quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Apocrifia

Ele é um lacaio de costas e ombros dilacerados, em cujas cicatrizes ninguém além dele identifica marcas de amor.

Notícia do dia

Continuo vivo. Abro a janela. Resta-me algum ânimo. Corações piedosos, tapem os ouvidos da poesia.

O que você quer (para Paula Giannini e Veronica Stigger)

É isso que você quer? Isso mesmo? Isso que esses jovens dizem querer também? Olhe para você. Olhe para eles. Que incompetente deus concederia a um homem trôpego, de cujos lábios escorre essa baba bovina, o dom da poesia?

Cântico

Há um segredo
que os vivos ainda não
mas os mortos conhecerão.

Tarefa

Escrevamos alguma coisa, qualquer coisa. Por quê? Para quê? Fizemos essa pergunta ontem. Fizemos essa pergunta hoje. Escrevamos alguma coisa, qualquer coisa. Perguntemos novamente amanhã.

Incômodos (para Rose Marinho Prado)

Ainda não se definiu qual é o som mais irritante: se a tosse de um soneto parnasiano, se o guincho das dobradiças de um poema concreto.

Estilo

A sorte de Deus quando ciou o mundo foi não haver ainda, na época, um crítico de arte.

Método (para Aden Leonardo, Arlene Colucci e Tuca Kors)

Algumas palavras melhoram se, antes de passadas ao texto, recebem um afago: seda, cetim, brisa, gato.

Como ontem (para Alfredo Aquino)

Tenho sentido a tentação de escrever como quando estava com oito anos. Gastei a vida procurando palavras, assuntos, modos de dizer, e nunca achei melhor frase para definir o sol do que a primeira: o sol é bonito.

Meio ambiente (para Silvana Guimarães)

No estômago do pinguim
vedada ao mar e ao sol
uma embalagem de Andy Warhol.

Início de "O sonho dos heróis", de Adolfo Bioy Casares

"Ao longo de três dias e de três noites do carnaval de 1927, a vida de Emílio Gauna alcançou sua primeira e misteriosa culminância. Que alguém tenha previsto o terrível termo combinado e, de longe, tenha alterado o fluir dos acontecimentos é um ponto difícil de resolver. Decerto, uma solução que assinalasse um obscuro demiurgo como autor dos fatos que a pobre e apressada inteligência humana vagamente atribui ao destino, mais do que uma nova luz, acrescentaria um novo problema."
(Tradução de Andréa Ramal, José Olympio Editora.)

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O teste

Um bom poema lírico deve suportar ser lido até sob o som de uma música junina tocada por um sanfoneiro exibicionista.

Na medida (para Moema Kuyumjian)

A maior conquista do sistema decimal foi o sanduíche de metro.

Faça isso

Abrace-me e me chame de seu gato. E não se desculpe. Deixe que eu decida se isso foi ridículo ou não. Mas antes me chame de novo de seu gato.

Ah, George (para Ana Farrah Baunilha)

Se eu fosse o George Clooney, não estaria ao relento. Você já teria me levado para a sua casa e me chamaria por um nome tão fofo quanto o do seu cachoreo mais querido.

Números

Este blog tem mais textos do que uma mente razoavelmente insana se orgulharia de produzir.

Juízo definitivo

A insatisfação com que me vejo é uma dessas que não admitem prova em contrário.

Resposta

No dia em que finalmente ela disse que sim, ele já não se lembrava do que tinha pedido.

Sequência

Para quem acredita em lógica e em continuidade, boa morte deve ser aquela que ocorre no meio de um cochilo.

Estágios

Apesar dos meus espasmos de ridículo humorismo, eu gostaria de ser considerado um escritor sério. Claro, para isso seria preciso admitir, primeiro, que eu seja um escritor.

Análise psicológica

Sem querer ser cômico, digo que minha vocação para morrer é tanta quanto minha aptidão para viver: nenhuma. Nos dois casos, falta-me força de vontade.

O oposto

Dizem que menosprezo o concretismo. Curioso. Duvido que alguém, nos últimos anos, tenha falado mais dele.

De Ruy Castro, sobre Angela Ro Ro

"Na opinião deste departamento, Angela Ro Ro foi o grande talento de uma turma de boas cantoras surgidas na mesma época, como Simone, Elba Ramalho, Fafá de Belém e Zizi Possi. Se tivesse investido em sua carreira metade da energia que aplicou em sofrer por namoradas, acordar a vizinhança e ser espancada por PMs - tudo isso regado a milhões de birinaites -, Ro Ro estaria há muito no poder. Mas, então, não seria Angela Ro Ro. E aposto que ela não se trocaria pelo sucesso de ninguém."
(De Ela é carioca, Companhia das Letras.)

terça-feira, 29 de agosto de 2017

De Will Gompertz, sobre a colagem

"Você se lembra das precárias criações que fazíamos nas aulas de arte na escola? Aquelas em que recortávamos coisas de revistas e jornais e as colávamos num pedaço de cartolina? Parecia tão óbvio, tão fácil, tão infantil. Mas antes de Braque e Picasso ninguém, absolutamente ninguém, tinha pensado nisso como um forma de arte. Sim, as pessoas já tinham feito recortes e os prendido em alguma outra coisa - coleções de lembranças num livro de recortes, por exemplo. Os antigos chegavam até a decorar suas pinturas com joias, e Degas enrolou um pedaço de musselina e seda no corpo de sua escultura Bailarina de 14 anos (1880-81). Mas a ideia de que materiais corriqueiros e ordinários podiam ser usados no altar sagrado do cavalete do artista era totalmente nova."
(Do livro Isso é arte?, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, publicado pela Zahar.)

Futuro artístico

Creio que eu estaria mais próximo da arte se parasse imediatamente de escrever e me pendurasse como um leitão num açougue pelo qual costume passar um desses meninos ou uma dessas garotas que tiram fotos de segunda a sexta e as expõem no sábado e no domingo.

Datas

Em 29 de agosto de 2017 ele vê o Nobel mais distante do que em 20 de dezembro de 1957, quando começou a ambicionar o prêmio e o fixou como meta depois de ganhar um concurso de contos da associação de moradores do bairro de Vila Nova Cachoeirinha.

A causa real

Como você se sentiu quando lhe disseram que suas lágrimas só eram aceitas, quando eram, mais por educação que por compaixão?

Confissão

Sou ambicioso e persistente. Desde a infância, venho tentando convencer-me de que a minha é a mais preciosa de todas as tristezas.

História (para Inês Pedrosa)

O menino Jorge Luis Borges esperou a vida inteira pela visita de Papai Nobel.

Tal pai

Este blog está para completar oito anos. O que posso dizer dele? Que pai falará mal de seu filho? Ele talvez não me represente, mas não me nega. É ingênuo como eu. Ingênuo é, obviamente, um eufemismo. O que ele é, mesmo, é - Deus me perdoe - um tonto, um sonso, um idiota.

Deturpação

A mosca pousa na tela
e a natureza-morta
não é mais aquela.

Honra ao mérito

Foram os concretistas os que primeiro tentaram a quadratura do círculo.

Lançamento

O concretista espatifou a garrafa de champanhe no poema e ordenou: "Fala!"

Afronta

O concretista indignou-se quando um leitor lhe perguntou se usava materiais de primeira.

Do livro "Isso é arte?", de Will Gompertz

Roger Fry, sobre o pós-impressionismo:
"É a descoberta da linguagem visual da imaginação."

Camille Pissarro, sobre Vincent Van Gogh:
"Muitas vezes eu disse que esse homem iria ou enlouquecer ou nos ultrapassar. Não pensei que faria as duas coisas."

(Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, publicado pela Zahar.)

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Trumpiana (para Rose Marinho Prado)

Um concretista não faz muito. Dois fazem pouco. Três podem fazer um muro.

Falha inicial

Se Deus tivesse tido um assessor parnasiano, o mundo não estaria precisando de tantos retoques.

Noturno

Esta noite o poeta concretista teve um sonho romântico: transportava a amada num carrinho de pedreiro, num estrelado canteiro de obras.

Datação

As flores de plástico foram introduzidas na literatura pelos poetas concretistas.

Proporção

Diz que Deus é responsável por 60% do valor daquilo que escreve, quando se trata de prosa. Quando é poesia, atribui à inspiração divina 40%. Se lhe perguntam a razão dessa diferença, explica: "Ele não está se adaptando muito bem ao modernismo."

Porcentagem

Dos dez escritores aos quais se fez a pergunta, três disseram que não matariam a mãe para ganhar o Nobel e um pediu um tempo para pensar.

Inocuidade

Toda poesia hoje
para mim seria
como a pulseira santificada
que a avó mandou
e por ação inadequada
ou omissão do correio
chagou só a tempo
de ser usada
pela neta doente
dentro do caixão.

O único

Nas novelas policiais ninguém, a não ser o mordomo, se sente muito seguro.

Desejo oculto

Quer ser um desses defuntos que param o trânsito como os semáforos enguiçados e as inundações.

Possibilidades

Alguns defuntos se impressionariam com o necrológio publicado no dia seguinte pelos jornais, se não estivessem mortos e soubessem ler.

Página virada

O melhor de ganhar o Nobel é não precisar mais cobiçá-lo.

Prêmio

Para dizer a verdade, o Nobel nos importa tanto quanto o Jabuti: muito.

Tanto melhor

Os mais perfeitos imitadores de Fernando Pessoa são os que nem chegam a tentar.

Ofício

Teoricamente, cada um de nós faz o que Machado de Assis fazia.

Sem remédio

Sou muito burro e estou velho demais para procurar essas pessoas que ensinam outras a escrever.

O caminho

Se você for um frango com pretensões artísticas, vá aconselhar-se com um poeta condoreiro.

Obviedade

Mencionar a solidez dos poemas concretos é uma coisa que nem os críticos mais novatos fazem.

Traços

Os poetas concretistas são (quase todos) engenheiros inacabados e o Lego foi (para alguns ainda é) o brinquedo predileto.

Semelhança

Há escritores que mais parecem cabeleireiros: vivem penteando o texto.

Ainda

Talvez eu ainda tenha algo a dar: os gemidos da hora final, quem sabe mais convincentes do que todos os anteriores, livres da retórica que acreditei ser a essência da literatura.

Início de "A festa do bode", de Mario Vargas Llosa

"Urania. Seus pais não lhe haviam feito nenhum favor. Seu nome dava ideia de um planeta., um mineral, de tudo, menos da mulher alta e magra, traços finos, pele brilhante e grandes olhos escuros, tristonhos, que o espelho refletia. Urania!"
(Tradução de Wladir Dupont, Editora Mandarim.)

domingo, 27 de agosto de 2017

Soneto do fruto tantas vezes negado (versão final)

Hoje afinal compreendemos
Que jamais termos provado
O gosto do amor negado
É uma vantagem que temos.

Agora ciência detemos
De que o fruto desejado
Tinha sido mordiscado
Por quantos não saberemos.

Louvemos quem nos magoou
Quando beijos recusou
À fome de nossos lábios.

Quem nos diz que apreciaríamos
O gosto, que sentiríamos,
De Ândersons, Ivos e Fábios?

Hoje na revista Rubem,

falo de farelos e similares.
https://rubem.wordpress.com/2017/08/27/sobre-uma-porcao-de-coisas-raul-drewnick-2/

Costume

Com a internet, todos nós nos vimos obrigados a ter uma opinião formada. Ou deformada.

O instrumento

Deixa dormir teu violino. Que ele esteja pronto para os dias de tristeza. Para a alegria - esse camponês embriagado pelo mais barato dos vinhos -, serve esse tambor persistente, encantado com seu som: tum, tum, tum.

Relatos (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Não poucas rainhas, algumas insuperavelmente belas, traíram seus reis para se entregar a poetas - segundo os próprios poetas.

Opinião

Alguns críticos, talvez com certa ironia, comparam a fase inicial do concretismo às manifestações artísticas da Idade da Pedra Lascada.

Cronica forense

Em mais de um caso, peritos criminais classificaram poemas concretos como objetos perfurocortantes.

O toque (para Rose Marinho Prado)

Creio que, se tocada, a pedra fundamental do concretismo possa provocar algo mais que coceira na mão de quem tem a ventura de tocá-la. Mas não é uma crença muito forte.

Velho Will (para Henrique Fendrich)

Tenho algum conhecimento de literatura - o suficiente para saber que só me aproximarei de Shakespeare em momentos como este, em que o procuro na estante.

Dissipação

Que Deus me salve:
na minha última bebedeira
tomei rum com uma caveira
que parecia Castro Alves.

Empenho

Para ser um poeta romântico
fiz tudo que pude:
melhorei as rimas
e píorei a saúde.

Vende-se

Um poema concretista espetacular
com excelente vista -
de frente para o mar.

Excesso

Num haicai, um adjetivo já é retórica.

Estocolmo (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)

No sonho, ele estava recebendo o Nobel. Um senhor corado, aparentemente sueco, enaltecera a excelência de sua poesia, sublinhara a circunstância de que era o primeiro brasileiro a conquistar o prêmio e, dirigindo-se diretamente a ele, o parabenizou, sob uma explosão de palmas. Foi nesse momento que ele acordou, confuso, sentindo-se como se pudesse levitar. Tinha sido chamado de Paulo Coelho.

Tête à tête

Quando estou comigo, às vezes reconheço, a contragosto, que nunca mereci nem metade de tudo aquilo que, por achar-me credor, eu exigi dos outros.

Danuza Leão, vista por Ruy Castro

"Uma mulher para todas as estações. Um gênero em si. Uma lenda. A independência em pessoa. A verdadeira musa de Ipanema. Uma mulher sempre à frente de seu tempo."
(De Ela é carioca, Companhia das Letras.)

sábado, 26 de agosto de 2017

Afinco (para Rose Marinho Prado)

Tijolinho a tijolinho
construíram haroldo e augusto
seu castelinho.

Prodígio (para Mariana Ianelli)

Um toque de João Cabral, e a pedra se reconhecia capaz de poesia.

Oráculo (para Silvana Guimarães)

Rejeitareis a poesia -
e a poesia morrerá.
Conquistareis a verdade -
e a verdade vos entediará.

Astenia

Que tipo de poesia se pode esperar quando ela é prometida pelos lábios murchos de um velho? Que música há de oferecer a ameixeira se os passarinhos a desertarem e não a tocar a brisa?

Consciência

Sentado no sofá com o gato, ao velho ocorre um desses pensamentos que só a maturidade traz: dos três, o menos importante é ele.

Coerência

Considerava-se tão inferior que só não se matava por temer que achassem seu suicídio um ato de extrema presunção.

Valor

Tenho tão baixa estima por mim que, se me chamarem de medíocre, tomarei isso como elogio.

Inaptidão

Era um parnasiano bisonho, indigno de alimentar, ainda que por um dia só, as pombas de Raimundo Correia.

Limite

Um homem não deve ser jamais tão idiota que cheguem a pensar na hipótese de ele ser poeta.

Diferença

Antigamente, todos os poetas, pelo menos nas entrevistas, diziam ser movidos pelo ideal. E alguns falavam com sinceridade.

Musa

O concretista prometeu à amada um poema com três quartos e piscina.

Talento

Convenhamos: ninguém fez maquetes melhores que as dos concretistas.

De Ruy Castro, sobre Arnaldo Jabor

"Diante da câmera, Jabor não se envergonha de misturar Marx, Freud e Chacrinha para exercer sua histórica impaciência para com o que considera burrice da esquerda, da direita e do centro."
(De Ela é carioca, Companhia das Letras.)

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Os nomes (para Rose Marinho Prado)

augustos haroldos
sólidos artistas
concretos tribalistas
à emoção imunes
arnaldos antunes
sujeitos objetos
assassinos do lirismo
e do romantismo
todos confessos
todos impunes.

... e em bom som (para Rose Marinho Prado)

Com presunção e calma
o concretista declarou:
não tenho esse negócio de alma.

Fim (para Raul Drewnick)

Triste o espetáculo dos poetas velhos que, metidos a declamar, transformam rosas em perdigotos.

Para que (p/ Rose Marinho Prado)

Para que não me caiam mais rosas murchas dos lábios quando falo de poesia.

Questão de gosto

Que meus despojos sejam removidos, de preferência, por uma mulher.

Uma lembrança do "Estadão"

No portal conto hoje três histórias e falo de Décio de Almeida Prado.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/dr-decio-em-tres-atos/

3x4

Fecho-me em mim.
Para os outros sou pleno morto
Ou quase todo, assim.

Solidez

As bases do concretismo
não são emoção nem sentimento.
São cálculos, planilhas, projeções,
areia, tijolos e cimento.

Frase de Lucio Cardoso

"Não sou um escritor, sou uma atmosfera."
(Do livro Ela é carioca, de Ruy Castro, publicado pela Companhia das Letras.)

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Pressentimento

Ela faz entrar o homem e o beija. O gato põe-se a rasgar preventivamente o sofá.

Lição (para Paula Giannini e Veronica Stigger)

Para ser acolhido, o menino aprendeu: em vez de tocar as campainhas, arranha as portas e late.

Passarinhões (para Silvia Galant François)

Alguns passarinhos cantavam ao ver Mario Quintana. Outros, os estragados pelo romantismo, gorjeavam presunçosamente.

Aleluia

Que bênção eu não ter tido um gato, na época em que você chegou e foi matando um a um meus sonhos, e depois, uma a uma, até minhas mais prosaicas realidades.

Quem?

Quem dirá a um respeitável senhor que respeitável senhor é só um lugar-comum?

Registro estatístico (para Rose Marinho Prado)

Mais que os demais,
os poemas concretos sofrem
a fadiga dos materiais.

Quando

Que sejam as mãos, os olhos, os lábios. Haverá sempre algum motivo para lançar-lhes culpa. Que não seja seu coração - cujo único pecado talvez tenha sido o da ingenuidade - o primeiro a exalar o odor da morte, quando ela vier fazer sua inevitável visita.

Sonhos (para Ana Farrah Baunilha)

Tenho alma de órfão, de cachorro abandonado. Sonho com lareiras, seios fartos, tigelas transbordantes de comida.

Clandestinidade (para Shirley Souza)

Quando me aproximei, as duas orientadoras pedagógicas baixaram ainda mais a voz. Falavam do Marquês de Sade e de Monteiro Lobato.

Curriculum vitae

Sempre fui lacaio. Tenho isso no sangue, é minha nobreza. As mulheres sempre me amaram, por meus préstimos e minha delicadeza. Todas, assim que me conheceram, desfizeram-se de seus cachorros.

Autorretrato

Tenho espírito de clown. Tudo que eu quis foi agradar aos outros. Chamaram-me de presunçoso por isso, e a inveja dos rivais me matou.

Procedimento

Pense que seus dedos são os dela. Beije-os com a reverência e o vagar que merecem. Coloque-os no pescoço, e aperte-o. Parece-lhe uma brincadeira? Talvez seja melhor essa metáfora do que toda essa choradeira pseudopoética que você vem usando.

Regulamentação

Monteiro Lobato agora -
assim como álcool, fumo e coito -
só para maiores de dezoito.

A escolher

No âmago do escuro
depois do trigésimo beijo
e do undécimo amplexo
a pergunta:
sexo puro
ou puro sexo?

Para uma adorável matadora

Eu te agradeço por teres
Com suprema perfeição
Mostrado que és tu, e eu não,
O mais mesquinho dos seres.

De Will Gompertz,sobre Marcel Duchamp

"Havia uma outra opinião muito disseminada que Duchamp queria desmascarar como falsa: a de que os artistas são de certo modo uma forma mais elevada da vida humana. Que merecem o status elevado que a sociedade lhes confere por supostamente possuírem inteligência, perspicácia e sabedoria excepcionais. Duchamp considerava isso um disparate. Os artistas se levam e são levados a sério demais."
(De Isso é arte?, tradução de de Maria Luiza X. de A.Borges, editora Zahar.)

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Registro

Depois que os infortúnios amorosos passaram a ser seu tema principal, lamenta que eles não tenham sido tantos.

Cotação do dia

Continuo aquele idiota de ontem - com um pouco mais de experiência.

Origem (para Shirley Souza)

Quer saber a sapeca Emília
De que velha
e bela boneca é filha.

Modo de ler

Com cachimbo ou sem, o leitor deve abrir um livro policial sempre com extrema suspeita.

Pontos de vista (para Rose Marinho Prado)

Os concretistas nunca entenderam as queixas dos românticos contra as mulheres com coração de pedra.

Declínio (para Deonísio da Silva

Já tivemos ideais,
já fomos melhores:
oh tempora, oh mores.

Ufa!

Com esse nome, ainda bem que um verbo defectivo não é conjugado em todos os modos, tempos e pessoas.

Saída honrosa

Se você não sabe gramática, é bom ter alguns truques para esconder essa falha de caráter. Um deles é, depois de receber algum comentário desairoso sobre crase ou outra dessas aberrações, perguntar, com altivez estudada: "Mas isso depois da última reforma, não é?" Hoje ouvi um respeitável senhor usar esse recurso. Funcionou bem, até ele completar: "Digo isso porque houveram muitas ultimamente..."

Poeminha rancoroso

Maligna eva
erva daninha
princesa da treva
ignóbil rainha
a deus agradeço
a graça que não mereço
de teres a mãe que tens
e ela não ser a minha.

De Ruy Castro, sobre Ipanema

"Se os colégios de Ipanema conseguissem reunir em seus aniversários todas as futuras celebridades que eles ajudaram a formar, essas reuniões seriam um who's who da vida moderna brasileira. Mas só os bedéis, as freiras e os professores mais antigos saberiam o que sofreram com aqueles rapazes e moças quando os tiveram como seus alunos."
(De Ela é carioca, Companhia das Letras.)

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Infância (para Shirley Souza)

Quando o Lobato líamos,
nós pecávamos
e não sabíamos.

E no entanto (para Inês Pedrosa)

A ninguém confessaremos,
Mas não temos mais ideais,
E gozamos, e vivemos,
Há cinquenta anos ou mais.

Melhor ir ver

Tirocínio e descortino são coisas que não podemos dizer se temos ou não antes de pegar o dicionário.

Esclarecimento (para Ana Farrah Baunilha)

O que me leva a não aceitar os convites para escrever um livro sobre sexo é estar desprovido, já há algum tempo, do principal instrumento para isso: a memória.

Década de 1960 (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Já uma brisa morna, sexual, eriçava certas peles, porém o mais pecaminoso sonho dos românticos era tocar o mimoso queixinho de Audrey Hepburn.

Amnésia (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)

Um dos mais rápidos efeitos do Nobel de Literatura sobre aqueles que o recebem é a perda de memória: todos dizem, na cerimônia de entrega, que nunca haviam pensado na hipótese.

Querela (para Alfredo Aquino e Jiro Takahashi)

Está sendo atribuída à maledicência parnasiana a frase, divulgada nas redes sociais, segundo a qual não há sequer um poeta concretista, entre os três conhecidos, que não tenha telhado de vidro.

Logística (para Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)

O motorista da gráfica empilha no carro os cem primeiros exemplares da antologia Poemas de pau e pedra, para levá-los à editora. Segue estritamente as instruções para transporte de poesia concreta. Cada um dos livros exibe em letras maiúsculas na embalagem a advertência, que alguém não versado em literatura poderia tomar como título: ESTA PARTE PARA CIMA.

Início de "O condenado", de Graham Greene

"Ainda não fazia três horas que Hale estava em Brighton quando compreendeu que pretendiam assassiná-lo. Com os seus dedos sujos de tinta, as unhas roídas, o jeito nervoso e escarninho, sentia-se logo que ele era um estranho - estranho àquele sol dos primeiros dias de verão, ao vento fresco que vinha do mar, à multidão festiva."
(Tradução de Leonel Vallandro, Editora Globo.)

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Alcova

Que os jovens só se deixem cavalgar pela literatura enquanto essa puta escrota tiver, ou fingir ter, algum truque além de fornicar e relinchar.

Intensidade

A luxúria nunca deve ser morninha, dessas que nos deixa no meio do caminho para o Inferno, batendo os dentes de frio.

Hipótese

Fracasso é uma das palavras que poderiam resumir bem minha vida, se alguém a descrevesse e fosse uma biografia honesta.

Febre

Com os dedos doendo, eu ficava imaginando se ela se mantinha imune a afagos também às sextas-feiras, quando se encontrava com o fazendeiro de mãos peludas.

Presente

Querem fazer-me feliz? Convidem-me para escrever um livro de sacanagem.

Três vezes

Uma noite ele exigiu dela a suprema prova de amor. Na última sequência de beijos, antes de se desfazerem em salgada espuma, disse três vezes, em escala crescente: me chama de Dostoiévski.

2000 e poucos

Como terias tempo para mim? Teu corpo era o mapa de todos os marinheiros.

Luxúria

Tola! Não percebeste que eu, quando gemia, não era pela dor que me infligias com tuas chicotadas, mas pelo que pagarás no Inferno pelo abominável prazer que elas me causavam?

Quem sabe

Talvez a poesia possa te dizer alguma coisa, se não estiver ocupada com aquela chatíssima história do ser e do não ser.

Escolas

Especialistas em mármore, os parnasianos menosprezam os concretistas, "aqueles talhadores de pedra".

Alçada

O espaço entre versos, nos poemas concretistas, é fixado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas.

Norma de segurança

Uma resolução do Inmetro determinou que poemas concretistas destinados ao publico infantil tenham forma esférica, para evitar o risco representado pelas arestas.

Descoberta (para Rose Marinho Prado)

O erudito Peter Hardstone, professor de literatura da Universidade de Piedras Calientes, Flórida, em alentado estudo considera as tábuas de Moisés o primeiro conjunto de poemas concretistas da história.

A delicadeza de Henri-Frédéric Amiel

"Quanto a mim, não conheço delícia espiritual mais atraente do que ler no fundo de uma alma e ser iniciado em uma vida interior. É a alegria que esperamos no paraíso; por que no-la oferecem tão raramente na terra?"
(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações.)

domingo, 20 de agosto de 2017

Impressão

É exatamente o que parece. Vontade há, embora falte coragem.

Para todos os efeitos

Embora às vezes pareça brincadeira, escrevo seriamente. Ninguém dirá que o enforcado se divertiu com a corda.

Fúria

Destruo-me com a impiedade e a pertinácia com que um jardineiro destrói ervas daninhas.

Qual deles?

Escolha, por favor: sou o mais triste ou o mais mentiroso de todos os homens?

Exagero

Teimamos em nos dar tanta atenção quanto aquela que nos daria Deus, se estivesse preocupado conosco.

Reequacionando (para Vitor Guedes)

É muita presunção julgarmos que estaremos presentes no dia do Juízo Final.

Melhor não

Se um poeta se meter a pensador, correrá o risco de esquecer o pouco que sabe sobre flores e sobre o amor

Efeitos

Sempre que me proclamei honesto, sugeriram-me que deixasse de ser tolo ou parasse de ser jactancioso.

Redes sociais

Até para descrermos de nós precisamos da permissão alheia.

Hesitação

Ainda não te odeias o bastante? O que esperas para escolher o viaduto?

Leitmotiv

Se descartar a autocomiseração, sobre o que você escreverá?

Sobre lágrimas

Quem diz que chorar em causa própria é desonroso choraria por nós?

Dúvida

Enquanto houver alguém que se condoa de você, poderá você declarar-se livre do pecado da impostura?

Renúncia

Só não desisto de tudo agora porque há muito já desisti. Nesse tudo se inclui naturalmente a literatura, com sua calcinha sempre cheirando a sêmen de marinheiro.

Desvio de rumo

Talvez me escutassem, se em vez de ter-me como alvo eu me dedicasse a destruir alguém conhecido.

Se e se

Se nos censuram por falarmos de nossos defeitos, em que poste nos pendurariam se desatássemos a louvar nossos feitos?

Escolha

Usaremos nossa voz
para enaltecer os outros
ou para condoer-nos de nós?

Projeto

O poeta foi, em mim, uma tentativa de resgatar o homem.

Cotação do dia

Tudo sob controle: cérebro e coração, corpo e alma empenhados no projeto de autodestruição.

Descrédito

Se em busca de caridade eu fosse expor minhas pernas no Viaduto do Chá, perguntariam qual a tinta usada por mim para pintar as chagas, assim como duvidaram da autenticidade da voz com que um dia cantei o amor.

Ah, por quê?

Por que vocês, meus amigos, não me disseram como eu era tosco e como era digno de zombaria tudo que chamei de ideal? Vocês me enganaram. Posso ouvir agora as gargalhadas que vocês davam assim que me viam longe.

Como todos

Diante de mais este domingo, uma certeza: há muito tempo não mereço nenhum.

Trajetória

Venho sendo ridículo há tanto tempo que ser ridículo é já uma espécie de merecimento.

Autolimpeza

Para o caso de nossos semelhantes não estarem tão atentos quanto antes, fustiguemo-nos nós mesmos, como bem merecemos. Não invoquemos a velhice como justificativa para a nossa absolvição.

Cursinho

Saberei morrer
quando meu dia chegar.
Minhas sonecas
são cada vez mais estudadas,
mais longas e esmeradas.
Passarei no vestibular.

Embuste

O pessimismo e a ironia são defeitos que os artistas velhos querem impingir aos jovens como se fossem frutos de sua experiência e sabedoria.

Na medida exata (para Rose Marinho Prado)

Dizer que somos escritores é essencial para que os leitores se convençam. Devemos dizer que somos e repetir sempre que somos, tomando cuidado para não nos influenciarmos em demasia. Quem cai no próprio truque é o quê? Hábil ou tolo?

Antimarketing

Um dos verbos mais antipáticos e malsoantes - independentemente do prazer que possam sentir os que o conjugarem - é amasiar-se.

Questão de etapas

Você já compreendeu que o mundo não gira em torno de você. O passo seguinte é resignar-se. Você o tem adiado. Vem dando certo.

Na mesma

Daqui a mil anos, ter sido Dostoiévski e não Drewnick quem escreveu Crime e castigo pode ser considerado um equívoco ou um erro de revisão.

Confraria

Se Shakespeare estivesse vivo hoje, morreria amanhã, com as pragas que lhe rogaríamos, os imortais da ABL e nós.

Despiciendo

Morrer é um hábito que não faria falta se tivesse sido erradicado.

Ao menos (para Inês Pedrosa)

Permitam-nos ter alguma vaidade com a literatura aqueles que censurariam cada centavo que viéssemos a ganhar com ela.

Uma fatiazinha de Roberto Bolaño

"Esta é a minha última transmissão a partir do planeta dos monstros. Não mergulharei nunca mais no mar de merda da literatura. De agora em diante, escreverei meus poemas com humildade e trabalharei para não morrer de fome e não tentarei publicar nada."
(De Estrela distante, tradução de Bernardo Ajzenberg, Companhia das Letras.)

sábado, 19 de agosto de 2017

Em tempo (para o Jorge Cláudio Ribeiro)

Agradeço ao Jorge Cláudio Ribeiro, por ter acreditado que eu fosse escritor. Naquela época é possível que eu fosse.

Relicário

Na gaveta favorita, com puxador de ouro, guarda o parnasiano o dicionário de rimas, seu maior tesouro.

Emulação

Hoje uma lagartixa
no meu banheiro matei.
Salve, mestre Hemingway.

Visão moderna

São importantes as rimas. Quanto menos, melhor.

Honra ao mérito

O frio no peito
será a nossa
última condecoração.

Cobrança

Casta na adolescência, hoje trintona, Luana vive de entreter homens na cama. Certas madrugadas, o vento sacode as janelas de sua casa, e ela é assombrada pelo fantasma de Hélio, primo que morreu virgem. Ele pula em cima dela e exige: "Me dá, Luana, me dá, me dá!"

Procedência

Fantasmas legítimos, só os ingleses, aqueles antigos, de cachimbo.

Missão

Quando legitimamente arregimentado
um defunto nunca
deve fazer-se de rogado.

Três vezes

Diremos literatura, repetiremos literatura, juraremos literatura. Gargalharão uma duas, três vezes: "Cada um se mata como quer."

Assim como quando

Em 2020, possivelmente antes, ninguém falará de mim. Exatamente como em 1937 ou 1854.

Veneno

Aprendemos como são falsos os elogios assim que passamos a depender deles.

"Um pátio", de Jorge Luis Borges

"Com  a tarde
cansaram as duas ou três cores do pátio.
Esta noite, a lua, o claro círculo,
não domina seu espaço.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é o declive
pelo qual se derrama o céu na casa.
Serena,
a eternidade espera na encruzilhada de estrelas.
Grato é viver na amizade escura
de um saguão, de uma parreira e de uma cisterna."
(Tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schawartz, Fervor de Buenos Aires, Editora Globo.)

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Da série "Confissões finais", para Paula Giannini e Veronica Stigger

Escrevo cada vez mais. Tenho cada vez mais pressa. Mal a caneta põe um ponto final no texto, tenho o impulso de passá-lo adiante. Quanto pior escrevo, maior atenção quero dos leitores. Sou, não há como negar, um homem que pede perdão por escrever mal - e pede perdão por escrito, na mais lastimável forma possível.

Elogio fúnebre

No máximo, dirão que eu escrevia bem, ou que eu não escrevia mal.

Vade retro

Se um sonetista for procurá-lo, diga-lhe que você leu Camões, e veja em quantos segundos ele percorre cem metros.

Desproporção

Não há chave de ouro que redima um soneto depois de treze versos enferrujados.

Incompetência

Desafortunado é o teu marido, se és daquelas mulheres que, acolhendo um dia em casa um gato, precisam ir ao google para saber como cuidar dele.

Indícios

Quando chegarmos ao reino que lhes pertence, encontraremos os mortos com facilidade: pelo aroma de rosas ou por outro cheiro qualquer.

Níveis

Mais infeliz que o escritor persistente, só o estoico.

Juízo final

Haveremos de ser absolvidos, nós que escrevemos tão má literatura. E os editores também, por nos terem dissuadido tantas e tantas vezes.

História

Não consta que Oscar Niemeyer tenha sido furtado em Brasília quando andou por lá. Mas isso foi há muito tempo.

Primórdios

Na fase inicial, a mais modesta, os concretistas construíam poemas de pau a pique.

Última vez

Rodeado pelos parentes e amigos, enaltecido e chorado, o morto revelava a tranquilidade de quem nunca mais seria visto em tão má companhia.

Característica

Havia em relação aos poetas românticos uma certeza: quando falavam de mulheres e de flores, sempre exageravam.

Opções

Acolha um gato, de preferência. Ou então um cachorro de bigodinho que tenha um latido tão esquisito que mais pareça um miado.

Companhia (para Aden Leonardo, Arlene Colucci e Tuca Kors)

Se for dividir o sofá com um gato, você deve reservar-lhe o melhor lugar, aquele que, quando ele sair por alguns momentos, será imediatamente ocupado pelo sol.

Para Priscylla Mariuszka Moskevitch

Sente que hoje é um dia especial
e saberia até dizer por quê,
se em sua demência senil
18 de agosto não fosse igual
a 31 de fevereiro
a 84 de janeiro
ou a 1º de abril.

Credencial

Quando me ponho a dar conselhos aos jovens, não é como o escritor que sou, mas como aquele que gostaria de ter sido.

De bate-pronto

Que talento para a ubiquidade mostram os editores quando atendem o telefone e, alterando a voz, nos dizem que hoje não foram trabalhar.

Temas

Venho falando de coisas afins: poesia concreta e defuntos.

Traços

É assim, sempre foi: os mártires do amor têm cara de pateta.

Hoje no portal do Estadão

A história de um matuto que dizia ser Jesus.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/jesus-na-biblioteca/

Um poema de Maurice Scève

"Em meio a seu jardim Vênus folgava
Com Amor, sua dulcíssima comida,
A quem notei, enquanto ali brincava,
Ter comigo a figura parecida,
Pois era de estatura reduzida:
Eu bem pequeno; ele pálido, eu transido.
Por que não sou também um deus do amor?
Ah! Eu não tenho flecha e arco tendido
Para piedade à minha amante impor."
(Tradução de Mário Laranjeira, extraído do livro Poetas franceses da Renascença, Martins Fontes.)

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Norma (para a Mô Ribeiro)

Para mantermos nosso afeto aos homens, é melhor não conhecê-los.

Aqui entre nós

Fale francamente: dos mortos que você viu, algum lhe passou uma impressão de grandeza?

Agenda

Editor é aquele tipo que estaria disposto a atender o rapazinho metido a Rimbaud, se não fosse hora do cafezinho.

Velharia

Acredito não haver hoje uma mulher que se sinta lisonjeada com o título de musa.

Estoques limitados

De que temas falarei, quando não tiver nada mais a dizer sobre a poesia concreta e os defuntos?

Às pressas

Era um rosto sofrido, angustiado, típico daqueles que não tiveram tempo de encontrar a pose certa para morrer.

Passo inicial

Quem confiará na nossa isenção, se não começarmos dizendo que temos nojo de nós?

Guardados

O defunto deixou uma dúzia não exata de parentes, uma amante ignorada, um livro inconcluso, um sobradinho no Ipiranga, um carro tão velho que nenhum filho viria a disputar e um revólver, que se ele tivesse querido matar-se, não dispararia.

Vistoria (para Rose Marinho Prado)

Um mês depois da inauguração, o poema concreto já apresentava rachaduras e falhas de iluminação, além do horrível cheiro nos mictórios.

A presunção que há em quem diz que só quer exprimir sua alma.

Em família

Uma tia velha deixou no rosto do morto uma boca de batom.

Impressão

Por que os mortos parecem sempre estar usando paletó alheio?

Perda

"Até hoje eu não entendo, filha. Você fotografa tudo, mas o seu pai... Ah, como ele estava especial, com aquelas flores no peito."

Sobre FSF (para o Millôr)

Francis Scott Fitzgerald era o verdadeiro nome do grande Gatsby.

Santo de casa

Literariamente
o Marquês de Maricá
nunca saiu de lá.

Nobeliano

Os gênios que conheci
e sonhavam com Estocolmo
não passaram do Tucuruvi.

Início de "Os belos e os malditos", de Scott Fitzgerald

"Em 1913, quando Anthony Patch chegou aos 25, dois anos já se haviam passado desde que a ironia, o Espírito Santo da época, descera, pelo menos teoricamente, sobre ele. A ironia foi o brilho final do sapato, a última escovadela na roupa, uma espécie de "Pronto!" intelectual - mas, no início desta história, ele ainda não havia ido além da fase consciente."
(Tradução de Waltensir Dutra, Distribuidora Record.)

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Aos jovens escritores

Não cometam o pecado da perfeição. Se não houver nada que desqualifique seus textos, arranjem alguma coisa, pequena ou grande, que possa ser apontada como indesculpável. Os leitores são condescendentes, mas os escritores, esses seus amáveis colegas, só admitem a perfeição em si mesmos e nos deuses.

Diferença

Como mudaria a opinião sobre alguns defuntos, se eles pudessem abrir seus olhos azuis.

Precaução

Se bem que seja reduzidíssimo o número de casos registrados, convém manter sob atenção os mortos, nos velórios. Não se recomenda deixá-los sozinhos com suas reflexões. Eles podem mudar de ideia.

A maquiadora

"Se eu encontro um defunto desses na rua, carrego pra casa."

Tão

"Tão bonito, tão moço para morrer."
"Deixou duas mulheres e três filhos, fora o que ainda não se sabe."

Acidente

Um escândalo: o morto espirrou e os chumaços de algodão voaram do seu nariz.

Circunstâncias

Talvez eu venha a parecer um defunto simpático, se no dia não me atormentar a dor de estômago e fizerem uma boa maquiagem.

Cinco estrelas

O agente funerário gabou amplamente a excelência dos seus serviços. Eram itens e mais itens de extrema qualidade. O cliente, convencido, acertou o plano, antes que o agente tivesse tempo de enaltecer as moscas do velório.

Procedência

Perguntaram à viúva se o defunto era sueco.
"Não", ela respondeu, e acrescentou:
"Todos perguntam isso. Ele é bonito, não é?"

Apedeutas

O mais feliz dos morituros é aquele que não sabe ser um deles.

Pontuais

Defuntos são especialistas em estragar domingos planejados com antecedência de meses.

Símiles

Defuntos raquíticos são boas metáforas para segundas-feiras frias, chuvosas e desesperançadas.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Pureza

Com tantas décadas de pretensa literatura, posso dizer que continuo tão honesto quanto no primeiro dia, e tão incompetente.

Hora errada

Aborrece muito o defunto quem, sem o menor tato, diz que a morte é o mais banal dos acontecimentos.

Aspecto

Talvez por lhe terem aparado as sobrancelhas, o morto parecia bem menos sisudo que habitualmente.

Trivialidade

Como tantas outras coisas na vida, morrer é apenas uma questão de tempo. Não são necessárias nem prática nem habilidade.

À-vontade

Parece sempre haver algo de Messalina nos defuntos. Aquela quase desfaçatez com que nos recebem, deitadões, largadões, como se estivessem de calção e havaianas na praia.

Conceito

Os autores clássicos são, teoricamente, os únicos que têm o direito de nos aborrecer.

Inferno (para Inês Pedrosa)

Dos seus sonhos é o mais cruel:
Um dia os suecos o chamam,
Dizem que o estimam, que o amam,
Mas não lhe dão o Nobel.

A quinquagésima primeira

Acreditarem que você é um escritor tem alguns inconvenientes. Um deles são os convites para palestras. Nestas, uma pergunta que sempre se faz é: por que você decidiu ser escritor? Numa justificável tentativa de parecer mais interessante do que é, em cinquenta palestras o escritor dá cinquenta respostas, como se falasse por cinquenta escritores. Na quinquagésima primeira, talvez ele tenha a tentação de dizer simplesmente: decidi ser escritor porque desde a infância sou um mentiroso. Se for um ficcionista, é provável que essa seja considerada a melhor das justificativas - pelo menos até a quinquagésima segunda palestra.

O segredo

Conversa de agentes funerários; "Eu só trabalho com os melhores defuntos da praça."

Aparência

Seria um defunto até bonito, se a Morte não tivesse ido buscá-lo num dos seus piores dias.

"Minha vida inteira", de Jorge Luis Borges

"Aqui outra vez, os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.
Persisti outra vez na aproximação da ventura e na intimidade do sofrimento.
Cruzei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca, de uma hispânica quietude.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Acredito profundamente que isso é tudo e que não verei nem farei coisas novas.
Acredito que minhas jornadas e minhas noites se igualam em pobreza e em riqueza às de Deus e às de todos os homens."
(Tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz, extraído de Obras completas, Editora Globo.)

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Classe

O defunto estava tão bem arrumadinho com suas flores, no centro da sala, que era como se fosse um item da decoração.

Afins (para Ana Farrah Baunilha)

És louca, e eu, louco.
Tu não tens juízo,
E eu, tampouco.

Modelo

Ninguém melhor que um morto para inspirar uma nênia ou um epicédio.

Abaixo da média

Há defuntos tão decepcionantes que num concurso nem os parentes, se compusessem o júri, lhes concederiam menção honrosa.

Reverência

Certos mortos são tão imponentes que deveríamos visitá-los de quepe e prestar-lhes continência.

Vocação

Os homens tímidos e as mulheres modestas costumam ser os melhores defuntos.

Regulamentação

Os textos que tenho escrito deveriam vir com tarja preta na embalagem. Só venho tratando de defuntos.

Trecho de "Estrela distante", de Roberto Bolaño

"Naqueles dias, enquanto os últimos botes salva-vidas da Unidade Popular se afundavam, fui preso. As circunstâncias de minha detenção são banais, se não grotescas, mas o fato de estar ali, e não na rua nem num café ou trancado no meu quarto sem querer sair da cama (e esta era a possibilidade maior), permitiu-me presenciar o primeiro ato poético de Carlos Wieder, embora na ocasião eu ainda não soubesse quem era Carlos Wieder nem qual tinha sido o destino das irmãs Garmendia."
(Tradução de Bernardo Ajzenberg, Companhia das Letras.)

domingo, 13 de agosto de 2017

Hoje, na revista Rubem, eu...

... falo de Kariêninas e de Bovarys (www.rubem.wordspot.com)

Sagacidade

Quando viu que sobre o peito do dono se colocavam, além das flores, objetos amados como a caneta e o bloco em que anotava ideias para os seus contos, o gato escapou pela porta tão felinamente quanto pôde.

Lacuna

Um morto quase nunca tem o tempo necessário para produzir todos os seus efeitos.

A calhar

Alguns mortos ficam tão bem no papel que parecem ter nascido para isso.

Vantagem

Um defunto calvo sempre impõe maior respeito.

Apogeu

Sobre a gravata de defunto, seu gogó estava mais pontudo e obsceno do que nunca.

Sobre o defunto

Com vinte anos ele tinha já essa cara de tio morto.

Ambos (para Silvana Guimarães)

Este é o blog moribundo
de um poeta morituro.
Aspiraram ambos à glória
e são não mais que escória -
reservado um
e destinado o outro
à vala comum
e ao monturo.

Minha Morte

A Morte que me couber talvez seja uma carioca esplêndida como todas, que venha buscar-me aqui em São Paulo num domingo ensolarado como este, me beije escandalosamente no avião, me leve para o seu apartamento em Copacabana, se enfie num maiô, me enfie num calção, me conduza ao mar, entre comigo nele e me diga gentilmente: agora vamos nos afogar.

Vida

O cheiro de pipoca entrou no velório. Por alguns momentos, manteve-se a compostura. Depois, um grupo de pais e filhos começou a sair - os adultos ainda com um ar grave, as crianças sorrindo despudoradamente.

Desempenho

Por limitações inerentes ao seu estado, é comum o defunto, a partir da segunda hora do velório, ir perdendo o protagonismo, até descer à condição de coadjuvante quando começa a inevitável sessão de piadas.

Última imagem (para Inês Pedrosa)

Que estupendo estais.
Ah, se pudésseis ver-vos
Com estes mortos olhos verdes.

Um poema de Guillaume Bouchet

"E Nostradamus e Romburo,
E os vates mais afamados,
Foram todos por ti sondados,
Para saber o teu futuro;
Predisseram que tu estarias
Mais alto que os reis um dia,
E eis que te levam para a forca:
Não disseram mesmo a verdade?
Pois vais tão mais alto ascender
Que ninguém pode pretender."
(Tradução de Mário Laranjeira, do livro Poetas franceses da Renascença, Editora Martins Fontes.)

sábado, 12 de agosto de 2017

Proporção exata

Não posso dar a isto o nome de escombros. Nem sequer de ruínas. São nada mais que restos de algo que julguei ser um ideal e não era mais que um projeto, um plano de alguém que, nascido para ninharias, sonhou o grande sonho da arte.

Irmandade

Gosto dos gorados, dos vencidos, dos frustrados. Ouço seus gemidos e sei que, se não gritam, é para não aumentarem o gozo dos vitoriosos. Gemo também, solidário, e rogo a Deus, como sei que eles estão rogando, que faça apodrecer o coração dos que nos impõem nossa desgraça.

Empáfia

Eu precisaria ter um ego detestável para crer que possa um dia haver sido a razão de viver de minha mãe.

Ciclos

Antigos hábitos, como o amor romântico, ressurgem periodicamente e perduram pelo tempo necessário para os jovens saberem que as ridicularias não são exclusivas de uma época.

Convicção

Se a morte fosse uma questão de mérito, eu seria imortal.

Tradição

"Olha como ele está bem. A nossa sempre foi uma família de mortos bonitos."

Despedida

Apertando a bochecha do defunto calvo e de bigodinho, a mãe lhe diz: "Adeus, Vladimir."

Quase vivo

O morto estava com tão bom aspecto que só lhe faltava um cigarro entre os dedos para parecer tão vivo quanto estivera na véspera.

Isenção

Não nos empenhemos em ver defeitos nos defuntos. Um dia estaremos como eles, deitados e incapazes de nos defender de tudo: da língua venenosa dos homens e dos desrespeitosos voos e pousos das moscas de velório.

Detalhe

Uma das filhas, a modista, resumiu o que achou do pai: "O defunto mais desmazelado que eu já vi. Mãe, foi você que escolheu o terno? Horroroso!"

Pauta (para Edilaine Lopes e Inês Pedrosa)

Se formos tratar seriamente do nosso futuro, em algum momento precisaremos falar da morte.

Início de "O legado da família Winshaw", de Jonathan Coe

"A tragédia já havia atingido osWinshaw duas vezes, mas nunca numa escala tão terrível. O primeiro desses incidentes nos leva de volta à noite de 30 de novembro de 1942, quando Godfrey Winshaw, na época com apenas 33 anos, foi abatido pela artilharia antiaérea alemã, ao sobrevoar Berlim para cumprir uma missão altamente secreta. A notícia, que chegou a Winshaw Towers nas primeiras horas da manhã, foi suficiente para fazer a irmã mais velha do falecido, Tabitha, perder totalmente o juízo, estado em que se encontra até o presente momento. Tal foi a violência da alienação que a acometeu, que a consideraram incapaz até mesmo de comparecer ao culto religioso que se realizou para homenagear a memória do irmão."
(Tradução de Celina Cvalcante Falck, Record.)

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Lema

Cartão de agência funerária: servimos bem para servir sempre.

Prova

Alguém contou uma piada tão boa que o defunto precisou se concentrar para não perder o status.

Ascensão social

A filha, hoje rica, sorri ao se lembrar de que, vinte anos atrás, no dia da morte do pai, pagou as flores em duas vezes, no cartão.

Memória

Era um defunto pobre, desses velados em casa, sem nenhum agradinho oferecido aos visitantes além de um cafezinho aguado de garrafa térmica.

Viaduto

Depois de outro salto nulo
Se recompõe o suicida
E nova chance dá à vida
Até o próximo pulo.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

A olho nu

O que se pode dizer é que os colarinhos brancos andam um bocado encardidos.

Mornidão

Horizonte é uma palavra que não provoca nenhum efeito num velho como eu.

Marco

"Pedra é pedra" foi a primeira descoberta dos concretistas. Estamos aguardando as outras.

Quase

Os concretistas quase conseguiram fazer-nos acreditar que os substantivos, sozinhos, dariam conta de toda a linguagem.

Se

A obra mais sólida da literatura seria a concretista, se eles tivessem alguma.

Etiqueta

O que não pode faltar a um morto é a compostura, ou pelo menos certa resignação.

Alvo errado

No velório, ouve-se: "Filho da puta." Os parentes entreolham-se. Quem teria ousado ofender o morto? Felizmente o grito tinha vindo do corredor.

Ordem

Quando o poeta romântico se pôs a tirar estrelas dos bolsos e a atirá-las para cima, o presidente da academia esbravejou, citou um artigo do regimento que falava em exclusão e, com sua marmórea voz parnasiana, resumiu seu desagrado: "Isto aqui não é um circo!"

No velório

Inconveniente é aquele primo que liga às três para avisar à viúva que houve atraso em sua conexão e pede que o sepultamento, marcado para as quatro, se faça só às cinco. Ninguém se lembra muito bem dele, e suportar o defunto por mais uma hora desagrada até à viúva, que pergunta à filha mais velha: "O que você acha?" A filha, em voz baixa, para que o indesejável não a ouça, recomenda: "Fala que não. Diz que o pai já começou a feder."

Lucro

Para o obscuro vivente que sou, qualquer morte, até meia, será uma promoção.

Obviedade

Digam o que disserem
os entendidos, os melhores
foram os tempos idos.

Resumo

Concluo, tardiamente, que escrever livros longos, romanções de oitocentas páginas, teria sido o ideal para mim. Os leitores demorariam mais para descobrir minha incompetência.

Um soneto de Louise Labé

"Beija-me mais, beija-me ainda e beija;
Dá-me um daqueles teus mais saborosos;
Dá-me um daqueles teus mais amorosos,
Dou-te outros quatro em brasa que flameja.

Ah! tu te queixas! Que este mal te seja
Paz ao te dar dez outros deliciosos.
Mesclando nossos beijos mais ditosos
Gozemos um do outro, o amor sobeja.

E vida em dobro cada um terá;
Em si e no amante cada um viverá.
Permite, amor, viver esta loucura:

Sempre estou mal, em discrição vivendo,
E não me posso dar contentamento,
Se de algo fora eu não for à procura."

(Tradução de Mário Laranjeira, do livro Poetas franceses da Renascença, Martins Fontes.)

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Disparate

Ser escritor é uma dessas ideias bovinas que a um homem só costumam ocorrer na mais verde adolescência ou na mais extrema senectude.

Prêmio

Na ponta do nariz de Pinóquio nasceu uma estrela de mentira.

Sabedoria de almanaque

Mesmo um homem de princípios depende dos meios para atingir seus fins.

Respondendo

Perguntam-me por que eu, descrendo tanto do que faço, continuo a escrever. Soará estranho, mas é isto: embora em termos literários eu não tenha aprendido bem a escrever, há coisas que aprendi ainda pior.

Em família

Sou um daqueles escritores que, não obtendo repercussão entre os próprios filhos, têm como vítimas agora os netos.

Especialista

Quem com maior convicção me chamou de cruel conhece o assunto: cultiva a crueldade há tanto tempo e com tanto amor que não há no seu coração espaço para outro sentimento pior, ainda que o próprio Diabo resolvesse instigá-la.

Início de "Os crentes", de Zoë Heller

"Numa festa em um conjugado próximo à Gower Street, uma jovem estava sozinha na janela, os cotovelos grudados no corpo numa tentativa de esconder as flores escuras de suor que brotavam nas cavas do vestido. A previsão fora de trégua na onda de calor que já durava uma semana, mas a chuva prometida não havia chegado. Agora, o ar pesado vibrava com uma claridade inerente e pombos tinham começado a se agrupar nos parapeitos das janelas. Desenhados contra o céu pesado cor de violeta, os topos dos edifícios de Bloomsbury tinham a aparência irreal, unidimensional, de silhuetas fixadas numa colagem."
(Tradução de Léa Viveiros de Castro, Editora Record.)

Campanha

Empenho-me cada vez mais intensamente no esforço para negar qualquer boa opinião que alguém possa ter de mim. O tempo é pouco, mas a tarefa é fácil.

Pingos nos is

Alguém se declarar imbecil nem sempre é coragem. No meu caso, é só uma tardia manifestação de honestidade.

Simples assim

O que sei é que não fui
o que eu queria ter sido.
Me frustrei em tudo
que desejei
e todo espaço que ocupei
nunca foi muito
mas foi sempre indevido.

Agenda

O que se deve fazer
Sem de nada descurar
É não chorar ao sofrer
E morrer sem espernear.

In medio

Sou meio obtuso, meio sonso. Jamais consegui me completar em nada.

Segunda, 7 de agosto

Semana nova,
velhos auspícios:
antigas doenças,
mofadas crenças,
ridículas rimas,
monótonos vícios.

Revisando o perfil

Sobre eu ser poeta, esqueçam. Eu já esqueci. Sobre eu ser uma pessoa, sou do pior tipo: velho, fracassado, desiludido.

Um apelo aos leitores

A maior dificuldade que venho encontrando no trabalho de me mostrar honestamente, de tal forma que ninguém veja em mim senão minha profunda mediocridade, é a boa índole de cinco ou seis leitores que insistem em me atribuir virtudes absurdas. Creiam, por favor: sou só um sujeito que escreve um diário e que, se teve alguma pretensão literária, há muito a perdeu. Concedam ao mau escritor o que ele merece, para que o homem, livre de esperanças artísticas, possa expressar sua pequenez cotidiana.

Inteireza (para a Priscylla e o Pessoa)

Nasci para ser pequeno,
Para ser simples e pouco.
Para ser eu, me apequeno,
Para ser todo, me apouco.

Pelo menos uma

Conheci pelo menos uma pessoa capaz de envenenar um passarinho e deixá-lo como isca no caminho do gato. Ela sabe de quem eu falo. E não se abala, tenho certeza. Continua gorda, próspera, satisfeita, realizada.

Autoajuda

Calma, senhores. Para nós todos, que não o temos, ganhar o Nobel - ou não - é, como tudo mais, uma questão de tempo.

Matéria-prima

Podem ver. Quem diz que sua vida daria um romance nunca é um romancista.

Peculiaridade (para Alfredo Aquino, Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

A autobiografia é um gênero literário tão sério que não deve ser deixada nas mãos de qualquer um.

Carência

Depois que minha mãe morreu, restei  só eu para ter pena de mim.

Lembra?

Fórmula Um era aquele programa que a gente via domingo, no tempo do Senna.

Início de "O tambor", de Günter Grass

"Admito: sou interno de um hospício. Meu enfermeiro está me observando, quase nunca tira os olhos de mim; porque na porta há um postigo e os olhos do meu enfermeiro são desse castanho que não consegue penetrar o azul dos meus."
(Tradução de Lúcio Alves, publicação da Rio Gráfica.)

domingo, 6 de agosto de 2017

Romantismo em dois tempos

A virgem airosa
que no segundo ato
e no primeiro
suspirava como uma rosa
bufa como um marujo
no terceiro.

Motivo

O homem que melhor conheço - eu - é quem menos me faz simpatizar com a humanidade.

Anos antigos

Nas casas que desenhávamos, os meninos do meu tempo e eu púnhamos sempre uma chaminé. Não havia sido descoberto ainda o meio ambiente e as flores do jardinzinho da frente não se queixavam da fumaça.

Cautela

Porque os escritores são mestres na dissimulação, convém termos em relação a eles procedimento igual ao que adotamos com os padeiros: melhor não saber como produzem seus textos.

Autodefesa

Para não ser assediada pelos medíocres fazedores de acrósticos, ela dizia chamar-se Prewoszkaya.

Registro

Como tantas outras atividades, a poesia parece ter sido durante muito tempo ocupação de gente honesta.

Início de "A morte de Artemio Cruz", de Carlos Fuentes

"Desperto... Desperta-me o contato desse objeto frio com o membro. Não sabia que, às vezes, pode-se urinar involuntariamente. Permaneço com os olhos fechados. Não escuto as vozes mais próximas. Se abrir os olhos, poderei escutá-las? ...  Mas as pálpebras pesam-me: dois chumbos; cobre na língua, martelos no ouvido, algo... algo como prata oxidada na respiração. Tudo isto metálico. Outra vez mineral. Urino sem saber. Talvez - estive inconsciente, lembro com um sobressalto -, durante essa horas, tenha comido sem saber."
(Tradução de Geraldo Galvão Ferraz, edição do Círculo do Livro.)

sábado, 5 de agosto de 2017

Aforismos (para Carlos Castelo)

Aforismos são aqueles ditos que sempre parecem dizer mais do que dizem.

Mesmo assim

Já acreditei que a literatura fosse minha missão. Hoje não mais. Mesmo assim, eu a desempenho diariamente.

Legitimação

Já deveria estar regularizada a situação do "n" na palavra "muinto". Há tantos anos, já, ele e ela se relacionam clandestinamente.

Saúde

Saúde é aquele assunto de que tratamos sempre em primeiro lugar, depois dos outros.

Não mais que corriqueiras

É impressionante como as melhores frases, as mais famosas, parecem simples à segunda leitura e óbvias à terceira.

Temeridade

Damos a certas palavras tão indevido valor que é comum sermos por elas devorados. Amor, por exemplo.

Punição

Toda vez que falassem de amor, e houvesse nisso luxúria, os velhos deveriam desmanchar-se exemplarmente  nas suas grotescas e desonestas chamas.

Início de "Absalão, Absalão!", de William Faulkner

"Das duas horas até quase o cair da longa tarde quente, imóvel e pesada de setembro, eles permaneceram naquilo que a Srta. Coldfield ainda chamava de escritório, pois seu pai assim costumava chamar o aposento - uma sala sombria e abafada, com as venezianas completamente cerradas há quarenta e três verões (porque, quando ela era criança, acreditava-se que a luz e o ar corrente trouxessem calor e que o escuro fosse sempre mais fresco) e que, na medida em que o sol brilhava cada vez mais forte naquele lado da casa, se reticulou de vergões amarelos com manchas de poeira que Quentin imaginava serem formações da antiga pintura ressequida que o vento poderia ter trazido das venezianas esfoliadas."
(Tradução de Sônia Régis, Editora Nova Fronteira.)

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Norma

Os lacaios do amor
não devem submeter-se senão
ao chicote do seu senhor.

Escolha

Meus pais me ensinaram a ser honestos. Não sei se hoje eu aceitaria.

Prestação de contas

Chegou o momento
de você reconhecer
que poesia não é
o seu departamento.

História de passarinho

Hoje no portal do Estadão publico uma.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/historia-de-passarinho/

Gratidão

O primeiro morto o agente funerário nunca esquece.

Último recurso

Os leitores andam tão escassos e renitentes que talvez a única maneira de atraí-los seja um longo, agudo e lancinante grito de socorro.

Início do conto "O presente dos magos", de O. Henry

"Um dólar e oitenta e sete centavos. Era tudo. E sessenta centavos eram em moedas. Moedas economizadas uma a uma, pechinchando com o dono do armazém, o dono da quitanda, o açougueiro, até o rosto arder à muda acusação de parcimônia que tais pechinchas implicavam. Três vezes Della contou o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete centavos. E no dia seguinte seria Natal."
(Tradução de Alzira Machado Kawall e José Paulo Paes, Edições de Ouro.)

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Bom momento

Estava à vontade, bem se via.
Se mortos sorrissem,
Ele sorriria.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Avaliação

De todas as arrogâncias que assumi, escrever foi a que menos deu certo.

Falta de previsão

Se soubesse que seria tão elogiado no velório, teria morrido antes.

Método

Ser a persistência for uma virtude, posso dizer que fracassei meritoriamente.

Integridade

Não tenho complacência.
Abomino toda luxúria,
Principalmente a alheia.

Nevermore

Juventude foi o tempo
em que pude fazer tudo
que depois não pude.

Protótipo

Ainda há rapazolas que acham que a Poesia é uma ricaça disposta a gastar a fortuna para lhes construir uma reputação literária.

Início de "Pra cima com a viga, moçada!", de J.D. Salinger

"Uma noite, há uns vinte anos, durante um surto de caxumba em nossa numerosa família, minha irmã caçula, Franny, foi levada com berço e tudo para o quarto supostamente não contaminado que eu dividia com meu irmão mais velho, Seymour."
(Tradução de Alberto Alexandre Martins, Editora Brasiliense.)

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Definição

Democracia nada mais é que um jantar depois de outros.

Consciência tardia

Peço perdão a vocês pelas vezes todas em que tentei dar a impressão de ser escritor ou coisa parecida. Sei hoje que sempre estive longe - e agora nais do que nunca - de ser um.

Alfarrábio

A rosa murcha
marca a página 20
e a seguinte.

Façanhas do ego

O sol nasce e a chuva chove
Segundo a nossa vontade.
Ora a vaidade nos move,
Ora nos move a vaidade.

Teste

O garoto mostrou a língua para o tio. Aguardou um instante. Mostrou de novo. O tio continuou calado. O garoto soube então que estar morto era estar cego.

Veto

Um morto jamais deve dar a impressão de que a qualquer momento pode cansar-se e mudar de opinião.

De Henri-Frédéric Amiel, sobre a arte

"A verdadeira utilidade a tirar de uma obra seria começar por ela uma outra, para aproveitar imediatamente inumeráveis apreciações que revela a prática da arte."
(Tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações.)