domingo, 30 de abril de 2017

30/4

Abril reservou para o seu último dia a mais aguda punhalada.

Um pouco, talvez, de poesia

http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/um-pouco-de-tudo/

Sobre a verdade

Esperar que a verdade seja revelada por um poeta é depreciá-lo. A verdade é presumivelmente autossuficiente e maçante, e nem os filósofos se importam mais em descobri-la, embora mantenham seu ar empertigado e seus livros em quintas e sextas edições. Depois que surgiu o conceito de utilidade, qualquer parafuso ou arruela precisam responder para que servem. O que a verdade, se quisesse nos convencer, alegaria em sua defesa?

O grande erro

Repugna-me recordar ocasiões em que vi o amor com olhos que não eram estritamente os do espírito. Se lhe damos nomes, o amor começa a morrer quando passamos a gritá-los em noites de febre. O amor, se por algum nome for chamado, que seja por um que a brisa possa dizer numa manhã de sol, num parque.

Golpe baixo

Como é triste, em livros de ficção, o aviso: baseado em fatos reais.

Simples assim

Que delícia foi ouvir hoje, na feira, o vendedor responder que os caquis estavam docíssimos. Um pedante como eu teria dito dulcíssimos.

Rancor

Ela não me perdoou por eu lhe ter dito que jamais alguém a veria tão bela quanto a vi naquela manhã.

De novo

Deixou a chuva molhar seus lábios antes de dizer a palavra amor novamente com esperança, não mais toda a inicial, mas alguma - ainda que  tão ineficaz como todas as outras.

Um trecho de Nabokov

"Era comum aconselhar-se a todos os jovens escritores que evitassem a aliteração, e o conselho era válido para evitar seu uso exagerado. Não obstante, era em essência um disparate abominável, mero delírio do mais cego dos cegos. A beleza do conteúdo de uma frase depende implicitamente da aliteração e da assonância. A vogal exige ser repetida; a consoante exige ser repetida; e ambas clamam para serem eternamente variadas."

(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)

sábado, 29 de abril de 2017

Perfil do haicai

Ao haicai assentam bem a humildade e a modéstia. Ele não é um passarinho súbito aparecendo e desaparecendo no mesmo instante, com um fio no bico. Ele é só um passarinho que aos olhos certos pareça ter um fio no bico.

Agonia e êxtase

Atingido por Cupido, o poeta puxa do peito a seta com uma aliteração e uma rima e a beija, beija, beija, mártir abençoando seu martírio.

Regulamentação

Para evitar ridicularias, aos poetas românticos deveria conceder-se licença de acordo com sua idade, sendo a faixa inicial quinze anos, e trinta e cinco a última.

Como no início

Palavras como rosa, mar e primavera deveriam ser sempre ouvidas como se ditas a primeira vez por lábios maravilhados pelo  assombro.

Recaída

E no entanto
acabamos sempre voltando
a escrever.

Ele/ela

Ela era toda poesia
leveza rosa
ele era rudeza
áspera prosa

Amaram-se
cada qual dentro do seu gênero
ela um amor eterno
ele um romance efêmero.

O que te restou

Foram-se todos os dias.
Sobrou-te este, o derradeiro,
Igual, na dor, ao primeiro
E nas parcas alegrias.

Neutralidade

Meu bacalhau é norueguês
e da melhor marca.
Não me importa saber
o que há de podre
no reino da Dinamarca.

Ah, o futuro

Empolgada com o relato das aventuras amorosas da irmã de dezessete anos, a garota de doze espera que, quando chegar sua vez, lhe caiba também um namorado com uma bunda ampla, que ela possa acertar com o chute final sem precisar concentrar-se.

Um trecho de Vladimir Nabokov

"A literatura não nasceu no dia em que um menino chegou correndo e gritando 'lobo, lobo', vindo de um vale neandertal com um grande lobo cinzento em seus calcanhares: a literatura nasceu no dia em que um  menino chegou gritando 'lobo, lobo', e não havia nenhum lobo atrás dele. Pouco importa que, por mentir com frequência, o pobre garotinho finalmente tenha sido devorado por um animal de verdade. O importante é que, entre o lobo em meio ao capim alto e o lobo na história pouco crível, há um elo cintilante. Esse vínculo, esse prisma, é a arte da literatura."

(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Um aqui, outro lá

Enquanto o poeta romântico tempera um cisne para o jantar, o concretista, em seu leito de pedra, sonha com pirâmides e com egitos.

Requentando Drummond

Querer que a poesia
seja mais que uma rima
é licença poética,
não é uma solução.

Extremos no centro

É quando se aceita como tolo que ele se sente mais triste e mais feliz ao mesmo tempo. Tristeza aguda, felicidade plena. São ocasiões nas quais ele se lastima por Deus não o ter feito poeta. Talvez belas palavras pudessem nascer disso.

Utilidade única

Pelo que vejo na internet, os maridos não servem para nada, a não ser para as brigas e as reconciliações.

Preparativos

Pelo bem do teu futuro
acostuma-te com o frio
e habitua-te com o escuro.

Conselhos finais

Chega o tempo em que devemos aprender a lidar com enfermeiros e a mimar as mulheres que levam aos quartos a bandeja de comida, se quisermos garantir um punhado a mais de açúcar ou uma pitada extra de sal para os nossos últimos dias.

Novo recado para o gajo

Meu caro Fernando, morreste há tanto tempo, mas os semideuses que te aporrinhavam andam à minha volta. Gritam para dentro dos meus ouvidos versos mentirosamente tejanos e, se os ameaço, mandam-me comer dobradinha fria e proclamam jamais haverem levado porrada.

Quanto valemos

Se tivéssemos sido importantes, estaríamos aqui fora, entre os homens que recolhem o lixo? De dentro vêm gritos que esperam o ônibus tardio. Nenhuma voz é a nossa. Não nos permitiram sequer um lugar na plateia.

Estado de espírito

Indiferença, resignação e desistência são palavras que vão pertencendo cada vez mais ao meu modo de ver a vida. Não acrescento desdém para não parecer definitivamente um misantropo.

Início de "Adeus, Columbus", de Philip Roth

"A primeira vez que vi Brenda, ela me pediu para segurar seus óculos."

(Tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras.)

Hoje, no portal do Estadão,

falo da inquietante palavra "tudo".

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quinta-feira, 27 de abril de 2017

Terceiro ato, penúltima cena (para Luiz Carlos Cardoso)

Faz uma hora já que encomendei a cicuta.
Por Zeus e por todos os outros deuses,
Onde está aquele entregador filho da puta?

Haicai

Viver é uma goteira.
Só se morre depois
da gota derradeira.

Má companhia (para o Gianluca e a Nicole)

É um gato muito pequeno. Ainda não aprendeu a lidar com seus sonhos. Neles costuma aparecer uma ratona que sempre finge ser sua mãe. Às vezes ele acredita e deixa que ela coma na sua tigela.

Sinopse

O resumo de minha história é simples. Não aprendi a linguagem da poesia; não há história.

Plágio

Basta a literatura dar um cochilo e lá vai a vida furtar-lhe uma história. Tantas Kariêninas e Bovarys que seriam perfeitas se não lhes faltasse um toque de Tolstói ou Flaubert.

... o que é de César

Às vezes, no meio de um texto, obrigo-me a dizer eu, para marcar meu direito sobre algumas coisas, principalmente as tristes.

Diploma

Uma de nossas mais frequentes bravatas é dizermos que estamos prontos para morrer, como se a morte fosse uma disciplina que se pudesse aprender com apostilas, empenho e provas bimestrais.

Voto vencido

Quando se lembra do amor, ele mesmo já está disposto a acreditar que tudo foi uma criancice, e essa simulação de maturidade acalma seu coração.

Burla

As mulheres que o visitam em sonhos não conseguem disfarçar-se, ainda que mudem o penteado e se vistam como se estivessem em 2017. São garotas da década de 1960, algumas cursaram o o colégio com ele. Uma delas, mais ardilosa que as outras, maneja um celular. Ele está para ser enganado quando desperta.

Outrora agora (para o gajo Fernando)

Nos sonhos do velho cão, ecoam às vezes ainda, certas noites, seus próprios juvenis latidos, e suas patas se movem como se fosse possível agora, finalmente, deter a caravana que, para escapar, se embrenha no âmago das trevas.

Salvaguarda

A razão, se não lhe impusermos limites, é bem capaz de negar, diante de nossos fascinados olhos, a existência de um arco-íris.

Trilha sonora

Não acredito em epifanias ruidosas, precedidas e acompanhadas por tambores e clarins. Talvez um violino, um só, que soe como se não soasse.

Havemos de ser perdoados
Como aos bons vivos convém
E aos mortos cabe também
Desde que bem- comportados.

Apoteose

Correu todos os riscos do lirismo e, quando começou a se erguer depois de estourar o nariz ao cair do trapézio, viu que tinha agradado. Entre gargalhadas, os espectadores gritavam: mais, mais. Voltou para o trapézio, principalmente pela moça cujos olhos verdes talvez não estivessem lacrimejando só pelo riso.

De Vladimir Nabokov, sobre "Ulisses", de James Joyce

"Qual é o tema principal do livro? Muito simples.
1. O passado irrevogável. O filho pequeno de Bloom morrera havia muito tempo, mas a visão dele permanece em seu sangue seu cérebro.
2. O presente ridículo e trágico. Bloom ainda ama a mulher, Molly, porém permite que o destino assuma o controle. Sabe que, às 4h30 da tarde daquele dia de meados de junho, Molly será visitada pelo charmoso Boylan, seu empresário e agente musical - mas nada faz para impedi-lo. Busca cuidadosamente afastar-se do caminho do destino, porém de fato, durante todo o dia, está sempre muito perto de esbarrar em Boylan.
3. O futuro patético. Bloom também fica se encontrando com outro jovem, Stephen Dedalus, e aos poucos se dá conta de que isso pode corresponder a mais uma pequena atenção do destino. Se sua mulher precisa ter amantes, Stephen, sensível e artístico, seria melhor que o vulgar Boylan. Na verdade, Bloom especula pateticamente que Stephen poderia ensinar Molly e ajudá-la a pronunciar palavras em italiano em sua profissão de cantora de ópera, exercendo uma influência benéfica em matéria de refinamento.
Este é o principal tema: Bloom e o destino."

(De Lições de literatura, tradução de Jorio Dauster, Editora Três Estrelas.)

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Sobre um amor tresloucado

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Gaveta do meio

Numa pasta de recortes cabe toda a minha fortuna crítica.

Mario Quintana (para Ernesto Ferreira, Lúcia Maia e Silvia Galant François)

Tenho a impressão de que os passarões abominados por Mario Quintana eram parentes dos poetas condoreiros.

Pés no chão

Foi certamente um poeta concretista, ou um simpatizante da causa, que criou a expressão "bens de raiz garantem futuro feliz".

Sintoma

Quando desfaço da poesia, todos imediatamente sabem que ela me negou alguma coisa.

Liquidação

Oferta de livraria: cinco paralelepípedos de genuína poesia concreta pelo preço de três. Frete gratuito.

Imanência

O haicai é um
gato preto no escuro
dormindo.

Regresso

O haicai é por onde
a poesia se esgueira
para o silêncio.

Mimos (para Ana Farrah Baunilha)

Ainda há quem considere um poema uma espécie de caixinha de bombons, se bem que uma caixinha de bombons, ah, uma caixinha de bombons...

Pistas (para Liberato Vieira da Cunha)

Poetas românticos, quando davam pela falta da alma, não sabiam se iam procurá-la no inferno ou na casa da donzela mais próxima.

Petições

Era comum as estrelas irem perturbar os sonos dodecassilábicos de Olavo Bilac para apresentar queixas sobre  os maus modos da lua.

Lampejo

Estamos mortos todo o tempo, a não ser naqueles instantes em que a poesia nos julga dignos de sua atenção e nos olha como se reconhecesse em nós o rapazinho para quem piscou na são joão, na manhã de 2 ou de 22 de outubro de 1951.

Amplitude

Vejam só que pé-direito, convidou o poeta concretista, erguendo o braço para abarcar todo o seu poema.

Logradouro

Num parque paulistano, devemos dar graças se só as dúvidas filosóficas nos assaltarem.

De Joseph Brodsky, sobre Anna Akhmátova

"Ela era positivamente linda. Com 1,77 metro, cabelos escuros, pele branca, olhos cinzento-claros semelhantes aos dos leopardos da neve, esbelta e incrivelmente graciosa, por meio século ela foi desenhada, pintada, esculpida, entalhada e fotografada por uma multidão de artistas, a começar por Amedeo Modigliani. Quanto aos poemas dedicados a ela, ocupariam mais volumes do que suas próprias obras reunidas."

(De Menos que um, tradução de Sergio Flaksman, Companhia das Letras.)

terça-feira, 25 de abril de 2017

Boletins médicos (para Deonísio da Silva)

De tantos em tantos anos, as reformas gramaticais vêm nos avisar como anda o estado de saúde dos hifens.

Transgressão (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)

Nos melhores poemas parnasianos brasileiros há um calor clandestino, que passou sabe-se lá como pelos olhos frios dos mestres da escola. Bilac fez a maior parte dessas molecagens.

Um trecho de Joseph Brodsky

"Por mais modesto que seja o lugar que você ocupa, se ele tiver o menor resquício de decência, pode ter certeza de que algum dia alguém vai entrar e reclamá-lo para si ou, o que é pior, sugerir que você o divida com ele. Nesse momento, ou você luta por seu lugar ou o abandona. No meu caso, sempre preferi a segunda opção. Não que eu fosse incapaz de lutar, mas por absoluto nojo de mim mesmo: conseguir uma coisa que exerce atração sobre os outros denota certa vulgaridade em sua escolha. Não tem a menor importância o fato de você ter chegado lá primeiro. É pior ainda chegar primeiro a um lugar, porque aqueles que vêm depois sempre estarão com um apetite mais intenso que o seu, já em parte satisfeito."

(De Menos que um, tradução de Sergio Flaksman, Companhia das Letras.)

Síntese (para Silvana Guimarães)

tudo meu é passado
tudo fraco
tudo fosco
tudo opaco
tudo apagado
exceto o imaginado.

As sobreviventes (para Henrique Fendrich)

A crônica e a poesia são como gatos. Vivem morrendo e ressuscitando. Felizmente, parece que têm ressuscitado mais do que morrido.

A dúvida (para Alfredo Aquino)

O homem dava uma caminhada pelo parque quando teve uma dúvida: para que serve a poesia? Parou, coçou o queixo, não lhe veio a solução. Olhou então para cima e viu um passarinho. Interrompo a história aqui. Receio que a dúvida tenha persistido.

As três palavras

O lirismo está morto faz muito tempo - dizem que há anos, que há décadas, que há mais de um século. Mas a notícia não deve ter circulado como devia. Ainda, aqui e ali, se abre um jornal ou uma revista, mais comumente um blog, e lá estão, em maiúsculas, as inimagináveis palavras: SONETO DE AMOR.

Queixa

Há quem esteja satisfeito com o que recebe da poesia. A mim, ela não entregou nem a loucura básica que logo ao primeiro olhar vejo, com inveja mortal, no rosto dos seus eleitos.

Itinerário (para Edilaine Lopes)

Só as folhas sopradas por um vento poeta sabem como chegar a Pasárgada.

Gongorismo (para Djanira Pio)

Amo o dramalhão. Sou dos que gritam "ai, estou morrendo" com a saudável voz de gemadas matutinas.

Lançamento

Diante da fila alvoroçada, o poeta concretista começou a suar frio: havia esquecido em casa o preguinho de autografar.

Consciência

Ainda há poetas honestos que pegam as rimas, as cheiram e as examinam antes de colocá-las em circulação.

Um pouco de Lobo Antunes

"Foda-se, pensou o médico aterrado, inalando o perfume semelhante a gás de guerra de 14 que se soltava em rolos letais da nuca da mulher, o faria eu se estivesse em meu lugar?"

(De Memória de elefante, Editora Alfaguara.)

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Sem pensar (para Arlene Colucci e Carmen Ruiz)

Ficar triste é já, em mim, um hábito como sair de casa sem relógio.

Usos e costumes

A literatura é um vício que talvez um dia um homem possa admitir na hora mais clara de uma manhã de domingo.

Defesa do consumidor

Todo poema concreto deveria vir com um manual de instruções e cinco anos de garantia.

Estilo de vida (para Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)

A meu modo sobrevivo,
Bem menos rico que pobre,
Bem mais vassalo que nobre,
Já bem mais morto que vivo.

Logística

Sempre que lhe fazem o pedido, o concretista Petrus Petronicus autoriza a exibição dos seus dois grandiosos poemas épicos, desde que os organizadores lhe garantam uma carreta apropriada.

Dica de almanaque

Rosas concretistas não precisam ser periodicamente regadas. Um lenço levemente embebido num bom lustra-móveis é suficiente para lhes manter o brilho.

Marcos

De boas intenções e de poemas concretistas o caminho do inferno está cheio.

O início

Uma trajetória poética costuma começar quando alguém pensa ter algo a dizer, geralmente uma tristeza, e não desiste imediatamente.

Entregas canceladas

Não gosto das gracinhas que faço. Tenho consciência de sua futilidade. Mas a tristeza vem falhando tanto comigo...

Código de obras

Num poema concretista
a chave de ouro
é o habite-se.

Catástrofe

Depois de dois dias de aguaceiro
o poema concreto
desaba sobre um formigueiro.

Martelinho de ouro

Não tenho visto mais aquelas pequenas lojas especializadas em consertar poemas concretos.

O que é

Morte com foice na mão
ou com tesoura
parece assombração
ou espantalho de lavoura.

Um trecho de António Lobo Antunes

"Espectador extasiado do próprio sofrimento, projectava reformular o passado quando não era capaz de lutar pelo presente. Cobarde e vaidoso, fugia de se olhar nos olhos, de entender a sua realidade de cadáver inútil, e de iniciar a angustiosa aprendizagem de estar vivo."

(De Memória de elefante, Editora Alfaguara.)

domingo, 23 de abril de 2017

Modelo (para Silvana Guimarães)

O poema ideal talvez fosse aquele que pusesse um cisne a flutuar num lago com a lua sem precisar de mais que quatro ou cinco palavras.

Aspirações

Os parnasianos sonhavam com esculturas; os concretistas, com pirâmides.

Decadência

Já fui mais autêntico, já chorei melhor. As palavras têm me deturpado. Como era libertador aquele choro de soluços e de ranho lambido.

Saudade

O que falta ao meu sofrimento de hoje é aquela assunção de martírio, aquela esperança de poesia.

Medida

Por mais sonhador que seja, um poeta deve ter senso de proporção. Que seja o que puder ser, e que se considere até um pouco maior do que é, desde que não queira ser Camões.

Misticismo de ocasião

Em alguns, um poema tem o dom apenas de acentuar o tom aparvalhado, São os falsos místicos, para os quais o horizonte é sempre a mosca na parede.

Epifania

Na aula de física
a poética intromissão:
vento é o ar em movimento.

Exceções

Poemas concretos
com janelas para sonhos
eram para concretistas bisonhos.

Postura municipal

Os poemas concretos deveriam ser assinados não por um poeta, mas pelo engenheiro responsável.

www.rubem.wordpress.com

Hoje na Revista Rubem falo daquilo que melhor conheço: miudezas, bijuterias, inutilidades.

De Leandro Karnal sobre Shakespeare

"Somos todos anões. Subir no ombro de gigantes permite-nos contemplar um horizonte espetacular. Happy birthday, Will!"

(Da coluna de hoje no Caderno 2 do Estadão.)

sábado, 22 de abril de 2017

Perda de tempo

Ficar conversando com seus botões não dá camisa a ninguém.

Avaliação

Amor é uma palavra que ainda rende alguma coisa, ainda que seja só uma frase triste.

O nome

O salva-vidas que foi socorrer o poeta com a respiração boca a boca começou a sentir seus beijos retribuídos e a ouvir um nome: amélia, amélia.

Início de "Memória de elefante", de António Lobo Antunes

"O Hospital em que  trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o  sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
   - A quotazinha da Sociedade, senhor doutor."

(Editora Alfaguara.)

Acordo

Minha loucura não me morde mais quando vou alimentá-la.

Cena

O bonde do modernismo já passou há um século, mas ainda há quem corra tentando alcançá-lo, gritando: ei, Oswald, ei, Mário. Os parnasianos continuam diante do Municipal, com aquele ar de indignação, esperando que cheguem os cocheiros com as majestosas carruagens.

Conselho

Talvez você esteja certo em sua opinião e não tenha jeito nenhum para a arte. Mas talvez seja esse o seu maior trunfo para não desistir. Faça a arte como se você fosse o único capaz de, até por autocondescendência, dar-lhe atenção. Talvez dois ou três, ou quatro ou cinco, acabem um dia achando interessante isso que você faz. Mais do que isso é já um começo de presunção.

Vocação

Com seis anos ele deu o primeiro sinal do seu talento poético: aprendeu a contar até doze e dedilhou um alexandrino.

O trunfo

Aos escritores que se mostram mais resistentes o Diabo reserva a tentação final: aparece-lhes num sonho como ruiva fatal e num beijo lhes introduz na boca a palavra Estocolmo.

Emergência

Foram socorrer o poeta que se afogava. Por dois minutos pareceu impossível salvá-lo, até que ele começou a verter pela boca os ahs, ós e ohs acumulados a vida toda.

Balcão

O Diabo conhece bem os escritores: querem dar a alma de segunda e receber obras de primeira.

Suspeição

Não leiam autobiografias de poetas. Eles são capazes de inventar que, quando garotos, a mãe, já lhes conhecendo a vocação, os fazia esvaziar alegremente panelas de sopa de letrinhas.

Como era

Os românticos não beijavam. Pousavam os lábios devassos sobre lábios virgens e desmaiavam em êxtases angelicamente carnais.

Sumo pecado

A transgressão mais voluptuosa de um poeta parnasiano era beijar uma estátua depois de contornar-lhe esmeradamente a boca de batom.

Difícil versão

Nas traduções de poesia concreta
às vezes não fica
pedra sobre pedra.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Conceito (*)

Arte é uma pá
dessas que lavram
o mundo.

(*) Isto me veio hoje como o sopro de um espírito. Ou será um plágio, há muito tempo incubado, finalmente conseguindo se expressar?

Solidez

Se concreta for a poesia
o ideal é fazê-la
em alvenaria.

Per aspera ad astram

Os escritores antigos eram excelentes guardiões de sua glória. Para evitar problemas, cuidavam com exemplar antecedência até dos dizeres de sua lápide funerária.

Rosibéis (para Rose Marinho Prado)

Os poetas de megafone derrubam quarteirões com suas rosas suburbanas.

Atributos (para Aden Leonardo e Ana Farrah Baunilha)

O poeta é um ser tropeçante. Está sempre sujeito a quedas amorosas e suas recaídas.

Assepsia

Enjoadíssimo aquele poeta que não dava a ninguém a mão com a qual escrevia seus versos.

Negócio (para Alfredo Aquino, Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Deu a alma ao Diabo e em troca recebeu inspiração para uma peça - Julieta e Romeu - na qual viria logo a notar um tom shakespeariano.

Revisão

Nos dias atuais, os sonetos seriam bem melhores que as emendas.

Qual anjo

O poeta devia ter alma pura e bons modos. Havia coisas que jamais podia fazer. Uma era emporcalhar sua harpa com gordura de sanduíche.

Autobiografia, capítulo I

Eu já nasci velho. Para piorar, deram-me leite parnasiano na mamadeira.

9,5

Nunca tive um poema censurado. Sempre fui um poeta ordeiro. Com dezoito anos, eu já era aplaudido por poetas quinquagenários. Para não me darem sempre nota dez, às vezes me censuravam um enjambement ou uma rima.

Sob medida (para Celina Portocarrero)

Haicai é a forma que a poesia
para si mesma cem
em cem vezes escolheria.

Oi, doidinha

Hoje no portal do Estadão (www.estadao.com.br) publico um modelo de mensagem romântica, com os chavões do gênero.

"Solidão", de Giuseppe Ungaretti

"Mas os meus gritos
ferem
como raios
a abafada campana

Despencam-se
apavorados."

(De A alegria, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, Editora Record.)

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Mesquinhez

Por que, Deus, tanto cansaço,
Tanto desgosto sofrido,
Tendes vós me retribuído
Com tão sovino fracasso?

São Paulo, SP

Como os outros meninos
eu conheci a geografia
de puteiros useiros
de hotéis clandestinos
de treme-tremes vezeiros

Hoje irremediavelmente velho
se fosse andar deveria
escolher caminhos sérios
respeitáveis hospitais
centenários cemitérios.

Persistência

Se já naquele tempo eu não fosse triste, hoje não me recordaria de nada. Quem há, de tantos anos depois, ter do seu dia mais importante a lembrança de uma gargalhada?

"Silêncio", de Giuseppe Ungaretti

"Conheço uma cidade
que cada dia se enche de sol
e tudo é raptado nessa hora

Dela parti uma tarde

No coração perdurava o limar
das cigarras

Do navio
laqueado de branco
vi
minha cidade sumir
deixando
por um instante
no ar toldado um abraço de luzes
suspensas."

(Do livro A alegria, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, Editora Record.)

quarta-feira, 19 de abril de 2017

A senha

A lembrança do amor, se fomos nós que o matamos, deve ficar na gaveta mais distante da memória e precisará ser puxada aos poucos, lágrima a lágrima.

Mudanças

Cantar e proclamar são verbos que pertencem ao passado da poesia. Sugerir e insinuar parecem mais adequados e, talvez até, desistir e renunciar.

Naquela época

Aprendi alguns truques. Cheguei a pensar que neles estava toda a poesia. Se eu tivesse sido humilde, poderia continuar feliz até hoje.

Crédito

Foi preciso vir drummond
nos ensinar que num poema
a rima pode ser mais um problema
do que uma solução.

Leveza

O tom de poesia que hoje me convém está entre uma música leve, bem leve, quase inaudível, e o silêncio.

Trapaça

Como devem sorrir intimamente os que veem o estrépito religioso com que defendo a poesia, como se a representasse legalmente. Eu, que poderia, quando muito, redigir razoavelmente uma ata de condomínio.

Ativismo

Poesia é a escolha ideal se a intenção é atrair não menos de cinco e não mais de dez pessoas.

Blá-blá-blá

Como é enfadonha a sabedoria que gira em torno de si mesma, para sentir a vertigem do sucesso.

"Arguição da soberba", de Adélia Prado

"O que de pronto se mostra
palpitante e acabado
vazando precioso entre cacófatos
se ri do poeta
ocupado em limpar textículos:
ó truão,
no poema como no quadro
os olhos estão no umbigo."

(De Poesia reunida, Editora Record.)

terça-feira, 18 de abril de 2017

Vice-versa (para Silvana Guimarães)

Assim que se descobriu poeta, começou a ver outras coisas em todas as coisas. Ou foi o contrário?

... e caldo de galinha (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Diga o que disser a gramática, convém escrever Diabo com a inicial maiúscula. Sabe-se lá onde estaremos amanhã...

Outros tempos

Os viadutos paulistanos há muito não veem aqueles jovens e tristes poetas que por dois segundos ou três conseguiam flutuar como flores atiradas a um lago.

Tanto quanto

O que há em subestimar-se
pior do que há
em glorificar-se?

Laudo

Por que não falar?
Acho que devo. Não valho
A bic com que escrevo.

Doce anonimato

Se ele e ela soubessem quem nunca fui, o passarinho não cantaria na minha ameixeira.

Soberba

Atrevo-me a escrever, ainda. Quando apreenderei o tamanho exato de minha pequenez?

O bigode branco da foto

Meu avô foi general. Ele não se orgulharia do neto.

Datas

Meu diário é simples. Nele ninguém lerá Paris 14 de setembro ou Nova York 31 de dezembro.

Alívios

Venho me consolando com miudezas: não ter sido quem disse um desaforo à dona Nilza nem quem atropelou o gato do seu Nicolau.

Biblioteca

Meus olhos vêm se recusando a se fixar na estante, certamente para me pouparem de comparações com o que escrevo.

Percepção

Escrever um diário é, no início, uma presunção: somos alguém, e esperamos que um dia todos saibam. Depois, vamos notando que nos repetimos e começamos a suspeitar dessa grandeza de tão parco repertório. E chegamos ao ponto no qual descobrimos que importante é o que narramos - uma gatinha recém-nascida, um pombo morto de frio -, não quem narra.

Balanço

Sempre fui um desses que procuram levar a sério todos os sentimentos. Busquei para eles as melhores palavras, as perfeitas, e descobri que nenhum deles as merece, nunca. Amor é, de todos, o exemplo mais triste.

Fachada

Eu gostaria de ter um olhar místico, uma insinuação de mistério no rosto. Sei que não melhoraria meu estilo, mas seria mais agradável sorrir para mim, na hora de me barbear.

Teste

Sou simples. Preciso me comover antes de tentar comover alguém.

Delivery

Nem a própria esperança nega
que de tudo que promete
nem metade da metade entrega.

"No lago", de Bai Juyi (772-846)

"dois monges da montanha frente a frente
jogam xadrez entre os bambus a sombra
entre os bambus frescor ninguém se vê
por vezes ouve-se uma peça move."

(De Antologia da poesia clássica chinesa - Dinastia Tang, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, LiEditora Unesp.)

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Historinha (para Rose Marinho Prado)

Há sessenta anos eu prometi viver para a poesia. Continuo vivo, cada dia mais gordo. A poesia deve estar no meu ventre, e não é uma flor.

Acerto

Chegando à sombria esquina
o homem ofereceu ao poeta
um passarinho como propina.

Cena doméstica

Minha tristeza geme no sofá, como um gato desenganado.

Excluído

Um dos meus problemas é que, tantas décadas depois, ainda não fui  apresentado ao mundo atual.

Tecnologia

Nem sei mais do que vivo.
Já tive esperança
Mas perdi o aplicativo.

Domingo no parque

O homem chega ao parque, pega o papel no bolso, começa a ler em voz alta embaixo de uma árvore.
Passarinhos vêm de todos os cantos e vão ocupando os galhos. O homem se entusiasma, lê com maior convicção seu poema. Sente-se como se estivesse num teatro. Três homens e três mulheres se aproximam e param. Correndo vem um menino de uns seis anos que pergunta: "O que é isso que ele tá falando?" Os adultos, que já ouviram o suficiente, dizem: "Nada. É só poesia." O garoto pede: "Quero poesia." Mas logo é puxado. Uma das mulheres convida: "Vamos pro escorregador." O menino aceita a troca sem perguntar o que é poesia. O poeta continua a declamar para os passarinhos.


Ocasião

Não é na ventura nem na felicidade que a alma costuma se manifestar.

Reflexão

Se o amor fosse mesmo grandioso como você o imaginou, você o mereceria?

Culpa

Serás cobrado por todos os teus atos, principalmente por aqueles que praticaste contra a poesia.

Horror

Sabe hoje perfeitamente o que é. E pensa, com uma suspeita que já vai se transformando numa quase certeza, se não era assim também na época em que se achava digno de lidar com a poesia.

Codinome

Ele teve acesso à planilha e descobriu que nela constava como Chorão.

Dourando o passado

O que você aprendeu com os sonhos é que eles são necessários para se poder, muito tempo depois, com o ar mais triste que se tiver, começar frases assim: ah, naquela época, eu...

Insanidade

Hoje, quando qualquer aspiração é risível, você se pergunta como pôde julgar naquele tempo que havia algo em você que lhe permitisse sonhar com a poesia.

Obrigação

Um poeta lírico deve ter, diariamente, pelo menos uma palavra a dizer sobre o amor, mesmo que seja a pior delas.

Jeito

Modere a força quando der aquele bico no amor. Não o chute para longe demais. Há arrependimentos que se manifestam já no dia seguinte, e tão clamorosamente.

Início de "Um século de boa vida", de Jorge Guinle

"A primeira vez que viajei a Nova York foi em 1949. Estava em Paris e a situação prenunciava estouro de guerra mundial. Abril. Dois meses antes, tinha feito 23 anos.Mussolini invadiu a Albânia. Tensão. Naquele tempo era difícil telefonar, mesmo em seu próprio país. Mas meu pai me alcançou num telefonema internacional e recomendou:
   "Meu filho, acho melhor você voltar para o Brasil."

(Editora Globo.)

domingo, 16 de abril de 2017

Haicai (para Celina Portocarrero)

O pombo sedento
bica a calçada seca
bebe água de cimento.

A mesma música (para Rose Marinho Prado)

Os domingos e feriados são parte da velha enganação. Fogos, bandeirinhas, fanfarras. O poeta deve vigiar bem sua alma, para que ela não vá correndo juntar-se aos que, levados pela música, exibem até o último e estúpido dente ao sol.

Moleque

Devias ter vergonha nessa tua cara. Quem te autorizou a falar do amor com tanta irresponsabilidade?

Cotação do dia (para a Pris)

Sei que te faço falta quando olhas para todos esses ao teu redor e não vês nenhum que possa ser o bobo da corte.

Olor de santidade

Tomara que as feridas do amor cheirem mesmo como as rosas. Elas começam a aflorar em todo o teu corpo.

Justa causa

O amor cresceu tanto nele que não coube mais no seu coração e escapuliu quando teve a primeira oportunidade.

Mais do mesmo

Tudo bem, denuncie o amor, vá em frente. Mas não faça esse escândalo todo, como se você fosse o primeiro. Há muito tempo, já, tudo que se diz do amor está catalogado na prateleira dos plágios.

Ordinais

A partir da segunda vez
e da terceira
o amor nunca mais é
como na primeira.

Estações

Só depois de muitos anos
Comecei a ficar velho.
Tristeza já é outra questão.
Ser triste foi em mim sempre uma vocação.

À meia-luz

Os livros espalham o amarelo do seu outono pelas estantes frias do sebo.

Chefe

Se na morte de um homem tolo estiver envolvido um sujeito composto, ao amor caberá a maior pena, sejam quantos e quais forem os outros participantes.

Agrafia

Não tive tempo de conhecer a letra dela. O único sentimento que lhe despertei foi o enfado, e quem há de escrever cartas para um ser enfadonho?

Prêmio

É comum, quando choramos, dizerem que parecemos crianças. Pode haver melhor incentivo para nossas lágrimas?

Disciplina

Chorar é um aprendizado. Sejamos gratos se o oferecerem e se o merecermos.

Astúcia

Sou um monstro. Sempre soube capitalizar meus infortúnios amorosos e colocá-los na próspera conta da poesia.

Felicidade

Fico feliz quando minha tristeza toca a campainha e atendem.

Gesto extremo

A poesia deve ser usada como último recurso, quando o amor tiver desdenhado todos os outros truques com aquele seu sarcasmo.

Operação Vate

A categoria dos poetas infiltrou-se no governo e conseguiu o monopólio das lágrimas.

"O que a musa eterna canta", de Adélia Prado

"Cesse de vez meu vão desejo
de que o poema sirva a todas as fomes.
Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar:
'Tenho birra de que me chamem de intelectual,
sou um homem como todos os outros'.
Ah, que sabedoria, como todos os outros,
a quem bastou descobrir:
letras eu quero é pra pedir emprego,
agradecer favores,
escrever meu nome completo.
O mais são as maltraçadas linhas."

(De Poesia reunida, Editora Record.)

sábado, 15 de abril de 2017

Perfeição (para Rhuana Amaral)

O amor é o melhor photoshop que existe. Melhora até a alma.

Cotação do dia

Chegamos ao centro do palco, nos apunhalamos no peito, urramos amor com nosso último alento e a única resposta que temos é um riso de escárnio e o ruído de pipocas avidamente remexidas.

Drama

Chorar é a melhor forma que temos de mostrar a nós mesmos que estamos vivos. Mas somente a nós. Os outros não se importam conosco e nós também há muito já desistimos de os ver na plateia.

Glória

Superlativo é o inevitável momento em que um adjetivo assume sua vocação de prima-dona.

Pudicícia

O poeta chapa-branca
chama teta de seio
e bunda de anca.

Força do hábito

Os provérbios são tão presunçosos que até quando tossem imaginam estar transmitindo sabedoria.

Imponência

Quando penso nos provérbios, imagino sempre velhos empertigados, de cachimbo, que podem dizer tudo, até que fumar é nocivo, entre artísticas baforadas.

Perfil

O tempo zomba de nossa pompa e de nossa vaidade. O rosto que imaginamos ter vai sendo alterado por ele até se transformar no que verdadeiramente é: uma caricatura.

Ideal

Fazer arte pela arte é um conceito difícil de sustentar, mas - justamente por isso - de uma extraordinária beleza.

Descuido

Mesmo quem escreve prosa há de manter o prazer das descobertas, dos pequenos milagres que podem, como na poesia, surgir aqui e ali, se o estilo não se mostrar demasiado autossuficiente. Esses prodígios dependem muito menos de técnicas que de confiança no acaso.

Mídia

Se você tentou expressar algo muito profundamente, e suas palavras soaram como as de um vendedor de produtos sanitários numa rua de periferia, tente a poesia. Talvez ela possa ajudá-lo, se o que você quer exprimir for, por exemplo, uma aflição de amor.

"Mandala", de Adélia Prado

"Minha ficção maior é Jonathan,
mas, como é poética, existe
e porque existe me mata
e me faz renascer a cada ciclo
de paixão e de sonho."

(De Poesia reunida, Editora Record.)

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Além do mérito

Se o Marquês de Maricá recebeu o título por suas frases, devia considerar-se muito bem recompensado.

Todos

Abandonei meus vícios, todos. O amor? Bem, eu...

Velozes

Os ideais são como passarinhos. Passam e deixam no ar, quando deixam, só um pio.

Das estações da carne

A carne também tem sua primavera, seu inverno, seu verão. Floresce, frutifica, sofre. E, no outono, assume a mais triste dos amarelos.

Haicai de quintal

O vento senil
presume uma rosa branca
e lambe uma calcinha no varal.

No "Estadão",

falo de minhas desventurosas aventuras na internet.

Jeito

No sucesso das frases curtas quase sempre há mais sorte, um jeito, certa boa vontade das palavras, do que propriamente o espírito que lhes é atribuído.

Alvará

Chore à vontade, muito, chore torrentes. Chore agora, enquanto ainda há tempo. Hoje você é tão inimputável quanto um garoto de seis anos.

Fortuna

Viu que só tinha o niilismo para compartilhar, e mesmo esse já não era tão intenso quanto na melhor época.

"Aurora na primavera", de Meng Haoran (689-740)

"O sono ignora a aurora à primavera,
por tudo, em torno, pássaros se ouvem.
A noite foi-se em sons de chuva e vento,
flores caíram - quantas, saber como?"

(Tradução de Ricardo Prino Portugal e Tan Xiao, Editora Unesp.)

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Fora de época (para Marcos Gomes e Ronaldo Dias)

Se eu tivesse morrido, digamos, em 2010, seria hoje um defunto respeitável, com sete anos de prática.

Juridiquês

A quem de forma presunçosa
poeta se chama e proclama
cabe o ônus da prova.

O sobrevivente

A garça conseguiu salvar um dos haicais. Os outros se afogaram no lago.

Cartada final

Pensou até em matar uma borboleta ou um passarinho, mas logo ficou óbvio que o poema não iria melhorar muito.

Análise

Vocês me olham, pensam um pouco, avaliam. Talvez eu seja um escritor. Eu também às vezes me analiso assim.

O velho safado

Abri ontem à noite um livro do Bukowski e um mormaço inquietantemente sexual impregnou o ar, misturado a uísque e tabaco.

Deslize

Basta um dito mal dito
e o mérito torna-se demérito
e o perito transforma-se em périto.

Dever

A prosa pode até esquivar-se, mas a poesia não deve nunca dizer-se indiferente à beleza.

Astúcia

O bloqueio do qual se queixam os escritores, e que os deixa sem assunto nenhum, é quase sempre o modo a que recorrem exatamente para ter um assunto, qualquer um.

A desculpa

A poesia ainda é o melhor dos álibis. Ela tem os ombros largos. Justifica os projetos fracassados, glorifica ninharias e dá um tom heroico às derrotas.

"Noite de outono na montanha", de Wang Wei (701-761)

"Montanha vazia depois da chuva
o ar ao fim da tarde traz outono
Dentre os pinheiros brilha luz da lua
sobre os rochedos flui límpida fonte
Barulho aos bambus riem as lavadeiras
movem-se lótus vêm barcos à pesca
Acaso foi-se o odor da primavera:
senhor, que tudo guardes em ti mesmo."

(De Antologia da poesia clássica chinesa - Dinastia Tang, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, Editora Unesp.)

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Geração

Ainda somos os mesmos.
Nada aprendemos
Com Belchior.

A verdadeira história

Adão e Eva furtaram Deus e foram morar num Paraíso fiscal.

De grego

A longevidade é, sim, um prêmio para quem ainda não a conquistou.

Método

A verdade é tão doída que, para arrancá-la de mim, preciso me torturar.

No mínimo

Se um gato, qualquer gato, não for melhor que um homem, qualquer homem, tudo está errado com ele.

Defesa (para Renato Vieira Ostrowski)

Fui acusado de mandar meus poemas a paraísos fiscais. E, no entanto, eles sempre estiveram aqui debaixo do colchão comprado nas casas bahia.

Operação Bardo (para Silvana Guimarães)

Na sua delação premiada, o poeta confirmou o que já se sabia: culpou a poesia.

O momento

Quando o momento chegar
O amor inteiro se dê
Sem tempo de perguntar
Nem por que nem para quê.

Engodo (para Celina Portocarrero)

Ledo engano -
a van da floricultura
tentando ser haicai urbano.

Cotação do dia

Humilhação: até o sol
quando me vê
finge que não.

"Dia", de Adélia Prado

"As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -,
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo
mas gostando muito."

(De Poesia reunida, Editora Record.)

terça-feira, 11 de abril de 2017

Parque (para Silvia Galant François)

"Viu o Quintana?"
"Ali, ó."
"Naquela árvore?"
"Na outra."
"Aquela do passarinho?"

RJ (Para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Por enquanto vêm furtando só as próteses. Está por estourar o escândalo das epênteses e das paragoges.

Registro

Fontes fidedignas nem sempre são as que constam nos rótulos de água mineral.

As provas

Um poeta romântico que não tenha morrido pelo menos duas vezes por amor não merece confiança.

O tipo

Hipocondríaco é aquele sujeito que sempre dá mais uma chance às suas doenças.

Hipocondríaco

Sou um velho consumidor de antidepressivos. Quando comecei a tomá-los, as bulas de alguns estavam ainda na primeira edição.

Pecados antigos

Eu também escrevi versos empertigados, querendo que fossem meus cartões de visita. E dobrava a ponta de cada um, com a minha sociabilidade disciplinadamente adquirida.

De jeito

Façamos de conta que o amor não nos causa nenhum estrago e, se não pudermos nos imaginar um transatlântico rasgando as ondas, pensemos ser ao menos uma canoazinha cheia de dignidade, com uma proa levemente empinada.

Regrinha

Diante do amor, toda cautela é pouca e inútil.

Ainda que tarde

Talvez já estejamos mortos quando a ocasião chegar, mas quem há de ignorar o tardio chamamento do amor?

Para me gabar

Não posso me queixar. Sempre tive uma espécie de ignorância intuitiva.

Incongruência

Houve um tempo no qual imaginei que a poesia havia me escolhido para alguma coisa grandiosa - justo a mim, com estes modos de polonês tosco.

Dose

Duas gotas de lirismo nunca fazem mal a ninguém e são sempre melhores do que só uma.

Início de "Pulp", de Charles Bukowski

"Eu estava em meu escritório, o contrato de locação expirara e Mc Kelvey ia entrar com um processo de despejo. Fazia um calor dos diabos e o ar-condicionado pifara. Uma mosca rastejava sobre o tampo de minha mesa. Tasquei-lhe uma mãozada e a mandei pra fora de campo. Esfregava a mão na perna direita da calça quando o telefone tocou."

(Tradução de Marcos Santarrita, L&PM Editores.)

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Sempre, sempre (para Ana Farrah Baunilha)

O amor faz aquela figuração toda no trapézio, com sua roupa cintilante, e, quando começamos a gostar dele, espatifa a cara no picadeiro, como um palhaço de terceira.

Questão de gosto

Só não digo que estou completamente desiludido porque não gosto das verdades absolutas.

Plutopoetas

Há poetas que têm mãos de contar dinheiro.

Coluna da direita

No fim somos todos inúteis; alguns talvez com mérito.

Verissimiana

Sabe-se, desde que a cultura chinesa
foi revelada por Marco Polo,
que o poeta deve olhar para o céu.
Mas como posso eu, com este torcicolo?

No lucro

A melhor crítica que um velho poeta pode receber é a de ser bizarramente juvenil quando fala de amor.

Na pior hipótese

Se não conseguirmos despertar o amor, que os gritos com que o chamarmos demonstrem pelo menos algum heroísmo lírico.

Isso e mais isso

Sejamos românticos, ainda que nos arrisquemos a ser ridículos. Próximo está o dia em que já não poderemos ser nem uma coisa nem outra.

Tendência

Tudo que é bom é proibido. Dizem que até o Corinthians anda fazendo mal.

Mofo

Morrer por amor é coisa antiga, escrita à mão, como as receitas de macarronada no fundo da gaveta da avó.

Quatro ou oito

Eu cheguei a saber o nome da beleza. Era curto, coisa de três letras ou quatro, seis talvez, oito no máximo. Eu o pronunciava com uma paixão que me matava. Para não morrer eu o esqueci.

Recato (para Marcelo Mirisola e Diego Moraes)

Minha tristeza não se manifesta em público. Receia que riam dela e de suas lágrimas antiquadas. Minha tristeza era menina quando se viciou nos boleros do Trio Los Panchos.

Declaração (para Celina Portocarrero)

Amo os sofrimentos decuplicados
suburbanamente alto-falanteados -
aqueles ais que iniciados
não acabam mais.

Aristarquices

No sonho fui venturosamente drummond até começar o pesadelo e eu precisar me defender de acusações gramaticais relacionadas com os verbos ter e haver e certa pedra.

Fragmentos

Fragmentos é uma palavra poética. Dá ideia de solidão, de fome, de órfãos numa rua nevada, abraçando-se não para sobreviver, mas para morrerem irmanados pelo frio.

Alvoroço

Não, Ladislau, compenetração não é isso.

Valor atualizado

O amor, aquele, hoje não merece nem a amizade que se pudesse sentir por ele.

Tristeza

Tenho sentido uma tristeza grande, como se eu fosse um menino e me dissessem que viver é um lugar bonito ao qual eu eu nunca pudesse ir.

Opiniático (para Marisa Lajolo)

Aos dezoito anos, ele já era um homem compenetrado. Não tinha vivido ainda, mas suas opiniões sobre a morte interessariam ao Padre Vieira.

Coelho travesso

O amor passou tão depressa
Que o homem, aparvalhado,
Se pergunta, ainda deitado:
Mas que sensação foi essa?

Brincadeirinhas (Para Silvana Guimarães)

O que ocorre com as quadrinhas é que elas são bonitas, mas tão tolinhas. São para brincar de pega-pega num parque, de tardezinha. Não são para casar.

Non grata

A poesia? Não estou. Na última vez que veio, ela me disse que ia parar de atender parnasianos.

Início de "Quase uma vida", de Graham Greene

"Eu não sabia que todo o futuro devia estar, todo o tempo, naquelas ruas de Berkhamsted. A High Street era larga como uma praça, mas sua ampla dignidade foi abusada, após a Primeira Grande Guerra, pelo novo cinema, sob um verde edifício mourisco que afinal era bem pequeno mas que nos pareceu então o máximo de luxo pretensioso e gosto duvidoso."

(Tradução de Jorge Arnaldo Fortes, Artenova.)

domingo, 9 de abril de 2017

Barra limpa

A poesia pode até virar bolsinha na esquina. Quem vai dizer o quê? Com aquela carinha de causa nobre... E com a recomendação de Dante Alighieri.

Lá e cá

As aves que gorjeiam em palmeiras por aí não gorjeiam Corinthians como aqui.

Norma da casa

Se houver desperdício de beijos, suspenderemos o fornecimento.

Desvio

Até nas horas mais agás do sexo, os parnasianos contavam sílabas no ventre das musas amadas.

Em família

As sílabas poéticas cospem de lado quando são visitadas pelas primas gramaticais.

Providência extrema

As cartas de amor devem ser queimadas assim que chegam. É a única forma de lhes conservar a honestidade.

Figurino

Juventude é uma dessas palavras que não me vestem mais. Meu corpo mudou muito, tanto. E minha alma.

Finalmente

Às quatro da tarde entendeu o que o periquito vinha tentando cantar desde cedo: o hino do Corinthians.

Dona de casa

A literatura nem sempre é mandona como dizem. Ela só quer, de vez em quando, dar uma ajeitada na vida.

Licença para matar

Se fosse sua a mão direita com a faca, eu pediria que você calasse meu coração atormentado e queixoso.

Ele de novo

Ele não precisará dizer o nome. Será o Amor, você logo verá, embora ele jure se chamar Sofia ou Quitéria, com aquela voz de arrepiar e enternecer montanhas.

Na medida

Se o que você sente é amor, não receie ser pródigo; tema ser avarento. Dê o coração, dê a alma, e ainda será pouco.

Ela

Nem sei se era maldade. Talvez ela fosse apenas um ser singular. Chamava os meus poemas, até os mais longos, de aquele versinho. Às vezes acrescentava: gostei dele.

Adestramento (para Ana Farrah Baunilha)

Nossa tristeza há de ser ensinada a ir até aquele ponto extremo a partir do qual um passo a mais será um princípio de suicídio.

Manhã de domingo

Debaixo do chuveiro
um patriótico assobio:
o hino brasileiro

Você em casa

Se você vier me visitar, mostro para você a minha coleção de pertences poéticos. O nome é muito pedante, eu sei, mas são só cartinhas de amor, embalagens de sonho de valsa, coisas assim. Cada uma tem uma história. Você gosta de histórias tristes?

Fim de tarde (para Celina Portocarrero)

Cochilo com a gananciosa esperança de que dois haicais venham me pousar nas pálpebras.

Áveis, íveis, áveis

Cartas de amor são tão deixáveis de lado, tão esquecíveis, tão rasgáveis.

Vítima

Pobre linguagem! Sempre em busca de nos ajudar naquilo que nem nós sabemos o que é e que chamamos de poesia.

Mania de grandeza

Ao romancista o personagem parecia perfeito para o papel de homem simplório. Mas, assim que o colocou numa passagem do romance, os outros personagens, talvez por ironia, começaram a tratá-lo de tu e de vós.

Na revista Rubem hoje

falo de um vampiro comensal e de outras esquisitices (www.rubem.wordpress.com)

"Como rasurar a paisagem", de Ana Cristina Cesar

"a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta"

(De Poética, Companhia das Letras.)

sábado, 8 de abril de 2017

Pris

Ela me irritava. Não me deixava ir tomar café, queria que eu ficasse no msn. São pontuais hoje meus cafés, e amargos.

A lição (para Silvana Guimarães)

Ana C. hoje me explicou o conceito de liberdade na arte. Falou uns cinco minutos. No primeiro eu já estava apaixonado pela professora.

Uma das grandes

Uma das grandes mentiras dos poetas é quando dizem que estão cansados de chorar.

Perto do fim

Você chegou até aqui. Você vem de tão longe. Não é mais hora de perguntar se foi boa ideia ter trazido a poesia. Ela não lhe pergunta nada, nunca. O que você responderia se ela lhe perguntasse?

Siga a seta

Nós estaremos ali,
Será fácil nos achar.
Será aquele lugar
Em que se ler: jaz aqui.

As 30 moedas (para Mariana Ianelli)

Ser Judas, por que não?,
desde que me paguem os 30 siclos,
tostão por tostão.

(A propósito de uma crônica da Mariana publicada hoje na revista Rubem (www.rubem.wordpress.com)

O dom da astúcia (para Ana Farrah Baunilha)

Era um gato refinado, que sabia assobiar valsas para atrair deliciosos cisnes.

Sem papo

Há poetas tão fanáticos que, se encontram na rua um romancista, não lhe concedem um minuto de prosa.

Paciência

Não exijam demais dos poetas velhos. Hoje eles precisam da memória para relatar flores.

De jeito nenhum

Não, você não chegaria a me amar com tanta paixão que a minha ausência a fizesse deixar de comer aquele seu bifão com batatas no Viena.

O nome (para Gianluca e Nicole)

Vó, como chama aquele bicho que eu não sei falar o nome? Cato?

Carrascos (para Elenita Fogaça)

Romancistas matam personagens. Poetas matam passarinhos.

Indelicadeza

Quando me dizem que alguém já morreu, me incomodo. Fica sempre a impressão de que morrer é só uma questão de tempo.

Abuso

Acho desrespeitosas as frases em que alguém diz não haver tempo hábil para isso ou para aquilo. Além de tudo com que já o sobrecarregamos, o tempo precisará ter também habilidade?

Caracterização

Os cisnes são a forma que a poesia assume quando quer se mostrar branca.

À mão

Que bom ter o amor sempre disponível, com seus ombros tão afeitos a suportar nossos chiliques.

Ana C.

Ana Cristina César tem me ensinado algumas coisas. Ainda não sei bem o quê. É grande, é bonito. Tem a ver com a liberdade que se conquista com o sofrimento.

Febre

Tudo que não seja escrever me irrita exasperadamente. Tudo que não seja esta busca, esta esperança renovada, este constante flerte com o fracasso, é uma violência contra mim.

Dica

Aos seus amigos recentes não mostre fotos suas daquela época. Diga-lhes que liguem para mim. Eu lhes falarei da sua beleza.

Frase final de bilhete

Simplesmente você perdeu o hábito de pensar em mim.

Conversa franca

Sei que parece meio injusto, mas quando penso em você hoje eu a imagino capaz de matar um gato novo e bobinho, se ele for meu.

Expressões

Até há algum tempo, eu vivia no ainda não. Agora, vivo no não mais.

"Sonho", de Ana Cristina Cesar

"Entre os complementos
uma massa se agita,
indecisa.

Por sobre os remendos
uma nuvem se estica,
esbranquecida.

Unindo os membros
uma luz principia,
unida.

Entre os complementos."

(Do livro Poética, Companhia das Letras.)

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Faces (para Mariana Ianelli)

Bem ou mal
o difícil faz-se.
O fácil
é mais difícil.

Milagre

O haicai não nos avisa. Cai-nos na mão, como um prodígio.

Numa boa

Às vezes a poesia está em se dizer que hoje acordamos assobiando e depois tomamos um puta banho.

Perfumarias

Não gosto de expressões como pentear ou burilar um texto. Têm cheiro de desonestidade.

Requisito proverbial (para Gianluca e Nicole)

Cesteiro que faz um cesto precisa fazer pelo menos mais cem para merecer o nome.

Oportunismo

Os escritores que datam minuciosamente seus textos, com dia, mês e hora, me parecem menos preocupados com o estilo do que com as biografias futuras.

Norminha

Desconfie de qualquer verso que  lhe venha fácil. E dos difíceis desconfie um pouco mais.

Comunicado

Não tenho mais tempo para aguardar os frutos maduros. Os que me vêm eu sopro e entrego ao leitor, se houver algum e se os quiser.

Legado (para Marcelo Mirisola)

Legado é uma palavra tão pernóstica que é melhor não deixar nenhum.

Testemunho

Um cachorro desses bem vira-lateiros lhe ensinará mais sobre a lua, em três latidos, do que qualquer poeta poderia.

Meninos, eu vi

Os versos parnasianos rapidamente se apoderaram do cisne, o afogaram no lago e levaram sua alma para daná-la no Parnaso.

Difícil

Você acha mesmo que, com tanta cidade aqui perto, aquele seu pombo inútil ia deixar seu recado de amor na minha casa?

Empurrãozinho

Se você estiver hesitante à beira do abismo, o amor pode lhe dar uma ajuda.

Estabanado

O coração, quando cisma de poetar, é um trem descarrilado.

Página 2 (para Mariana Ianelli)

Um poema é mais ou menos como a seção de cartas no jornal: há sempre um poeta queixando-se do amor.

Instrução (para Ana Farrah Baunilha)

Pegue um pedaço de amor e esprema-o bem espremidinho. Derrame o líquido no jardim. Se as rosas morrerem, é culpa sua.

Significado

Nas cenas de quarto e cama das novelas eróticas, às vezes o mel é mel mesmo.

Antes

Difícil era a vida do caçador antes do ambientalmente e do politicamente corretos: um leão por dia.

Saudade

O bom dos velhos tempos é que não éramos velhos como hoje.

Editorial (para Silvana Guimarães)

Escrevo de manhã, à tarde, à noite. Mal, mal, sempre mal, Penso em escrever também de madrugada.

Essa classe

Tenho alma de lacaio, essa classe que às vezes julga ter dons poéticos e imagina, conforme a mão de quem lhe atira migalhas, ver nelas estrelas, e as engole com culpa.

Manobra

Quando o violinista foi ao banheiro, o bêbado subornou o pianista para que tocasse Fascinação.

A brincadeira

Eu morreria de fome um instante depois, se não me antecipasse e não apanhasse no ar o osso destinado ao cachorro. Fui tão acrobático e certeiro que, sob aplausos, acabei substituindo o cão na brincadeira.

Fugacidade

O pior da juventude não foi passar tão rápido. Foi ter levado com ela nossos pés ligeiros e deixado em seu lugar estes, que gemem a cada passo.

Início do conto "O porto marítimo", de Vladimir Nabokov

"A barbearia de teto baixo cheirava a rosas murchas. Mutucas zumbiam acaloradas, pesadas. O sol batia no piso,em poças de mel derretido."

(Do livro Contos reunidos, tradução de José Rubens Siqueira, Alfaguara.)

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Caráter

Não sou um desses tristes oportunistas, de ocasião. Sou triste por convicção.

Imperdoáveis

Ah, a maldade invejosa com que se comenta que tal autor, ou autora, teve sorte de morrer jovem, porque jamais conseguiriam escrever nada melhor. Às vezes a juventude incomoda. O sucesso, também. Juventude e sucesso, juntos, costumam ser intoleráveis.

Hoje

Hoje os prazeres antigos
São como esquecidos fatos,
Mofados como retratos
De indestinguíveis amigos.

Decadência

Já fui melhor poeta. Chorava mais convincentemente e não precisava nem me concentrar.

Disfarce

O que me encantava nela era o jeito de moleca. Demorei um bocado para descobrir que era um disfarce. Era uma senhora de hábitos morigerados (!!!). Amava o lar e as novelas da Globo.

Consoantes (para Priscylla Mariuszka Moskevitch)

O golpe fatal veio quando ela começou a interromper nossos papos no msn para ver o bbb.

Peculiaridade (para o Xico Sá)

Se a música não for da Núbia Lafayette, periga o inferninho ser uma sucursal do céu.

Alterosos (para Luiz Roberto Guedes)

Os mineiros não conhecem a diferença entre pão e queijo. Só conhecem o queijo.

Arranja outra

Uma desculpa que não funciona mais: eu não entendo nada de internet.

Modéstia

Ora, deixe disso, Capistrano. Você precisa ter mais autoestima. Os poetas de hoje não sabem a diferença entre um pardal e uma andorinha.

Lado bom

Com as redes sociais, descobrimos que não há assunto sobre o qual cada um de nós não tenha ao menos uma opinião.

Sofrimento

O poeta sofre como todos os outros homens, com uma diferença: a de supor que só ele tem esse direito.

Dica

Se o poeta tiver como saber o que há de bijuterias no que escreve, convém eliminá-las. Se não souber distingui-las, paciência. De vez em quando elas funcionam.

Bilhete (para Silvana Guimarães)

O entusiasmo vai bem, exceto por alguns acessos de tosse ainda parnasiana e as notícias de sempre, aquelas de que a poesia morreu.

Pesadelo futebolístico (para o Vitão Guedes)

No meio de um sono tumultuado, vejo-me num estádio, no Dia do Juízo Final, e ouço: segunda divisão!

A diferença

O Corinthians é todo prosa. Todo o resto é prosa estropiada.

Teatro? (para Luiz Carlos Cardoso, Oswaldo Mendes, Paula Giannini, Priscila Luz Gontijo Soares e Regina Helena Paiva Ramos)

Lendo hoje no Estadão uma entrevista de Cacá Rosset a João Wady Cury, vi uma palavra: teatro. Teatro? Teatro? Alguma coisa, o famoso sinal de reconhecimento, se acendeu lentamente na memória envergonhada. Pois é, teatro. Falar de teatro, atualmente, exige quase uma explicação: que diabo é mesmo teatro? Cacá Rosset diz o que foi o teatro em São Paulo. Ah, bons tempos em que a palavra tinha tanto significado. Parece que não precisamos mais de teatro. Para que ele servia mesmo?

Modernidade (para Luiz Roberto Guedes)

Já foi mais tranquilo usar pássaros em poemas. Agora eles cobram cachê.

Ingredientes (para Henrique Fendrich)

Numa crônica, desde 1900, se observarmos bem, há sempre alguma flor ou algum passarinho.

100%

Dom poético é aquilo que até os poetas julgam ter.

Família

Santo de casa não faz milagre. Escritor também não, a menos que seja especialista em romances nos quais o mel escorre em dois terços das páginas.

Época de ouro

Era mais fácil a vida dos cronistas. Quando os leitores diminuíam, bastava requentar um texto antigo que falasse da morte de uma árvore ou de um sabiá.

Estatística

Se há ainda quem tenha em casa um daqueles modelos antigos de amor em São Paulo, deve morar num dos lugares aos quais os pesquisadores não têm acesso.

Porcentagem

Se um dia ou outro alguém reconhece uma ou duas qualidades em você, está dentro da média.

Levando-nos (para Ana Farrah Baunilha)

Na literatura podemos tudo: levar-nos até a página 112 de um romance novelesco ou morrer na página única de um poema, sob a forma de cisne.

Tapete (para Estela do Patrocínio)

Quando estamos de cara no chão e chega um daqueles chatos e precisamos dizer, embora eles nunca entendam, que perdemos uma estrela no tapete.

Penúltima cena

Então a princesa enxugou minhas lágrimas não com os lábios, mas com o lencinho de papel, e me disse: ah, meu bobinho, não vai ser possível, você é tão plebeu e eu sou tão comprometida com o meu reino.

Democracia (para Alfredo Aquino)

Os bons poetas têm acesso às flores e aos pássaros. Os maus poetas também.

Morte (para Silvana Guimarães)

Para os antigos
e bem-comportados
talvez a morte venha a ser
o romântico tresloucamento
de uma orquestra de violinos embriagados
e uma explosão fosforescente
de cores e letras maiúsculas:
the end.

Aviso rodoviário

Na placa em que se lê Itaquaquecetuba, leia-se Paranapiacaba.

Ousadia (para Ana Farrah Baunilha)

O que não ousamos na vida podemos ousar na literatura. Para isso é que ela serve: para amarmos desastrosamente, para sofrermos inconsolavelmente, para morrermos com o punhal do romantismo espetado no coração.

Nada a ver

Achar que o haicai é uma espécie de quadrinha de três versos é uma simplificação atroz.

Supraescolar

Lembra-se, poeta? Você já culpou o romantismo, o parnasianismo, o concretismo. Você, poeta, não erra nunca e, quando erra, seu advogado de defesa é você.

Bonde 22 (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)

Você correu, mas o bonde do modernismo já estava fazendo a curva e sumindo. Você só teve tempo de ver o aceno galhofeiro de Oswald de Andrade, no estribo.

Garrote

Que pressão fazem sobre seus autores as frases curtas, sempre querendo mostrar que podiam ser encurtadas ainda mais.

Mesmo que seja

Morrer aos poucos, e com prazer, mesmo que seja só uma pontinha, tem todo o jeito de pecado.

Bem o tipo

Com esta cara, se eu puser pantufas, ficarei tão convincente e silencioso quanto aqueles aterrorizantes fantasmas velhos.

Estados

O pecado, para um poeta, não é ter sido velho. É continuar sendo.

Metódico

Que antipático é quem faz tudo com base num padrão: ama sistematicamente, sofre sistematicamente, é sistematicamente abandonado.

Função (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Não há nada mais triste do que um gerúndio velho: está sempre sofrendo, chorando, morrendo.

Natureza

As coisas do amor são sempre as mais farelentas.

Mistérios

Sempre que vejo um filme policial, fico no ar.

Início de "Vulgo, Grace", de Margaret Atwood"

"O ano é 1851. No meu próximo aniversário farei vinte e quatro anos. Estou trancada aqui desde os dezesseis. Sou uma prisioneira modelo, e não dou trabalho. É o que diz a esposa do Governador."

(Tradução de Maria J. Silveira, Editora Marco Zero.)

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Mesmo que (para Luiz Roberto Guedes)

Eu gostaria de não ser tão velho e poder ainda me envolver com alguma coisa atual, mesmo que fosse a matemática moderna.

Entre as dez

A gramática é uma das megeras mais citadas. Luta por posição com a matemática no ranking da antipatia.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Encontrei o Quintana num sonho. Nós nos apertamos as mãos. Ele deixou na minha respingos de arco-íris.

Em dois tempos (para Ana Farrah Baunilha)

Primeiro o amor nos manda tirar toda a roupa. Depois, nos chama de indecentes.

Mania

Poetas não podem ver rochedos sossegados. Logo fazem o amor castigá-los.

De longe (para Maria Luiza Mendes Furia)

Poeta antigo, nunca chegou a estar na moda. Ficou sempre distante, acompanhando tudo ora triste, ora ressentidamente.

Brás (para Rose Marinho Prado)

Não há nada mais cafona e lírico do que um realejo na esquina reproduzindo "Fascinação".

Espuma (para DonJuan de Byron)

Dos naufrágios do amor, às vezes não restam nem as palavras.

Ou não é? (Para Rose Marinho Prado)

Se a gramática não vivesse mudando, seria intoleravelmente chata.

Sugestão (para Raul Drewnick)

Às vezes o melhor que se pode fazer pela poesia é não fazê-la.

Voz corrente

Mesmo o maior dos ignorantes já ouviu pelo menos uma vez alguém falando mal do amor.

Na ponta da língua

Dizem que Ruy Barbosa falava muito bem o inglês. Acredito. Mas fico imaginando o sotaque.

Grau máximo

Algazarra era aquilo que as pombas faziam quando sobrevoavam a casa de Raimundo Correia.

Tola alegria

Alguns se gabam de conhecer a gramática. Não sabem que o prazer maior é ignorá-la.

Crepúsculo

Zeloso jardineiro, o sol vai fechando os olhos de suas rosas, e o vento começa a niná-las, para que não se assustem quando a noite descer inteira.

Bênção (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)

Se a poesia chega a mim, que sou este ser bruto, e por alguns momentos me dá uma face humana, quem haverá de exprimir a beleza do rosto daqueles que a recebem por sua nobreza e merecimento?

Ornitologia brasiliense

Oitiva e falcatrua são dois pássaros que costumam voar juntos.

Bis

Embora se diga que não, dos poetas e dos mágicos se esperam sempre as mesmas cartolas e os mesmos pássaros.

Aqui entre nós

Hoje tenho duas novidades. Uma: o amor move o mundo. Outra: o mundo vai muito mal.

Clínica televisiva

Quando ouço esses especialistas que curam defeitos do corpo pela tevê, incomodo-me com os que tratam dos chamados problemas posturais. Postura deveria ser preocupação de galinhas, penso eu.

Em duas palavras

Para resumir rimadamente, os provérbios não são edificantes. São paulificantes.

De como

Se lhe pedirem a definição de amor, o melhor a fazer é tentar lembrar-se não do que você pensava dele na juventude, mas de como você o sentia na alma nesse tempo em que você sabia ter uma.

Início de "Um vagabundo toca em surdina", de Knut Hamsun

"O ano anunciava-se bom para as frutas selvagens: amoras, mirtilos, uvas-bravas. Não se pode, evidentemente, viver de pomos silvestres, mas a sua presença empresta ao bosque um ar festivo. E quantas vezes nos refrescam a sede e nos matam a fome.
   Foi no que ontem de tarde pensei."

(Tradução de Raquel Bensliman, Clube do Livro.)

terça-feira, 4 de abril de 2017

Arredia

A tristeza às vezes demora um pouco para confiar em nós.

Temor

Só não deixa de ser poeta porque teme ser abandonado pela melancolia.

Bom gosto

A melhor tristeza é aquela que aprecia ouvir Chopin na penumbra.

Onteontem

Onteontem é muito melhor que anteontem. Qualquer criança sabe disso. Surpreende-me que Guimarães Rosa não tenha sugerido isso. Ou sugeriu?

Sobre atribuições

Um editor me disse, há alguns anos, que eu estava escrevendo muito - querendo fazer-me compreender que eu não estava escrevendo bem. Hoje a observação seria ainda mais apropriada. Minha única defesa era, como é agora, simples: o que deve, afinal, fazer um escritor?

Para quê?

Tanto esforço, tanta febre, tanto tempo gasto para ser alguém, e, seja você quem for agora, amanhã ou depois começarão a dizer: ele foi, ele era.

Ana Cristina Cesar (para Silvana Guimarães)

Foi mais ou menos na quarta leitura que Ana C. começou a se fazer entender em mim. Sou muito velho e estúpido (só hoje notei a falta de acento em Cesar). Se um dia me conhecesse, ela talvez não sentisse pena nem baixasse a voz: escroto. Eu, vaiado pela sempre presente meia dúzia de circunstantes, escaparia para tão longe quanto pudessem me levar meus passos parnasianos.

História

Se for uma história de amor, não fica feio você morrer no fim, para merecê-la.

Deixar pra lá

Assim como ocorre com as mãos de um padeiro, é melhor você não conhecer o coração de um poeta.

Antipatia nominal

Boa parte da cisma com que se encara o gerúndio é certamente culpa do seu nome.

Encargos

A cada ano, agora, se sente pelo menos um ano e meio mais cansado.

Sensibilidade

Os parnasianos eram capazes de chorar mais de um ano por um pé-quebrado.

Boa fonte

Se vês que um homem foge do amor, é dele que ouvirás a mais triste das histórias.

Justiça

Poetas líricos são aqueles que não estranharíamos se tivessem um violino onde têm o coração.

Tarefa

O amor não faz nada mais que aproximar dois tolos.

Um deles

Dos dons que atribuem aos poetas, o que eu escolheria é o de tocar a nota mais aguda e exata da tristeza.

Conforme o figurino

Escrevemos, só escrevemos.
Que mais pode querer quem
diz querer só escrever?

Como se fosse

Às vezes dói mais
a dor dos amores imaginários
que a dor dos amores reais.

Escala

Nunca chegará a leminski quem nasceu para ser drewnick.

Frustração

Embora tenha sempre desejado, jamais consegui ser desavergonhadamente lírico. Nunca subi a uma árvore e declarei ser um rouxinol.

Folhas

Saberás, quando couberem a ti, como podem ser ao mesmo tempo tristes e doces os últimos dias. Aprenderás o que dizem as folhas e entenderás finalmente o que elas sempre quiseram dizer-te.

Promoção

Quando se tem em alta conta, a sabedoria assume o nome de sapiência.

Novas faces do feio (para Deonísio da Silva)

Como se a língua portuguesa já não estivesse suficientemente feia no Brasil, os neologistas, esses incansáveis inventores de deformidades, vêm agora com esse horror, mistura de atacado e varejo: atacarejo. O sinônimo será certamente varecado.

Melhor assim

Se eu houvesse feito o óbvio, o presumivelmente certo, o amor não teria me ensinado o que de melhor se pode aprender com ele: a linguagem das lágrimas. Teria, em troca, dez ou quinze dessas fotos tiradas em improváveis domingos, nas quais, algum tempo depois, não se vê a luminosa exaltação que se pensava sentir.

Tudo a ver

Os maus exemplos não deixam de ser exemplares.

Quase lá

Quanto mais velhos, mais próximos de realizar o que prometem ficam os morituros.

Início de "Contraponto", de Aldous Huxley

" - Não vais voltar tarde? Havia ansiedade na voz de Marjorie Carling, qualquer coisa que parecia uma súplica.
   - Não, eu não voltarei tarde -  respondeu Walter, com a certeza infeliz e cerimoniosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborrecia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na dor."

(Tradução de Érico Verissimo e Leonel Vallandro, Editora Abril.)

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Nobiliarquia (para Angela Brasil, Ernesto Ferreira, Liberato Vieira da Cunha, Lúcia Maia e Silvia Galant François)

Ora, francamente, concederam ao Marquês de Maricá a honraria, e não deram a Mario Quintana, até hoje, o título de Arquiduque de Alegrete.

Até isso

Da gramática é possível esperar os piores desaforos. Basta dizer que até os palavrões estão sob sua alçada.

Fim de história

E, quando notamos, estamos já com os pés no crepúsculo.

O mínimo

Dos poetas, assim como dos comerciantes, deve-se esperar no mínimo honestidade.

Reminiscência

Ando muito sentimental. Hoje me comovi ao lembrar o lema de uma padaria do meu tempo de menino: servir bem para servir sempre.

Detalhe

As moedas honestas deveriam ter uma só face.

Estouvadinha (para Ana Farrah Baunilha)

A gente avisa, avisa, e, quando vai ver, lá está a cautela de novo com água até o pescoço. Toda cautela é mouca.

Os mesmos

Poetas que dizem não entender o amor são os mesmos que se proclamam seus maiores conhecedores.

Timbre (para Silvia Galant François)

Sua poesia melhorou depois que sua voz interior começou a soar levemente parecida com a de Mario Quintana.

Circunstancialidade

Meu bom humor é como uma dessas roupas que se usam só em ocasiões muito especiais.

Carência

Como é difícil a poesia do cotidiano: estar andando pela rua e não ter um cisne sequer à disposição.

Ainda sobre o haicai

Um equívoco muito comum é ver o haicai como uma conquista da técnica.

O jeito

Os antigos já sabiam que, se a intenção fosse escrever bonitinho, era melhor recorrer à caligrafia do que à poesia.

Uma e outra (para Arlete Franco e Mariana Ianelli)

A prosa pode contentar-se com a exatidão. A poesia deve aspirar à perfeição.

Chefinhos (para Marina Seda)

Os filósofos não se satisfazem em pensar. Querem obrigar-nos a fazer o mesmo.

Idade da sabedoria

O corpo e a idade vão nos acostumando à ideia de morrer.

Do ofício poético (para Silvana Guimarães)

O poeta deve responsabilizar-se apenas pela área de miudezas. Se as recriar com naturalidade, ninguém lhe pedirá mais do que isso. Se as transformar em ouro, quem há de acusá-lo de mistificação?

Cochilo

Todos temos um momento de esplendor único. Devo ter estado muito ocupado com o amor quando o meu passou.

Para emergências (para Arlene Colucci)

A um poeta, ainda que jovem, convém reservar espaço para uma rosa naqueles poemas em que o amor pareça ranzinza e difícil de exprimir.

Atenuante (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Aos gramáticos mais ferozes sempre resta a desculpa de que tiveram uma infância infeliz.

Aviso aos navegantes

Inquietação um palmo
abaixo do umbigo é
ou só impressão ou
sinal de perigo.

Fora de mercado

Adianta-me continuar invocando Deus? Nem o Diabo se interessa mais por mim e já nem pergunta mais como vai minha alma.

Pontaria

Assim como as do amor, as setas da poesia frequentemente atingem o alvo errado. Continue tentando.

O sofá (para Aden Leonardo e Tuca Kors)

Digamos que você tenha adotado um gatinho e esteja mostrando a casa a ele: aqui é isto, ali é isso, acolá é aquilo. Ele olha tudo com enfado. Quando, com ele no colo, você se senta no sofá, ele demonstra certo interesse. A primeira coisa que fará, quando estiver sozinho, será acomodar-se ali. Pronto, você perdeu seu lugar, a menos que ele aceite a ideia de compartilhamento.

Início de "Os subterrâneos do Vaticano", de André Gide

"Em 1890, sob o pontificado de Leão XIII, o renome do Doutor X..., especialista em moléstias de origem reumática, levou a Roma o mação Anthime Armand Dubois.
   - Como! - exclamou Julius de Baragflioul, seu cunhado. - É do corpo que você vai cuidar em Roma? Faço votos que perceba, lá chegando, que a maior doente é a sua alma!"

(Tradução de Miroel Silveira e Isa Leal, Abril Cultural.)

domingo, 2 de abril de 2017

Como você puder (para Liberato Vieira da Cunha e Silvana Guimarães)

O senso de proporção, inerente à arte, impede às vezes a alma de se exprimir em sua crua inteireza. Se você não é Camões, seja o melhor Luís Vaz que puder ser.

Minha alma

Minha alma, quem me indicou, quem me impôs a ti? Minha alma, quem te fez isso, quem pode odiar-te tanto?

Final de expediente

Não tive nenhum freguês hoje, mas mantive a loja aberta. Quem oferece artigos como a tristeza e a melancolia, e tão bem os conhece, só pode supor que os domingos são dias como quaisquer outros.

Decadência (para Gianluca e Nicole)

Exclamações não assustam mais nem crianças, mesmo que antecedidas por palavras como Drácula.

Pose

Um livro de máximas é no mínimo pretensioso.

Impressões

A melhor impressão que um editor tem de um escritor não é a primeira. É a segunda, a terceira, a quarta...

Pecúlio (para Rose Marinho)

A loucura é o único patrimônio que um poeta tem, ou imagina ter.

78 (para o Diego Moraes)

Era um escritor persistente. Com a idade que tinha, o que mais podia ser?