Que mesmo sendo
uma burrice
uma tolice
uma asneira
ou por ser isso mesmo
essa burrice
essa tolice
essa asneira
o amor seja
o que você
queira ou não
queira.
Que mesmo sendo
uma burrice
uma tolice
uma asneira
ou por ser isso mesmo
essa burrice
essa tolice
essa asneira
o amor seja
o que você
queira ou não
queira.
Minha vida é um barco
que navega mal
sempre à deriva
ao sabor de um advérbio
ou de uma locução adverbial.
Quando decidiu aderir ao concretismo, o poeta parnasiano pôs è venda um cisne com pouco uso e em bom estado de conservação
Como posso ser poeta assim, se o amor já nem me cumprimenta e a tristeza não faz mais nenhum efeito em mim?
Como os de tantas outras, os heróis de minha geração não salvaram o mundo. Salvaram-se, sabe Deus como, e pode-se vê-los caminhando por aí, com seus cocurutos luzidios e seus ventres clamorosos.
Não tenho forças mais para percursos maiores. Hoje, quando saio de mim, fico sempre nos meus arredores.
Na autobiografia, o parnasiano narra como, no início da carreira, se sentia diminuído na comparação com um poeta mais velho da escola, que tinha em casa um cisne importado da França, enquanto ele não dispunha de dinheiro nem para manter uma galinha caipira.
Quantas juras torpes
e promessas falsas quantas
revelou o tribunal
no processo número tal
a folhas tantas.
Num arroubo poético
o vate concreto
com letras de cimento
e engenhosidade
esculpe a palavra felicidade.
Alguns gostam de poesia e admitem. Outros confessam, se não for possível negar. Eu admito, confesso e, se calhar de ser um dia propício a bravatas, proclamo gostar.
Pergunta do avô, suplente de humorista, ao neto que concluiu a autoescola: "Quando é que você vai me dar a honra de me atropelar?"
Se você se esforçar muito, mas muito mesmo, quantos mil pontos ainda abaixo de Shakespeare vai ficar?
Pensar na vida é o tipo de coisa que você só deve fazer se não tiver um filmezinho para ver ou uma casquinha de ferida para dar uma coçadinha.
Penso que as frases curtas são um direito que conquistei com a minha velhice e o meu cansaço.
Às vezes me pergunto que utilidade tenho. Não venho fazendo mais do que escrever. Escrevo sobre generalidades, sobre superfluidades, sobre abstrações. Sobre o amor, sobre sonhos, sobre aspirações. Quem olhar para minhas mãos, como eu agora, sente que o melhor que pode acontecer ao mundo é não precisar delas.
É um velhote carrancudo, presunçoso e ameaçador como um daqueles provérbios que semeavam ventos para colher tempestades.
É um desses poetas jovens e irresponsáveis que saem por aí gastando seus adjetivos com frivolidades como flores, estrelas e mulheres.
Os chatos antiquados abdicam de todas as tecnologias e fazem questão de nos dar sempre só abraços presenciais.
Chato futebolístico é aquele que, se nosso time cai na tabela, liga para perguntar se ainda torcemos para o Tombense.
Certas vozes, quando dizem bom dia, chamam o sol até para as manhãs mais desgraciosas. São poucas, muito poucas, quase sempre de mulher.
Me digam onde me enquadro,
Em que linhagem de cão,
Em que classificação,
Eu, que não mordo nem ladro.
O meu papel na história se alterou.
Hoje não sou mais quem buscava um porto,
O que chegava sempre, vivo ou morto.
Agora sou o que jamais chegou.
https://rubem.wordpress.com/2023/11/12/minha-tia-e-seu-amado-escritor-raul-drewnick/
No velório, a viúva queixa-se com a filha: pelo menos hoje acho que teu pai não precisava ficar com essa cara de deboche.
Sou um desses homens fadados a conhecer o épico e o extraordinário só por experiências alheias. Incomodam-me os heroísmos e as grandiloquências. Identifico-me com as pequenas epifanias, aqueles acontecimentos cotidianos de que falava Caio Fernando Abreu e que foram a fonte da qual bebia Drummond. Se querem me arrepiar, falem-me de um bonde, por exemplo, ou de um homem chamado José.
É um desses substantivos bem velhos e resignados. Quando entra numa frase, já sabe que no final dela, por mais hábil e rápido que seja, estará carregando nos ombros alguns representantes da detestável categoria dos adjetivos.
Num encontro de poetas parnasianos, um deles, ao lhe perguntarem qual era seu animal preferido, suspirou e disse: "Nada como um cisne." Outro, menos parcimonioso, suspirou duas vezes e exclamou: "Nada como um cisne depois de outros cisnes."
Alguns gostam de poesia, disse Wislawa Szymborska há algumas décadas. Hoje já não seriam tantos.
No sul ou no norte,
No estio ou no mês mais frio,
Espera, que a morte
Virá te buscar, aqui,
Ali, além, acolá.
É de um tempo em que ainda se acreditava em alma, no Diabo e na literatura. Não aproveitou.
No dia em que descobriu que os outros eram melhores, nasceram-lhe na alma dois sentimentos: o da inveja e o da imitação.
Houve uma época em que, sem dúvidas existenciais e com um obstinado apreço ao sol, os poetas construíam sua reputação.
Se é para buscar-me, vou-me,
Se é para fazer-me, esforço-me,
Se é para preencher-me, forço-me,
Se é para inteirar-me, sou-me.
Hoje ainda não
um dia talvez
eu possa dizer
que superei
parkinson meu mestre
na arte da prestidigitação.
Que belos dias são esses,
Que ar puro, que sol ameno.
Desfruta-os com gozo pleno,
Como se por ti brilhassem
E como se os merecesses.
Você está velho e faz o que os velhos fazem. Lastima-se, chora, pergunta quando tudo voltará ao normal. O normal é isso. Lastimar-se, chorar. Os risos de ontem, as canções, as festas foram só sorte de principiante.
E há aquele tipo pleno de masculinidade e gramaticalmente vazio que se define como homem com ó maiúsculo.
A Casimiro de Abreu, na noite em que foi procurá-la, a poesia não deu a fogosa iniciação com que costumava receber jovens poetas. Logo ela notou que o tremor em suas mãos e a febre no seu rosto não eram traços de devassidão, mas sinais de devoção, como os que se veem nos mártires e nos santos.
Mister Parkinson é perfeccionista.
Em tudo quanto tento ser-lhe igual
Me apoia, incita, ordena que eu insista
E ri de mim porque ainda o imito mal.
Na manhã em que pressentiu estar dando os primeiros passos de sua caminhada final, o velho poeta, que desde a juventude exaltara sua tristeza como seu maior tesouro, foi tocado por uma dúvida que lhe oprimiu o peito: não teria sido ela, a tristeza, durante aqueles anos todos, uma expressão de seu orgulho, de sua obsessão de se mostrar melhor que os outros, de furtar para si uma compaixão indevida?
Se ser grande não era meu destino,
por que foi que ninguém me avisou
quando eu ainda era um menino?
Somando tudo que fiz,
Não tenho glória ou virtude.
Não fiz aquilo que quis,
Fiz só aquilo que pude.
https://rubem.wordpress.com/2023/10/01/quando-chegar-o-dia-veras-raul-drewnick/
Certas noites, um erotismo tardio e uma lembrança aflita o conduzem ainda à esquina onde ele, adolescente, contempla assustado o grupo de festivas mulheres, imaginando com qual delas poderá melhor compartilhar seu primeiro pecado carnal.
"Agora posso ler um soneto?", ele pediu, com a boca ainda molhada de beijos e batom. Ela o beijou de novo, deu um suspiro longo, de mulher quase saciada: "Já? Não. Eu quero mais, amor." Ele suspirou também, desalentado.: "Já? Outra vez?" Ela disse: "É, amor, por favor." Resignado, ele se deitou novamente sobre ela: "Mas depois você deixa?" Ela perguntou: "É um só? É? Deixo, deixo, sim, ai, amor, juro que deixo."
Depois de uma vida quase anônima, o poeta recebeu um convite da televisão para uma entrevista. Foi há um mês, e ele lastima ter aceitado. Tantos se condoeram de sua tristeza que hoje ele, enciumado, precisa dividi-la com pessoas que telefonam e mandam mensagens perguntando por ela, desejando melhoras. Algumas, num descaramento próprio dos dias atuais, chegam a propor uma saidinha, um jantarzinho ou um motelzinho na sexta-feira.
O que hoje sei de mim é o que eu não sou.
Escrever não consigo e andar não sei.
Porém se lhe pergunto como estou,
Mister Parkinson diz que melhorei.
É um homem de opinião. Tudo que passa diante dos seus olhos é avaliado, medido, cotado. Vê falhas em tudo, em tudo nota defeitos. Este domingo à tarde, na praia, tão soberbamente começou a se pôr o sol que pouco faltou para ser aplaudido com palmas. Um dos entusiasmados espectadores cutucou o ombro do homem opiniático : viu que maravilha? Ele: estou vendo. Já vi piores.
Ainda há quem acredite na modéstia dos escritores que vivem pedindo desculpas aos leitores, como se tivessem algum?
Tão bem-disposto e corado parecia o defunto setentão que um primo, companheiro de estripulias na mocidade, esteve a ponto de cutucá-lo e censurá-lo pela molecagem e falta de responsabilidade.
Ah, não voltará jamais
O tempo em que eu te chamava
E no ar teu nome deixava
Um doce olor de vogais.
Quando alguém lhe diz que você é um ser humano, pode estar certo de que não tem nada melhor para lhe dizer.
Feliz o escritor estreante que tem seu livro avaliado, em jornal ou revista, por um crítico. Se bem que, na história da literatura, desde o primeiro estreante resenhado, as palavras do crítico sejam sempre as mesmas: vibrante voz de nova geração, fulano de tal (guardem este nome) está destinado a alçar altíssimos voos.
Como soa bem a rosa
quando quem a pronuncia
é também quem
mais suave sabe dizer
orvalho manhã sol e dia.
No parágrafo final, uma vírgula malévola, dessas que separam sujeitos de objetos, tentou impedir o casamento, mas João e Maria disseram sim.
No fim da vida, convém sermos sucintos. Adjetivos e advérbios, mesmo os mais ensolarados, soam sombrios quando ditos por lábios murchos.
https://rubem.wordpress.com/2023/09/03/os-romances-e-os-romancoes-raul-drewnick/
Um dos meninos disse que tinha um gato branquinho; outro, um passarinho. O terceiro, que viria a tornar-se poeta, disse que tinha uma irmãzinha cega.
Como é bom, às vezes, recusar os adornos que a literatura vive nos oferecendo e dizer simplesmente, como Gertrude Stein, que uma rosa é uma rosa.
Não sou representante
de nada nem de ninguém.
Não sou o defensor de uma causa
nem dos que morreram por ela.
Sou só alguém que amou a literatura
como tantos amaram tantas outras coisas
e que não teve por nenhuma outra
o amor que por ela tem.
Pronuncio o nome da literatura com a obstinação de um homem que, havendo sofrido a vida inteira por um amor não retribuído, teme não conseguir revelá-lo na hora final.
Chega um momento em que não é preciso um exame clínico para atestar nosso estado. Um olhar qualquer, até o nosso diante de um espelho, basta para se ver que estamos mortos.
Se aceitarmos a lenda de que os grandes escritores vendem a alma ao Diabo, precisaremos admitir que Shakespeare tinha pelo menos três.
Se Shakespeare vivesse hoje e quisesse ser gentil, a cada três ou quatro passos pela rua cumprimentaria algum de nós: alô, colega, olá, confrade. E precisaria resistir, no trajeto, aos convites de ingresso em associações, grêmios e sindicatos literários, além de recusar, com sua polidez britânica, aos apelos para frequentar, pagando reduzidíssimas mensalidades, cursinhos de roteiro e de redação criativa.
Gramático é aquele privilegiado que num restaurante, entre clientes, cozinheiros, garçons e até o proprietário, sabe se o prato é beringela a milanesa ou berinjela à milanesa.
Pessoa foi mais de cem,
Trezentos Mário de Andrade.
Eu, Nulo, Nemo, Ninguém,
De mim não sou nem metade.
No velório, as suspeitas dos parentes do defunto se confirmaram quando o velhote de monóculo e cavanhaque, depois de lançar olhares sorrateiros a todos, puxou do paletó um papel garatujado e anunciou que faria uma singela homenagem ao ilustríssimo finado. Era mesmo um sonetista.
"A branca madrugada não sabia
que encontraria o teu corpo frio
como o orvalho que caíra
de noite, manso, sobre os olhos.
Estavas já no outro plano
imenso e leve, e breve habitarias
todos os lugares que só tu
e os anjos conhecem intimamente.
O súbito estremecer de uma folhagem,
ao toque ingênuo de uma lebre,
e uma asa que deslizava lenta
sobre os teus olhos, eram tudo
que em teu rosto se movia.
O resto, sem aviso, emudecera longamente.
e
Há de haver um gato na sala, ainda que seja numa foto ou no quadro de um pintor principiante.
Sessenta anos depois, aquele seu colega do tempo da faculdade lhe diz que se cansou de ser milionário e pergunta se é muito difícil a vida de escritor.
Dalton Trevisan e Curitiba são personagens de um dos mais agudos casos de ódio plenamente correspondido.
Deus dos Seus assuntos trata
E a Terra gira indolente
E o Sol surge diariamente
Enquanto a vida nos mata.
Os últimos dias vão
Passando como temíamos.
Não são, e nunca serão,
Dourados como os queríamos.
Que belos dias, os nossos.
Como imponentes se erguiam
Onde depois surgiriam
Estes funestos destroços.
Que interesse podemos inspirar,
Para quê alguém há de nos ouvir,
Se não fazemos mais que respirar,
Se vivemos tão só por existir?
Uns lutam, outros batalham.
São os que buscam a glória,
São os que fazem história.
Eu sou daqueles que falham.
Não há beleza mais negligente e casual que a de um gato cochilando escarrapachado no sofá.
De sua fase romântica o poeta conservou a predileção pelos substantivos abstratos, uma tossezinha que, já não alarmando ninguém, se tornou uma espécie de ornamento vocal e uns suspiros que, por sua idade atual, os amigos confundem com dificuldades de respiração.
À prendada espécie dos poetas antigos cabiam as estafantes tarefas de contar sílabas e rimar.
Não se sabe com exatidão qual foi a data em que os conspiradores modernistas souberam que era hora de agir. Uma das hipóteses sugere que a gota que fez entornar tudo foi aquela derramada por Júlio Salusse no lago, ao conseguir rimar cisne com tisne.
Para os poetas românticos, era fácil jurar amor pela vida inteira. Nenhum deles chegava a passar dos trinta.
Para ser digno da poesia
eu me tornei triste
e escarneci de quem cantava
e zombei de quem ria
Fechei-me para o mundo
isolei-me em minha masmorra
e sem cantos nem alegrias
vou vivendo meus dias
até que a exigência da rima me mate
ou pela tristeza da vida eu morra.
Quando Deus vier te buscar,
Em que porta irá bater,
Que nome irá pronunciar,
Se nem tu sabes dizer?
Só quem não me conheceu
Pode chamar-me de autor.
Jamais fui um escritor,
Sou só alguém que escreveu.
Quem a todo instante diz que desde sempre se dedica à literatura são os que esperariam maior recompensa dela. Os bem-sucedidos costumam referir-se a ela como se fosse uma frivolidade, um joguinho tedioso no qual, por menos que se esforcem, não alcançam nenhum outro resultado senão ganhar.
Se não gostarem de uma frase sua, não desista. Faça outra. Pode dar certo. Por exemplo: não é minha, não, é da Clarice Lispector.
Ao se declarar poeta social
o romântico renegou as rosas
e plantou batatas no seu quintal.
Chato é aquele tipo capaz de fazer qualquer um de nós sentir-se como se fosse o único habitante do planeta. Qualquer um de nós e mais trezentos.
Tudo que já se fez de melhor na literatura Shakespeare fazia há quatrocentos anos. Tudo, menos poemas concretistas.
Há muito nada me encanta,
Não sou o que fui outrora.
Não sou aquele que canta,
Sou hoje aquele que chora.
Não tenho brilho nem pompa,
Tudo que é meu é banal,
Nada há meu que não se rompa,
Nada perene, imortal.
Que estranhos dias são esses
Que vêm replicar agora
Os áureos dias de outrora,
Como se ainda os merecesses.
O que o mundo hoje me cobra
Jamais poderei pagar.
Não tenho vida nem obra,
Não sei fazer, só tentar.
Era ainda uma menina quando descobriu que por ela é que o sol brilhava todos os dias. Desde aí, para não privá-lo de sua razão de ser e premiá-lo por sua assiduidade, jamais saiu à rua uma manhã sequer sem piscar par ele o olho esplendidamente verde e cúmplice.
Não tinha dado dez passos
na primeira calçada da manhã
e o sol frio
e os olhares gelados
e os rostos fechados
já lhe tinham comunicado
que estava excluído
da minuciosa pauta do domingo.
O amor é capaz de tudo,
Tudo pode, tudo faz.
Transforma o loquaz em mudo,
Transforma o mudo em loquaz.
O grito de modernidade
quem deu foi Carlos
Drummond de Andrade
no histórico dia
em que decidiu
que tinha uma pedra
no meio do caminho
onde antes uma pedra
no caminho havia.
Dizem que fui escritor. Acredito.
Devo ter feito ontem algo muito ruim
Para estar sendo castigado hoje assim.
Descobrimos que no final
os caminhos tortos
e os caminhos retos
nos levam todos
ao rumo certo
e estamos perto
cada vez mais perto.
Não cumpri jornadas
não segui trajetórias
fui sempre antônimo de tudo
jamais fui mais do que nada
Aspirei a glórias
não atingi a glória
minhas histórias todas
não foram nunca história.
Render-se alguém ao amor
Não é batalha perdida.
Não há prisão mais querida
Nem mais amável senhor.
Se há algo de que posso me gabar é da minha tristeza. Herdando-a de meus pais e de sua ressentida alma polonesa, eu desde a infância a acolhi com toda a força do meu coração e senti, já naquela época, em que os outros meninos forjavam amigos imaginários, que ela seria a minha mais fiel companheira por toda a vida. Posso dizer, e digo com orgulho, que a tristeza foi uma conquista da minha apaixonada perseverança.
Gramaticalmente falando, salvar-se ou não salvar-se depende da boa vontade de uma partícula apassivadora.
Josefa ontem, voltando das compras: "Olha só que alface linda. Parece uma vitória-régia."
De repente, o domingo se fez tão esplêndido e promissor que ele imaginou que só podia ser uma cilada.
Há livros tão irremediavelmente ruins que nem uma epígrafe de Shakespeare conseguiria salvar.
Meus amigos
o que eu tenho a lhes dizer hoje
eu que sem mérito
falei tanto de filosofia
de estética de poesia
é algo simples
muito simples
algo que ninguém
precisa ser sábio para dizer
meus amigos o que eu tenho
hoje não são sonhos nem ideais
só tenho frio frio
muito frio.
Das cinzas, do pó, do olvido,
Da longa e fria estação,
Da dor, do tempo sofrido,
Os sonhos renascerão.
Mãos à obra é uma exortação que cabe muito melhor aos concretistas do que a qualquer outro tipo de poetas.
Não se relaciona nem com homens nem com mulheres. Não é misantropo, é autodidata em sexologia.
Para tornar ainda mais notável a glória de Shakespeare, considere-se que ele a alcançou sem recorrer a manuais de autoajuda e a cursos de redação criativa.
O haicai é às vezes não mais que um assobio de brisa dormindo na parte mais escura do silêncio.
O defunto aparentava estar tão confortavelmente instalado no caixão que um primo galhofeiro lhe disse, baixinho: "Aí, maganão, você está com a vida que pediu a Deus, hem?"
Num sonho, apareceram-me Sócrates, Platão e Aristóteles, os três querendo me explicar a origem da vida e seu significado. Eu os ouvi com atenção, mas continuei com minha ignorância intacta. Os três falavam grego.
Hoje na rua um transeunte
me perguntou com ar sério
se deixaram abertos os portões do cemitério.
Agora olham para mim
como se olha para um morto
sou um incômodo
um estorvo
Quem me vê, vê
seu rosto como ele
será no futuro
quando o sol de hoje se for
e sobre os olhos baixar
o frio e inarredável escuro.
Éramos jovens e almejamos
a filosofia o conhecimento a sabedoria
Buscando sapiências e excelências
deixamos passar a juventude
e sabemos hoje
com a ciência que conquistamos
que jamais houve ou haverá
maior que ela nem dom
nem graça nem virtude.
Tudo que traço e planejo,
Às pressas e com vagar,
Mais cedo ou mais tarde vejo
Ruir, gorar, fracassar.
E em cada coisa que faço,
Pequena, média ou imensa,
Cansaço, muito cansaço,
É só minha recompensa.
Das metas que idealizei
Nunca em nenhuma cheguei
Além da pífia metade.
Em todas deixei a marca
De minha tristeza parca
E minha incapacidade.
O poeta morreu ontem
e seus sonetos bem acabados -
alguns manuscritos,
alguns datilografados -
há meio século escritos
e nunca publicados
na gaveta guardados
resguardados da glória
e pela imortalidade ignorados
aguardam o dia em que
mãos piedosas os acharão
rasgarão e queimarão
libertando-os do fardo
de serem e de terem
beleza e significado.
Dos versos que tu fizeste
Julgando serem poesia
Não há sequer um que preste.
São todos algaravia.
Foi um homem tão descaradamente mentiroso durante sua longa vida que, no fim dela, os parentes que acompanhavam sua agonia, encerrada com uma sucessão de de doze ais, puseram em dúvida pelo menos oito deles.
Que esplêndido dia.
Errou quem profetizou
Que o sol não viria.
Zeloso, ele sobre as rosas
Formosas brilha, gracioso.
Na reunião dos gongóricos, marcada para decidir que providências seriam tomadas contra os ataques da crítica ao grupo e aos seus princípios estéticos, o líder perguntou aos comandados o que estavam dispostos a fazer. Um deles respondeu, hesitante: Vamos reagir. Outro, vacilante, sugeriu: Vamos lutar. O líder, então, sentindo que era hora de transmitir confiança e energia, deu um soco na mesa e, no melhor estilo do gongorismo, conclamou: Isso, vamos reagirmos. Isso, vamos lutarmos.
Para quem acha que um livro é o objeto ideal para servir como calço para cadeiras trôpegas ou mesas cambaleantes, nada melhor que uma antologia de poemas concretos.
Se em vez de escrever sonetos eu me esmerasse em dar murros em pontas de faca, talvez chamasse mais a atenção e tivesse maior público, sem precisar contar sílabas nem perseguir rimas no dicionário.
Agora que nos restam poucos
é tempo de nos reconciliarmos com os dias -
perdoar os antigos
conviver com os presentes
esperar que os futuros tenham piedade
não cometam represálias
e nos aceitem como somos
nós que outrora os olhávamos
como se não fossem dignos
de presenciar nosso pretenso valor
e nossa presumida majestade/
Do tempo em que fui cronista conservei o hábito de nunca andar sem caneta e bloquinho. Mas, quando souberam que não tenho mais espaço para eles no jornal, os passarinhos, os cachorros, os gatos e os fatos cotidianos dos quais eu falava não me acompanham mais nas caminhadas . Hoje o bloquinho volta para casa como eu: vazio e cabisbaixo.
Durante minha vida toda carreguei um fardo pesadíssimo que julguei ser literatura e não era mais que um cestinho de vime completamente vazio.
Sobre a minha experiência com a literatura, posso dizer que que fui um menino alegre, cheio de boas intenções e propósitos, e um velho amargo que sabe não ter cumprido nem umas nem outros.
Na poesia, o conceito de arte pela arte tem seu apogeu no soneto. Cada sílaba, cada palavra, cada verso busca nada menos que a fulguração única do ouro.
Sou hoje uma dessas pessoas com as quais não se deve desperdiçar expressões como bom dia, boa sorte, bom sucesso. Talvez caiba desejar-me bom repouso, que já é bem mais qe hora.
Havia tantos versejadores já naquele tempo que, no bonde que não tomou, Drummond teria sido o mais ilustre dos passageiros, embora talvez não o único dos poetas.
Era um declamador poderoso, capaz de encharcar os espectadores da primeira fileira com seus perdigotos exclamatórios.
Embora eu não entenda muito bem do assunto, quase tudo que escrevo é sobre o ato de escrever.
Dizem os concretistas que seria a um deles que Deus recorreria se na Criação tivesse precisado de um artista.
O velho poeta adaptou-se bem ao computador. Mas, se o assunto são reminiscências, ele ainda prefere a máquina de escrever.
Não, dizer meus óculos, e não meu óculos, não é mania de grandeza. É uma exigência gramatical.
Quando eu tinha dez anos, uma tia profetizou: eu seria um escritor. Quando cheguei aos doze, ela refez a profecia: eu seria um grande escritor. Hoje, se ela estivesse viva, certamente diria: não perca a esperança, meu querido, nunca.
A história da família é modesta
Cem anos ou um pouco mais
de casamentos óbitos nascimentos
todos acontecimentos triviais
matéria obscura de cartórios
sem interesse para os jornais
Numa mudança perdeu-se aquela foto do avô
com seu uniforme de marinheiro
e um dos filhotes da gata se extraviou
mas devem ter sido fatos corriqueiros
porque foram há um mês
e nenhum jornal até hoje os noticiou.
É injusto atribuir inteiramente aos sonetos minha má fama. Há outras causas, dezenas, talvez centenas, embora todas miúdas, como fazer promessas falsas, negar pão aos pobres e admirar a mulher do próximo.
A Deus eu não me canso de rogar
Que, dos pecados todos que cometo
E dos que eu ainda venha a praticar,
Nenhum seja mais torpe que um soneto.
Ontem trajes de seda pantufas
ambrosias alfenins trufas
hoje trapos sapatos furados
morangos mofados migalhas bulhufas.
Esplêndido dia!
Nós não merecemos tão
Completa alegria.
O mar já nos chama e a vida
Convida o sol a brilhar.
O que mais lastimou o poeta parnasiano quando a mulher o deixou foi nunca mais poder contemplar a fluência e o ritmo exato de seus passos, perfeitos como um alexandrino.
Depois de tantas catástrofes
de tantas calamidades
e tantas odisseias
talvez desistir não fosse ruim
talvez morrer não seja má ideia.
Vive hoje metodicamente
gasta seus advérbios de modo
economicamente
um pouquinho de manhã
um tantinho à tarde
à noite mais um bocadinho
e livre das aspirações de glória
de antigamente
dorme longa
anônima e gostosamente.
Ter dedicado a vida inteira à literatura pode indicar que me falta exatamente a principal qualidade de um escritor: a imaginação.
Não quero mais chorar
educadamente
civilizadamente
Quero chorar
desavergonhadamente
um choro de soluços e de ranho
um choro como aqueles
choros torrenciais
que choravam
os homens de antigamente.
Talvez, assim como aconteceu àquele aluno que estudou um ponto só e calhou de ser justamente esse o que lhe coube no exame final, tenhamos a sorte de, em nosso dia derradeiro, contar com a simpatia do anjo da morte. Ele nos perguntará se sabemos o que é morrer, e nós por nossa vez lhe perguntaremos se morrer é fechar os olhos. Ele nos dirá que sim, que morrer sempre foi somente isso, nos dará parabéns, e de olhos fechados seguiremos o caminho que ele nos apontar.
Quem hoje sonetos faz,
Por mais que tenham valia,
Maior sucesso fariam
Se fossem como os fazia
O incomparável Luís Vaz.
Depois de uma época bela
Vivemos esta, nefasta.
Num dia vem a procela
E no outro vem a borrasca.
Quando Pessoa morreu
que pena
com ele morreu
uma centena
Quando eu morrer
não haverá perda
que falta há de fazer
um zero à esquerda?
E chegou o momento afinal
de trocarmos nossa burrice natural
pela inteligência artificial.
Quando nada mais tiveres
que cause a inveja dos homens
e a atenção das mulheres
quando disseres adeus
e não houver ninguém
que te diga para ficar
quando os primeiros passos deres
e começares a te afastar
verás como pode ser
leve uma caminhada
quando não se tem nada
que cause a inveja dos homens
e a atenção das mulheres.
Agora que o gato morreu e o sofá é ocupado apenas pelo avô, o sol tem aparecido só esporadicamente na sala.
Que bela cena é uma gata se espreguiçando, esticando-se languidamente, encompridando-se para alcançar seu sono no sofá.
Mesmo que só um pouco
me deixe ficar
me dê uma beirada de cama
ou um cantinho de sofá
Não sei latir muito bem
nem miar
mas se você me perdoar
por eu ser presunçoso
posso tentar ser carinhoso
e serviçal como um poodle
ou um gato angorá.
É um homem que ainda chama as mulheres todas de minha fada e minha rainha, embora o truque só tenha dado certo uma vez, trinta anos atrás.
Já ne terceira ou quarta noite percebi que a condessa me encarava como uma menina de dez anos encararia um saquinho de pipocas depois de duas horas de vertiginosas emoções nos mais desvairados brinquedos de um parque de diversões.
No domingo de primavera, o sol e o mar acumpliciaram-se tão torpemente que o suicida, contemplando-os da sacada do décimo andar, resolveu deixar para a segunda-feira seu projeto e seu salto.
Segundo os detratores de um poeta parnasiano famoso por ter publicado quatrocentos e cinquenta sonetos, os primeiros quatrocentos e trinta e oito constituíam o que, no conjunto de sua obra, era conhecido como fase de aprendizado.
Afetado por uma série de súbitos desastres financeiros que o obrigaram a vender pela metade do valor todos os seus imóveis, o concretista lamentou não ter nascido na época em que os poetas perdiam no máximo o bonde e a esperança.
Agora, sua vida morre agora,
Na tristeza da tarde que adormece.
Sua alma ascende ao céu, sua mãe chora,
Choram os seus amigos. Anoitece.
Um murmúrio monótono de prece,
Quatro velas queimando, e o vento, fora,
Suavemente nas árvores esquece
Sua dolente compaixão sonora.
Os versos seus que em lágrimas se esfolham
E de um celeste amor, com voz aflita,
Falam, todos os leem, e se entreolham.
A lua, então, abrindo o claro peito
Entra pela vidraça e deposita
Um punhado de lírios em seu leito.
Eram Montecchio e Capuleto, e seu
Vínculo eram as lutas familiais
Nas quais se opunham seus porfiosos pais,
Até que um dia o amor apareceu.
E os dois, amando-se, não eram mais
Agora nem Julieta nem Romeu.
Eram, no céu azul que o amor lhes deu
Dois pombos, duas aves celestiais.
E já nem eram pombos nem mais aves
Quando enfim os feriu com inclemência
A flecha fria e cruel da realidade.
Eram agora duas almas suaves
Separadas pelo ódio na existência
E unidas pelo amor na eternidade.
A casa era pequena, mas havia
No fundo um jardim em que nossas crianças
Com seus cantos, seus risos, suas danças,
Plantavam descuidadas a alegria.
Quando deitava a tarde e o sol caía,
Recolhíamos nossas esperanças
Ao fogo bom do lar. Com frases mansas
A tua voz, mulher, adormecia
Os pequenos na história da menina
Que encontrou o seu príncipe encantado.
Depois o amor, nossa paixão ardente,
O torpor suave e o sono esparramado
Enfim por toda a casa, pequenina,
Impossível, sonhada, inexistente
Caíram tuas pétalas. A sanha
Desajeitou-te os seios, fê-los rasos
E desnudos se deram quase fáceis
À colheita dos dedos e da boca.
Abriram-se os segredos. O momento
Deitou-se sobre ti com força, e foste,
E vieste, e foste, e vieste, e sucumbiste
Úmida de teu gozo e de teu pranto.
Possuída, estavas coisa sobre a cama.
Mas depois, quando o peso te livrou
E recobrou a altura seu espaço,
Ergueste pelo chão as tuas roupas,
Teu porte mais soberbo do que nunca e
Tua feição de flor refez-se virgem.
Quando ofereço minha poesia
sinto-me como um mendigo
exibindo as chagas
por alguns centavos a mais
As minhas torpemente forjadas
as dele talvez naturais.
Pelo bem que não fiz
pelo mal que cometi
venho pedir-lhes perdão
e peço-lhes assim
com uma única palavra
perdão só perdão
minha irmã
meu irmão
por minha falta de modéstia
por minha presunção
Se uma palavra não bastar
minha irmã
meu irmão
e eu enveredar
por uma frase
por uma oração
quem me garantirá
que não me entregarei novamente
aos pecados da falta de modéstia
e da presunção?
Quando me aplaudem por um tropeção
Ou por um novo artístico tremor,
Não nego de quem vem a inspiração.
Mister Parkinson é meu professor.
Que levam tuas mãos?
Que levas?
O cigarro apagado,
A escusa recusada,
O projeto, que projeto?
O de ontem, malbaratado,
O de hoje, mal projetado?
Levas o corpo
Que o ônibus leva,
O corpo e seu sono,
Enganosa trégua.
Não posso dar-te o lastro da riqueza
Nem as delícias de uma vida quieta.
Comigo não terás sequer a mesa
Quem em casa de teu pai viste repleta.
Trocarás teu caminho em linha reta
Por um atalho cheio de incerteza.
Mas vem, que se em teu lar foste dileta
Em meu tugúrio tu serás princesa.
Vem! Sacrifica teu viver risonho
E a quentura de teu paterno ninho
Por mim que tenho frio e tanto choro,
Por mim que sempre estive assim tristonho,
Por mim que nunca tive algum carinho,
Por mim, mulher, que te amo e que te adoro.
Serias tudo para mim. O lar
Abençoado que criança não possuí
E as nossas gozariam, junto a ti
E junto a mim. Serias o lugar
Em que eu me achasse, aqui, além, ali,
Pois nada te haveria de afastar.
Serias o milagre a desatar
O riso franco que jamais eu ri.
Serias humildade em minha história,
As loucas ambições com as quais me iludo,
Os aplausos, a pompa, a fama, a glória
Eu poderia todos esquecer.
Seriam nada, tu serias tudo.
Serias tudo. Não quiseste ser.
Que nenhum de nós se abale ou se abata ao se comparar com Shakespeare. Ele ser dez, cem, mil, um milhão de vezes superior a nós não é mais do que uma obrigação. Ele começou quatrocentos anos antes que nós.
No tempo em que se sabia o que eram pronomes oblíquos era proibido começar frases com eles.
Aos jovens receosos de participar de concursos literários convém lembrar que, se houver um Shakespeare entre os inscritos, se tratará de mero pseudônimo.
Talvez possamos ainda ser úteis
não mais para as questões vitais da humanidade
a descoberta da Causa Essencial
a busca da Suprema Verdade
mas para as coisinhas chamadas fúteis
que não exigem descortino nem sagacidade
como dar abrigo a um cãozinho
ou salvar um passarinho da enxurrada
Talvez possamos ainda
talvez ainda uma vez.
A minha mente estouvada
Não sabe bem o que faz.
O que tenho não me agrada,
O que não tenho me apraz.
Aqueles que do amor vivem cativos
Agradecem a Deus dia após dia
Por gozarem a esplêndida alegria
De estarem presos e de estarem vivos.
O amor lhe acenou ainda uma vez, mas era já como o rascunho de uma petição de clemência encontrado no colchão de um prisioneiro executado no mês anterior.
Hoje me peguei imaginando se Dante, Shakespeare e Cervantes não foram meros heterônimos de Deus.
Ilude-se quem se gaba
Do estilo, forma ou conteúdo.
Aos poucos tudo se acaba,
Até que se acabe tudo.
https://rubem.wordpress.com/2023/04/30/a-insustentavel-leveza-dos-concretistas-raul-drewnick/
Depois de tantos planos formulados,
De projetos em febre concebidos
De roteiros tão bons e bem urdidos
E de tantos tesouros cobiçados.
Depois de tantos mares navegados,
Dos reveses inúmeros sofridos,
Dos marujos ou mortos ou feridos
E dos projetos todos naufragados
Não temos mais no navegar encanto
E não saímos mais de nosso canto.
A cobiça que outrora nos movia
Morreu no mar e agora até a um morto
Agradaria o esplêndido conforto
Desta nossa abençoada calmaria.
(Este soneto me pediu para ser escrito, ontem. Não é dos melhores, nem sequer dos bons. Minha desculpa é ele haver sido feito às pressas, num momento de distração de Mister Parkinson.)
Quando conheci a poesia, descobri que as lágrimas não eram a única maneira de exprimir minha tristeza.
Mas naturalmente há também leitores que, quando se menciona A noiva ladra, de Margaret Atwood, pensam tratar-se da história de uma mulher-cão que encontra seu par.
Tu deves recordar-te ainda
De como as manhãs luziam
E as flores te recebiam
No tempo em que eras bem-vinda.
É um poeta honesto. Não faz um verso fora de medida, não cobra adicional quando utiliza rimas ricas e nunca submete a jornadas duplas os cisnes dos seus sonetos.
É um poeta moderno. Se for preciso, venderá a mãe, mas jamais usará palavras como rosa, sonho, amor e primavera.
No circo de periferia
com arquibancada completa
Jesus já foi hoje
equilibrista trapezista
e agora de olhos vendados
no globo da morte persegue
com sua motocicleta raivosa
diante dos espectadores eletrizados
outra motocicleta furiosa
No lado de fora
com fome no estômago
e desesperança no coração
um homem deita-se
na calçada que é seu colchão
e pergunta-se por que
Jesus há muito tempo não
faz mais com os pães
aquele número da multiplicação.
Há muito tempo que já
Não sei se vivo ou se morro,
Se estou aqui ou se lá,
Se peço enterro ou socorro.
Os romances antigos dividiam-se em dois tipos: os que tinham até quatrocentas páginas eram os caudalosos; os que tinham mais eram os torrenciais.
Desfrutemos hoje nossas conquistas gloriosas.
Com a nova geração de super-robôs,
Não nos restarão mais que as menções honrosas.
Quando ela custa a chegar,
Ficamos imaginando
Que a morte está nos poupando
Para a vida nos matar.
Seu tino para negócios e sua dedicação deram-lhe alta patente no ramo da prostituição. É hoje um cafetão de gravata.
Porque as rosas se equiparam,
Não lhes fixe distinção.
Lamente as que já murcharam,
Deplore as que murcharão.
Se me pedem que eu conte minha história,
Não sei mais o que é início ou o que é fim.
Falta-me o senso, falha-me a memória.
Mister Parkinson rouba-me de mim.
Não nos envolvemos em nenhuma façanha. Sobrevivemos.
Pode não ser bem uma glória.
Mas é a única que temos.
Quando menino, afligia-me não ter ainda ideais. Já havia lido histórias de homens que viviam por eles, só por eles, e sofriam por não poder cumpri-los. Fascinavam-me esse malogro e as lágrimas que ele provocava. Ansiava precocemente pelas perdas e temia que meus ideais, quando eu os tivesse, não fossem dignos da tristeza que eu queria imensa, insuportável e purificadora como a dos santos.
https://rubem.wordpress.com/2023/04/02/de-como-e-cruel-a-literatura-raul-drewnick/
O que todos nós desejamos é que, quando alguém disser que nossa vida é um mar de rosas, não possamos desmenti-lo.
De tudo em que hoje me empenho
Mais nada me faz feliz.
De tudo agora desdenho,
Até do que ainda não fiz.
Às vezes, abre a gaveta, pega os três recortes de jornal de um ano longínquo e lê as palavras que sobre um fundo amarelado preveem para ele um futuro glorioso, No fim da leitura, sempre se pergunta quando virá esse futuro glorioso, com a rancorosa e magoada voz que lhe impuseram os anos de anonimato.
A chuva molha ainda uma vez, esperançosa, os lábios em que há muito murcharam as palavras de amor.
O poeta fica feliz quando lhe dizem que ele parece cada dia mais triste; é para isso que trabalha.
Posso dizer que em matéria de tristeza sou autossuficiente. Mas nunca recuso abrigo a tristezas alheias.
Ainda hoje as frases mais lindas
seja qual for seu autor
saem por aí molecas
jurando que são filhas de clarice lispector.
Por mil razões você deve querer conhecer-se. Uma delas é saber por que os outros são melhores.
O melhor modo de apreciar um poema concretista é ficar a certa distância - um metro e meio ou dois, de preferência três ou quatro.
Depois que se engajou nas causas sociais, o poeta, quando sai pelo bairro, não leva mais o caderno nem a caneta. Carrega o spray com que, furtivamente, deixa nos muros não reticências líricas, mas exclamações rubras e ferozes conclamações.
Leitores antigos têm certamente dezenas de histórias para contar sobre o tempo em que, como os pistoleiros do Velho Oeste, circulavam por toda parte os abomináveis sonetistas. Contra eles não havia defesa, legítima ou ilegítima. Ninguém, estivesse onde estivesse, podia considerar-se livre dos disparos de catorze fumegantes tiros, rimas ribombantes e perdigotos fatais.
Isso é normal. Você deve continuar tentando. Um dia talvez alguém acredite que o que você vem fazendo há seis décadas merece o nome de literatura. Serão dois, então.
Quando erro, seja em que tarefa for,
E quando pelas mãos eu meto os pés,
Aplausos ganho de meu professor:
Mister Parkinson me dá nota dez.
Estamos aqui há
dez ou doze anos já
vendendo artigos finos
e peças profanas
É tempo já
de seguir o exemplo
e de as portas fechar
como as lojas americanas.
Quando seu dia chegar
não fique impressionado
não se torne solene
não veja nisso
um acontecimento incomum
nem algum especial significado:
quando seu dia chegar
significará apenas
que seu dia terá chegado.
Do amor sou mau arquiteto.
Por erros meus, ou o chão
Se abre em cratera ou então
Cai em ruínas o teto.
"Raciocine comigo", pediu o escritor ao confrade. "O Shakespeare é mesmo um fenômeno. Mas, me diga, há quantos anos ele é lido e conhecido? Quatrocentos, não é? Por aí. Imaginou qual poderá ser a opinião dos leitores sobre nós em 2400 ou em 2500?"
Em mim alguma coisa se perdeu.
Não uma dessas tolas, corriqueiras,
Daquelas mais useiras e vezeiras -
Mas a que definia que eu era eu.
No dia 12, alguém pendurou uma placa no gradil do sobradinho: dá-se aulas de matemática. Na manhã seguinte, ao lado dela havia outra, colocada à noite por um vizinho sarcástico: precisa-se de professor de português.
A literatura pode tornar-se uma obsessão. Você perderá o apetite, o sono, e os amigos que conservar terão também apetite ruim, sono difícil, e, como você, sonharão com baleias assassinas e insetos gigantescos. Não se preocupe. Dizem que são bons sinais.
Os primeiros poemas que publicou eram impublicáveis. Ele era pouco mais que um menino. Jamais sua poesia teve desculpa melhor para se apresentar tão mediocremente.
O poeta concretista mudou de ares.
Saiu do sobradinho romântico
E mora agora na cobertura
De um edifício de quarenta andares.
Do velho poeta, no fim da vida, dizia-se que estava bem acabado, embora seus sonetos nem tanto.
Eu sou ranheta, bem sei.
Comigo me desavim
E, do jeito que a coisa anda,
Se nada mudar em mim,
Logo me desavirei
Com o papa, com Deus, com o rei
E até com Sá de Miranda.
Nunca neguei alegria aos meus personagens. Eu os fiz beber, sorrir, subir em mesas, sapatear, rir o riso dos idiotas e dos tresloucados. Mas, quando precisavam de um traço menos animal, mais humano, de um rosto transtornado pelo sofrimento, não lhes dei tudo que podia. Sempre tive ciúme de minha tristeza.
A cigana se enganou
Naquilo que me predisse.
Rei nunca fui, rei não sou,
Até do vice fui vice.
A gramática é a tia velha que exige que todos, parentes ou não, saibam que seu nome é Maria Campos das Dores e não Maria Jardim das Flores.
Do escritor que numa história abre espaço para um passarinho espera-se que não se esqueça de lhe dar o alpiste e a água suficientes e, se abrir espaço também para um gato, que seja um daqueles bonachões, de apartamento, que só tenha na barriga espaço para as rações importadas e os biscoitinhos.
Se beleza e amor lhe parecem palavras como quaisquer outras, é possível que jamais você as tenha pronunciado como devem ser. É um problema talvez menos dos seus lábios que do seu coração.
Quando o velho poeta disse tristemente que tinha dissipado a vida com sonetos, o repórter fez duas perguntas. A primeira foi: o que era dissipar; a segunda, o que eram sonetos.
Ontem, quando pegava a Bic, sabia muito bem o que iria fazer: revolucionaria a literatura mundial. Hoje também sabe: vai escrever mais um poeminha, se tanto.
Poeta, um conselho te dou.
Se encontrares uma rosa
Do que as tuas mais formosa,
Contém a língua invejosa,
Celebra quem a plantou.
Nos seus últimos dias ainda se dizia poeta, mas só a si mesmo, e com a voz furtiva dos que confessam uma infâmia.
Não há mais loiras longilíneas e langorosas em sua vida. Foram-se todas; restaram as aliterações.
É um desses poetas que, tendo inventado uma tristeza, investe nela até a sua última lágrima.
Não entendo os que dizem que aos concretistas falta imaginação. Que virtude, então, é essa que leva alguém a pegar uma folha de papel ou abrir um espaço na tela do micro, escrever nela a palavra pedra, repeti-la duas vezes e chamar isso de poesia?
Lembrando-se dos humilhantes momentos pelos quais passou na época de estudante, e vendo repetir-se hoje a situação com um filho, aquele cidadão de bem pergunta-se, como se fosse um funcionário encarregado de expedir ou negar alvarás, por que diabos os gramáticos ainda permitem o funcionamento dos verbos irregulares.
Há um trecho, já no final do caminho, em que nos perguntamos por que tivemos tanta pressa, sempre, e por que nos deixamos empurrar como se não houvéssemos nascido senão para ser empurrados, fustigados, açoitados, para a frente, para longe, para além, para mais além. Que venturoso é, quando chegamos a esse trecho derradeiro, desacelerar os passos e sentar-nos um pouco à sombra de uma árvore, nós, que jamais nos demos tempo para parar e descansar. Que alívio é descobrirmos que nem sempre o horizonte precisa ser um desafio para pernas e corações jovens.
Escrever, sim, mas para quê? Se for para definir-me, serei tão complexo assim, que tantos anos não bastem? Estou cansado, tão cansado, e devo cansar-me quanto mais para dizer isso? Que estou cansado, tão cansado, tão mortalmente cansado?
Além dos namoricos e das aventuras, um chato normal é capaz de se casar cinco ou seis vezes antes de se declarar adepto do celibato. E em todas essas ocasiões, comoventemente, nos escolhe como conselheiros ou padrinhos.
Há muito, já, meu jardim
Só regam águas passadas.
Os lírios estão no fim
E as rosas todas fanadas.
Se a poesia se mete em apuros,
eu sou o herói covarde
que ou não chega nunca
ou sempre chega tarde.
Eu lutei pela Poesia
Como se lutar soubesse.
Pelos erros meus e falhas
Perdi todas as batalhas
E muitas mais perderia
Se mais batalhas houvesse.
Depois de seis décadas de prática ininterrupta e inepta, o que posso eu pedir à poesia, além de perdão?
A cortesã com tesão
quer se dar ao cortesão
mas não consegue porque
ele é desprovido de.
Quando o futuro quer dizer amanhã, só amanhã e nem um dia mais, você não tem tempo de abrir a janela e olhar para o horizonte.
Que não venha ninguém a se enganar.
Se me perguntam, digo quem eu sou
E ajo como se fosse, mas estou
Tão morto quanto um vivo pode estar.
É mais penoso do que comovente ver um oitentão tropeçando, cambaleando e caindo, em suas tentativas cada vez mais canhestras de honrar um compromisso que um garoto, não mais do que isso, assumiu seis décadas antes com a literatura.