Mais um soneto, e que seja
Neste que completamente,
De coração e de mente,
Você finalmente esteja.
Ao meu coração, que almeja
Pintar-te plena, coerente
E definitivamente,
Mais esta ocasião se enseja.
Que eu saiba agora dizer-te
Que precisei conhecer-te
Para o entendimento ter
De que em estares presente
Ou em estares ausente
Estão meu ser e não ser.
Neste que completamente,
De coração e de mente,
Você finalmente esteja.
Ao meu coração, que almeja
Pintar-te plena, coerente
E definitivamente,
Mais esta ocasião se enseja.
Que eu saiba agora dizer-te
Que precisei conhecer-te
Para o entendimento ter
De que em estares presente
Ou em estares ausente
Estão meu ser e não ser.
A piada
"E a piada?", perguntou um, na plateia. "E a piada?", cobrou o segundo. "E a piada?", insistiu o terceiro. Olhei para os três e, com esta cara que tenho, anunciei: "A piada sou eu."
Um trecho de Liberato Vieira da Cunha
"Me pegou sem aviso o desejo de disparar-lhe uma carta romântica e suspirosa e desesperançada, toda traçada em excelente caligrafia, numa folha pautada, como quem escreve para uma perdida deusa, repentinamente evadida do passado mais que perfeito."
(Do livro de crônicas O silêncio do mundo, publicação da Editora EGE.)
(Do livro de crônicas O silêncio do mundo, publicação da Editora EGE.)
terça-feira, 24 de maio de 2016
O contrário
Como soa mal a palavra guloseima para as delícias que deveria exprimir. Está menos para gostosuras que para engulhos e engasgamentos.
Quem sabe
Talvez eu tenha sido Dostoiévski, quem sabe até Shakespeare, por que não?, o rapaz pensava, buscando em vidas passadas um pretexto para não ir à aula de redação criativa, na tarde chuvosa e gelada.
Álibi
A beleza há de ser sempre o nosso pretexto. Devemos invocá-la de tal forma, com tanta ênfase, que nossos pecados artísticos sejam relevados sem que precisemos pedir perdão.
Antevéspera
Certas sextas sextas-feiras podem vir disfarçadas de domingo. Robinson Crusoé conheceu uma delas.
Um poema de Saint-John Perse
"Venceste, venceste! Era belo o sangue, e a mão
que com o polegar e o indicador enxugava uma lâmina! Isso era
Há luas. E havíamos tido calor. Lembro-me das mulheres que fugiam com gaiolas; dos enfermos que escarneciam; e dos pacíficos arrojados ao maior lago deste país...; do profeta que corria por trás das paliçadas, numa camela caolha...
E por toda uma noite, em volta das fogueiras, alinharam os mais hábeis daqueles
que na flauta e no triângulo sabem sustentar um canto.
E as piras afundavam carregadas de fruto humano. E os Reis jaziam desnudos no cheiro da morte. E quando o ardor abandonou as cinzas fraternais,
recolhemos os brancos ossos que aqui estão,
mergulhados no vinho puro."
(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, coleção Nobel.)
que com o polegar e o indicador enxugava uma lâmina! Isso era
Há luas. E havíamos tido calor. Lembro-me das mulheres que fugiam com gaiolas; dos enfermos que escarneciam; e dos pacíficos arrojados ao maior lago deste país...; do profeta que corria por trás das paliçadas, numa camela caolha...
E por toda uma noite, em volta das fogueiras, alinharam os mais hábeis daqueles
que na flauta e no triângulo sabem sustentar um canto.
E as piras afundavam carregadas de fruto humano. E os Reis jaziam desnudos no cheiro da morte. E quando o ardor abandonou as cinzas fraternais,
recolhemos os brancos ossos que aqui estão,
mergulhados no vinho puro."
(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, coleção Nobel.)
segunda-feira, 23 de maio de 2016
Quadrinha
Quando nos meus se fixaram,
Fingindo que não me viam,
Porém os lábios sorriam,
Teus olhos te delataram.
Fingindo que não me viam,
Porém os lábios sorriam,
Teus olhos te delataram.
Recrutamento
Não há dia
em que as hordas não passem
por minha casa
com sua atoarda
sua fúria
sua histeria
Preocupam-se com o mundo.
Num dia vão salvá-lo,
no outro vão arrasá-lo,
e chamam por mim
quando vão para lá
ou quando vêm para cá
e reclamam minha companhia
Que horda entenderá
que eu só combateria,
que eu só morreria
pelo respeito
ao meu sagrado direito
à omissão e à apatia?
em que as hordas não passem
por minha casa
com sua atoarda
sua fúria
sua histeria
Preocupam-se com o mundo.
Num dia vão salvá-lo,
no outro vão arrasá-lo,
e chamam por mim
quando vão para lá
ou quando vêm para cá
e reclamam minha companhia
Que horda entenderá
que eu só combateria,
que eu só morreria
pelo respeito
ao meu sagrado direito
à omissão e à apatia?
... que o soneto
Houve tempo, o dos parnasianos, em que o importante não era tanto fazer um soneto, mas burilá-lo. O soneto podia ser concluído em uma hora ou em um dia. Podia estar maravilhoso, perfeito, soberbo, para os outros. Para o autor, porém, esses adjetivos não valiam. Uma semana depois, um mês, se alguém perguntasse pelo soneto, o autor respondia: estou burilando, dando uma penteadinha nele. Tão forte era essa preocupação com a forma que os parnasianos praticamente não admitiam a possibilidade de um soneto ser considerado pronto na primeira versão. E as alterações iam se sucedendo: emendas e mais emendas. Os gaiatos diziam que cada soneto parnasiano era como um parto de montanha. Daí, desse fazer e refazer, é que talvez tenha nascido a expressão "pior a emenda que o soneto".
Que...
Que eu não morra de fome ou de sede, podendo morrer de amor ou paixão, embora todas sejam hipóteses perfeitamente românticas.
Louvado seja
Deus, em Sua generosidade, reservou para os irrecuperáveis um lugar aprazível no Inferno.
"Tudo pode tentar-me", de W.B. Yeats
"Tudo pode tentar-me a que me afaste deste vício do verso:
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior -
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor me vem à mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo e surdo que um peixe."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior -
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor me vem à mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo e surdo que um peixe."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)
domingo, 22 de maio de 2016
Uma história quase banal
Ela era comum
aos olhos de todos
ou da maioria
Se nela havia
algo especial
era algo que
somente ele via
Por ela porém
desde a primeira vez
que a viu
ele vivia
e viveu
Por ela
ele o céu conheceu
por ela
no Inferno ardeu
E por ela
ele disse
(e cumpriu)
que um dia
feliz ou infeliz
morreria.
aos olhos de todos
ou da maioria
Se nela havia
algo especial
era algo que
somente ele via
Por ela porém
desde a primeira vez
que a viu
ele vivia
e viveu
Por ela
ele o céu conheceu
por ela
no Inferno ardeu
E por ela
ele disse
(e cumpriu)
que um dia
feliz ou infeliz
morreria.
Fama
Talvez alguma frase nossa fique e sejamos reverenciados por ela, até que descubram não passar de um plágio ou meio-plágio (e nem sequer de um Pessoa ou de um Machado, mas de um obscuro Jean-Pierre Bruilé, romancista monegasco do fim do século XX).
Enfim
Mortos, teremos toda a Imensa Noite para sonhar. E o mito da vida eterna se cumprirá em pesadelo.
Cota
Você se cobra demais. É muita presunção. Deixe alguns pecados para os outros. No Inferno há lugar para todos.
Mario Quintana
Aonde Mario Quintana fosse, iam com ele as companheiras de toda a sua vida: a Beleza e a Poesia.
A fórmula
Pense em mim como se eu fosse alguém único e precioso. E, para manter essa opinião, jamais queira me conhecer.
Revista Rubem
Hoje, publico mais alguns dos textos que, para me iludir e ir me levando até o último dia, chamo de literatura (www.rubem.wordpress.com). Talvez engane um ou dois leitores.
Um trecho de Liberato Vieira da Cunha
"E concedei, Senhora, meio segundo desse claro olhar, volvendo-o, feito por acaso, ao sujeito que finge escrever tudo isso, como se alheio ao universo, como se indiferente à tirania de vosso encanto."
(Do livro de crônicas O silêncio do mundo, publicado pela Editora AGE.)
(Do livro de crônicas O silêncio do mundo, publicado pela Editora AGE.)
sábado, 21 de maio de 2016
Pudicícia
Que pudico é o Amor.
Teríamos visto seu chifre
e seu magnífico rabo
se ele não nos houvesse cegado.
Teríamos visto seu chifre
e seu magnífico rabo
se ele não nos houvesse cegado.
Delícia
Em Dalton Trevisan talvez se encontre um personagem cujo fetiche supremo seja chupar o dente do siso de uma mulher. E se encontrará também, talvez, ao menos meia dúzia de fogosas mulheres dispostas a passar pela experiência.
Espelho
Nunca perca a esperança. Não diga que lhe faltam motivos para rir antes de olhar bem para você mesmo.
Um poema de Marina Tsvetáieva
"Beijar na testa - apagar o cuidado.
Beijo na testa.
Beijar nos olhos - tirar a insônia.
Beijo nos olhos.
Beijar nos lábios - matar a sede.
Beijo nos lábios.
Beijar na testa - apagar a lembrança.
Beijo na testa."
(De Indícios flutuantes, tradução Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)
Beijo na testa.
Beijar nos olhos - tirar a insônia.
Beijo nos olhos.
Beijar nos lábios - matar a sede.
Beijo nos lábios.
Beijar na testa - apagar a lembrança.
Beijo na testa."
(De Indícios flutuantes, tradução Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)
sexta-feira, 20 de maio de 2016
Mario Quintana
Uma ou outra manhã de Porto Alegre, quando calhava de se achar feiosa, pedia socorro ao sol, aos passarinhos e a Mario Quintana.
Retrato falado (feito por Priscylla Mariuszka Moskevitch)
Eu sempre fui um tolo
um estorvo
um desses que as pessoas
quando o encontram
nunca sabem onde pô-lo.
um estorvo
um desses que as pessoas
quando o encontram
nunca sabem onde pô-lo.
O Dia
Os esqueletos se alvoroçam
pelve contra pelve roçam
afogueados dançam
Depois de milênios
o sol
e a música afinal
ainda que sejam as trombetas
do juízo final.
pelve contra pelve roçam
afogueados dançam
Depois de milênios
o sol
e a música afinal
ainda que sejam as trombetas
do juízo final.
Clube wislawiano
Sou um amante da poesia. Talvez isso tenha certo significado. Mais alguns dizem isso também. Conheço pelo menos dez deles.
Oito versos de Erik Axel Karlfeldt
"Seu jovem amor ela me deu,
uma noite, na amena floresta.
O campo recendia ao crepúsculo
e o cuco cantava as horas.
Pelos sendeiros entre os silvados
até o sombrio domínio das dríades,
esquecidos do mundo, fomos juntos
como num sonho juvenil e vaidoso."
(Tradução de Ivo Barroso, Editora Delta, coleção Nobel.)
uma noite, na amena floresta.
O campo recendia ao crepúsculo
e o cuco cantava as horas.
Pelos sendeiros entre os silvados
até o sombrio domínio das dríades,
esquecidos do mundo, fomos juntos
como num sonho juvenil e vaidoso."
(Tradução de Ivo Barroso, Editora Delta, coleção Nobel.)
quinta-feira, 19 de maio de 2016
Lembranças
Ela teve muitos gatos. Todos belos, todos afetuosos, todos com a mesma peculiaridade: a de, após algum tempo, morrerem.
Um trecho de Sylvio Floreal
"A bolina no cinema nasceu naturalmente, devido à penumbra e aos beijos delirantes que dão na tela as 'estrelas' e os canastrões da arte do gesto lento."
(De Ronda da meia-noite, edição da Boitempo.)
(De Ronda da meia-noite, edição da Boitempo.)
quarta-feira, 18 de maio de 2016
Minha parte na história
Minha relação contigo nunca foi nada além de poética. Sempre tiveste a sorte de contar com quem fizesse por mim a parte suja.
Recado
Bom dia, querida. Enquanto você geme sob o peso de um marinheiro turco chamado Kemal, eu mantenho meu pirulitinho em pureza, para o Dia do Juízo Final.
Soneto do amor quase perfeito
Por nós ela tem carinho.
Ela nos beija, nos ama,
Nos deixa dormir na cama,
Nós somos o seu cãozinho.
Nós somos todo o seu bem:
Sua paz, sua alegria,
A vida que ela queria
E os filhos que ela não tem.
Tudo seria perfeito,
Se não houvesse um defeito
Que acaba estragando tudo:
As noites em que ela esquece
O que um cãozinho merece
E dorme com o bigodudo.
Ela nos beija, nos ama,
Nos deixa dormir na cama,
Nós somos o seu cãozinho.
Nós somos todo o seu bem:
Sua paz, sua alegria,
A vida que ela queria
E os filhos que ela não tem.
Tudo seria perfeito,
Se não houvesse um defeito
Que acaba estragando tudo:
As noites em que ela esquece
O que um cãozinho merece
E dorme com o bigodudo.
Um trecho de Giorgios Seferis
"Resta ainda a essência amarela, o verão,
E tuas mãos roçando medusas na água,
Teus olhos abertos de repente, os primeiros
Olhos do mundo, e as grutas marinhas,
Pés desnudos no solo vermelho.
Resta ainda o efebo louro de pedra, o verão,
Um pouco de sal seco no oco de um rochedo,
Algumas agulhas de pinheiro após a chuva
Ruivas e dispersas como um filete em fiapos."
(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, coleção Nobel.)
E tuas mãos roçando medusas na água,
Teus olhos abertos de repente, os primeiros
Olhos do mundo, e as grutas marinhas,
Pés desnudos no solo vermelho.
Resta ainda o efebo louro de pedra, o verão,
Um pouco de sal seco no oco de um rochedo,
Algumas agulhas de pinheiro após a chuva
Ruivas e dispersas como um filete em fiapos."
(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, coleção Nobel.)
terça-feira, 17 de maio de 2016
Mario Quintana
Quando viam o menino Mario Quintana, os bem-te-vis mudavam o canto: olha eu aqui, olha eu aqui, olha eu aqui.
Ensejo
Para o imperador
para o conquistado
para o conquistador
para o escravo
para o de baixa
e o de alta casta
no final um pedaço
de terra basta
Nascerem ali flores ou não
não é questão de merecimento
mas de ocasião.
para o conquistado
para o conquistador
para o escravo
para o de baixa
e o de alta casta
no final um pedaço
de terra basta
Nascerem ali flores ou não
não é questão de merecimento
mas de ocasião.
Inépcia
Não sei lidar com as palavras. Em tudo quanto escrevo, fica faltando sempre alguma emoção, algum sentimento, alguma lágrima, alguma alma.
Em defesa do simples
Escrevo versos ruins,
Componho poemas medíocres.
Se não fosse assim,
Onde eu poderia dizer,
Como digo aqui,
Abrindo o coração,
Que sofro,sofro, sofro,
Sem me preocupar
Se os críticos vão julgar
Boa ou má a repetição?
Componho poemas medíocres.
Se não fosse assim,
Onde eu poderia dizer,
Como digo aqui,
Abrindo o coração,
Que sofro,sofro, sofro,
Sem me preocupar
Se os críticos vão julgar
Boa ou má a repetição?
Um poema de Emily Dickinson
"É mais fácil encontrar
Um amigo que é sombra para os dias quentes,
Do que algum outro, caloroso,
Para as horas frias da mente.
Voltado um tanto para o leste, o catavento
Põe em fuga as almas de musselina;
E se mais firmes são os corações de seda
Do que os feitos de organdi,
A quem culpar? Ao tecelão?
Ó os enganadores fios!
No paraíso, as alfombras
Têm urdidura invisível."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, edição da L&PM.)
Um amigo que é sombra para os dias quentes,
Do que algum outro, caloroso,
Para as horas frias da mente.
Voltado um tanto para o leste, o catavento
Põe em fuga as almas de musselina;
E se mais firmes são os corações de seda
Do que os feitos de organdi,
A quem culpar? Ao tecelão?
Ó os enganadores fios!
No paraíso, as alfombras
Têm urdidura invisível."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, edição da L&PM.)
segunda-feira, 16 de maio de 2016
Da arte canora
Então o corvo disse: "Agora, Roberto, jamais. Se você não aprendeu com o Cauby, nunca mais."
Má ideia
Se, andando pela Paulista, ouvisses minha voz, certamente te arrepiarias. Certamente não de amor.
Soneto do amor punido
Por tê-la o amor enganado
E negado o prometido,
Por tê-la menosprezado
E sem descanso traído.
Hoje ela, tendo lembrado
O passado tão sofrido,
Sem haver no ato pensado,
Pegou na estante o Cupido.
Olhou-o por um momento
E num brusco movimento
Atirou-o para o chão.
Procurando não chorar,
Foi a pá então buscar
Para não ferir a mão.
E negado o prometido,
Por tê-la menosprezado
E sem descanso traído.
Hoje ela, tendo lembrado
O passado tão sofrido,
Sem haver no ato pensado,
Pegou na estante o Cupido.
Olhou-o por um momento
E num brusco movimento
Atirou-o para o chão.
Procurando não chorar,
Foi a pá então buscar
Para não ferir a mão.
Um trecho de Gérard de Nerval
"Eu continuo lhe escrevendo. Não consigo fazer nada além de pensar na senhora e de me envolver com sua pessoa, tão ocupada, distraída, atarefada... não de todo indiferente, mas cruelmente muito razoável, e raciocinando tão bem! Ó mulher! mulher! A artista será na senhora sempre mais forte do que a amante. Mas também a amo como artista. Há no seu talento uma porção de magia que me encantou. Firme logo o passo para essa glória que quero esquecer; e, se precisar de uma voz para encorajá-la, ou de um braço para apoiá-la, ou de um corpo sobre o qual possa apoiar seu pé para subir mais alto, a senhora sabe..."
(De Aurélia, tradução de Luís Augusto Contador Borges, edição da Iluminuras.)
(De Aurélia, tradução de Luís Augusto Contador Borges, edição da Iluminuras.)
domingo, 15 de maio de 2016
Tabela
O amor, esse prostituto,
A cada abraço ou beijinho,
A cada afago ou carinho
Nos cobra sempre o tributo.
A cada abraço ou beijinho,
A cada afago ou carinho
Nos cobra sempre o tributo.
Equívoco
Não, meu senhor,
Tenha paciência,
Diga coisa que preste.
Não eram os cavaleiros do Apocalipse
Que assaltavam diligências
No Velho Oeste.
Tenha paciência,
Diga coisa que preste.
Não eram os cavaleiros do Apocalipse
Que assaltavam diligências
No Velho Oeste.
Só mesmo no "Estadão"
Mariana Ianelli e Emily Dickinson na mesma página! Hoje, no "Caderno 2" do Estadão.
Dois versos de John Keats
"A beleza é a verdade, a verdade a beleza" - é tudo
O que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber."
(De "Ode sobre uma urna grega", do livro Ode sobre a melancolia e outros poemas, tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, edição da Hedra.)
O que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber."
(De "Ode sobre uma urna grega", do livro Ode sobre a melancolia e outros poemas, tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, edição da Hedra.)
sábado, 14 de maio de 2016
Soneto em que passeio com o Amor
Era manhã ainda quando,
Depois de me despertar,
O Amor para caminhar
Acabou me convidando.
Saímos, fomos andando,
Com o sol alegre a brilhar
E os pássaros a cantar
Por onde íamos passando.
Ele e eu subimos a um monte
Onde o Amor me prometeu,
Apontando-me o horizonte:
"Olhe, tudo aquilo é seu!"
Depois, falso, me beijou
E lá do alto me atirou.
Depois de me despertar,
O Amor para caminhar
Acabou me convidando.
Saímos, fomos andando,
Com o sol alegre a brilhar
E os pássaros a cantar
Por onde íamos passando.
Ele e eu subimos a um monte
Onde o Amor me prometeu,
Apontando-me o horizonte:
"Olhe, tudo aquilo é seu!"
Depois, falso, me beijou
E lá do alto me atirou.
Do diário de Florbela Espanca
"Tenho pela mentira um horror quase físico. Sinto-a à distância e agora... neste mesmo momento... sinto-a vaguear, asquerosa e suja, em volta da minha alma que vibra no orgulho de ser pura. Se os outros me não conhecem, eu conheço-me, e tenho orgulho, um incomensurável orgulho em mim!"
(De Afinado desconcerto, organização de Maria Lúcia Dal Farra, edição da Iluminuras.)
(De Afinado desconcerto, organização de Maria Lúcia Dal Farra, edição da Iluminuras.)
sexta-feira, 13 de maio de 2016
Mario Quintana
Com Mario Quintana, a poesia se desempertigou e, abandonando os ambientes da presunção e da empáfia, voltou a caminhar com o leitor pela rua e a sentar-se com ele num banco de praça para desfrutarem o ar puro, o sol e o canto dos passarinhos.
O pesadelo
Sua principal atividade, agora, é cochilar. Cochila de manhã e à tarde, sentado no sofá. À noite, assim que se deita na cama, o sono lhe vem, generoso. O único pesadelo que tem, com alguma frequência, é estar cochilando ou dormindo e não ouvir a campainha que a Morte, finalmente disposta a atendê-lo, toca e toca e, cansada, desiste de tocar.
O visitante
Se houver um gato na sala, será ao lado dele que irá sentar-se o sol, se decidir entrar.
Gangorra
Não me mataram as doenças
nem os amores.
O destino foi benévolo comigo
e cruel com os meus leitores.
nem os amores.
O destino foi benévolo comigo
e cruel com os meus leitores.
Quatro versos de John Donne
"Muito mais diria, mas muito palavreado torna
Suspeito aquilo que aos homens persuadiria.
Considera tudo nisto: eu amo tão verdadeiramente,
Que nunca esperarei por menos vindo de ti."
(De Elegias amorosas, tradução de Helena Barbas, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Suspeito aquilo que aos homens persuadiria.
Considera tudo nisto: eu amo tão verdadeiramente,
Que nunca esperarei por menos vindo de ti."
(De Elegias amorosas, tradução de Helena Barbas, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
quinta-feira, 12 de maio de 2016
Terceiro ato, cena final
Isso, minha querida. Aperta-me a garganta assim. Mais forte. E agora me diz que estás me matando por amor.
Maneiras de parar
Quando quer parar
de cantar
o cantor
para
Quando quer parar
de esculpir
o escultor
para
Quando quer parar
de trair
o traidor
para
O escritor
quando quer parar
de escrever
escreve para dizer
que vai parar
de escrever.
de cantar
o cantor
para
Quando quer parar
de esculpir
o escultor
para
Quando quer parar
de trair
o traidor
para
O escritor
quando quer parar
de escrever
escreve para dizer
que vai parar
de escrever.
Recurso
Sempre podemos dizer que a literatura, para nós, jamais passou de um hobby. É o melhor modo de justificar sua pobreza.
Do diário de Florbela Espanca
"Não tenho forças, não tenho energia, não tenho coragem para nada. Sou o ramo de salgueiro que se inclina e que diz sim a todos os ventos."
(Do livro Afinado desconcerto, organizado por Maria Lúcia Dal Farra, edição da Iluminuras.)
(Do livro Afinado desconcerto, organizado por Maria Lúcia Dal Farra, edição da Iluminuras.)
quarta-feira, 11 de maio de 2016
Trégua
Mesmo nos nossos mais tormentosos dias, um gato é sempre uma possibilidade de se abrir um sorriso em nós, toda vez que ele interrompe seu sono para nos olhar com seus olhos remelentos, como se nós fôssemos importantes.
Cotação do dia
Quando eu estiver
com os olhos fechados
definitivamente assim
você terá coragem
de olhar para mim?
com os olhos fechados
definitivamente assim
você terá coragem
de olhar para mim?
Dúvida
Ei, espera um pouco, escuta:
se a voz do povo
é a voz de Deus,
de quem é essa voz esquisita
que gritou não me irrita
seu filho da puta?
se a voz do povo
é a voz de Deus,
de quem é essa voz esquisita
que gritou não me irrita
seu filho da puta?
Um poema de Luis Fernando Verissimo
"Jaz aqui um sedutor
que esqueceu sua
própria lei por
um fatal instante:
'Não desejar a
mulher do próximo
- a não ser que
ele esteja distante.'"
(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)
que esqueceu sua
própria lei por
um fatal instante:
'Não desejar a
mulher do próximo
- a não ser que
ele esteja distante.'"
(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)
terça-feira, 10 de maio de 2016
O que eu devia
Eu devia ter nadado, dançado, flertado, dirigido loucamente, amado, desamado. Eu devia ter plantado flores, colhido flores, comido flores. Eu devia ter morrido, ressuscitado e remorrido. Eu devia ter feito alguma coisa, eu devia ter feito tudo para não ser este verme que só não chamo de desprezível para não ser redundante.
Q&B
Uma cliente do Quintana & Barros comentou que era surpreendente o êxito do escritório, visto que os dois sócios pareciam estar sempre caminhando nas nuvens. Seu Mario, ou seu Manoel, respondeu: "Mas é esse, exatamente, o segredo do nosso sucesso!"
Soneto do querido mentiroso
Se a intenção é ludibriar,
Ser cínico por inteiro,
Não há como refutar:
O amor é useiro e vezeiro.
Para ele é tão corriqueiro
Mentir, fingir e enganar
Quanto é para um costureiro
Medir, marcar e cortar.
Os males que ele nos faz,
E os outros, de que é capaz,
Sabemos perfeitamente.
Porém para nós é um gozo
Trair-nos um mentiroso
Tão querido e competente.
Ser cínico por inteiro,
Não há como refutar:
O amor é useiro e vezeiro.
Para ele é tão corriqueiro
Mentir, fingir e enganar
Quanto é para um costureiro
Medir, marcar e cortar.
Os males que ele nos faz,
E os outros, de que é capaz,
Sabemos perfeitamente.
Porém para nós é um gozo
Trair-nos um mentiroso
Tão querido e competente.
Nada feito
Se você quer falar de amor,
minha menina,
fale com outro, comigo não.
Há muito morreu
meu último verão, menina,
e deste inverno não saio vivo
nem com a ajuda de Deus
nem pagando propina.
minha menina,
fale com outro, comigo não.
Há muito morreu
meu último verão, menina,
e deste inverno não saio vivo
nem com a ajuda de Deus
nem pagando propina.
O próximo
Quando é nossa hora de dar
Ele sabe o itinerário.
No entanto, quando é o contrário,
Quem haverá de o encontrar?
Ele sabe o itinerário.
No entanto, quando é o contrário,
Quem haverá de o encontrar?
"Paulo Mendes Campos", poema de Miguel de Almeida
"O poeta não estava em casa
porta fechada, não vi seu rosto
corri aos bares da beira-mar
atravessei avenidas, parei pessoas
e as luzes de neon navegavam
como se a noite estivesse bêbada
os olhos mergulhados na multidão
estranhavam o vento, acordes vadios
voltava das areias o calor da noite
e o coração cativo empreguiçava
por um verso verde, tirado do bolso
decorado na língua enquanto cães corriam
sem vontade de voar
eu batia os olhos pela cidade
como se a noite estivesse bêbada
e procurava pelos cantos o poeta
no olho das meninas.
(De Dobrando esquinas, publicado pela Massao Ohno/Roswitha Kempf/Editores.)
porta fechada, não vi seu rosto
corri aos bares da beira-mar
atravessei avenidas, parei pessoas
e as luzes de neon navegavam
como se a noite estivesse bêbada
os olhos mergulhados na multidão
estranhavam o vento, acordes vadios
voltava das areias o calor da noite
e o coração cativo empreguiçava
por um verso verde, tirado do bolso
decorado na língua enquanto cães corriam
sem vontade de voar
eu batia os olhos pela cidade
como se a noite estivesse bêbada
e procurava pelos cantos o poeta
no olho das meninas.
(De Dobrando esquinas, publicado pela Massao Ohno/Roswitha Kempf/Editores.)
segunda-feira, 9 de maio de 2016
Orgulho
Eu sou um homem comum.
Igual a mim, francamente,
Eu digo orgulhosamente:
Não existe homem nenhum.
Igual a mim, francamente,
Eu digo orgulhosamente:
Não existe homem nenhum.
Sob medida
Para o que sou
ocupo muito espaço
Pelo meu valor mesquinho
eu devia ser pequeno
como um passarinho
e quando morrer
inteiramente caber
numa caixa de sapatos.
ocupo muito espaço
Pelo meu valor mesquinho
eu devia ser pequeno
como um passarinho
e quando morrer
inteiramente caber
numa caixa de sapatos.
Peste
Sobre o túmulo dos homens que foram humilhados pelo amor, regado pelo mijo dos cachorros vadios, nascem flores mirradas e doentias, que parecem mocinhas tuberculosas tossindo sob um sol de inverno.
"Improvável", de Luis Fernando Verissimo
"Haverá Brasil
em outros planetas?"
(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)
em outros planetas?"
(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)
domingo, 8 de maio de 2016
Saldo
Mesmo com toda a desdita
E tudo quanto sofri,
Há de ser sempre bendita
A hora em que te conheci.
E tudo quanto sofri,
Há de ser sempre bendita
A hora em que te conheci.
Retrato
Olha bem para o meu rosto devastado: no dia em for roubar teu coração, será assim que estarei.
Aquele amigo querido
Era presunçoso, cheio de si, arrogante. Sabia de tudo. Quando começou a sentir dores no peito e previu que morreria dali a dois ou três meses, talvez antes, os amigos sorriram, esperançosos: talvez antes.
Quase
Seus fracassos só não são retumbantes e seus dramas dramalhões porque não lhe agradam os lugares-comuns e os chavões.
O que a morte é
Morrer é aquela situação
em que você não pode mais
blogar facebookear
nem entrar no youtube
e em que sua respiração
não vai melhorar
se você trocar um pulmão
depois o outro pulmão
nem se passar vickvaporub.
em que você não pode mais
blogar facebookear
nem entrar no youtube
e em que sua respiração
não vai melhorar
se você trocar um pulmão
depois o outro pulmão
nem se passar vickvaporub.
Revista Rubem
Hoje falo daquelas miudezas que sustentam nossa vida e a atormentam. Uma delas, a melhor e a pior, é, obviamente, o amor (www.rubem.wordpress.com).
sábado, 7 de maio de 2016
Sonho
Eu era um poeta medieval. Gritava Priscylla! Priscylla!, até ser atingido por um líquido morno que não eram lágrimas de uma estrela, mas o conteúdo de um urinol.
Certificado
Dizem que o amor pode nos matar de várias formas. É verdade. Eu já morri tantas vezes...
A face verdadeira
Quando se despe da retórica, na qual é mestre, o amor se mostra como realmente é: não o altivo pássaro de canto mavioso, descrito pelos românticos, mas um franguinho que, escapando das asas da mãe, é apanhado por um temporal e, tremendo de frio e fome, é incapaz de emitir um pio, resignado em sua desesperança.
A desculpa
Escrever, no fim das contas, não vale grande coisa. É só um ardil, entre tantos, que arranjamos para justificar nossa existência. Outros apresentam outras justificativas. Os dançarinos, os arquitetos, os tocadores de banjo. Cada um de nós precisa de pelo menos uma desculpa. É como se desde o nosso primeiro dia quiséssemos chamar a atenção do Criador, adulá-lo, agradecer-Lhe, ainda que não saibamos bem por quê, para que Ele não se sinta mais culpado do que é pelo erro de nos ter criado.
Comunicado
Enquanto não vem o nobel
aceito o jabuti
Há quarenta anos
moro no mesmo lugar
Para facilitar
podem entregar aqui.
aceito o jabuti
Há quarenta anos
moro no mesmo lugar
Para facilitar
podem entregar aqui.
"Das dores", de Mariana Ianelli
"Sete adagas
no peito:
essa violência
da imagem
ninguém censura
que é para o olho
ver melhor
quanto custa
uma coroa
sem vontade
nem vaidade
minha ou tua -
quanto de pena
quanta pena
quanto amansamento
por tortura
quanto céu sem estrela
para eclodir
isto que chamam
majestade
glória
graça
resplendor."
(De Tempo de voltar, edição da Ardotempo.)
no peito:
essa violência
da imagem
ninguém censura
que é para o olho
ver melhor
quanto custa
uma coroa
sem vontade
nem vaidade
minha ou tua -
quanto de pena
quanta pena
quanto amansamento
por tortura
quanto céu sem estrela
para eclodir
isto que chamam
majestade
glória
graça
resplendor."
(De Tempo de voltar, edição da Ardotempo.)
sexta-feira, 6 de maio de 2016
Quintana & Barros
Certa manhã, a secretária do Escritório Quintana & Barros entrou na sala em que seu Mario e seu Manoel escreviam um texto sobre a primavera e encantou-se com os passarinhos que tinham aparecido ali e com os que continuavam a surgir da caneta de cada um deles.
(Para Silvia Galant François, a pessoa que mais sabe de Mario Quintana no mundo.)
(Para Silvia Galant François, a pessoa que mais sabe de Mario Quintana no mundo.)
Sovinice
Quem nesta vida não erra?
Quando chegar tua hora,
Acabarás dando à terra
O que me negas agora.
Quando chegar tua hora,
Acabarás dando à terra
O que me negas agora.
Se
Talvez tu tivesses sido
De todos o mais amado,
De quantos o mais querido,
Se tu tivesses tentado,
Se tu tivesses podido,
Se te tivessem deixado,
Se não tivesses morrido,
Se te tivessem poupado.
De todos o mais amado,
De quantos o mais querido,
Se tu tivesses tentado,
Se tu tivesses podido,
Se te tivessem deixado,
Se não tivesses morrido,
Se te tivessem poupado.
Batismo
A mais velha das três putas notou minha hesitação e, antecipando-se às outras duas, foi me puxando da sala para o quarto. Perguntou se era a minha primeira vez e, antes que eu respondesse, fez outra pergunta: "Trouxe o pintinho?" Amedrontado, eu fiz que sim, com a cabeça.
Hoje
Hoje pronunciamos amor com os mesmos lábios que beijaram a tatuada pele de tantas rameiras. E temos saudade daquelas noites no prostíbulo, e abominamos o tédio atual, e bocejamos como saudáveis chefes de família depois do jantar.
"Julho", de Mariana Ianelli
"Aqui os trabalhos não têm fim,
há sempre novas formas de juntar
cacos de coisas ocorridas no caminho,
há um deserto de senhas, sinais, indícios
mas hoje, hoje a lua é um acontecimento,
há um perfume de casa nos teus cabelos,
há uma flor de maio que rebenta em julho
e um cacho de uvas vermelhas lavadas
brilhando num prato que é pura concupiscência."
(De Tempo de voltar, publicado pela Ardotempo.)
há sempre novas formas de juntar
cacos de coisas ocorridas no caminho,
há um deserto de senhas, sinais, indícios
mas hoje, hoje a lua é um acontecimento,
há um perfume de casa nos teus cabelos,
há uma flor de maio que rebenta em julho
e um cacho de uvas vermelhas lavadas
brilhando num prato que é pura concupiscência."
(De Tempo de voltar, publicado pela Ardotempo.)
quinta-feira, 5 de maio de 2016
Na veia
Às vezes eu gostaria de ser um sujeito pão-pão-queijo-queijo como o Marcelo Mirisola e dizer: que se foda o amor, ora porra!
Elogio da fugacidade
O amor deveria ser, para nós, como um brinquedo é para um menino: dar prazer pelo tempo exato e ser substituído por outro, e depois por outro, e por outro, sucessivamente, para não poder se tornar um ursinho velho e estropiado no fundo de uma caixa de papelão.
Vítimas
São curiosos os escritores. Dizem que nasceram para escrever, que não se imaginam fazendo nada além de escrever, que vivem para escrever. Mas como se queixam: ah, que cansaço é escrever, que tortura, que suplício, que desgraça. Dá pena ouvi-los. Somos tentados a nos oferecer para escrever por eles. Melhor não. Não há ninguém como um escritor para defender tão bravamente seu papel de vítima.
E por que não?
Um homem de setenta e sete anos pode falar de amor como se tivesse dezessete. É uma boa forma de se mostrar ridículo.
Predestinada
A secretária do Escritório Quintana & Barros era jovem, bela e gentil. Se não se chamasse Rosa, seria esse o nome que certamente lhe dariam os dois sócios.
Quatro versos de John Keats
"E este é o motivo pelo qual eu me acho
Aqui, vagando pálido e sozinho,
Malgrado, seco o junco à beira-lago,
Não cante um passarinho."
Aqui, vagando pálido e sozinho,
Malgrado, seco o junco à beira-lago,
Não cante um passarinho."
quarta-feira, 4 de maio de 2016
Pejo
Se eu tivesse vergonha na cara, pediria perdão aos leitores pelo bilaquiano bolor dos meus sonetos.
Rumo
Seguir em frente é sempre mais fácil quando os nossos passos são os últimos e já não dependem de nossa escolha.
Uma frase de Roberto Bolaño
"Parece mentira, mas nasci no bairro dos Empalados. O nome brilha como a lua. O nome, com seu chifre, abre um caminho no sono e o homem caminha por essa trilha. Uma trilha trêmula. Sempre crua. A trilha de chegada ou saída do inferno. A isso se reduz tudo. Aproximar-se ou afastar-se do inferno. Eu, por exemplo, mandei matar. Dei os melhores presentes de aniversário. Financiei projetos faraônicos. Abri os olhos na escuridão. Com extrema lentidão abri os olhos na escuridão total e só vi ou imaginei aquele nome: bairro dos Empalados, fulgurante como a estrela do destino."
(De Putas assassinas, tradução de Eduardo Brandão, publicado pela Companhia das Letras.)
(De Putas assassinas, tradução de Eduardo Brandão, publicado pela Companhia das Letras.)
terça-feira, 3 de maio de 2016
Mario e Manoel
Quando uma tempestade carregou a placa do Escritório Quintana & Barros, quem o procurava recebia esta indicação: "Não tem erro. É uma casinha verde bem ali na esquina. Na frente tem uma árvore com um passarinho que assobia todo o tempo Danúbio azul."
Um poema de Luis Fernando Verissimo
"O Brasil é um país
verdadeiramente incomum.
Enquanto parte vai pra
cucuia
outra parte vai pra
Cancún."
(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)
verdadeiramente incomum.
Enquanto parte vai pra
cucuia
outra parte vai pra
Cancún."
(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)
segunda-feira, 2 de maio de 2016
Cotação do dia
Vão morrendo todos aqueles que foram meus companheiros de sonhos literários: seríamos a geração de ouro. Resto eu, talvez só eu, mas por que justamente fui eu que fiquei, eu que não sei contar uma história?
Mario e Manoel (para Silvia Galant François)
Quando, já concluídas as obras, a direção do condomínio Recanto das Borboletas observou que faltavam justamente estas, resolveu contratar o Escritório Quintana & Barros.
Apatia
Viver é o tipo de atividade que já não me encanta. Venho passando a maior parte dos meus dias dormindo. Para não sentir muita culpa, durmo sentado, no sofá. No começo, minha família estranhou. Agora, todos já se acostumaram. Ninguém mais fala comigo, nem para dizer bom dia ou boa tarde, assim como não falam com o sofá nem o cumprimentam.
Pureza
Acha que está na hora de parar de ler Shakespeare. Teme prejuízo para o seu estilo, tão duramente conquistado.
Pesquisa
Alguns gostam de poesia
alguns fingem gostar
alguns a detestam
alguns preferem não se manifestar
enquanto a maioria pergunta
poesia o que é mesmo
poesia?
alguns fingem gostar
alguns a detestam
alguns preferem não se manifestar
enquanto a maioria pergunta
poesia o que é mesmo
poesia?
"Lugares", de Mariana Ianelli
"Onde fizemos memória
são lugares que já não existem,
camas de casa, mercados de Damasco
cidade dourada, templo de Palmira -
tudo transmigrado, repatriado em fábula
e entre as palavras muitos cigarros votivos,
muitas noites de intervalo musical
sem morada, sem registro, muitos dias."
(De Tempo de voltar, edição da Ardotempo.)
são lugares que já não existem,
camas de casa, mercados de Damasco
cidade dourada, templo de Palmira -
tudo transmigrado, repatriado em fábula
e entre as palavras muitos cigarros votivos,
muitas noites de intervalo musical
sem morada, sem registro, muitos dias."
(De Tempo de voltar, edição da Ardotempo.)
domingo, 1 de maio de 2016
Comparação
"Não sei por que você se irrita quando eu comparo certas coisas que você escreve com algum escritor. Você deveria achar bom. Eu só leio autores clássicos."
Mario e Manoel
Usando um jeito de dizer que talvez a nenhum dos dois desgostasse, estou para afirmar que Mario Quintana e Manoel de Barros não eram só semelhantes, mas inteiramente iguais.
Mariana Ianelli
Se um escritor quiser afugentar os leitores, basta dizer que seu livro é de prosa poética. A prosa poética é um ser híbrido, feito de duas unidades não miscíveis, que não costuma agradar. Se calhar de ser Mariana Ianelli quem tiver escrito um livro de prosa poética, aí o leitor pode ter a certeza de que seus olhos verão uma beleza una, individual, indivisível, como se a água abrandasse o acre sabor do vinho e o vinho desse à água o dom de ser capitosa.
Medidas cautelares
Se for se enfiar
numa aventura de amor
prepare-se para ser o perdedor
Atualize o seguro de vida
na forma devida
regularize a papelada
não deixe pendente nada
lembre-se de tudo
e sobretudo
numere todos os ossos
para facilitar o trabalho
da equipe que irá
recolher os seus destroços.
numa aventura de amor
prepare-se para ser o perdedor
Atualize o seguro de vida
na forma devida
regularize a papelada
não deixe pendente nada
lembre-se de tudo
e sobretudo
numere todos os ossos
para facilitar o trabalho
da equipe que irá
recolher os seus destroços.
Um poema de Mariana Ianelli
"UM LUGAR NESTE MUNDO"
(para Adriana Lisboa)
Nenhuma arquitetura mirabolante
de babéis, ilhas desconhecidas, atlântidas
só uma ponte sobre um rio
e nela um homem de mãos enfareladas
operando o milagre
de multiplicar no céu de uma tarde
as gaivotas."
(De Tempo de voltar, edição da Ardotempo.)
(para Adriana Lisboa)
Nenhuma arquitetura mirabolante
de babéis, ilhas desconhecidas, atlântidas
só uma ponte sobre um rio
e nela um homem de mãos enfareladas
operando o milagre
de multiplicar no céu de uma tarde
as gaivotas."
(De Tempo de voltar, edição da Ardotempo.)