domingo, 30 de abril de 2017
Sobre a verdade
Esperar que a verdade seja revelada por um poeta é depreciá-lo. A verdade é presumivelmente autossuficiente e maçante, e nem os filósofos se importam mais em descobri-la, embora mantenham seu ar empertigado e seus livros em quintas e sextas edições. Depois que surgiu o conceito de utilidade, qualquer parafuso ou arruela precisam responder para que servem. O que a verdade, se quisesse nos convencer, alegaria em sua defesa?
O grande erro
Repugna-me recordar ocasiões em que vi o amor com olhos que não eram estritamente os do espírito. Se lhe damos nomes, o amor começa a morrer quando passamos a gritá-los em noites de febre. O amor, se por algum nome for chamado, que seja por um que a brisa possa dizer numa manhã de sol, num parque.
Simples assim
Que delícia foi ouvir hoje, na feira, o vendedor responder que os caquis estavam docíssimos. Um pedante como eu teria dito dulcíssimos.
Rancor
Ela não me perdoou por eu lhe ter dito que jamais alguém a veria tão bela quanto a vi naquela manhã.
De novo
Deixou a chuva molhar seus lábios antes de dizer a palavra amor novamente com esperança, não mais toda a inicial, mas alguma - ainda que tão ineficaz como todas as outras.
Um trecho de Nabokov
"Era comum aconselhar-se a todos os jovens escritores que evitassem a aliteração, e o conselho era válido para evitar seu uso exagerado. Não obstante, era em essência um disparate abominável, mero delírio do mais cego dos cegos. A beleza do conteúdo de uma frase depende implicitamente da aliteração e da assonância. A vogal exige ser repetida; a consoante exige ser repetida; e ambas clamam para serem eternamente variadas."
(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)
(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)
sábado, 29 de abril de 2017
Perfil do haicai
Ao haicai assentam bem a humildade e a modéstia. Ele não é um passarinho súbito aparecendo e desaparecendo no mesmo instante, com um fio no bico. Ele é só um passarinho que aos olhos certos pareça ter um fio no bico.
Agonia e êxtase
Atingido por Cupido, o poeta puxa do peito a seta com uma aliteração e uma rima e a beija, beija, beija, mártir abençoando seu martírio.
Regulamentação
Para evitar ridicularias, aos poetas românticos deveria conceder-se licença de acordo com sua idade, sendo a faixa inicial quinze anos, e trinta e cinco a última.
Como no início
Palavras como rosa, mar e primavera deveriam ser sempre ouvidas como se ditas a primeira vez por lábios maravilhados pelo assombro.
Ele/ela
Ela era toda poesia
leveza rosa
ele era rudeza
áspera prosa
Amaram-se
cada qual dentro do seu gênero
ela um amor eterno
ele um romance efêmero.
leveza rosa
ele era rudeza
áspera prosa
Amaram-se
cada qual dentro do seu gênero
ela um amor eterno
ele um romance efêmero.
O que te restou
Foram-se todos os dias.
Sobrou-te este, o derradeiro,
Igual, na dor, ao primeiro
E nas parcas alegrias.
Sobrou-te este, o derradeiro,
Igual, na dor, ao primeiro
E nas parcas alegrias.
Neutralidade
Meu bacalhau é norueguês
e da melhor marca.
Não me importa saber
o que há de podre
no reino da Dinamarca.
e da melhor marca.
Não me importa saber
o que há de podre
no reino da Dinamarca.
Ah, o futuro
Empolgada com o relato das aventuras amorosas da irmã de dezessete anos, a garota de doze espera que, quando chegar sua vez, lhe caiba também um namorado com uma bunda ampla, que ela possa acertar com o chute final sem precisar concentrar-se.
Um trecho de Vladimir Nabokov
"A literatura não nasceu no dia em que um menino chegou correndo e gritando 'lobo, lobo', vindo de um vale neandertal com um grande lobo cinzento em seus calcanhares: a literatura nasceu no dia em que um menino chegou gritando 'lobo, lobo', e não havia nenhum lobo atrás dele. Pouco importa que, por mentir com frequência, o pobre garotinho finalmente tenha sido devorado por um animal de verdade. O importante é que, entre o lobo em meio ao capim alto e o lobo na história pouco crível, há um elo cintilante. Esse vínculo, esse prisma, é a arte da literatura."
(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)
(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)
sexta-feira, 28 de abril de 2017
Um aqui, outro lá
Enquanto o poeta romântico tempera um cisne para o jantar, o concretista, em seu leito de pedra, sonha com pirâmides e com egitos.
Requentando Drummond
Querer que a poesia
seja mais que uma rima
é licença poética,
não é uma solução.
seja mais que uma rima
é licença poética,
não é uma solução.
Extremos no centro
É quando se aceita como tolo que ele se sente mais triste e mais feliz ao mesmo tempo. Tristeza aguda, felicidade plena. São ocasiões nas quais ele se lastima por Deus não o ter feito poeta. Talvez belas palavras pudessem nascer disso.
Utilidade única
Pelo que vejo na internet, os maridos não servem para nada, a não ser para as brigas e as reconciliações.
Conselhos finais
Chega o tempo em que devemos aprender a lidar com enfermeiros e a mimar as mulheres que levam aos quartos a bandeja de comida, se quisermos garantir um punhado a mais de açúcar ou uma pitada extra de sal para os nossos últimos dias.
Novo recado para o gajo
Meu caro Fernando, morreste há tanto tempo, mas os semideuses que te aporrinhavam andam à minha volta. Gritam para dentro dos meus ouvidos versos mentirosamente tejanos e, se os ameaço, mandam-me comer dobradinha fria e proclamam jamais haverem levado porrada.
Quanto valemos
Se tivéssemos sido importantes, estaríamos aqui fora, entre os homens que recolhem o lixo? De dentro vêm gritos que esperam o ônibus tardio. Nenhuma voz é a nossa. Não nos permitiram sequer um lugar na plateia.
Estado de espírito
Indiferença, resignação e desistência são palavras que vão pertencendo cada vez mais ao meu modo de ver a vida. Não acrescento desdém para não parecer definitivamente um misantropo.
Início de "Adeus, Columbus", de Philip Roth
"A primeira vez que vi Brenda, ela me pediu para segurar seus óculos."
(Tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras.)
(Tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras.)
Hoje, no portal do Estadão,
falo da inquietante palavra "tudo".
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/um-pouco-de-tudo/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/um-pouco-de-tudo/
quinta-feira, 27 de abril de 2017
Terceiro ato, penúltima cena (para Luiz Carlos Cardoso)
Faz uma hora já que encomendei a cicuta.
Por Zeus e por todos os outros deuses,
Onde está aquele entregador filho da puta?
Por Zeus e por todos os outros deuses,
Onde está aquele entregador filho da puta?
Desventuras em série (para Herena Barcelos)
Depois de tantas rejeições, teme que também a Morte o ignore.
Má companhia (para o Gianluca e a Nicole)
É um gato muito pequeno. Ainda não aprendeu a lidar com seus sonhos. Neles costuma aparecer uma ratona que sempre finge ser sua mãe. Às vezes ele acredita e deixa que ela coma na sua tigela.
Plágio
Basta a literatura dar um cochilo e lá vai a vida furtar-lhe uma história. Tantas Kariêninas e Bovarys que seriam perfeitas se não lhes faltasse um toque de Tolstói ou Flaubert.
... o que é de César
Às vezes, no meio de um texto, obrigo-me a dizer eu, para marcar meu direito sobre algumas coisas, principalmente as tristes.
Diploma
Uma de nossas mais frequentes bravatas é dizermos que estamos prontos para morrer, como se a morte fosse uma disciplina que se pudesse aprender com apostilas, empenho e provas bimestrais.
Voto vencido
Quando se lembra do amor, ele mesmo já está disposto a acreditar que tudo foi uma criancice, e essa simulação de maturidade acalma seu coração.
Burla
As mulheres que o visitam em sonhos não conseguem disfarçar-se, ainda que mudem o penteado e se vistam como se estivessem em 2017. São garotas da década de 1960, algumas cursaram o o colégio com ele. Uma delas, mais ardilosa que as outras, maneja um celular. Ele está para ser enganado quando desperta.
Outrora agora (para o gajo Fernando)
Nos sonhos do velho cão, ecoam às vezes ainda, certas noites, seus próprios juvenis latidos, e suas patas se movem como se fosse possível agora, finalmente, deter a caravana que, para escapar, se embrenha no âmago das trevas.
Salvaguarda
A razão, se não lhe impusermos limites, é bem capaz de negar, diante de nossos fascinados olhos, a existência de um arco-íris.
Trilha sonora
Não acredito em epifanias ruidosas, precedidas e acompanhadas por tambores e clarins. Talvez um violino, um só, que soe como se não soasse.
Fé
Havemos de ser perdoados
Como aos bons vivos convém
E aos mortos cabe também
Desde que bem- comportados.
Como aos bons vivos convém
E aos mortos cabe também
Desde que bem- comportados.
Apoteose
Correu todos os riscos do lirismo e, quando começou a se erguer depois de estourar o nariz ao cair do trapézio, viu que tinha agradado. Entre gargalhadas, os espectadores gritavam: mais, mais. Voltou para o trapézio, principalmente pela moça cujos olhos verdes talvez não estivessem lacrimejando só pelo riso.
De Vladimir Nabokov, sobre "Ulisses", de James Joyce
"Qual é o tema principal do livro? Muito simples.
1. O passado irrevogável. O filho pequeno de Bloom morrera havia muito tempo, mas a visão dele permanece em seu sangue seu cérebro.
2. O presente ridículo e trágico. Bloom ainda ama a mulher, Molly, porém permite que o destino assuma o controle. Sabe que, às 4h30 da tarde daquele dia de meados de junho, Molly será visitada pelo charmoso Boylan, seu empresário e agente musical - mas nada faz para impedi-lo. Busca cuidadosamente afastar-se do caminho do destino, porém de fato, durante todo o dia, está sempre muito perto de esbarrar em Boylan.
3. O futuro patético. Bloom também fica se encontrando com outro jovem, Stephen Dedalus, e aos poucos se dá conta de que isso pode corresponder a mais uma pequena atenção do destino. Se sua mulher precisa ter amantes, Stephen, sensível e artístico, seria melhor que o vulgar Boylan. Na verdade, Bloom especula pateticamente que Stephen poderia ensinar Molly e ajudá-la a pronunciar palavras em italiano em sua profissão de cantora de ópera, exercendo uma influência benéfica em matéria de refinamento.
Este é o principal tema: Bloom e o destino."
(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)
1. O passado irrevogável. O filho pequeno de Bloom morrera havia muito tempo, mas a visão dele permanece em seu sangue seu cérebro.
2. O presente ridículo e trágico. Bloom ainda ama a mulher, Molly, porém permite que o destino assuma o controle. Sabe que, às 4h30 da tarde daquele dia de meados de junho, Molly será visitada pelo charmoso Boylan, seu empresário e agente musical - mas nada faz para impedi-lo. Busca cuidadosamente afastar-se do caminho do destino, porém de fato, durante todo o dia, está sempre muito perto de esbarrar em Boylan.
3. O futuro patético. Bloom também fica se encontrando com outro jovem, Stephen Dedalus, e aos poucos se dá conta de que isso pode corresponder a mais uma pequena atenção do destino. Se sua mulher precisa ter amantes, Stephen, sensível e artístico, seria melhor que o vulgar Boylan. Na verdade, Bloom especula pateticamente que Stephen poderia ensinar Molly e ajudá-la a pronunciar palavras em italiano em sua profissão de cantora de ópera, exercendo uma influência benéfica em matéria de refinamento.
Este é o principal tema: Bloom e o destino."
(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)
quarta-feira, 26 de abril de 2017
Mario Quintana (para Ernesto Ferreira, Lúcia Maia e Silvia Galant François)
Tenho a impressão de que os passarões abominados por Mario Quintana eram parentes dos poetas condoreiros.
Pés no chão
Foi certamente um poeta concretista, ou um simpatizante da causa, que criou a expressão "bens de raiz garantem futuro feliz".
Liquidação
Oferta de livraria: cinco paralelepípedos de genuína poesia concreta pelo preço de três. Frete gratuito.
Mimos (para Ana Farrah Baunilha)
Ainda há quem considere um poema uma espécie de caixinha de bombons, se bem que uma caixinha de bombons, ah, uma caixinha de bombons...
Pistas (para Liberato Vieira da Cunha)
Poetas românticos, quando davam pela falta da alma, não sabiam se iam procurá-la no inferno ou na casa da donzela mais próxima.
Petições
Era comum as estrelas irem perturbar os sonos dodecassilábicos de Olavo Bilac para apresentar queixas sobre os maus modos da lua.
Lampejo
Estamos mortos todo o tempo, a não ser naqueles instantes em que a poesia nos julga dignos de sua atenção e nos olha como se reconhecesse em nós o rapazinho para quem piscou na são joão, na manhã de 2 ou de 22 de outubro de 1951.
Amplitude
Vejam só que pé-direito, convidou o poeta concretista, erguendo o braço para abarcar todo o seu poema.
De Joseph Brodsky, sobre Anna Akhmátova
"Ela era positivamente linda. Com 1,77 metro, cabelos escuros, pele branca, olhos cinzento-claros semelhantes aos dos leopardos da neve, esbelta e incrivelmente graciosa, por meio século ela foi desenhada, pintada, esculpida, entalhada e fotografada por uma multidão de artistas, a começar por Amedeo Modigliani. Quanto aos poemas dedicados a ela, ocupariam mais volumes do que suas próprias obras reunidas."
(De Menos que um, tradução de Sergio Flaksman, Companhia das Letras.)
(De Menos que um, tradução de Sergio Flaksman, Companhia das Letras.)
terça-feira, 25 de abril de 2017
Boletins médicos (para Deonísio da Silva)
De tantos em tantos anos, as reformas gramaticais vêm nos avisar como anda o estado de saúde dos hifens.
Transgressão (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)
Nos melhores poemas parnasianos brasileiros há um calor clandestino, que passou sabe-se lá como pelos olhos frios dos mestres da escola. Bilac fez a maior parte dessas molecagens.
Um trecho de Joseph Brodsky
"Por mais modesto que seja o lugar que você ocupa, se ele tiver o menor resquício de decência, pode ter certeza de que algum dia alguém vai entrar e reclamá-lo para si ou, o que é pior, sugerir que você o divida com ele. Nesse momento, ou você luta por seu lugar ou o abandona. No meu caso, sempre preferi a segunda opção. Não que eu fosse incapaz de lutar, mas por absoluto nojo de mim mesmo: conseguir uma coisa que exerce atração sobre os outros denota certa vulgaridade em sua escolha. Não tem a menor importância o fato de você ter chegado lá primeiro. É pior ainda chegar primeiro a um lugar, porque aqueles que vêm depois sempre estarão com um apetite mais intenso que o seu, já em parte satisfeito."
(De Menos que um, tradução de Sergio Flaksman, Companhia das Letras.)
(De Menos que um, tradução de Sergio Flaksman, Companhia das Letras.)
Síntese (para Silvana Guimarães)
tudo meu é passado
tudo fraco
tudo fosco
tudo opaco
tudo apagado
exceto o imaginado.
tudo fraco
tudo fosco
tudo opaco
tudo apagado
exceto o imaginado.
As sobreviventes (para Henrique Fendrich)
A crônica e a poesia são como gatos. Vivem morrendo e ressuscitando. Felizmente, parece que têm ressuscitado mais do que morrido.
A dúvida (para Alfredo Aquino)
O homem dava uma caminhada pelo parque quando teve uma dúvida: para que serve a poesia? Parou, coçou o queixo, não lhe veio a solução. Olhou então para cima e viu um passarinho. Interrompo a história aqui. Receio que a dúvida tenha persistido.
As três palavras
O lirismo está morto faz muito tempo - dizem que há anos, que há décadas, que há mais de um século. Mas a notícia não deve ter circulado como devia. Ainda, aqui e ali, se abre um jornal ou uma revista, mais comumente um blog, e lá estão, em maiúsculas, as inimagináveis palavras: SONETO DE AMOR.
Queixa
Há quem esteja satisfeito com o que recebe da poesia. A mim, ela não entregou nem a loucura básica que logo ao primeiro olhar vejo, com inveja mortal, no rosto dos seus eleitos.
Itinerário (para Edilaine Lopes)
Só as folhas sopradas por um vento poeta sabem como chegar a Pasárgada.
Gongorismo (para Djanira Pio)
Amo o dramalhão. Sou dos que gritam "ai, estou morrendo" com a saudável voz de gemadas matutinas.
Lançamento
Diante da fila alvoroçada, o poeta concretista começou a suar frio: havia esquecido em casa o preguinho de autografar.
Consciência
Ainda há poetas honestos que pegam as rimas, as cheiram e as examinam antes de colocá-las em circulação.
Um pouco de Lobo Antunes
"Foda-se, pensou o médico aterrado, inalando o perfume semelhante a gás de guerra de 14 que se soltava em rolos letais da nuca da mulher, o faria eu se estivesse em meu lugar?"
(De Memória de elefante, Editora Alfaguara.)
(De Memória de elefante, Editora Alfaguara.)
segunda-feira, 24 de abril de 2017
Sem pensar (para Arlene Colucci e Carmen Ruiz)
Ficar triste é já, em mim, um hábito como sair de casa sem relógio.
Monumentalidade (para Alexandre Brandão, Luís Giffoni e Maria Helena Ferreira Penteado)
Para ser épico, um poema concretista precisa ter pelo menos dez andares.
Usos e costumes
A literatura é um vício que talvez um dia um homem possa admitir na hora mais clara de uma manhã de domingo.
Defesa do consumidor
Todo poema concreto deveria vir com um manual de instruções e cinco anos de garantia.
Estilo de vida (para Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)
A meu modo sobrevivo,
Bem menos rico que pobre,
Bem mais vassalo que nobre,
Já bem mais morto que vivo.
Bem menos rico que pobre,
Bem mais vassalo que nobre,
Já bem mais morto que vivo.
Logística
Sempre que lhe fazem o pedido, o concretista Petrus Petronicus autoriza a exibição dos seus dois grandiosos poemas épicos, desde que os organizadores lhe garantam uma carreta apropriada.
Dica de almanaque
Rosas concretistas não precisam ser periodicamente regadas. Um lenço levemente embebido num bom lustra-móveis é suficiente para lhes manter o brilho.
O início
Uma trajetória poética costuma começar quando alguém pensa ter algo a dizer, geralmente uma tristeza, e não desiste imediatamente.
Entregas canceladas
Não gosto das gracinhas que faço. Tenho consciência de sua futilidade. Mas a tristeza vem falhando tanto comigo...
Martelinho de ouro
Não tenho visto mais aquelas pequenas lojas especializadas em consertar poemas concretos.
Um trecho de António Lobo Antunes
"Espectador extasiado do próprio sofrimento, projectava reformular o passado quando não era capaz de lutar pelo presente. Cobarde e vaidoso, fugia de se olhar nos olhos, de entender a sua realidade de cadáver inútil, e de iniciar a angustiosa aprendizagem de estar vivo."
(De Memória de elefante, Editora Alfaguara.)
(De Memória de elefante, Editora Alfaguara.)
domingo, 23 de abril de 2017
Modelo (para Silvana Guimarães)
O poema ideal talvez fosse aquele que pusesse um cisne a flutuar num lago com a lua sem precisar de mais que quatro ou cinco palavras.
Decadência
Já fui mais autêntico, já chorei melhor. As palavras têm me deturpado. Como era libertador aquele choro de soluços e de ranho lambido.
Saudade
O que falta ao meu sofrimento de hoje é aquela assunção de martírio, aquela esperança de poesia.
Medida
Por mais sonhador que seja, um poeta deve ter senso de proporção. Que seja o que puder ser, e que se considere até um pouco maior do que é, desde que não queira ser Camões.
Misticismo de ocasião
Em alguns, um poema tem o dom apenas de acentuar o tom aparvalhado, São os falsos místicos, para os quais o horizonte é sempre a mosca na parede.
Postura municipal
Os poemas concretos deveriam ser assinados não por um poeta, mas pelo engenheiro responsável.
www.rubem.wordpress.com
Hoje na Revista Rubem falo daquilo que melhor conheço: miudezas, bijuterias, inutilidades.
De Leandro Karnal sobre Shakespeare
"Somos todos anões. Subir no ombro de gigantes permite-nos contemplar um horizonte espetacular. Happy birthday, Will!"
(Da coluna de hoje no Caderno 2 do Estadão.)
(Da coluna de hoje no Caderno 2 do Estadão.)
sábado, 22 de abril de 2017
O nome
O salva-vidas que foi socorrer o poeta com a respiração boca a boca começou a sentir seus beijos retribuídos e a ouvir um nome: amélia, amélia.
Início de "Memória de elefante", de António Lobo Antunes
"O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
- A quotazinha da Sociedade, senhor doutor."
(Editora Alfaguara.)
- A quotazinha da Sociedade, senhor doutor."
(Editora Alfaguara.)
Cena
O bonde do modernismo já passou há um século, mas ainda há quem corra tentando alcançá-lo, gritando: ei, Oswald, ei, Mário. Os parnasianos continuam diante do Municipal, com aquele ar de indignação, esperando que cheguem os cocheiros com as majestosas carruagens.
Conselho
Talvez você esteja certo em sua opinião e não tenha jeito nenhum para a arte. Mas talvez seja esse o seu maior trunfo para não desistir. Faça a arte como se você fosse o único capaz de, até por autocondescendência, dar-lhe atenção. Talvez dois ou três, ou quatro ou cinco, acabem um dia achando interessante isso que você faz. Mais do que isso é já um começo de presunção.
Vocação
Com seis anos ele deu o primeiro sinal do seu talento poético: aprendeu a contar até doze e dedilhou um alexandrino.
O trunfo
Aos escritores que se mostram mais resistentes o Diabo reserva a tentação final: aparece-lhes num sonho como ruiva fatal e num beijo lhes introduz na boca a palavra Estocolmo.
Emergência
Foram socorrer o poeta que se afogava. Por dois minutos pareceu impossível salvá-lo, até que ele começou a verter pela boca os ahs, ós e ohs acumulados a vida toda.
Suspeição
Não leiam autobiografias de poetas. Eles são capazes de inventar que, quando garotos, a mãe, já lhes conhecendo a vocação, os fazia esvaziar alegremente panelas de sopa de letrinhas.
Como era
Os românticos não beijavam. Pousavam os lábios devassos sobre lábios virgens e desmaiavam em êxtases angelicamente carnais.
Sumo pecado
A transgressão mais voluptuosa de um poeta parnasiano era beijar uma estátua depois de contornar-lhe esmeradamente a boca de batom.
sexta-feira, 21 de abril de 2017
Conceito (*)
Arte é uma pá
dessas que lavram
o mundo.
(*) Isto me veio hoje como o sopro de um espírito. Ou será um plágio, há muito tempo incubado, finalmente conseguindo se expressar?
dessas que lavram
o mundo.
(*) Isto me veio hoje como o sopro de um espírito. Ou será um plágio, há muito tempo incubado, finalmente conseguindo se expressar?
Per aspera ad astram
Os escritores antigos eram excelentes guardiões de sua glória. Para evitar problemas, cuidavam com exemplar antecedência até dos dizeres de sua lápide funerária.
Stricto sensu (para Diego Moraes e Marcelo Mirisola)
Não há flores mais finadas do que as páginas de antologia.
Rosibéis (para Rose Marinho Prado)
Os poetas de megafone derrubam quarteirões com suas rosas suburbanas.
Atributos (para Aden Leonardo e Ana Farrah Baunilha)
O poeta é um ser tropeçante. Está sempre sujeito a quedas amorosas e suas recaídas.
Negócio (para Alfredo Aquino, Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Deu a alma ao Diabo e em troca recebeu inspiração para uma peça - Julieta e Romeu - na qual viria logo a notar um tom shakespeariano.
Haicai agrícola (para Gianluca Drewnick Sapuppo e Nicole Drewnick)
No mesmo prato não comem
o espantalho
e o lobisomem.
o espantalho
e o lobisomem.
Qual anjo
O poeta devia ter alma pura e bons modos. Havia coisas que jamais podia fazer. Uma era emporcalhar sua harpa com gordura de sanduíche.
9,5
Nunca tive um poema censurado. Sempre fui um poeta ordeiro. Com dezoito anos, eu já era aplaudido por poetas quinquagenários. Para não me darem sempre nota dez, às vezes me censuravam um enjambement ou uma rima.
Sob medida (para Celina Portocarrero)
Haicai é a forma que a poesia
para si mesma cem
em cem vezes escolheria.
para si mesma cem
em cem vezes escolheria.
Oi, doidinha
Hoje no portal do Estadão (www.estadao.com.br) publico um modelo de mensagem romântica, com os chavões do gênero.
"Solidão", de Giuseppe Ungaretti
"Mas os meus gritos
ferem
como raios
a abafada campana
Despencam-se
apavorados."
(De A alegria, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, Editora Record.)
ferem
como raios
a abafada campana
Despencam-se
apavorados."
(De A alegria, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, Editora Record.)
quinta-feira, 20 de abril de 2017
Mesquinhez
Por que, Deus, tanto cansaço,
Tanto desgosto sofrido,
Tendes vós me retribuído
Com tão sovino fracasso?
Tanto desgosto sofrido,
Tendes vós me retribuído
Com tão sovino fracasso?
São Paulo, SP
Como os outros meninos
eu conheci a geografia
de puteiros useiros
de hotéis clandestinos
de treme-tremes vezeiros
Hoje irremediavelmente velho
se fosse andar deveria
escolher caminhos sérios
respeitáveis hospitais
centenários cemitérios.
eu conheci a geografia
de puteiros useiros
de hotéis clandestinos
de treme-tremes vezeiros
Hoje irremediavelmente velho
se fosse andar deveria
escolher caminhos sérios
respeitáveis hospitais
centenários cemitérios.
Persistência
Se já naquele tempo eu não fosse triste, hoje não me recordaria de nada. Quem há, de tantos anos depois, ter do seu dia mais importante a lembrança de uma gargalhada?
"Silêncio", de Giuseppe Ungaretti
"Conheço uma cidade
que cada dia se enche de sol
e tudo é raptado nessa hora
Dela parti uma tarde
No coração perdurava o limar
das cigarras
Do navio
laqueado de branco
vi
minha cidade sumir
deixando
por um instante
no ar toldado um abraço de luzes
suspensas."
(Do livro A alegria, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, Editora Record.)
que cada dia se enche de sol
e tudo é raptado nessa hora
Dela parti uma tarde
No coração perdurava o limar
das cigarras
Do navio
laqueado de branco
vi
minha cidade sumir
deixando
por um instante
no ar toldado um abraço de luzes
suspensas."
(Do livro A alegria, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, Editora Record.)
quarta-feira, 19 de abril de 2017
A senha
A lembrança do amor, se fomos nós que o matamos, deve ficar na gaveta mais distante da memória e precisará ser puxada aos poucos, lágrima a lágrima.
Mudanças
Cantar e proclamar são verbos que pertencem ao passado da poesia. Sugerir e insinuar parecem mais adequados e, talvez até, desistir e renunciar.
Naquela época
Aprendi alguns truques. Cheguei a pensar que neles estava toda a poesia. Se eu tivesse sido humilde, poderia continuar feliz até hoje.
Crédito
Foi preciso vir drummond
nos ensinar que num poema
a rima pode ser mais um problema
do que uma solução.
nos ensinar que num poema
a rima pode ser mais um problema
do que uma solução.
Leveza
O tom de poesia que hoje me convém está entre uma música leve, bem leve, quase inaudível, e o silêncio.
Trapaça
Como devem sorrir intimamente os que veem o estrépito religioso com que defendo a poesia, como se a representasse legalmente. Eu, que poderia, quando muito, redigir razoavelmente uma ata de condomínio.
Ativismo
Poesia é a escolha ideal se a intenção é atrair não menos de cinco e não mais de dez pessoas.
Blá-blá-blá
Como é enfadonha a sabedoria que gira em torno de si mesma, para sentir a vertigem do sucesso.
"Arguição da soberba", de Adélia Prado
"O que de pronto se mostra
palpitante e acabado
vazando precioso entre cacófatos
se ri do poeta
ocupado em limpar textículos:
ó truão,
no poema como no quadro
os olhos estão no umbigo."
(De Poesia reunida, Editora Record.)
palpitante e acabado
vazando precioso entre cacófatos
se ri do poeta
ocupado em limpar textículos:
ó truão,
no poema como no quadro
os olhos estão no umbigo."
(De Poesia reunida, Editora Record.)
terça-feira, 18 de abril de 2017
Vice-versa (para Silvana Guimarães)
Assim que se descobriu poeta, começou a ver outras coisas em todas as coisas. Ou foi o contrário?
... e caldo de galinha (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)
Diga o que disser a gramática, convém escrever Diabo com a inicial maiúscula. Sabe-se lá onde estaremos amanhã...
Outros tempos
Os viadutos paulistanos há muito não veem aqueles jovens e tristes poetas que por dois segundos ou três conseguiam flutuar como flores atiradas a um lago.
Alívios
Venho me consolando com miudezas: não ter sido quem disse um desaforo à dona Nilza nem quem atropelou o gato do seu Nicolau.
Biblioteca
Meus olhos vêm se recusando a se fixar na estante, certamente para me pouparem de comparações com o que escrevo.
Percepção
Escrever um diário é, no início, uma presunção: somos alguém, e esperamos que um dia todos saibam. Depois, vamos notando que nos repetimos e começamos a suspeitar dessa grandeza de tão parco repertório. E chegamos ao ponto no qual descobrimos que importante é o que narramos - uma gatinha recém-nascida, um pombo morto de frio -, não quem narra.
Balanço
Sempre fui um desses que procuram levar a sério todos os sentimentos. Busquei para eles as melhores palavras, as perfeitas, e descobri que nenhum deles as merece, nunca. Amor é, de todos, o exemplo mais triste.
Fachada
Eu gostaria de ter um olhar místico, uma insinuação de mistério no rosto. Sei que não melhoraria meu estilo, mas seria mais agradável sorrir para mim, na hora de me barbear.
"No lago", de Bai Juyi (772-846)
"dois monges da montanha frente a frente
jogam xadrez entre os bambus a sombra
entre os bambus frescor ninguém se vê
por vezes ouve-se uma peça move."
(De Antologia da poesia clássica chinesa - Dinastia Tang, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, LiEditora Unesp.)
jogam xadrez entre os bambus a sombra
entre os bambus frescor ninguém se vê
por vezes ouve-se uma peça move."
(De Antologia da poesia clássica chinesa - Dinastia Tang, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, LiEditora Unesp.)
segunda-feira, 17 de abril de 2017
Historinha (para Rose Marinho Prado)
Há sessenta anos eu prometi viver para a poesia. Continuo vivo, cada dia mais gordo. A poesia deve estar no meu ventre, e não é uma flor.
Parentesco (para Gianluca Drewnick Sapuppo e Nicole Drewnick)
O poeta do município
era muito parecido com
o espantalho do sítio.
era muito parecido com
o espantalho do sítio.
Excluído
Um dos meus problemas é que, tantas décadas depois, ainda não fui apresentado ao mundo atual.
Prece (para Deonísio da Silva, Liberato Vieira da Cunha e Silvia Galant François)
Deus, ouça nossa voz:
livre-nos dos maus poetas,
ainda que eles sejamos nós.
livre-nos dos maus poetas,
ainda que eles sejamos nós.
Domingo no parque
O homem chega ao parque, pega o papel no bolso, começa a ler em voz alta embaixo de uma árvore.
Passarinhos vêm de todos os cantos e vão ocupando os galhos. O homem se entusiasma, lê com maior convicção seu poema. Sente-se como se estivesse num teatro. Três homens e três mulheres se aproximam e param. Correndo vem um menino de uns seis anos que pergunta: "O que é isso que ele tá falando?" Os adultos, que já ouviram o suficiente, dizem: "Nada. É só poesia." O garoto pede: "Quero poesia." Mas logo é puxado. Uma das mulheres convida: "Vamos pro escorregador." O menino aceita a troca sem perguntar o que é poesia. O poeta continua a declamar para os passarinhos.
Passarinhos vêm de todos os cantos e vão ocupando os galhos. O homem se entusiasma, lê com maior convicção seu poema. Sente-se como se estivesse num teatro. Três homens e três mulheres se aproximam e param. Correndo vem um menino de uns seis anos que pergunta: "O que é isso que ele tá falando?" Os adultos, que já ouviram o suficiente, dizem: "Nada. É só poesia." O garoto pede: "Quero poesia." Mas logo é puxado. Uma das mulheres convida: "Vamos pro escorregador." O menino aceita a troca sem perguntar o que é poesia. O poeta continua a declamar para os passarinhos.
Culpa
Serás cobrado por todos os teus atos, principalmente por aqueles que praticaste contra a poesia.
Horror
Sabe hoje perfeitamente o que é. E pensa, com uma suspeita que já vai se transformando numa quase certeza, se não era assim também na época em que se achava digno de lidar com a poesia.
Dourando o passado
O que você aprendeu com os sonhos é que eles são necessários para se poder, muito tempo depois, com o ar mais triste que se tiver, começar frases assim: ah, naquela época, eu...
Insanidade
Hoje, quando qualquer aspiração é risível, você se pergunta como pôde julgar naquele tempo que havia algo em você que lhe permitisse sonhar com a poesia.
Obrigação
Um poeta lírico deve ter, diariamente, pelo menos uma palavra a dizer sobre o amor, mesmo que seja a pior delas.
Jeito
Modere a força quando der aquele bico no amor. Não o chute para longe demais. Há arrependimentos que se manifestam já no dia seguinte, e tão clamorosamente.
Início de "Um século de boa vida", de Jorge Guinle
"A primeira vez que viajei a Nova York foi em 1949. Estava em Paris e a situação prenunciava estouro de guerra mundial. Abril. Dois meses antes, tinha feito 23 anos.Mussolini invadiu a Albânia. Tensão. Naquele tempo era difícil telefonar, mesmo em seu próprio país. Mas meu pai me alcançou num telefonema internacional e recomendou:
"Meu filho, acho melhor você voltar para o Brasil."
(Editora Globo.)
"Meu filho, acho melhor você voltar para o Brasil."
(Editora Globo.)
domingo, 16 de abril de 2017
A mesma música (para Rose Marinho Prado)
Os domingos e feriados são parte da velha enganação. Fogos, bandeirinhas, fanfarras. O poeta deve vigiar bem sua alma, para que ela não vá correndo juntar-se aos que, levados pela música, exibem até o último e estúpido dente ao sol.
Moleque
Devias ter vergonha nessa tua cara. Quem te autorizou a falar do amor com tanta irresponsabilidade?
Cotação do dia (para a Pris)
Sei que te faço falta quando olhas para todos esses ao teu redor e não vês nenhum que possa ser o bobo da corte.
Olor de santidade
Tomara que as feridas do amor cheirem mesmo como as rosas. Elas começam a aflorar em todo o teu corpo.
Justa causa
O amor cresceu tanto nele que não coube mais no seu coração e escapuliu quando teve a primeira oportunidade.
Mais do mesmo
Tudo bem, denuncie o amor, vá em frente. Mas não faça esse escândalo todo, como se você fosse o primeiro. Há muito tempo, já, tudo que se diz do amor está catalogado na prateleira dos plágios.
Estações
Só depois de muitos anos
Comecei a ficar velho.
Tristeza já é outra questão.
Ser triste foi em mim sempre uma vocação.
Comecei a ficar velho.
Tristeza já é outra questão.
Ser triste foi em mim sempre uma vocação.
Chefe
Se na morte de um homem tolo estiver envolvido um sujeito composto, ao amor caberá a maior pena, sejam quantos e quais forem os outros participantes.
Agrafia
Não tive tempo de conhecer a letra dela. O único sentimento que lhe despertei foi o enfado, e quem há de escrever cartas para um ser enfadonho?
Prêmio
É comum, quando choramos, dizerem que parecemos crianças. Pode haver melhor incentivo para nossas lágrimas?
Astúcia
Sou um monstro. Sempre soube capitalizar meus infortúnios amorosos e colocá-los na próspera conta da poesia.
Gesto extremo
A poesia deve ser usada como último recurso, quando o amor tiver desdenhado todos os outros truques com aquele seu sarcasmo.
"O que a musa eterna canta", de Adélia Prado
"Cesse de vez meu vão desejo
de que o poema sirva a todas as fomes.
Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar:
'Tenho birra de que me chamem de intelectual,
sou um homem como todos os outros'.
Ah, que sabedoria, como todos os outros,
a quem bastou descobrir:
letras eu quero é pra pedir emprego,
agradecer favores,
escrever meu nome completo.
O mais são as maltraçadas linhas."
(De Poesia reunida, Editora Record.)
de que o poema sirva a todas as fomes.
Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar:
'Tenho birra de que me chamem de intelectual,
sou um homem como todos os outros'.
Ah, que sabedoria, como todos os outros,
a quem bastou descobrir:
letras eu quero é pra pedir emprego,
agradecer favores,
escrever meu nome completo.
O mais são as maltraçadas linhas."
(De Poesia reunida, Editora Record.)
sábado, 15 de abril de 2017
Cotação do dia
Chegamos ao centro do palco, nos apunhalamos no peito, urramos amor com nosso último alento e a única resposta que temos é um riso de escárnio e o ruído de pipocas avidamente remexidas.
Drama
Chorar é a melhor forma que temos de mostrar a nós mesmos que estamos vivos. Mas somente a nós. Os outros não se importam conosco e nós também há muito já desistimos de os ver na plateia.
Força do hábito
Os provérbios são tão presunçosos que até quando tossem imaginam estar transmitindo sabedoria.
Imponência
Quando penso nos provérbios, imagino sempre velhos empertigados, de cachimbo, que podem dizer tudo, até que fumar é nocivo, entre artísticas baforadas.
Perfil
O tempo zomba de nossa pompa e de nossa vaidade. O rosto que imaginamos ter vai sendo alterado por ele até se transformar no que verdadeiramente é: uma caricatura.
Ideal
Fazer arte pela arte é um conceito difícil de sustentar, mas - justamente por isso - de uma extraordinária beleza.
Descuido
Mesmo quem escreve prosa há de manter o prazer das descobertas, dos pequenos milagres que podem, como na poesia, surgir aqui e ali, se o estilo não se mostrar demasiado autossuficiente. Esses prodígios dependem muito menos de técnicas que de confiança no acaso.
Mídia
Se você tentou expressar algo muito profundamente, e suas palavras soaram como as de um vendedor de produtos sanitários numa rua de periferia, tente a poesia. Talvez ela possa ajudá-lo, se o que você quer exprimir for, por exemplo, uma aflição de amor.
"Mandala", de Adélia Prado
"Minha ficção maior é Jonathan,
mas, como é poética, existe
e porque existe me mata
e me faz renascer a cada ciclo
de paixão e de sonho."
(De Poesia reunida, Editora Record.)
mas, como é poética, existe
e porque existe me mata
e me faz renascer a cada ciclo
de paixão e de sonho."
(De Poesia reunida, Editora Record.)
sexta-feira, 14 de abril de 2017
Além do mérito
Se o Marquês de Maricá recebeu o título por suas frases, devia considerar-se muito bem recompensado.
Das estações da carne
A carne também tem sua primavera, seu inverno, seu verão. Floresce, frutifica, sofre. E, no outono, assume a mais triste dos amarelos.
Jeito
No sucesso das frases curtas quase sempre há mais sorte, um jeito, certa boa vontade das palavras, do que propriamente o espírito que lhes é atribuído.
Alvará
Chore à vontade, muito, chore torrentes. Chore agora, enquanto ainda há tempo. Hoje você é tão inimputável quanto um garoto de seis anos.
Fortuna
Viu que só tinha o niilismo para compartilhar, e mesmo esse já não era tão intenso quanto na melhor época.
"Aurora na primavera", de Meng Haoran (689-740)
"O sono ignora a aurora à primavera,
por tudo, em torno, pássaros se ouvem.
A noite foi-se em sons de chuva e vento,
flores caíram - quantas, saber como?"
(Tradução de Ricardo Prino Portugal e Tan Xiao, Editora Unesp.)
por tudo, em torno, pássaros se ouvem.
A noite foi-se em sons de chuva e vento,
flores caíram - quantas, saber como?"
(Tradução de Ricardo Prino Portugal e Tan Xiao, Editora Unesp.)
quinta-feira, 13 de abril de 2017
Fora de época (para Marcos Gomes e Ronaldo Dias)
Se eu tivesse morrido, digamos, em 2010, seria hoje um defunto respeitável, com sete anos de prática.
Clássicos (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)
As traças atualmente
não têm bom gosto
como as de antigamente.
não têm bom gosto
como as de antigamente.
Cartada final
Pensou até em matar uma borboleta ou um passarinho, mas logo ficou óbvio que o poema não iria melhorar muito.
Análise
Vocês me olham, pensam um pouco, avaliam. Talvez eu seja um escritor. Eu também às vezes me analiso assim.
O velho safado
Abri ontem à noite um livro do Bukowski e um mormaço inquietantemente sexual impregnou o ar, misturado a uísque e tabaco.
Astúcia
O bloqueio do qual se queixam os escritores, e que os deixa sem assunto nenhum, é quase sempre o modo a que recorrem exatamente para ter um assunto, qualquer um.
A desculpa
A poesia ainda é o melhor dos álibis. Ela tem os ombros largos. Justifica os projetos fracassados, glorifica ninharias e dá um tom heroico às derrotas.
"Noite de outono na montanha", de Wang Wei (701-761)
"Montanha vazia depois da chuva
o ar ao fim da tarde traz outono
Dentre os pinheiros brilha luz da lua
sobre os rochedos flui límpida fonte
Barulho aos bambus riem as lavadeiras
movem-se lótus vêm barcos à pesca
Acaso foi-se o odor da primavera:
senhor, que tudo guardes em ti mesmo."
(De Antologia da poesia clássica chinesa - Dinastia Tang, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, Editora Unesp.)
o ar ao fim da tarde traz outono
Dentre os pinheiros brilha luz da lua
sobre os rochedos flui límpida fonte
Barulho aos bambus riem as lavadeiras
movem-se lótus vêm barcos à pesca
Acaso foi-se o odor da primavera:
senhor, que tudo guardes em ti mesmo."
(De Antologia da poesia clássica chinesa - Dinastia Tang, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, Editora Unesp.)
quarta-feira, 12 de abril de 2017
No mínimo
Se um gato, qualquer gato, não for melhor que um homem, qualquer homem, tudo está errado com ele.
Defesa (para Renato Vieira Ostrowski)
Fui acusado de mandar meus poemas a paraísos fiscais. E, no entanto, eles sempre estiveram aqui debaixo do colchão comprado nas casas bahia.
Operação Bardo (para Silvana Guimarães)
Na sua delação premiada, o poeta confirmou o que já se sabia: culpou a poesia.
O momento
Quando o momento chegar
O amor inteiro se dê
Sem tempo de perguntar
Nem por que nem para quê.
O amor inteiro se dê
Sem tempo de perguntar
Nem por que nem para quê.
"Dia", de Adélia Prado
"As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -,
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo
mas gostando muito."
(De Poesia reunida, Editora Record.)
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -,
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo
mas gostando muito."
(De Poesia reunida, Editora Record.)
terça-feira, 11 de abril de 2017
Parque (para Silvia Galant François)
"Viu o Quintana?"
"Ali, ó."
"Naquela árvore?"
"Na outra."
"Aquela do passarinho?"
"Ali, ó."
"Naquela árvore?"
"Na outra."
"Aquela do passarinho?"
RJ (Para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)
Por enquanto vêm furtando só as próteses. Está por estourar o escândalo das epênteses e das paragoges.
As provas
Um poeta romântico que não tenha morrido pelo menos duas vezes por amor não merece confiança.
Hipocondríaco
Sou um velho consumidor de antidepressivos. Quando comecei a tomá-los, as bulas de alguns estavam ainda na primeira edição.
Pecados antigos
Eu também escrevi versos empertigados, querendo que fossem meus cartões de visita. E dobrava a ponta de cada um, com a minha sociabilidade disciplinadamente adquirida.
De jeito
Façamos de conta que o amor não nos causa nenhum estrago e, se não pudermos nos imaginar um transatlântico rasgando as ondas, pensemos ser ao menos uma canoazinha cheia de dignidade, com uma proa levemente empinada.
Ainda que tarde
Talvez já estejamos mortos quando a ocasião chegar, mas quem há de ignorar o tardio chamamento do amor?
Incongruência
Houve um tempo no qual imaginei que a poesia havia me escolhido para alguma coisa grandiosa - justo a mim, com estes modos de polonês tosco.
Início de "Pulp", de Charles Bukowski
"Eu estava em meu escritório, o contrato de locação expirara e Mc Kelvey ia entrar com um processo de despejo. Fazia um calor dos diabos e o ar-condicionado pifara. Uma mosca rastejava sobre o tampo de minha mesa. Tasquei-lhe uma mãozada e a mandei pra fora de campo. Esfregava a mão na perna direita da calça quando o telefone tocou."
(Tradução de Marcos Santarrita, L&PM Editores.)
(Tradução de Marcos Santarrita, L&PM Editores.)
segunda-feira, 10 de abril de 2017
Sempre, sempre (para Ana Farrah Baunilha)
O amor faz aquela figuração toda no trapézio, com sua roupa cintilante, e, quando começamos a gostar dele, espatifa a cara no picadeiro, como um palhaço de terceira.
Questão de gosto
Só não digo que estou completamente desiludido porque não gosto das verdades absolutas.
Verissimiana
Sabe-se, desde que a cultura chinesa
foi revelada por Marco Polo,
que o poeta deve olhar para o céu.
Mas como posso eu, com este torcicolo?
foi revelada por Marco Polo,
que o poeta deve olhar para o céu.
Mas como posso eu, com este torcicolo?
No lucro
A melhor crítica que um velho poeta pode receber é a de ser bizarramente juvenil quando fala de amor.
Freud (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira de Cunha)
Era um sofá feio, eviscerado, gemente, cheio de alusões psicanalíticas.
Na pior hipótese
Se não conseguirmos despertar o amor, que os gritos com que o chamarmos demonstrem pelo menos algum heroísmo lírico.
Isso e mais isso
Sejamos românticos, ainda que nos arrisquemos a ser ridículos. Próximo está o dia em que já não poderemos ser nem uma coisa nem outra.
Mofo
Morrer por amor é coisa antiga, escrita à mão, como as receitas de macarronada no fundo da gaveta da avó.
Quatro ou oito
Eu cheguei a saber o nome da beleza. Era curto, coisa de três letras ou quatro, seis talvez, oito no máximo. Eu o pronunciava com uma paixão que me matava. Para não morrer eu o esqueci.
Recato (para Marcelo Mirisola e Diego Moraes)
Minha tristeza não se manifesta em público. Receia que riam dela e de suas lágrimas antiquadas. Minha tristeza era menina quando se viciou nos boleros do Trio Los Panchos.
Declaração (para Celina Portocarrero)
Amo os sofrimentos decuplicados
suburbanamente alto-falanteados -
aqueles ais que iniciados
não acabam mais.
suburbanamente alto-falanteados -
aqueles ais que iniciados
não acabam mais.
Aristarquices
No sonho fui venturosamente drummond até começar o pesadelo e eu precisar me defender de acusações gramaticais relacionadas com os verbos ter e haver e certa pedra.
Fragmentos
Fragmentos é uma palavra poética. Dá ideia de solidão, de fome, de órfãos numa rua nevada, abraçando-se não para sobreviver, mas para morrerem irmanados pelo frio.
Tristeza
Tenho sentido uma tristeza grande, como se eu fosse um menino e me dissessem que viver é um lugar bonito ao qual eu eu nunca pudesse ir.
Opiniático (para Marisa Lajolo)
Aos dezoito anos, ele já era um homem compenetrado. Não tinha vivido ainda, mas suas opiniões sobre a morte interessariam ao Padre Vieira.
Coelho travesso
O amor passou tão depressa
Que o homem, aparvalhado,
Se pergunta, ainda deitado:
Mas que sensação foi essa?
Que o homem, aparvalhado,
Se pergunta, ainda deitado:
Mas que sensação foi essa?
Brincadeirinhas (Para Silvana Guimarães)
O que ocorre com as quadrinhas é que elas são bonitas, mas tão tolinhas. São para brincar de pega-pega num parque, de tardezinha. Não são para casar.
Non grata
A poesia? Não estou. Na última vez que veio, ela me disse que ia parar de atender parnasianos.
Início de "Quase uma vida", de Graham Greene
"Eu não sabia que todo o futuro devia estar, todo o tempo, naquelas ruas de Berkhamsted. A High Street era larga como uma praça, mas sua ampla dignidade foi abusada, após a Primeira Grande Guerra, pelo novo cinema, sob um verde edifício mourisco que afinal era bem pequeno mas que nos pareceu então o máximo de luxo pretensioso e gosto duvidoso."
(Tradução de Jorge Arnaldo Fortes, Artenova.)
(Tradução de Jorge Arnaldo Fortes, Artenova.)
domingo, 9 de abril de 2017
Barra limpa
A poesia pode até virar bolsinha na esquina. Quem vai dizer o quê? Com aquela carinha de causa nobre... E com a recomendação de Dante Alighieri.
Providência extrema
As cartas de amor devem ser queimadas assim que chegam. É a única forma de lhes conservar a honestidade.
Figurino
Juventude é uma dessas palavras que não me vestem mais. Meu corpo mudou muito, tanto. E minha alma.
Finalmente
Às quatro da tarde entendeu o que o periquito vinha tentando cantar desde cedo: o hino do Corinthians.
Dona de casa
A literatura nem sempre é mandona como dizem. Ela só quer, de vez em quando, dar uma ajeitada na vida.
Licença para matar
Se fosse sua a mão direita com a faca, eu pediria que você calasse meu coração atormentado e queixoso.
Ele de novo
Ele não precisará dizer o nome. Será o Amor, você logo verá, embora ele jure se chamar Sofia ou Quitéria, com aquela voz de arrepiar e enternecer montanhas.
Na medida
Se o que você sente é amor, não receie ser pródigo; tema ser avarento. Dê o coração, dê a alma, e ainda será pouco.
Ela
Nem sei se era maldade. Talvez ela fosse apenas um ser singular. Chamava os meus poemas, até os mais longos, de aquele versinho. Às vezes acrescentava: gostei dele.
Adestramento (para Ana Farrah Baunilha)
Nossa tristeza há de ser ensinada a ir até aquele ponto extremo a partir do qual um passo a mais será um princípio de suicídio.
Você em casa
Se você vier me visitar, mostro para você a minha coleção de pertences poéticos. O nome é muito pedante, eu sei, mas são só cartinhas de amor, embalagens de sonho de valsa, coisas assim. Cada uma tem uma história. Você gosta de histórias tristes?
Fim de tarde (para Celina Portocarrero)
Cochilo com a gananciosa esperança de que dois haicais venham me pousar nas pálpebras.
Vítima
Pobre linguagem! Sempre em busca de nos ajudar naquilo que nem nós sabemos o que é e que chamamos de poesia.
Mania de grandeza
Ao romancista o personagem parecia perfeito para o papel de homem simplório. Mas, assim que o colocou numa passagem do romance, os outros personagens, talvez por ironia, começaram a tratá-lo de tu e de vós.
Na revista Rubem hoje
falo de um vampiro comensal e de outras esquisitices (www.rubem.wordpress.com)
"Como rasurar a paisagem", de Ana Cristina Cesar
"a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria
secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta"
(De Poética, Companhia das Letras.)
é um tempo morto
fictício retorno à simetria
secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta"
(De Poética, Companhia das Letras.)
sábado, 8 de abril de 2017
Pris
Ela me irritava. Não me deixava ir tomar café, queria que eu ficasse no msn. São pontuais hoje meus cafés, e amargos.
A lição (para Silvana Guimarães)
Ana C. hoje me explicou o conceito de liberdade na arte. Falou uns cinco minutos. No primeiro eu já estava apaixonado pela professora.
Parágrafo inicial do Livro dos Mitos (para Paulo Roberto Unzelte e Vitor Guedes)
Lembro-me de que estávamos em 1951, aquele ano em que o Palmeiras não foi campeão.
Perto do fim
Você chegou até aqui. Você vem de tão longe. Não é mais hora de perguntar se foi boa ideia ter trazido a poesia. Ela não lhe pergunta nada, nunca. O que você responderia se ela lhe perguntasse?
As 30 moedas (para Mariana Ianelli)
Ser Judas, por que não?,
desde que me paguem os 30 siclos,
tostão por tostão.
(A propósito de uma crônica da Mariana publicada hoje na revista Rubem (www.rubem.wordpress.com)
desde que me paguem os 30 siclos,
tostão por tostão.
(A propósito de uma crônica da Mariana publicada hoje na revista Rubem (www.rubem.wordpress.com)
O dom da astúcia (para Ana Farrah Baunilha)
Era um gato refinado, que sabia assobiar valsas para atrair deliciosos cisnes.
Sem papo
Há poetas tão fanáticos que, se encontram na rua um romancista, não lhe concedem um minuto de prosa.
De jeito nenhum
Não, você não chegaria a me amar com tanta paixão que a minha ausência a fizesse deixar de comer aquele seu bifão com batatas no Viena.
Indelicadeza
Quando me dizem que alguém já morreu, me incomodo. Fica sempre a impressão de que morrer é só uma questão de tempo.
Abuso
Acho desrespeitosas as frases em que alguém diz não haver tempo hábil para isso ou para aquilo. Além de tudo com que já o sobrecarregamos, o tempo precisará ter também habilidade?
À mão
Que bom ter o amor sempre disponível, com seus ombros tão afeitos a suportar nossos chiliques.
Ana C.
Ana Cristina César tem me ensinado algumas coisas. Ainda não sei bem o quê. É grande, é bonito. Tem a ver com a liberdade que se conquista com o sofrimento.
Febre
Tudo que não seja escrever me irrita exasperadamente. Tudo que não seja esta busca, esta esperança renovada, este constante flerte com o fracasso, é uma violência contra mim.
Dica
Aos seus amigos recentes não mostre fotos suas daquela época. Diga-lhes que liguem para mim. Eu lhes falarei da sua beleza.
Conversa franca
Sei que parece meio injusto, mas quando penso em você hoje eu a imagino capaz de matar um gato novo e bobinho, se ele for meu.
"Sonho", de Ana Cristina Cesar
"Entre os complementos
uma massa se agita,
indecisa.
Por sobre os remendos
uma nuvem se estica,
esbranquecida.
Unindo os membros
uma luz principia,
unida.
Entre os complementos."
(Do livro Poética, Companhia das Letras.)
uma massa se agita,
indecisa.
Por sobre os remendos
uma nuvem se estica,
esbranquecida.
Unindo os membros
uma luz principia,
unida.
Entre os complementos."
(Do livro Poética, Companhia das Letras.)
sexta-feira, 7 de abril de 2017
Numa boa
Às vezes a poesia está em se dizer que hoje acordamos assobiando e depois tomamos um puta banho.
Requisito proverbial (para Gianluca e Nicole)
Cesteiro que faz um cesto precisa fazer pelo menos mais cem para merecer o nome.
Oportunismo
Os escritores que datam minuciosamente seus textos, com dia, mês e hora, me parecem menos preocupados com o estilo do que com as biografias futuras.
Comunicado
Não tenho mais tempo para aguardar os frutos maduros. Os que me vêm eu sopro e entrego ao leitor, se houver algum e se os quiser.
Testemunho
Um cachorro desses bem vira-lateiros lhe ensinará mais sobre a lua, em três latidos, do que qualquer poeta poderia.
Meninos, eu vi
Os versos parnasianos rapidamente se apoderaram do cisne, o afogaram no lago e levaram sua alma para daná-la no Parnaso.
Difícil
Você acha mesmo que, com tanta cidade aqui perto, aquele seu pombo inútil ia deixar seu recado de amor na minha casa?
Página 2 (para Mariana Ianelli)
Um poema é mais ou menos como a seção de cartas no jornal: há sempre um poeta queixando-se do amor.
Instrução (para Ana Farrah Baunilha)
Pegue um pedaço de amor e esprema-o bem espremidinho. Derrame o líquido no jardim. Se as rosas morrerem, é culpa sua.
Antes
Difícil era a vida do caçador antes do ambientalmente e do politicamente corretos: um leão por dia.
Editorial (para Silvana Guimarães)
Escrevo de manhã, à tarde, à noite. Mal, mal, sempre mal, Penso em escrever também de madrugada.
Essa classe
Tenho alma de lacaio, essa classe que às vezes julga ter dons poéticos e imagina, conforme a mão de quem lhe atira migalhas, ver nelas estrelas, e as engole com culpa.
Manobra
Quando o violinista foi ao banheiro, o bêbado subornou o pianista para que tocasse Fascinação.
A brincadeira
Eu morreria de fome um instante depois, se não me antecipasse e não apanhasse no ar o osso destinado ao cachorro. Fui tão acrobático e certeiro que, sob aplausos, acabei substituindo o cão na brincadeira.
Fugacidade
O pior da juventude não foi passar tão rápido. Foi ter levado com ela nossos pés ligeiros e deixado em seu lugar estes, que gemem a cada passo.
Início do conto "O porto marítimo", de Vladimir Nabokov
"A barbearia de teto baixo cheirava a rosas murchas. Mutucas zumbiam acaloradas, pesadas. O sol batia no piso,em poças de mel derretido."
(Do livro Contos reunidos, tradução de José Rubens Siqueira, Alfaguara.)
(Do livro Contos reunidos, tradução de José Rubens Siqueira, Alfaguara.)
quinta-feira, 6 de abril de 2017
Imperdoáveis
Ah, a maldade invejosa com que se comenta que tal autor, ou autora, teve sorte de morrer jovem, porque jamais conseguiriam escrever nada melhor. Às vezes a juventude incomoda. O sucesso, também. Juventude e sucesso, juntos, costumam ser intoleráveis.
Hoje
Hoje os prazeres antigos
São como esquecidos fatos,
Mofados como retratos
De indestinguíveis amigos.
São como esquecidos fatos,
Mofados como retratos
De indestinguíveis amigos.
Disfarce
O que me encantava nela era o jeito de moleca. Demorei um bocado para descobrir que era um disfarce. Era uma senhora de hábitos morigerados (!!!). Amava o lar e as novelas da Globo.
Consoantes (para Priscylla Mariuszka Moskevitch)
O golpe fatal veio quando ela começou a interromper nossos papos no msn para ver o bbb.
Peculiaridade (para o Xico Sá)
Se a música não for da Núbia Lafayette, periga o inferninho ser uma sucursal do céu.
Alterosos (para Luiz Roberto Guedes)
Os mineiros não conhecem a diferença entre pão e queijo. Só conhecem o queijo.
Modéstia
Ora, deixe disso, Capistrano. Você precisa ter mais autoestima. Os poetas de hoje não sabem a diferença entre um pardal e uma andorinha.
Lado bom
Com as redes sociais, descobrimos que não há assunto sobre o qual cada um de nós não tenha ao menos uma opinião.
Sofrimento
O poeta sofre como todos os outros homens, com uma diferença: a de supor que só ele tem esse direito.
Dica
Se o poeta tiver como saber o que há de bijuterias no que escreve, convém eliminá-las. Se não souber distingui-las, paciência. De vez em quando elas funcionam.
Bilhete (para Silvana Guimarães)
O entusiasmo vai bem, exceto por alguns acessos de tosse ainda parnasiana e as notícias de sempre, aquelas de que a poesia morreu.
Pesadelo futebolístico (para o Vitão Guedes)
No meio de um sono tumultuado, vejo-me num estádio, no Dia do Juízo Final, e ouço: segunda divisão!
Teatro? (para Luiz Carlos Cardoso, Oswaldo Mendes, Paula Giannini, Priscila Luz Gontijo Soares e Regina Helena Paiva Ramos)
Lendo hoje no Estadão uma entrevista de Cacá Rosset a João Wady Cury, vi uma palavra: teatro. Teatro? Teatro? Alguma coisa, o famoso sinal de reconhecimento, se acendeu lentamente na memória envergonhada. Pois é, teatro. Falar de teatro, atualmente, exige quase uma explicação: que diabo é mesmo teatro? Cacá Rosset diz o que foi o teatro em São Paulo. Ah, bons tempos em que a palavra tinha tanto significado. Parece que não precisamos mais de teatro. Para que ele servia mesmo?
Modernidade (para Luiz Roberto Guedes)
Já foi mais tranquilo usar pássaros em poemas. Agora eles cobram cachê.
Nota de pé de página (para Luiz Roberto Guedes)
Um passarinho num poema nunca chega a ser um defeito.
Ingredientes (para Henrique Fendrich)
Numa crônica, desde 1900, se observarmos bem, há sempre alguma flor ou algum passarinho.
Família
Santo de casa não faz milagre. Escritor também não, a menos que seja especialista em romances nos quais o mel escorre em dois terços das páginas.
Época de ouro
Era mais fácil a vida dos cronistas. Quando os leitores diminuíam, bastava requentar um texto antigo que falasse da morte de uma árvore ou de um sabiá.
Estatística
Se há ainda quem tenha em casa um daqueles modelos antigos de amor em São Paulo, deve morar num dos lugares aos quais os pesquisadores não têm acesso.
Porcentagem
Se um dia ou outro alguém reconhece uma ou duas qualidades em você, está dentro da média.
Levando-nos (para Ana Farrah Baunilha)
Na literatura podemos tudo: levar-nos até a página 112 de um romance novelesco ou morrer na página única de um poema, sob a forma de cisne.
Tapete (para Estela do Patrocínio)
Quando estamos de cara no chão e chega um daqueles chatos e precisamos dizer, embora eles nunca entendam, que perdemos uma estrela no tapete.
Penúltima cena
Então a princesa enxugou minhas lágrimas não com os lábios, mas com o lencinho de papel, e me disse: ah, meu bobinho, não vai ser possível, você é tão plebeu e eu sou tão comprometida com o meu reino.
Democracia (para Alfredo Aquino)
Os bons poetas têm acesso às flores e aos pássaros. Os maus poetas também.
Morte (para Silvana Guimarães)
Para os antigos
e bem-comportados
talvez a morte venha a ser
o romântico tresloucamento
de uma orquestra de violinos embriagados
e uma explosão fosforescente
de cores e letras maiúsculas:
the end.
e bem-comportados
talvez a morte venha a ser
o romântico tresloucamento
de uma orquestra de violinos embriagados
e uma explosão fosforescente
de cores e letras maiúsculas:
the end.
Ousadia (para Ana Farrah Baunilha)
O que não ousamos na vida podemos ousar na literatura. Para isso é que ela serve: para amarmos desastrosamente, para sofrermos inconsolavelmente, para morrermos com o punhal do romantismo espetado no coração.
Supraescolar
Lembra-se, poeta? Você já culpou o romantismo, o parnasianismo, o concretismo. Você, poeta, não erra nunca e, quando erra, seu advogado de defesa é você.
Bonde 22 (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)
Você correu, mas o bonde do modernismo já estava fazendo a curva e sumindo. Você só teve tempo de ver o aceno galhofeiro de Oswald de Andrade, no estribo.
Garrote
Que pressão fazem sobre seus autores as frases curtas, sempre querendo mostrar que podiam ser encurtadas ainda mais.
Mesmo que seja
Morrer aos poucos, e com prazer, mesmo que seja só uma pontinha, tem todo o jeito de pecado.
Bem o tipo
Com esta cara, se eu puser pantufas, ficarei tão convincente e silencioso quanto aqueles aterrorizantes fantasmas velhos.
Metódico
Que antipático é quem faz tudo com base num padrão: ama sistematicamente, sofre sistematicamente, é sistematicamente abandonado.
Função (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)
Não há nada mais triste do que um gerúndio velho: está sempre sofrendo, chorando, morrendo.
Início de "Vulgo, Grace", de Margaret Atwood"
"O ano é 1851. No meu próximo aniversário farei vinte e quatro anos. Estou trancada aqui desde os dezesseis. Sou uma prisioneira modelo, e não dou trabalho. É o que diz a esposa do Governador."
(Tradução de Maria J. Silveira, Editora Marco Zero.)
(Tradução de Maria J. Silveira, Editora Marco Zero.)
quarta-feira, 5 de abril de 2017
Mesmo que (para Luiz Roberto Guedes)
Eu gostaria de não ser tão velho e poder ainda me envolver com alguma coisa atual, mesmo que fosse a matemática moderna.
Entre as dez
A gramática é uma das megeras mais citadas. Luta por posição com a matemática no ranking da antipatia.
Mario Quintana (para Silvia Galant François)
Encontrei o Quintana num sonho. Nós nos apertamos as mãos. Ele deixou na minha respingos de arco-íris.
Em dois tempos (para Ana Farrah Baunilha)
Primeiro o amor nos manda tirar toda a roupa. Depois, nos chama de indecentes.
De longe (para Maria Luiza Mendes Furia)
Poeta antigo, nunca chegou a estar na moda. Ficou sempre distante, acompanhando tudo ora triste, ora ressentidamente.
... da mesma moeda (para Marcos Júnior Micheletti)
Poetas e palhaços têm sempre algo em comum, para honra dos poetas.
Brás (para Rose Marinho Prado)
Não há nada mais cafona e lírico do que um realejo na esquina reproduzindo "Fascinação".
Ou não é? (Para Rose Marinho Prado)
Se a gramática não vivesse mudando, seria intoleravelmente chata.
Na ponta da língua
Dizem que Ruy Barbosa falava muito bem o inglês. Acredito. Mas fico imaginando o sotaque.
Grau máximo
Algazarra era aquilo que as pombas faziam quando sobrevoavam a casa de Raimundo Correia.
Crepúsculo
Zeloso jardineiro, o sol vai fechando os olhos de suas rosas, e o vento começa a niná-las, para que não se assustem quando a noite descer inteira.
Bênção (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)
Se a poesia chega a mim, que sou este ser bruto, e por alguns momentos me dá uma face humana, quem haverá de exprimir a beleza do rosto daqueles que a recebem por sua nobreza e merecimento?
Bis
Embora se diga que não, dos poetas e dos mágicos se esperam sempre as mesmas cartolas e os mesmos pássaros.
Clínica televisiva
Quando ouço esses especialistas que curam defeitos do corpo pela tevê, incomodo-me com os que tratam dos chamados problemas posturais. Postura deveria ser preocupação de galinhas, penso eu.
De como
Se lhe pedirem a definição de amor, o melhor a fazer é tentar lembrar-se não do que você pensava dele na juventude, mas de como você o sentia na alma nesse tempo em que você sabia ter uma.
Início de "Um vagabundo toca em surdina", de Knut Hamsun
"O ano anunciava-se bom para as frutas selvagens: amoras, mirtilos, uvas-bravas. Não se pode, evidentemente, viver de pomos silvestres, mas a sua presença empresta ao bosque um ar festivo. E quantas vezes nos refrescam a sede e nos matam a fome.
Foi no que ontem de tarde pensei."
(Tradução de Raquel Bensliman, Clube do Livro.)
Foi no que ontem de tarde pensei."
(Tradução de Raquel Bensliman, Clube do Livro.)
terça-feira, 4 de abril de 2017
Onteontem
Onteontem é muito melhor que anteontem. Qualquer criança sabe disso. Surpreende-me que Guimarães Rosa não tenha sugerido isso. Ou sugeriu?
Sobre atribuições
Um editor me disse, há alguns anos, que eu estava escrevendo muito - querendo fazer-me compreender que eu não estava escrevendo bem. Hoje a observação seria ainda mais apropriada. Minha única defesa era, como é agora, simples: o que deve, afinal, fazer um escritor?
Para quê?
Tanto esforço, tanta febre, tanto tempo gasto para ser alguém, e, seja você quem for agora, amanhã ou depois começarão a dizer: ele foi, ele era.
Ana Cristina Cesar (para Silvana Guimarães)
Foi mais ou menos na quarta leitura que Ana C. começou a se fazer entender em mim. Sou muito velho e estúpido (só hoje notei a falta de acento em Cesar). Se um dia me conhecesse, ela talvez não sentisse pena nem baixasse a voz: escroto. Eu, vaiado pela sempre presente meia dúzia de circunstantes, escaparia para tão longe quanto pudessem me levar meus passos parnasianos.
Deixar pra lá
Assim como ocorre com as mãos de um padeiro, é melhor você não conhecer o coração de um poeta.
Justiça
Poetas líricos são aqueles que não estranharíamos se tivessem um violino onde têm o coração.
Um deles
Dos dons que atribuem aos poetas, o que eu escolheria é o de tocar a nota mais aguda e exata da tristeza.
Frustração
Embora tenha sempre desejado, jamais consegui ser desavergonhadamente lírico. Nunca subi a uma árvore e declarei ser um rouxinol.
Folhas
Saberás, quando couberem a ti, como podem ser ao mesmo tempo tristes e doces os últimos dias. Aprenderás o que dizem as folhas e entenderás finalmente o que elas sempre quiseram dizer-te.
Novas faces do feio (para Deonísio da Silva)
Como se a língua portuguesa já não estivesse suficientemente feia no Brasil, os neologistas, esses incansáveis inventores de deformidades, vêm agora com esse horror, mistura de atacado e varejo: atacarejo. O sinônimo será certamente varecado.
Melhor assim
Se eu houvesse feito o óbvio, o presumivelmente certo, o amor não teria me ensinado o que de melhor se pode aprender com ele: a linguagem das lágrimas. Teria, em troca, dez ou quinze dessas fotos tiradas em improváveis domingos, nas quais, algum tempo depois, não se vê a luminosa exaltação que se pensava sentir.
Início de "Contraponto", de Aldous Huxley
" - Não vais voltar tarde? Havia ansiedade na voz de Marjorie Carling, qualquer coisa que parecia uma súplica.
- Não, eu não voltarei tarde - respondeu Walter, com a certeza infeliz e cerimoniosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborrecia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na dor."
(Tradução de Érico Verissimo e Leonel Vallandro, Editora Abril.)
- Não, eu não voltarei tarde - respondeu Walter, com a certeza infeliz e cerimoniosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborrecia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na dor."
(Tradução de Érico Verissimo e Leonel Vallandro, Editora Abril.)
segunda-feira, 3 de abril de 2017
Nobiliarquia (para Angela Brasil, Ernesto Ferreira, Liberato Vieira da Cunha, Lúcia Maia e Silvia Galant François)
Ora, francamente, concederam ao Marquês de Maricá a honraria, e não deram a Mario Quintana, até hoje, o título de Arquiduque de Alegrete.
Até isso
Da gramática é possível esperar os piores desaforos. Basta dizer que até os palavrões estão sob sua alçada.
Reminiscência
Ando muito sentimental. Hoje me comovi ao lembrar o lema de uma padaria do meu tempo de menino: servir bem para servir sempre.
Estouvadinha (para Ana Farrah Baunilha)
A gente avisa, avisa, e, quando vai ver, lá está a cautela de novo com água até o pescoço. Toda cautela é mouca.
Os mesmos
Poetas que dizem não entender o amor são os mesmos que se proclamam seus maiores conhecedores.
Timbre (para Silvia Galant François)
Sua poesia melhorou depois que sua voz interior começou a soar levemente parecida com a de Mario Quintana.
Circunstancialidade
Meu bom humor é como uma dessas roupas que se usam só em ocasiões muito especiais.
Carência
Como é difícil a poesia do cotidiano: estar andando pela rua e não ter um cisne sequer à disposição.
O jeito
Os antigos já sabiam que, se a intenção fosse escrever bonitinho, era melhor recorrer à caligrafia do que à poesia.
Uma e outra (para Arlete Franco e Mariana Ianelli)
A prosa pode contentar-se com a exatidão. A poesia deve aspirar à perfeição.
Chefinhos (para Marina Seda)
Os filósofos não se satisfazem em pensar. Querem obrigar-nos a fazer o mesmo.
Do ofício poético (para Silvana Guimarães)
O poeta deve responsabilizar-se apenas pela área de miudezas. Se as recriar com naturalidade, ninguém lhe pedirá mais do que isso. Se as transformar em ouro, quem há de acusá-lo de mistificação?
Cochilo
Todos temos um momento de esplendor único. Devo ter estado muito ocupado com o amor quando o meu passou.
Para emergências (para Arlene Colucci)
A um poeta, ainda que jovem, convém reservar espaço para uma rosa naqueles poemas em que o amor pareça ranzinza e difícil de exprimir.
Atenuante (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)
Aos gramáticos mais ferozes sempre resta a desculpa de que tiveram uma infância infeliz.
Fora de mercado
Adianta-me continuar invocando Deus? Nem o Diabo se interessa mais por mim e já nem pergunta mais como vai minha alma.
Pontaria
Assim como as do amor, as setas da poesia frequentemente atingem o alvo errado. Continue tentando.
O sofá (para Aden Leonardo e Tuca Kors)
Digamos que você tenha adotado um gatinho e esteja mostrando a casa a ele: aqui é isto, ali é isso, acolá é aquilo. Ele olha tudo com enfado. Quando, com ele no colo, você se senta no sofá, ele demonstra certo interesse. A primeira coisa que fará, quando estiver sozinho, será acomodar-se ali. Pronto, você perdeu seu lugar, a menos que ele aceite a ideia de compartilhamento.
Início de "Os subterrâneos do Vaticano", de André Gide
"Em 1890, sob o pontificado de Leão XIII, o renome do Doutor X..., especialista em moléstias de origem reumática, levou a Roma o mação Anthime Armand Dubois.
- Como! - exclamou Julius de Baragflioul, seu cunhado. - É do corpo que você vai cuidar em Roma? Faço votos que perceba, lá chegando, que a maior doente é a sua alma!"
(Tradução de Miroel Silveira e Isa Leal, Abril Cultural.)
- Como! - exclamou Julius de Baragflioul, seu cunhado. - É do corpo que você vai cuidar em Roma? Faço votos que perceba, lá chegando, que a maior doente é a sua alma!"
(Tradução de Miroel Silveira e Isa Leal, Abril Cultural.)
domingo, 2 de abril de 2017
Como você puder (para Liberato Vieira da Cunha e Silvana Guimarães)
O senso de proporção, inerente à arte, impede às vezes a alma de se exprimir em sua crua inteireza. Se você não é Camões, seja o melhor Luís Vaz que puder ser.
Minha alma
Minha alma, quem me indicou, quem me impôs a ti? Minha alma, quem te fez isso, quem pode odiar-te tanto?
Final de expediente
Não tive nenhum freguês hoje, mas mantive a loja aberta. Quem oferece artigos como a tristeza e a melancolia, e tão bem os conhece, só pode supor que os domingos são dias como quaisquer outros.
Decadência (para Gianluca e Nicole)
Exclamações não assustam mais nem crianças, mesmo que antecedidas por palavras como Drácula.
Impressões
A melhor impressão que um editor tem de um escritor não é a primeira. É a segunda, a terceira, a quarta...