Resumo

 Se fosse resumir o que fiz nas últimas seis décadas, eu diria: tenho escrito. Que os leitores completem a frase com o advérbio que lhes parece mais adequado.

Soneto de como se deve negociar o amor

Quem do amor quer e espera pagamento,

E cada abraço e cada beijo dado

Anota sem perdão e com cuidado,

Agindo tal qual age um avarento,

Não merece reparo ou escarmento

Nem ser, por ser assim, vilipendiado

E pelos outros homens apontado

Como um homem vulgar, sem sentimento.

Quando de amor se trata, o perdulário

Que nada exige em troca do que deu

No fim é sempre visto como otário

E quando na penúria se encontrar

Lhe dirão que a miséria mereceu

Por jamais ter sabido negociar.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2021/12/26/itens-nem-todos-basicos-raul-drewnick/ 

Arquétipo

Era um poeta sonetoso, obstinadamente empenhado em vestir de ouro suas estátuas, velhas e frias como seu coração. 

Sucesso

 Ninguém, na véspera, o julgaria capaz de tanto, mas ali estava ele, majestosamente estendido, com o nariz apontado para o teto, iluminado por quatro velas cerimoniais, sob dezenas de olhos respeitosos

Bons antecedentes

Houve tempo em que os sonetos, não tendo ainda revelado sua má índole, frequentavam casas de família e eram ditos pelos lábios de gentis senhorinhas em reuniões dominicais.

Soneto do amor e de seus vassalos

Quem é que, se do amor for um vassalo

E se puder, por essa condição,

Ter o prazer, além da obrigação,

De venerá-lo e de reverenciá-lo,

Irá diminuí-lo, contestá-lo,

Não lhe dizer o sim, dizer-lhe não,

Recusar-lhe louvor e submissão

E por seu despotismo denunciá-lo?

O amor há de ser sempre inocentado

Por quem por ele for escravizado

E, se queixas lhe forem dirigidas,

Não serão pelas dores que causar,

Por mais que possam ser, e machucar,

Mas por não serem mais, e mais doídas.

Amenidades

Perguntam-me como estou,

Como vou, como tenho ido.

Digo que estou bem, que vou

Bem, e que tenho morrido. 

Ambivalência

 Dizer que Shakespeare, no que fez, foi deus não é só uma verdade; é também um cacófato.

Cartilha

 E dia virá em que o vovô não verá mais a uva.

Pronto-socorro

Depois de três dias vomitando pedregulhos, o poema concreto entrou em agonia e foi levado num guincho a um escritório de engenharia. 

Perfil

 Um poeta concretista

tem gelo na mão,

cimento na boca

e uma pedra no coração.

Soneto da chama que me animava

Nas horas arrastadas e sombrias

Em que a noite me envolve em pesadelos,

Lembro-me com saudade dos meus dias

E choro ao na memória revivê-los.

Aquelas desatadas alegrias

E aqueles sonhos, bom seria tê-los,

Ao invés destas dores e agonias,

E de novo fruí-las e mantê-los.

Ainda que só por um momento mais,

Por um instante só, depois jamais,

Quem me dera na pele adormecida

Sentir aquele sol que me incitava,

Aquela chama que me despertava

No tempo em que era vida a minha vida.

Soneto de tudo quanto o velho superestimou

 Hoje, quando avalio o meu passado,

Invade-me um profundo desencanto

E a decepção de agora saber quanto

Estive a meu respeito equivocado.

Tudo de que me tenho vangloriado

E que foi para mim razão de encanto

Agora sei que não valia tanto

E que por mim foi sempre exagerado.

As glórias todas de que me gabei,

Os triunfos que cantei e celebrei,

As pompas e as excelsas honrarias

São o que sempre foram e serão:

Uma farsa, um embuste, uma ilusão,

Um velho enaltecendo velharias.

O último suspiro

Antes de esticar de vez as veneráveis canelas, quem sabe eu tenha forças ainda para concluir um projeto poético: Quatrocentos sonetos - A vida criminosa de Raul Drewnick. Haverá de ser, se não um acontecimento artístico, uma indubitável proeza estatística.

Características

 É um poeta assim assim:

nem muito bom

nem muito ruim.

Talvez melhorasse

se ao seu repertório acrescentasse

um pouquinho de esplim.

Pensamento do dia

 O mundo é tão raso, tão chão.

Se não fingirmos intimidade com as estrelas,

Quem nos prestará atenção?

Soneto do humano que se sobrepôs ao divino

 Às vezes penso que vivi à toa.

Medíocre em tudo aquilo quanto fiz,

Eu, como tanta gente, fui feliz

E tive, como tantos, vida boa.

Não tive tudo quanto pretendia,

O dom que desejei, quase divino,

A fama que almejei desde menino,

Mas tive muito mais do que devia.

As coisas acolhi como me vieram,

Tudo aceitei de tudo que me deram,

Com os louros que sonhei não fui premiado.

Reneguei a leveza a que aspirava,

Esqueci-me do ideal que me norteava,

Morri balofo como um afogado.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2021/12/12/nao-mais-que-algumas-raul-drewnick/ 

Soneto da paixão extemporânea

 Como quem se apaixona e, apaixonado,

Perde toda a razão, o senso e o tino,

E vai de desatino a desatino,

Sem saber o que é certo e o que é errado,

Eu também, como um tolo enamorado,

Quanto mais me avalio e me examino,

Com o que comigo ocorre não atino

E nada entendo, e não compreendo nada.

Que obsessão pode ser esta de agora,

Tão sem sentido, já, e fora de hora,

Para um homem decrépito como eu?

Que paixão pode ser ainda sentida,

Que vida pode ser ainda vivida,

Por quem há tanto tempo já morreu?

(Soneto da paixão extemporânea)

Soneto da ideia pela qual vivemos

 Hoje, quando nos pomos a lembrar

Daqueles dias, da época dourada,

Da juventude esplêndida e encantada

Em que nos permitíamos sonhar,

Lembramos, com vergonha, com pesar

E com a alma ferida e derrotada,

Da ideia, em nós nascida e cultivada,

De podermos o mundo aprimorar.

Éramos muitos, éramos bastantes,

Todos firmes, enérgicos, atuantes,

E à nossa missão todos devotados.

Nós vivemos por ela, nós lutamos,

E por ela é que somos e que estamos

Agora todos mortos e enterrados.

Facínora

Um soneto se emenda; um sonetista, jamais. Tenha ele sessenta, setenta ou oitenta anos, sempre pode surpreender e, no meio da mais pacata das reuniões, sacar do bolso com a mão trêmula mais uma de suas enferrujadas armas de catorze tiros. 

Soneto do enfado que causam a vida e o amor

 Se ontem viver foi ventura

E eu fui um ser venturoso,

Foi-se esse tempo ditoso

E hoje viver é tortura.

É tempo de dor e agrura

E eu, hoje um ser pesaroso,

Na vida não acho gozo

E nem na literatura.

Tudo me provoca enfado

E nada mais me traz agrado,

Seja eu amante ou leitor.

Definho eu a cada instante

E os livros também, na estante,

Morrem de mofo e bolor.

Última chance

 Talvez eu possa ainda ter

Meus erros e meus pecados

Injustamente perdoados

Um pouco antes de morrer.

CLT

 O poeta social quer somar ao seu tempo de aposentadoria a época em que, desconhecendo Engels e Marx, defendia os direitos das flores e dos passarinhos.

Beleza

 Quando o poeta apontou o arco-íris, um fiozinho multicolorido enroscou-se em seu dedo indicador.

Anonimato

 Um haicai é o mais arisco dos seres.

Reunião

 Não ter mais nada a dizer

É agora tudo que tenho.

Devia calar, me abster,

Mas eu insisto, mas venho.

Volume

Na tarde em que o menino enterrou no quintal seu gato atropelado, os passarinhos, talvez por ser o primeiro dia da primavera, pareciam cantar com mais entusiasmo do que nunca.

Passatempo

Respirar é, mal ou bem,

O que nós vamos fazendo.

Enquanto a morte não vem,

Viver nos vai entretendo.

Balanço

Ao céu, se eu chegar, será pela misericórdia de Deus; ao inferno, por minhas próprias e humanas pernas. 

O fim

 Chega aquela época da vida em que nossos olhos cansados, se forem postos diante da Beleza mais uma vez, não se importarão se for a última.

A pergunta

Se não temos de Shakespeare

Nem as palavras nem a voz,

O que há de a literatura querer de nós?

Esperança

 Morrer talvez seja doce.

Nem dores nem agonia, 

Quem sabe até como um dia

Pensamos que a vida fosse.

Últimas gotas

 No fim da vida o único pecado que ele ainda cometia com certa frequência eram os sonetos.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2021/11/28/algo-talvez-poetico-raul-drewnick/

Tempo integral

 Não existem chatos bissextos.

Juventude

Fui aquilo que na época chamavam de rapaz promissor. Diziam que eu tinha muito futuro. Estavam certos, se considerarmos futuro um período entre os vinte e os oitenta anos de idade.

Perfil

Em tudo que faço falho,

Em nada sou vencedor.

Não vale nada o que valho,

Nulo sou, e meu valor. 

Receio

Se para morrer for necessário algo além de conformismo e omissão, tem medo de fracassar, como lhe sucedeu tantas vezes com coisas muito menos importantes.

Em causa própria

 Como me agradaria,

se Shakespeare eu fosse, e não Drewnick,

escrever uma autobiografia.

Característica

Numa autobiografia, quando o autor se empolga, costuma haver mais opiniões do que fatos. 

Apresentação

 Quando o concretista deixou cair seu poema, formou-se uma nuvem de areia no auditório.

Milagre poético

 Atingido pelas gotículas poéticas da declamadora, o espectador da fileira da frente puxou o lenço e, encantado, viu-o transformar-se em um gracioso e sedento passarinho.

Tipos

 Desafortunados foram aqueles poetas românticos que passavam dos trinta anos e ainda não tinham morrido de amor. Onde quer que estivessem, com o rosto rubicundo, a calva lustrosa e o ventre inflado, eram recebidos com as gargalhadas e o desprezo que sempre merecem os farsantes.

Ponto

Justiça se faça aos poemas concretos. Eles acabaram com toda uma raça de esganiçados declamadores. 

Vocação

Se chorar é o que você faz melhor, não se poupe. Aperfeiçoe-se. 

Consciência social

O benemérito doou cinquenta sacos de cimento para a antologia de poemas concretos. 

Velório

Todos notaram que o defunto parecia aflito, como se estivesse esperando ainda uma segunda opinião.

Bis

Por pior que seja uma piada, se quem a conta é um chato ninguém precisará pedir-lhe, por favor, que a repita.

Trajetória

Era um escritor comum mas feliz, que, convencendo-se de ser um gênio pelos manuais de autoajuda, morreu amargurado porque nunca lhe deram o Nobel. 

Emprego

 Candidatando-se a uma vaga na seção de sonetos, o pardal foi recusado, sob o argumento de que ali era lugar de rouxinóis e cotovias, e aconselhado a se inscrever no setor de quadrinhas.

Bravura

Como poeta, tem uma coragem que nunca demonstrou como homem. Chega a ser uma desfaçatez: além de escrever sonetos, tenta publicá-los.

Casta

É um desses poetas que, quando passam a ser imortais, não cumprimentam mais os vizinhos. 

Cartão

 Se um escritor se apresenta como literato, muito provavelmente não será nem uma coisa nem a outra.

O fim

 Chega um tempo no qual a única atitude literária séria que se pode tomar é parar de escrever.

Lápide de um pudibundo

 No fim, também eu me f... todo.

Escrever sonetos

Escrever sonetos é hoje, usando uma linguagem policial, como reconstituir a cena de um crime cometido cem anos atrás.

Ainda que

Falemos de flores, falemos de rosas, ainda que nossa voz seja esta, similar à de um homem que por trinta anos tenha sido condutor de gado. 

Julgamento

O amor então nos dirá que nunca fomos dignos dele, e nós choraremos tanto que ele terá um momento de hesitação antes de confirmar nossa sentença.

Reforma

 Chora quando se lembra do tempo em que seu dia a dia tinha hifens e no seu futuro havia esperança.

Nunca mais

De vez em quando ainda lhe pedem que escreva alguma coisa bem bonita para tal ou qual efeméride, e ele se sente como aquele mágico que, num dia de extrema necessidade, deixou seu coelho e sua cartola numa casa de penhores que um incêndio destruiu no dia seguinte.

Legado

Talvez algo de mim fique em alguma parte. Será algo pequeno, como eu sou, porém não tão pequeno que alguém possa dizer: a esse, Deus não concedeu nada.

A hora certa

 Convenceu-se de que não devia mais escrever sonetos quando já não conseguia escrever nenhum.

O momento

 E chega o momento em que, no fim da festa, quando a monumental loira nos pede carona, o chato, bêbado, se aproxima e diz que também está sem carro.

Lápide de um paraquedista

 Vejam só onde eu vim cair.

Lápide de um eletricista

 De repente, tudo ficou escuro.

Lápide de um gramático

Depois da vírgula e do ponto e vírgula, vem o ponto final. 

Lápide de um jurista

 Transitei em julgado.

Lápide de um açougueiro

 A carne é fraca.

Lápide de um poeta romântico

 Morri tão cedo quanto pude.

Modo de ser

Ter mais fé que excelência

É nosso modo de ser.

Cremos que meia dúzia de maus poemas

Possa nos justificar e nos absolver. 

Tônica

 Dedicar a vida à poesia é o que todos os poetas juram fazer - tanto os muito bons quanto os muito ruins.

Leitmotiv

Tenho pensado na morte.

É a minha filosofia.

Com oitenta e três, me diga,

Em que você pensaria? 

Lápide de Dalton Trevisan

 Maldita Curitiba.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2021/11/14/sacola-de-quinquilharias-raul-drewnick/ 

Lápide de um motorista de ônibus

 Ponto final.

Lápide de um estilista

 Ici mon dernier cri.

Lápide de um ascensorista

Térreo. 

Lápide de um resignado

 Valeu.

Lápide de um misantropo

Enfim só. 

História

 Do gongorismo de Deus ao minimalismo de Bashô, longo foi o caminho da arte e árduo o trabalho dos artistas.

Lápide de um latinista

 Finis coronat opus.

Retroação

 Pela visão atual, Shakespeare e Camões não eram nenhuns santos. Também eles cometiam lá seus sonetinhos.

Lápide de um perfeccionista

 Na próxima eu arrebento.

Minha tristeza

 Minha tristeza anda amuada. Vive me acusando de indiferença e até de traição. Diz que já me surpreendeu assobiando e sorrindo e que é intolerável minha mania recente de abrir as janelas de manhã e cumprimentar o sol.

A verdade

 No tempo atual, a verdade

Tem mil e tantas versões,

Todas com subdivisões

E prazo de validade.

Bondade

 Ninguém melhor que os credores para rezar pela nossa saúde.

Lápide de um pessimista

 Não podia mesmo acabar bem.

INPI

Por disposição legal,

todo poema concreto é registrado

no instituto nacional da propriedade industrial.

Coluna social

À cerimônia de inauguração do poema concreto compareceram altas autoridades militares, civis e eclesiásticas.

Ponto de vista

Há homens estranhos. Conheci um que confessou ter dado a vida toda à literatura e, quando eu ia dizer que sentia muito, abriu um sorriso esplêndido: "E daria outras, se tivesse."

Beckettiano

Venho evoluindo diariamente.

Ontem escrevia mal,

Hoje escrevo pessimamente.

Como um cão

Minha tristeza é como um cão muito amado. Ela me dói desde sempre. Dói-me deixá-la sozinha em casa e dói-me ainda mais, quando a levo a algum lugar, amarrá-la do lado de fora, para que seus olhos lacrimosos não constranjam aqueles cuja alegria escorre da boca como baba.

LÁPIDE DE UM CARDIOPATA

 Começou com uma dor no peito.

Tipificação

Com a mão maldosa

planta o poeta em jardim alheio

uma erva daninha e dolosa.

Excelência

Nos dias de inspiração aguda, o poeta parnasiano cuspia pérolas do alto de sua torre de marfim. 

Casos extremos

 A literatura é uma dessas tolices que, se não forem combatidas no início, podem levar um homem ao ridículo e, em casos especiais, até a prêmios e condecorações.

Amor fatal

Morrer por amor seria uma hipótese que eu talvez ainda hoje levasse em consideração. Mas precisaria ser um desses amores fulminantes, que não dão ao fulminado tempo de dizerem ai nem de escreverem versos estropiados. 

Por elas

 O que os poetas antigos mais amavam não eram suas donzelas, mas o maravilhoso dom que tinham de fazê-lo aspirar apaixonadamente por elas, sofrer desesperadamente por elas e morrer gloriosamente por elas.

A pergunta

 Até o fim do ano, este blog, iniciado em 2010, chegará a 36 mil textos. Vocês perguntarão: e daí? E eu perguntarei também: e daí?

Para o bem e para o mal

 Os escritores costumam reunir-se em duas ocasiões: ou para montar uma antologia ou para falar mal dos confrades.

A nova poesia

 Foram-se os tempos dos poetas que, se não tinham doenças incuráveis nem amores impossíveis, inventavam umas e outros e se descabelavam, e se flagelavam, e se desmanchavam de chorar. Hoje os poetas escrevem uma prosa feita de exclamações e conclamações e distribuem cestas básicas na periferia.

Agenda

Que posso eu ainda querer,

Qual deve ser meu intuito?

Talvez morrer sem sofrer.

Viver é decerto muito. 

O pecado

Estou vivo

e deveria sentir-me feliz por isso -

dizem-me com desagrado,

como se minha tristeza 

fosse um estorvo

ou o mais abominável dos pecados. 

Mérito

Quando, nos últimos anos de vida, o poeta foi aniquilado por doenças de todo tipo, comentou-se que era a recompensa mais do que merecida por sua juventude dedicada aos sonetos e a outros vícios.

Amy

 Para rasgar um coração, para dilacerar uma alma, não há melhor instrumento que a voz de Amy Winehouse.

Dose

 O poeta há de ser fiel à sua tristeza. Pode aumentá-la um tantinho; diminuí-la, jamais.

Fiasco

 Não tenho mais o que mostrar. Exibo minha tristeza há tanto tempo que hoje, quando a chamo ao palco, o público resmunga: "Não, não, outra vez?" e forma-se a fila dos que vão ao guichê para pedir o dinheiro de volta.

Motivação

 Continuar escrevendo depois dos oitenta anos costuma ser um ato mais de desespero que de esperança.

100%

 Quando o meu dia chegar

De dar adeus e morrer,

Que eu possa a honra merecer

E ser um morto exemplar.

A verdade

 Sobre minha relação com a poesia, o que de mais honesto posso dizer é que tenho sido perseverante.

A declaração

 Na primeira vez em que exprimi o desejo de ser poeta, isso poderia ser considerado um ato de pura modéstia. Eu tinha menos de vinte anos, e alguns jovens como eu já haviam declarado intenções bem mais ambiciosas, como a de salvar ou destruir o mundo,

Ao correr das rimas

 Sofrer é uma das coisas

Que melhor sei fazer.

Sofro por tudo,

Sofro por nada,

Pelo motivo certo,

Pela razão errada,

Sofro por sofrer.

O motivo

Se falo tanto do ato de escrever, é muito menos por conhecê-lo do que por amá-lo apaixonadamente. É, para mim, muito mais uma arte do que um ofício.

Modo

Escrevo como quem sente

Que tudo que hoje lhe ocorre

Não se dará novamente.

Escrevo como quem morre. 

Belle époque

Dourada foi a época em que os artistas do mundo todo passavam ao menos um ano em Paris. No regresso traziam sempre alguma novidade, mesmo que fosse um bigode ou um cavanhaque. 

Nova fase

Habituado a lidar com as flores, os passarinhos e as mulheres, o desiludido poeta romântico hoje convertido às causas sociais procura rimas para povo, cidadãos, liberdade e luta e a cada poema que faz imagina que com ele se deflagrará uma revolução. 

O pacto

Seria inadequado eu dizer que a poesia me deve alguma coisa. Pode alguém considerar sério um pacto que um velho bisonho, na época ainda com vinte anos incompletos, diz ter firmado com uma senhora brilhante e respeitabilíssima? 

As palavras

As palavras do amor eram pura melodia. Elas nos embriagavam, nos inebriavam, nos enfeitiçavam tão completamente que nos censurávamos sempre, por nos julgarmos indignos de ouvi-las. Quando descobriu nossa pequenez, ele se foi e levou suas palavras a ouvidos que nosso despeito e nossa maldade diariamente amaldiçoam. 

Ventura

Todos sabiam de que venturoso mal padecíamos no tempo em que nos subjugava o amor. Nossos olhos encovados e nosso agradecido rosto de mártir nos denunciavam. 

Nosso senhor

O que tínhamos fomos dando ao amor. Depois que se apossou de tudo, nunca mais vimos seu rosto de anjo e seus olhos pedinchões.

Moto contínuo

 A tristeza não tem fim, só recomeços.

Equívoco

Filósofo, eu? Que pilhéria!

Sobre a filosofia eu

Nunca tive a menor ideia. 

O assunto

Embora até possam dizer que não, os leitores, apesar de todos os modernismos, ainda esperam que os poemas, falem do que falarem, falem principalmente do amor.

Um homem bom

 É um poeta, mas acima de tudo um bom homem. Não guarda mágoas, não abriga rancores. Talvez um dia até perdoe os suecos, se enfim lhe derem o Nobel.

Tema

Se o assunto for alegria, não me chamem. Se for tristeza, vou e tomo partido. 

Gosto

Prefiro uma igrejinha do Quintana a uma catedral de João Cabral. 

Vizinhança

 O poeta foi pedir ao marceneiro uma escada para colher uma estrela que a chuva pendurou numa árvore do quintal.

Versão

 Morramos nós do que for,

Se for preciso mintamos

E ao mundo todo digamos

Que morremos por amor.

Conquista

 Chego à idade da razão

sem método, sem mérito

e sem empolgação.

Lápide de Jorge Luis Borges

Morrer é ter vivido. 

Lápide de Fernando Pessoa

 Aqui jazemos mais de cem.

Tipificação

 Só no fim de sua vida perfeccionista e presunçosa o poeta parnasiano foi julgado por crime contra a humildade.

Argumento

Ver um cordeiro ser triturado por uma sucuri é uma das melhores formas de descrer de Deus. 

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2021/10/31/um-punhado-de-frases-curtas-raul-drewnick/

Lápide de um sufragista

 Deixe aqui seu voto.

Lápide de Jerome David Salinger

Nem aqui vocês me deixam em paz? 

Lápide de um policial

 Estão olhando o quê? Vamos circular, pessoal.

Lápide de um cineasta

 Sorria. Você está sendo filmado.

Lápide de um amante do óbvio

 Ninguém é eterno.

Lápide de um lacônico

Deu. 

Lápide de um autor de provérbios

 Bem que eu me avisei.

Segurança

Onde estiveres

aonde fores

cuida-te bem

abriga-te bem

se por ali passarem

se ali cantarem

os três tenores. 

Linguagem

Para um homem comum, a morte é um acontecimento normal; para um figurão, é um rito de passagem. 

Estoque

É um tipo pragmático, desses que, quando aperta a situação, não hesitam: vendem a mãe, se ainda tiverem alguma. 

Sabedoria

Sabedoria é uma virtude que felizmente parece não fazer falta nenhuma aos jovens. 

A verdade

A maturidade é aquela fase em que nos gabamos de nos abster daquilo que já não conseguimos fazer. 

Obrigação

Ninguém conhece melhor o peso das palavras do que um poeta concretista. 

Vidinha

 Nós, que por viver vivemos,

Devemos reconhecer

Que nada ter a dizer

É tudo quanto nós temos.

Tão vivo aparentava estar o morto que ninguém estranharia se, no dia seguinte, o encontrasse no ônibus com o jornal aberto na página de falecimentos ou flertando na rua com uma senhora bem mais imponente que a chorosa viúva.

Que

Que uma história, se dela for participar um gato, tenha frases amplas, dentro das quais ele se sinta como se estivesse no seu sofá. Que ele seja o protagonista, nunca menos do que isso, e que, como tal, possa mudar o enredo conforme lhe convier, e até se recusar a segui-lo. Aos gatos se permita tudo, contra gatos não há argumentos.

Quadrinha

Embora eu já não mereça,

Agrada-me ainda passear,

Brincar com a brisa, assobiar,

Pedir ao sol que me aqueça. 

Procedimento

 O melhor modo de morrer é o silencioso. Que nossas últimas queixas sejam ouvidas somente por nós, e que as façamos com a voz que usaríamos para ninar uma criança, num sonho.

Hoje

Ufa! Obrigado a todos pelos cumprimentos, pelos abraços, pelo carinho. Hoje começa uma sucessão de 364 dias, todos eles do meu desaniversário.

Resumo

 Agora, a um passo do fim,

Não creio mais em mudança,

Não tenho mais esperança,

Cansei-me todo de mim.

Coerência

Sou amargo por honestidade. Não devo ser indigno de minha tristeza e de seus frutos.

Imprudência

 Gabei-me tanto de minha melancolia, pintei-a tão bela e única, que fui chamado de farsante por muitos e invejado por não poucos.

Queixa

 Às vezes, sinto que minha tristeza merecia melhor intérprete.

Rotina

 Tantas décadas depois, continuo escrevendo, para não dizerem que não consigo nem manter meus vícios.

Identidade

 Se há alguma coisa verdadeira que posso dizer sobre a minha literatura, é que ela não é nada semelhante à de Shakespeare.

Farsante

Era um defunto inconvincente, que parecia ter sido arranjado às pressas, para substituir um colega impossibilitado de comparecer. 

Desalento

Tudo meu é tão antigo. Que faço eu ainda aqui? Meus dias todos já se foram, e tão apressados estavam que me deixaram enquanto eu, tolo, me demorava buscando a beleza.

Calor

 Hoje que evito roçá-los com meus dedos de velho, recordo-me do tempo em que a brisa morna eriçava os pelos de minha poesia.

A primeira morte

O primeiro morto que vi de perto, por volta dos meus dez anos, era um vizinho gorducho, lento, quarentão, e eu me lembro da perplexidade que senti. Não conseguia compreender como a um personagem tão inexpressivo podia acontecer algo tão extraordinário. Era como se ele fosse um usurpador, um aproveitador de glória alheia.

Bem-vinda

 Se a Morte for mesmo uma ruiva fatal,

Que venha enquanto eu tenho ainda -

Se bem que pouco - algum impulso vital.

Jeito

Dizer que ainda espero alguma coisa da literatura é o tipo de coisa que eu só deveria fazer literariamente. 

Ladrões

 O poeta velho aponta o céu:

"Ladrões."

O garoto chega, curioso:

"Tem ladrões no céu, tio?"

"No céu, não. No céu tem Deus. Ladrões tem aqui, no bairro."

"E eles roubaram o quê?"

"Você não viu aquele arco-íris Que estava ontem aqui?"

"Vi. Beleza, né?"

"É. Então."

Camões

 Sonetos qualquer um faz,

mas ninguém nunca nenhum

como os de Luís Vaz.

História

Nenhum modernismo resiste à tentação de se tornar clássico. 

Na língua do "l"

 Sonha ainda com loiras longilíneas e langorosas e lança-lhes olhares plenos de desalentadas aliterações.

Influência

 Foi um poeta persistente. Desde a juventude empenhou-se em imitar o estilo de Drummond, embora jamais alguém tivesse notado.

O milagre

Se você tiver oitenta e dois anos, não causará surpresa se disser que ainda faz poesia. Mais fácil será estranharem outro milagre: como você continua respirando. 

Metamorfose

 Na segunda edição, no poema concretista já se notavam algumas rachaduras, provocadas pelo tempo e pelas pragas dos poetas românticos.

Definição

 Segundo aquele escritor fescenino, bolinar é um dos trabalhos manuais que maior satisfação trazem aos seus praticantes.

Pontaria

 Nada mais líquido e certeiro que os perdigotos de um chato.

Bis

Um sonetista sempre volta ao local do crime, às vezes com intenções ainda piores. 

Projeto

 Buscar a beleza foi o que tentei fazer a vida toda. Não foi muito. Foi tudo.

Imperdoável

 Nós, que temos essa pretensão de escrever, poderíamos perdoar Shakespeare se ele não tivesse sido tão insuportavelmente brilhante.

Reavaliação

 Um chato, mesmo distante, sempre pode nos fazer refletir se amar o próximo é um mandamento que se deve realmente levar a sério.

Feitio

 Os sonetos dos poetas concretistas têm catorze sólidos andares, todos dotados de portas corta-fogo e equipamentos antilirismo.

Confiança

 Era um morto de fisionomia confiável, com quem ninguém temeria ficar a sós, mesmo que as luzes do velório repentinamente se apagassem.

Línguas

Quem fala meio espanhol

e meio português, 

ou fala portunhol

ou fala espaguês.

Transferência

 Que as rugas e as arrobas que acumulei

possam abandonar-me e ir

enfear o retrato de Dorian Gray.

Alergia

 O poeta social sente coceiras em todo o corpo e calafrios toda vez que a má sorte coloca diante dele um arco-íris.

Tipo

Era um daqueles poetas sonetosos e contumazes que, antes de lerem seus poemas para o público, limpavam com seu pigarro melodioso o ouro da garganta. 

Condição

Tenha ambições alcançáveis e sonhos exequíveis, se quiser continuar acreditando nos manuais de autoajuda. 

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2021/10/17/talvez-de-poesia-se-trate-raul-drewnick/

O barco de Luisinha

 Poderíamos dizer que a gata da menina Sofia se chamava Luisinha, porque ela acaba de morrer esmagada por um ônibus, mas vamos fingir que vive ainda, enquanto ela, enfiada por Sofia numa caixa de sapatos, é conduzida ladeira abaixo pela enxurrada, e torçamos para que não venha a lhe ocorrer um segundo infortúnio num mesmo dia.

Vida e morte

A vida nos evita,

nos desencaminha,

nos despista.

A morte, não.

A morte nos quer,

nos acompanha,

 nos incita.

A morte não nos perde de vista.

Mario Quintana

Mario Quintana dava a impressão de lidar com todas as palavras, mesmo as mais solenes, como se fosse um menino abrindo a mochila no recreio, para pegar uma maçã.

Resistência

Na primeira hora de velório, o morto, com sua cara de zangado, ainda parecia capaz de a qualquer instante levantar-se do caixão e provar que as flores, as velas e tudo mais não passavam de um grande equívoco. 

Opostos

 Como poeta, não fiz mais porque não pude.

Na adolescência me faltava experiência,

Na senectude me falta juventude.

Ser

 Que tudo quanto eu escreva

Procure brilho e valia

E seja tudo que deva

Para poder ser poesia.

Humor

Há quem se divirta com isso

E quem gargalhe com aquilo.

Eu sou nisso tudo omisso,

Pois rir não faz meu estilo.

Aviso

Se tanto tempo andei mudo,

Me deixem hoje dizer

Que estou cansado de tudo

E pronto para morrer. 

Eu comigo

Sei que não me represento

E sou o que não queria,

Que sou quem é meu tormento

E minha pior companhia.

Morte conveniente

Tenhamos a sorte 

Ou que Deus o dom nos dê

De, ao vir-nos a morte,

Que venha quando quiser,

Se vier quando nos convier.

O candidato

 Morreu na quarta, dia 6,

Como a todos morrer compete

E pelo bem que sempre fez

Ascendeu direto ao céu.

Se vivesse mais um dia,

Na quarta, 7, saberia

Que neste ano outra vez

Não lhe deram o Nobel.

Dedicação

O amor tem para nós a mão exata:

De nós sempre com todo o zelo trata,

Nos implora perdão, se nos maltrata,

E nos mata sem dor, quando nos mata. 

Provérbio poético

Poesia é um problema.

Num dia falha o poeta,

No outro dia falha o poema. 

Pequena oração do poeta

Que eu possa dia a dia

com fé e obstinação

merecer o pão da poesia. 

Pergunta do dia

 Quem deve ter mais pejo:

o poeta que faz sonetos

ou o cantor sertanejo?

O brilho

 O poeta concretista abomina os artifícios da retórica. O brilho de seus poemas, se houver, deverá ser sempre o mesmo que o sol empresta a um jardim público, a um parque de diversões ou a um cemitério.

Literalidade

 O poeta concretista gostaria que seu coração de pedra não fosse, embora apropriada, simplesmente uma metáfora.

Se viesses

Tenho escrito algumas coisas. Coisinhas, todas. Mas, se viesses ver-me, talvez não te desagradassem. Tu as melhorarias, como fazes com tudo que vês e tocas. Talvez eu não te desagradasse.

Mario Quintana

 A simplicidade de Mario Quintana era dessas que se bastam por si sós, como um pingo de chuva que, se a ele se juntar mais um que seja, perderá sua identidade.

Modelo

Que a poesia pudesse ser sempre como uma casa ampla, muito ampla, com todas as janelas escancaradas para o sol.

Linhagem

 Os provérbios já nascem de terno, gravata e nariz empinado.

Grandeza

Depois dos castelos românticos, que qualquer brisa punha abaixo, os poetas concretistas buscaram na engenharia as bases para a construção de seus impressionantes edifícios, resistentes a terremotos, a furacões e às maldições e pragas dos parnasianos. 

Em três tempos

Os conselhos dos manuais de autoajuda deram-lhe frutos imediatos. Em três meses, presumiu-se poeta, proclamou-se poeta e intitulou-se poeta genial. 

O tema

Tudo que escrevo é triste. Nunca tive boa mão para as alegrias. Ela está sempre nos meus olhos molhados ou pegando um lenço para secá-los.

Hoje na revista Rubem

Um bocadinho mais de miudezas.

https://rubem.wordpress.com/2021/10/03/algumas-todas-miudas-raul-drewnick/ 

Cautela

Só no terceiro dia depois de a estátua equestre ser colocada na praça os passarinhos se atreveram a aproximar-se e a pousar, inicialmente no cavalo. 

Poder

 Venho amando a poesia com uma força e uma paixão que não imaginava nem mereço ter.

Poesia e prosa

 Se a prosa soa como poesia, é como se uma pedra se transformasse em brisa, ao contrário da poesia que, assemelhando-se à prosa, parece uma fonte cuja água jorra sem cantar.

Como

A literatura é sempre muito menos o tema do que o modo de tratá-lo. 

Sentimento

Mesmo os poetas modernos devem estar preparados para falar de amor. Se bem que não muitos, ainda há leitores que abrigam no coração esse sentimento e gostam de vê-lo celebrado.

Resumo

 Toda a minha experiência com a literatura pode resumir-se em como, nas diversas fases da vida, expressei minha tristeza.

Aparição

 Não se preocupe. Se um haicai se apresentar a você uma noite, não será sob a forma de um clarão, mas de um vaga-lume.

Alteridade

 Que, como Fernando Pessoa, o poeta possa ser vários, para não se ver tentado a isolar-se em sua grandeza e ter-se como ídolo de si mesmo.

Pecúlio

 Deixarei na calçada algumas coisas, todas miúdas, que possam ser sopradas pela primeira brisa da manhã para o esquecimento.

Coerência

Conhecido por maldizer o amor e a beleza, o misantropo foi visto na semana passada apedrejando um arco-íris.

O único e as marafonas

 Assim como aquele cidadão cínico que, flagrado num lupanar, alegou estar procurando a empresa de água do município, para pagar uma conta, o poeta moderno, se o apanham fazendo uma rima, diz que as palavras se juntaram por vontade própria e as chama de putinhas assanhadas.

Todas

Mesmo que a memória não queira confirmar, não nos deixemos abater. Se perguntarem que extravagâncias fizemos, digamos que fizemos todas, principalmente as do amor.

Interrogação

O que faziam os vitoriosos de antigamente  quando enfrentavam dificuldades e os manuais de autoajuda ainda não mencionavam a palavra resiliência nem apontavam seus extraordinários poderes?

Extravagância

 Escrever poesia é uma contradição aos oitenta anos, uma das idades que se consideram aquinhoadas pela sabedoria.

Vozes da poesia

Poetas antigos não se envergonhavam de, quando lhes pediam opinião sobre seu ofício, dar voz a passarinhos tagarelas e brisas indiscretas. 

Relação

Houve época em que me dei melhor com a poesia. Pelo menos eu pensava assim, ou penso agora que pensava. 

Ascensão

Foi um homem comum, até que começou a se notabilizar, primeiro pelo apego crescente à literatura e, depois, pela inegável má qualidade de sua poesia. 

Concretismo

O poeta-engenheiro empolgado

inaugura um poema

feito com seu concreto amado.

Generatio aequivoca

Sonetos, hoje, só por geração espontânea. Parece não haver mais sonetistas em parte alguma. Devem ter se imolado todos em nome da santa literatura.

Biografia

 Falhei. Como artista,

não consegui ser

nem vice-protagonista.

Dedicação

 Curiosos são os escritores que dizem ter estado a vida inteira à disposição da literatura, como se ela precisasse.

Alternativa

 Enquanto a imortalidade não vem

morramos mais um pouquinho

gostosamente completamente devagarinho

como nos agrada e nos convém.

Covid-19

 Que tempo, que fase.

Quem ainda está vivo

Já está meio morto, ou quase.

Excelência

 Um haicai é a mais silenciosa das epifanias.

Durabilidade

Segundo dados de uma publicação especializada, um poema concretista pode durar cem anos se, mantido em ambiente bem ventilado, for submetido a pinturas e manutenções anuais.

Contribuição

 Assim que se bandeou para a poesia social, o parnasiano doou seus cisnes parisienses a uma associação de trabalhadores, para um almoço beneficente.

Negociação

Não se deixará enganar.

Se não alcançar a imortalidade,

Exigirá pelo menos a metade. 

Gloríolas

Aprendeu a ser modesto. Já não aspira à imortalidade. Sabe quanto merece, mas aceitaria hoje uma honraria estadual e até um agradinho municipal: dar o nome ou a uma rua, se não for possível uma avenida, ou à biblioteca da cidade.

Os poetas

 Os poetas acreditam mais na literatura que os prosadores. Os poetas acreditam mais em tudo. Os poetas morrem mais cedo.

Gigolô

Tanto exibiu sua tristeza, tanto a explorou, que ela agora é como uma puta velha na esquina de sempre, juntando lágrimas num lenço para manter a fama e aumentar o michê.

Endereços

 Eu perguntaria a Shakespeare se seu pacto foi firmado com Deus ou com o Diabo e naturalmente pediria o endereço de um ou do outro e, se minha suspeita se confirmasse, dos dois.

Alerta

Parece não haver mais um sinal daqueles malucos que pontificavam na poesia. Tenho ouvido queixas de leitores  decepcionados com essa ausência. Eu as registro para que, no caso de essas manifestações se transformarem em protestos ou passeatas, as autoridades não digam que não foram avisadas.

Calamidade

 A tempestade tropical provocou a destruição de uma centena de edifícios, de casas e de uma antologia de poemas concretos.

O item

 Venho descobrindo que, se existe algo de poético em mim, é só esta tristeza.

Conselho

 O melhor conselho que se pode dar a um jovem atraído pela literatura é: entregue-se totalmente, se ainda não fez isso.

A causa

 Morramos nós do que for,

Seja-nos dado morrer

De doença que possa ser

E ter o nome de amor.

Paradoxo

Tão simplório é tudo meu,

Mas eu me elogio, mas eu me vanglorio:

Eu fiz, eu faço, eu, eu, eu.

Resignação

 Tenho pensado muito nisso, sim,

Cada vez com mais plena convicção

E com menos temor no coração:

Morrer talvez não seja tão ruim.

Agenda

 Deixar passar,

Deixar correr,

Deixar calar,

Deixar morrer.

Chama

 A literatura ainda acende uma chama no coração do poeta. Não mais quanto antes, quando ela fazia seu corpo inteiro arder como se estivesse tomado pela mais desbragada das paixões carnais.

Hora certa

 Se devemos morrer, morramos antes

De saberem que nunca vamos ser

Nem Shakespeare, nem Dante, nem Cervantes.

Hoje

 Chegou o tempo sofrido

Em que a paixão de viver

Perdeu a razão de ser

E morrer ganhou sentido.

Metáfora

 Ter Shakespeare por modelo é como colocar um grão de areia diante de uma montanha, num dia ventoso.

Cotação - II

 Meus mestres foram os melhores. Fui um mau aluno. 

Cotação - I

Fiz alguma coisa. Poderia ter feito melhor. Agora é hora de esperar a hora final. 

Autossuficiência

 Parece um locutor de quermesse.

Ele mesmo lê seus poemas,

Ele mesmo agradece.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2021/09/19/ao-correr-das-teclas-raul-drewnick/

Salve-se, se puder

 Se o apanharem com sonetos na mão ou no bolso, declare-se espantado. Diga que não sabe o que são, que não são seus, que pertencem a um tal de Camões, esperneie, lastime-se e, num último lance dramático, grite: eu sou só usuário.

Dupla

 Numa parceria de um compositor comum com um chato, o chato é quem faz o refrão.

Honestidade

 Façamos justiça à coerência dos chatos. Por pior que seja seu repertório, mantêm-se fiéis a ele.

Armadilha

Tenho pena daqueles personagens

que em suas viagens

rio abaixo rio acima

por força não das tempestades

mas por imposição da rima

nunca chegam aos portos

e quando chegam chegam mortos. 

Provérbio poético

 Quadrinha faz quem quiser.

Ode só faz quem pode.

Conselho

 Poupe o amor. Evite pronunciar seu nome com esses lábios velhos e secos que melhor fariam se implorassem por água e compaixão.

Quem somos

 Somos todos aquilo que Fernando Pessoa chamou de cadáveres adiados. Se não nos cabe refutar essa convicção, é possível ao menos recorrer a um eufemismo: chamemo-nos de defuntos promissores.

Comunicado

 Antes que também isso me imputem,

Declaro em som alto e claro

Que não tenho nem contenho glúten.

Inveja

 Diante da magnificência do caixão, das velas e das flores, um primo do morto, um tantinho enciumado, comentou: é muito velório para pouco defunto.

Poder

Um chato, qualquer chato, tem o dom de melhorar tudo com uma atitude simples, como dar em nosso ombro um toque com aquela mão suada e nos pedir que o desculpemos, que a conversa está boa, mas que ele precisa ir embora. 

Falha

Se Deus, na época da Criação, contasse com um consultor futebolístico, não teria exagerado tanto no verde. 

Majestade

Considerava-se um gênio incomparável, inexcedível, único. Sua convicção só se atenuava quando lia Shakespeare. Parou de lê-lo.

Esclarecimento

Não sou um escritor. Sou um cidadão comum que, insatisfeito com sua pequenez, gosta de sonhar às vezes que não é Drewnick, mas Drummond. 

Adjetivos a postos

Assim que o gato, no fim do parágrafo, começou a atravessar a rua, três adjetivos, conhecendo o estilo dramático do escritor, colocaram-se de prontidão: atropelado, ferido, morto.

Fúria

Em alguns personagens dostoievskianos, a fúria atinge níveis de insanidade. Imagino que, se dois deles estivessem empenhados em ferir-se fisicamente e um cachorro entrasse em cena, se alguém mordesse alguém, certamente não seria ele. 

Norma

 Que um poeta fale de amor é uma obviedade não só flagrante, mas extremamente desejável e até obrigatória.

Batendo o ponto

 Isto é um diário, não uma antologia.  Toda manhã coloco aqui algum texto, coisa pouca, não para justificar o poeta que venho desistindo de ser, mas para dar um sinal de que o homem, apesar de todos os dissabores, ainda respira, mesmo que não muito bem.

Diferença

Não sou um poeta persistente.

Sou, segundo ouço dizer,

Um poetastro reincidente. 

Correção

Creio estar na hora, já, de isentar a poesia das transgressões que tenho cometido. Ela é inocente. Os ritmos capengas, as rimas bisonhas, as chaves de falso ouro nasceram não de um compromisso meu com a arte poética, mas de um oportunista acerto de minha presunção com minha vaidade.

Prioridade

O amor continua sendo um assunto para o qual as portas e as janelas do poeta devem estar estar sempre abertas. 

Conselho

Ocorreu-me hoje dar um conselho a escritores velhos e inábeis como eu: que se declarem cansados e parem de escrever, antes que os leitores resolvam tomar a decisão por eles. 

Causa e efeito

 Fatos são fatos.

Para acabar com os ratos,

Acabe com a ração dos gatos.

Refém

Quando menino, sonhava com mulheres fatais que o aprisionavam e o submetiam a um regime de pão, água e amor. 

Protesto

Nos quatro anos de mandato do poeta concretista na prefeitura, não houve um dia sequer em que houvesse brotado no céu do município um arco-íris. 

Equívoco

 Posso ter me enganado quando julguei ter talento para a poesia. Foi há muito tempo. Uns sessenta anos.

Bom tempo

Shakespeare vendeu a alma ao Diabo numa época em que havia alma e existia Diabo. 

Ele e nós

 Não escrevemos Romeu e Julieta, é verdade. Mas Shakespeare escreveu o que escrevemos nós?

Aviso diante da casa de um poeta parnasiano

Tenho vaga para cisnes. 

Trunfos

Quando resolveu iniciar-se na poesia, tinha como únicas recomendações a vocação polonesa para o sofrimento e uma tristeza persistente que ele, menino, descobriu depois chamar-se melancolia. 

Propriedades

Um soneto costuma ser execrado, abominado, ridicularizado e, às vezes, até lido. 

Entrega

Minha vida tem sido escrever.

Escrevo para me revelar,

Escrevo para me ocultar,

Escrevo para ser. 

Tempos

Não lembro há quanto tempo escrevo.

Só sei que não sou imortal,

Mas com certeza sou longevo. 

Polos

Enquanto os outros rapazes pensam no que farão amanhã ou depois de amanhã, o jovem poeta imagina como será sua esplêndida imortalidade. 

Relação

A literatura e eu não chegamos a ser íntimos, mas nunca estivemos tão distantes. Hoje quase não nos vemos, e eu tenho tido tempo apenas para dizer alô ou olá. Ela nunca responde.

Retrospecto

 A literatura e eu já tivemos momentos melhores. Principalmente a literatura.

Voz

 Se o silêncio tivesse voz, seria a de um gato ou a de um haicai.

Desforra

 A peça está no ato final e nós, que no primeiro e no segundo fomos chamados só a servir chá aos outros protagonistas, esperamos que, se nos couber a mesma tarefa, a mão do autor ponha nas nossas o veneno vingador.

Vaga

 Um gato sempre há de ter espaço num texto, ainda que seja só para bocejar longamente, pela falta de habilidade do escritor.

Segredos

Se as rosas resolvessem fazer confidências, o que revelariam elas que os poetas já não ouviram a brisa insinuar?

Culpa

Não se sabe exatamente qual foi o momento em que os sonetos, antes entusiasticamente celebrados, passaram a ser vexaminosamente confessados. 

O início

 Quando me apresentei à poesia, eu era só um rapazinho tolo e triste. Depois, piorei muito.

Consolação

 Mantenho ainda com a literatura algumas relações, como alguém que, concorrendo mensalmente a prêmios como motos, carros e mansões, aceita no fim da vida e da esperança  três dúzias de limão-galego ou dois pacotes de macarrão.

Presunção

Dizia presunçosamente que havia dedicado a vida à poesia, como se sua vida tivesse alguma importância. 

Consequência

 Não medir esforços é uma ótima forma de consagrar um lugar-comum.

Excelência

 Quem se ama reverencia

Seu eu, e em tudo que é seu

Vê sempre supremacia.

Lei

Nunca me decepcionei.

Sempre acatei o que determinam

Murphy e sua lei.

 

Pompa

 Aos olhos atuais, o soneto é um janota chegando de carruagem ao teatro para assistir a uma ópera.

Inspiração

 Em documentos antigos é possível notar que, ao posarem para fotos, os poetas sorriam tendo nos lábios a palavra amor.

Performance

Diante de um público maravilhado, o declamador põe-se a cuspir as pedrinhas, os pedriscos e os paralelepípedos de um poema concretista intitulado Pedregal. 

Síntese

 Amor, senhor dos senhores,

Paixão e danação, sabor

De dulçores e dissabores.

Inícios

 Sou um homem de maus inícios. Em tudo quanto tento, mal eu começo já sei que comecei mal.

Proliferação

 As rimas são como aqueles parentes que, vindo passar um fim de semana em nossa casa, se instalam aqui, se acomodam ali, se refestelam acolá e, se lhes dermos trela, nos confinam na casinha do cachorro.

Professora

 A poesia às vezes faz hora extra e vai ensinar ao cronista os nomes dos passarinhos e das árvores do bairro.

Os amorosos

 Havia os que morriam de amor. Eram considerados tolos, mas notava-se nos que assim os chamavam algo que poderia ser interpretado como inveja.

Resumo

 Minha relação com a poesia

Nunca se modifica.

Ou fica pior

Ou  pior fica.

Crepúsculo

 Amo a palavra crepúsculo. Ela me passa a ideia de um desfalecimento consentido, de uma derrota gloriosa. Quem melhor exprimiu essa sensação foi John Steinbeck: "Era o crepúsculo. O sol já se fora, mas o céu ainda brilhava, tão triste quanto uma lembrança."

Fila

 Apesar de seus ombros largos e de sua boa vontade, a literatura não consegue atender aos pedidos de todos os que dizem ter um dia ouvido uma voz poderosa que, calando os demais ruídos, ordena: meu filho, seu destino é ser poeta.

Lápide de um hedonista

 Nada como ficar assim de papo pro ar.

Lápide de um estoico

 Daqui só me tiram à força.

Formas de tratamento

 Longe está a era

de vossas excelências

e outras magnificências.

Hoje é o tempo

de vossas indecências

e vossas pesporrências.

Hoje na revista Rubem

 Trato de tipos muito especiais.

https://rubem.wordpress.com/2021/09/05/onde-se-fala-de-poetas-e-de-uma-condessa-raul-drewnick/

Lápide de Edward Aloysius Murphy

 Eu bem que me avisei.

Lápide de um conformista

Deu a lógica. 

Leveza

 Um haicai deve ser recebido sem alarde, como se ainda não tivesse chegado ou sempre tivesse estado ali.

Lápide de Jorge Luis Borges

 Digam-me: aqui é Estocolmo?

Lápide de um advogado

 Dura lex sed lex.

Lápide do soldado desconhecido

 Podem me chamar de John.

Lápide de um andarilho

Onde eu vim parar... 

Olhares

A vida às vezes nos perde de vista. A morte, nunca. Ela nos mantém sob seus olhos desde o primeiro dia, assim como alguém zelando pelo seu mais caro tesouro.

Sopro

 Se os haicais tivessem o hábito de anunciar sua chegada, encomendariam a tarefa à mais tímida das brisas. 

Covid-19

Tão presente tem estado a morte que já há entre ela e nós uma espécie de camaradagem. 

Docilidade

 Alguns dos nossos morrem tão mansamente que é como se pedissem desculpas por fechar os olhos diante de nós.

Devoção

 Dedicar a vida toda à literatura não é coisa que deva espantar alguém. É o que todos os escritores, até os incorrigivelmente bissextos, dizem fazer.

Ainda que seja só isso

 Que você deixe alguma coisa bem sua, ainda que seja aquele caderno do qual tantos zombaram porque nele você sempre disse estar sua alma.

Cotejo

 Camões não fazia exatamente o mesmo que nós, embora nos agradasse acreditar que sim.

Clichê

Se proibirem o lugar-comum,

o escritor medíocre

não chegará a lugar nenhum. 

Eufemismo

 Escritor bissexto é um modo respeitoso de chamar um escritor preguiçoso.

Poesia no jogo

Poemas concretistas em forma de dados são moda hoje em cassinos do mundo todo. 

Estilo de vida

 Se um mau escritor diz que vive para escrever, convém não duvidar. Cada um tem o direito de viver mal como quiser.

Níveis

 Um tantinho de loucura não faz mal a um poeta. Mas o ideal é sempre um tantinho a mais.

Pó

Mais dia, menos dia,

as novidades dos modernismos

acabam virando todas velharia. 

Comparsa

Em tudo quanto você escreve procure pôr alguma coisa de Shakespeare. Se os seus textos não melhorarem, não hesite. Atribua a culpa a ele. 

Remédio

Quem assobia, seus males alivia. 

Perfil

 Quem não tem palavras para agradecer é, além de mau orador, ingrato ou sovina.

Ars gratia artis

 O conceito de arte pela arte e a obstinada busca da perfeição poética soam às vezes, nos dias de hoje, tão desagradavelmente quanto insinuações de supremacia racial.

Balanço

 De tudo quanto escrevi

Um pouco eu não apreciei,

Um tanto eu abominei

E do resto eu me esqueci.

Pânico

Quando o grupo de poetas jovens tocou a campainha, o velho poeta pediu à mulher que nem sob tortura revelasse onde estavam escondidos os sonetos. A mulher perguntou se a recomendação valia também para as quadrinhas.

Timão

 Alegria! O Duílio é melhor que aquela tia!

Numa agenda

Que para o amor sempre

nossos lábios  tenham apenas

beijos doces e palavras amenas.

Dupla perda

 Expressar um desgosto amoroso num poema geralmente só serve para acrescentar a um infortúnio pessoal um insucesso poético.

O dia

 Sonha com o dia em que os sonetos escaparão de todos os seus bolsos e voarão para impor a beleza diante dos olhos hoje zombeteiros.

Detalhe

 Num romance policial,

o melhor papel é o de quem morre

nos braços da ruiva fatal.

Trunfo

 A poesia perdeu um pouco de seu charme, mas ainda salva algumas biografias, ou pelo menos lhes serve como gracioso enfeite.

Amiga

 A tristeza, em mim, é um hábito quase tão antigo quanto respirar.

Geração própria

 Reconheça-se: os poetas românticos nunca precisaram de dores alheias para chorar. 

Docinho

As quadrinhas são uma tentação: tão simplesinhas, tão graciosinhas, tão gostosinhas de ler e decorar. 

História

 A primeira categoria profissional a se manifestar contra a poesia concreta não foi a dos críticos literários; foi a dos declamadores.

Do credo concretista

 Qualquer emoção ou sentimento 

se expressam melhor com

tijolos, cal e cimento.

Lábios

 Gostaria de dizer amor não com os lábios murchos de hoje, mas com a boca que ontem o pronunciava entre beijos que molhavam as duas sílabas, deixando nelas um perturbador aroma de batom.

Sentido

Prepúcio é uma palavra tão imponente e majestosa que mereceria designar coisa bem melhor. 

Modos

 Haicais são trazidos ou pela brisa ou pelo bico de um passarinho.

Vozes

 Diante do quase anonimato dos haicais, os sonetos soam como uma pesporrência.

Patrimônio

 Poetas antigos incluíam suas rimas na declaração de bens do imposto de renda.

Conforto

 Morto compenetrado é aquele que, se ninguém o importunar no velório, permanecerá deitado ali confortavelmente, passem anos ou milênios.

Rosa, rosas

 Exaurido pelas questões sociais, o poeta aposentou-se, comprou um sítio e, deixando de lado a musa Rosa de Luxemburgo, canta agora as rosas e as outras flores de seu jardim.

Armagedon

Que as rimas não destoem

E os versos não soem mal

No Dia do Juízo Final. 

Recompensa

 Agora que minha história com a literatura se aproxima do derradeiro capítulo, espero que minha dedicação nestes anos todos me valha um final, se não glorioso, ao menos justo.

Cotação

 Somente muitos milênios depois da Criação um crítico teve a coragem de considerar Deus um artista um tanto quanto prolixo.

O nome

 Perguntou se teria um futuro bom

E a bola de cristal respondeu enigmaticamente:

Quem sabe disso é o Park in Son.

Tradição

De um poeta da escola romântica se deve esperar que, se não morrer por amor, pelo menos demonstre certa simpatia pela ideia. 

Classificado

 Vende-se poema concretista

No parque balneário.

Chaves com o proprietário.

Encontro

 Ir a Nova York não chegaria a ser necessário. Eu poderia encontrar Woody Allen e caminhar com ele na Paulista ou no Ibirapuera. Não precisaríamos conversar. Ele perceberia logo que eu sou um desses fãs que diante do ídolo não conseguem dizer nada além de alô.

Hoje na revista Rubem

O que eu não diria a Scarlett Johansson...

https://rubem.wordpress.com/2021/08/22/itens-de-bazar-raul-drewnick/

Glória

É um poeta modesto, que não sonha com estocolmos nem nobéis. Suas aspirações são municipais: ter um busto na praça central ou ser nome de rua, talvez de avenida, num bairro em que não faltem árvores nem passarinhos. 

Escala

 Sou um desses poetas menores

Que alternam poemas muito ruins

Com poemas ainda piores.

Ele e nós

 Quando nos inflamos de orgulho e nos proclamamos servidores da literatura, é hora de a voz da modéstia nos perguntar se ao falarmos de literatura estamos falando daquilo que Shakespeare fazia.

Ad astram

Alguns conseguem chegar ao ápice.

Também eu gostaria de ali chegar

Se um dia a algum lugar chegasse. 

Sinopse

 O que é que eu faço ainda aqui?

Não era isso o que eu queria.

Vivi mais do que pedi

E mais do que merecia.

Meninas

Wislawa Szymborska e a Poesia nunca precisaram marcar encontro. Como duas garotas traquinas, esbarravam-se por acaso, topavam-se, caíam e, quando alegremente se levantavam, às vezes não sabiam mais quem era uma e quem era a outra. 

Quem sabe

 Não me importa

nem um pouquinho

se Capitu traiu Bentinho

nem vou me importar

se ela traiu Escobar.

Meu nome não é Machado,

nada tenho a declarar.

Modéstia

 Dos seres poéticos, o mais tímido é o haicai.

Dosimetria

 Se nos versos houver problema,

Que se condene o poeta,

Mas que se absolva o poema.

Felicidade

 Felizes são os gatos, apátridas e sem ideologia. Não discursam, ronronam, e de território basta-lhes um sofá.

Rumos opostos

 Jamais conseguirá, embora queira.

Ama demais a poesia, mas

A recíproca não é verdadeira.

Galhardia

 Um concretista não chora nem quando dá uma topada na quina de um dos seus poemas.

Prazo de validade

Um poeta romântico era um poeta romântico e tudo mais que conseguisse ser até os trinta anos. 

Quando chegar a hora

 Deus talvez não seja parnasiano, apesar de todos os indícios. Mas aos poetas, sejam de que escola forem, recomenda-se que, quando chegar a hora de prestar-Lhe contas, não se esqueçam de levar uma chave de ouro.

Ofício poético

 Enquanto o poeta

invoca inspiração

às forças do universo

e lima as rimas

e burila o verso

o rato rói 

a roupa de rute

na rua do rosário.

Lembrança

 Lembra-se da poesia, como um homem de oitenta anos se lembra de sua namorada de infância. Ora ela se chama Vera, ora Priscila, ora Letícia, ora nem Vera, nem Priscila, nem Letícia. Se hoje ela lhe aparecesse com a idade que tinha na época, ele talvez a reconhecesse e abrisse para ela um sorriso que há oito décadas vem murchando.

Olimpo

Hoje o poeta de antologia

quase não escreve mais.

E, quando escreve,

é como um favor

ou um agradinho que faz

à poesia. 

Os outros

 No velório, quando a viúva chamou o defunto de maior poeta brasileiro, os outros poetas se entreolharam: e nós?

Wislawa e a outra (para Mariana Ianelli e Cássio Zanatta)

Wislawa e a poesia nunca precisaram marcar encontro. Topavam-se, esbarravam-se, caíam e, quando se levantavam, às vezes não sabiam mais quem era uma e quem era a outra. 

Vana verba

 Há muito tempo não me dizem nada

As palavras que me diziam tudo.

Todas, até amor, a mais sagrada,

São forma, agora, mais que conteúdo.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2021/08/08/poucas-e-talvez-ruins-raul-drewnick/

Última curva

Chegou meu tempo de ficar calado,

Silêncio é tudo que me resta agora,

Aquilo que me fez viver outrora

Hoje está morto, já, e sepultado.

Posso eu ainda pensar em vida, em obra?

O que posso é manter-me respirando

Porque isso é o que fazemos todos quando

Respirar passa a ser o que nos sobra. 

Decepção

 No bar, ele viu a Morte de perto.

Ela empunhava uma faca, não era loira

E chamava-se Zé Roberto.

Nem tal nem qual

 Não há por que duvidar.

Se com a morte nada se ganha,

Também nada se perde por esperar.

O pacto

 Pegou na biblioteca uma biografia de Shakespeare. Não quer saber de Romeus e Julietas, de sucessos e consagrações. Espera, nas quatrocentas e tantas páginas, encontrar pormenores sobre o pacto do Bardo com Deus, ou com o Diabo, ou, mais provavelmente, com os dois.

Resumo

 Se eu fosse agora, no fim da vida, fazer um resumo do que foi ela, diria que consumi tempo demais com a literatura. Infelizmente, não o bastante.

Estatística

 Alguns escritores precisam se esforçar para atingir o fracasso. Outros, a maioria, já nascem prontos.

Premeditação

 Há sonetos tão astuciosos que só revelam suas intenções e sua identidade um verso antes da chave de ouro.

Futuro

Um jovem poeta pode tornar-se um gênio, mas a maior possibilidade é a de que se transforme simplesmente num velho poeta.

Dica

Introduzir um gato numa história é às vezes a única forma de salvá-la 

Gato dormindo

Um gato dormindo é uma das maneiras de a beleza sugerir que devemos reverenciá-la em silêncio ou com a voz que usaríamos para, num sonho, chamar um anjo. 

Dura de morrer

A crase é como aquele vilão que morre no final de todos os filmes e reaparece no início de todos os filmes seguintes, sempre mais perverso e abominável. 

O detalhe

 Sonhou que morria afogado. Acordou destruído: no último gole engoliu um peixinho azul.

Sopros

Definir um haicai talvez fosse uma tarefa que se pudesse confiar à brisa, se ela já não tivesse sob seu cuidado contar histórias às rosas. 

Passado e presente

Os tempos mudam.

Os morituros que nos saudavam

Hoje não mais saúdam,

Transição

 Habituada no início a cavalgar soberanamente corcéis alados, a poesia precisou acostumar-se aos trancos e solavancos dos tresloucados ônibus metropolitanos.

Cicerone

Aqui era o parque central 

a avenida principal o teatro municipal

aqui era tudo o que havia antes

do recital dos três tenores tonitruantes. 

Miserere

 O tempo é o nosso algoz.

Ontem morriam os outros,

Hoje os morituros somos nós.

CLT

 Sou um péssimo patrão,

Não tenho dúvida disso.

Recuso-me compaixão

Quando estou a meu serviço.

Pai perverso

 Aos oitenta anos, rejeita a paternidade dos sonetos que aos vinte trazia no colo e sufocava de beijos.

Incompatibilidade

 Gato e feio são palavras que só se juntam para causar espanto ou indignação.

Domingo no parque

 Num domingo, se estivermos caminhando por um parque, podemos fingir que não ouvimos os passos da Morte. Podemos, até, julgá-los uma travessura armada pela brisa com as folhas secas.

Hoje, na revista Rubem

 Uma reunião de nadas

https://rubem.wordpress.com/2021/07/25/um-punhado-de-ninharias-raul-drewnick/

O sorriso

Hoje, folheando um álbum, o poeta se viu com dezessete anos. Nesse tempo ele sorria. Se fosse comparar as épocas, apontaria essa como a diferença principal: ele sorria. Com os olhos postos no rosto jovem e despudoradamente feliz, ele disse, amargo: idiota. 

A inveja

 A inveja, que até então era em mim um sentimento morno, tornou-se um rato balofo que passou a roer-me por dentro desde o dia em que conheci Shakespeare.

Obsessão

Escrever o deixou louco.

Viveu só para escrever,

Escreveu até morrer

E, morto, ainda mais um pouco. 

Frente a frente

Quando o sujeito no espelho

Me olha e diz que é Shakespeare,

Eu a rima escamoteio

E me suicido de rir. 

Compromisso

 Eu era um adolescente quando prometi dedicar a vida inteira à poesia. Pobre poesia. Podia ela imaginar que eu viveria tanto?

Passado

Não sou saudosista, mas admito que já gostei mais de mim. 

Ninharias

 Meio nobel serve

um vice-jabuti basta

para um poeta de baixa casta.

A pergunta

Depois dos oitenta, aa pergunta mais frequente que tenho feito é até quando Deus irá fingir que valho o ar que respiro. 

Sobre a beleza

 Gosto daquele tipo de beleza que nos fere, que nos machuca, que nos dói. Que nos deixa marcas que mostraremos um dia para ninguém supor que Deus nos privou de tudo.

Prova final

Teve certeza de que os sonetos jamais recuperarão o prestígio quando um amigo os confundiu com palavras cruzadas e lhe perguntou se elas eram mesmo um hobby tão bom quanto dizem. 

Tarefa

 Se o poeta, esteja onde estiver, não estiver procurando a beleza, há de ter uma boa justificativa para isso.

Cuidado

 Na embalagem dos poemas concretistas, uma recomendação: esta parte para cima.

Questão de idade

Aos sessenta anos decidiu encerrar a carreira de sonetista e dedicar-se aos haicais. Seus confrades dividiram-se em dois grupos: o dos que lhe prediziam sucesso, por sua ascendência oriental, e o dos - estes mais numerosos - que atribuíam a mudança a uma falta de fôlego provocada pela idade. "Quatorze versos são quatorze versos, três são só três", resumiu aritmeticamente um dos representantes do segundo grupo. 

Sósia

 Um dia, ele se deu conta de que era uma versão aprimorada de Clark Gable, o que seria importante se não fosse 2021 e alguém, além dos oito associados do clube de cinéfilos de Várzea Grande, soubesse quem era Clark Gable.

Certeza póstuma

Era um defunto imponente, cheio de autoconfiança, como se estivesse na centésima representação de uma peça de teatro cujo título fosse A resssurreição. 

Detalhe

 A rua da amargura não é um logradouro; é um lugar-comum.

Cotação

Vivo minha mais tranquila fase.

Sonhos não tenho mais, nem ideais.

Se não estou morto, estou quase. 

O defeito

 Não é o pior dos poetas. Seus versos não fluem mal, e as rimas, quando ele as usa, são discretas. O problema é sempre o assunto: uma xaropada ou para fazer boi dormir ou para ninar defunto.

Expressão

 Desencantou-se aos poucos com a mulher e tanto se desaveio com ela que, no fim, quando a tratava de minha cara, já não expressava afeto, mas quanto lhe custava pagar-lhe a pensão.

Veracidade

 Os tipos muito simples, quase simplórios, são os que a literatura usa quando quer dizer que retrata com fidelidade a vida.

Falsa importância

 Ler Dostoievski aos doze anos, em 1950, quase nunca tem outro efeito ou importância além de se poder dizer, setenta anos depois, aos oitenta e dois, que se leu Dostoievski em 1950.

Curva final

 Quem hoje me vê caidaço,

Tão perto já do meu fim,

Não sabe o esforço que faço

Para me manter assim.

Diversionismo

 Saudade das rimas.

Enlaçando-se em inho,

Abraçando-se em ão,

Iam com jeitinho e precisão

Entretendo os leitores

E escondendo a pobreza do tema

E os defeitos de fabricação.

Página um

 A primeira lição literária que os novatos precisam aprender é que escrever não pode ser simplesmente escrever, embora não deva ser muito diferente disso.

Número

Se acerto o salto, nenhuma. Porém

Se despenco do trapézio e quebro o nariz,

As vozes e a rima se juntam e me pedem bis. 

Excelência

 Agora só anda com os de sua categoria.

Não é mais um versejador qualquer,

É um poeta de antologia.

Não mais

 Às vezes, a esperança resolve tentá-lo novamente e põe diante dele uma cena que o emociona: uma criança maltrapilha, um cego vendendo vassouras, um gato atropelado. Seus olhos se enchem de lágrimas, como tantos anos antes, e ele sente o apelo da poesia. Mas não lhe vem um verso, como se ele não fosse o homem que, quando jovem, teve a presunção de se dizer poeta.

Belle époque

Houve épocas melhores para escrever. Como aquela em que até os fracassos artísticos tinham uma escala obrigatória em Paris. 

Pragmatismo

A nova geração de poetas objetivos, hoje preponderantes, leva muito a sério o conceito de produtividade. Ao contrário dos pioneiros da escola, abriram-se a sentimentos antigamente exclusivos dos românticos, como a tristeza, desde que apresentem uma boa relação entre custo e benefício.

Moderação

 Às vezes gosto de me supor melhor do que sou. Mass não tanto quanto aqueles que se dizem réplicas aprimoradas de Deus.

Merecimento

Quando não os merecermos mais,

Que morramos antes que morram

Nossos sonhos e nossos ideais.

Farsa

 Na opinião dos detratores da beleza, um arco-íris não passa de um dos truques mais baratos de Deus.

Tarimba

 O poeta se define, carinhosamente, como puta velha. Os jovens o respeitam. Os olhos dele, nublados pelo sofrimento, são pura poesia para eles. Não estranhariam se, rameira escolada que é, começasse a exibir,   lentamente, papéis preenchidos com letras nas quais até o mais estulto dos homens poderia ver uma faísca de eternidade.

Vocação

Conheci ao todo seis ou sete escritores dispostos a morrer pela literatura. Seis eram poetas.

Custos

 As novelas policiais não economizam balas nem defuntos.

Salve-se quem puder

Um autor de novelas policiais tem sobre os outros uma vantagem inestimável. Ou os personagens se comportam bem ou ele pode reuni-los todos num capítulo, não necessariamente o último, para que se matem todos sem piedade. 

Definição

 Para Mario Quintana, poesia era só uma coisa, uma coisa muito simples de fazer. Para Mario Quintana.

Lápide de um matemático

 Meus dias sempre estiveram contados.

Dalton Trevisan, Hugo Almeida

 Um dia, muito tempo faz, estive em Curitiba e não vi Dalton Trevisan. Era mais fácil encontrar por ali o papa, disseram-me. Um a quem perguntei por ele me olhou torto: aquele escritor pornográfico? Os outros sorriram sorrisos de concordância: aquele escritor pornográfico. Tive pena de Curitiba. E entendi o rancor de Dalton, como entendi o de Leminski. Raça de cidade mesquinha, mal-agradecida. Não disse, mas devia, que Curitiba é menos que Dalton, e sempre será. Difícil citar hoje um escritor brasileiro de primeiro time que não tenha algo dele. Hugo Almeida tem muito,.

Carreira

 Escrevi por muitos anos, tempo suficiente para saber que precisaria de pelo menos o dobro para parecer um poeta um pouco menos insignificante do que sou.

Servidão

 Amor, que houve com tuas algemas?

Por que afrouxaram,

Por que não me apertam mais?

É noite e se te escapo

Onde irás me procurar?

Hoje, na revista Rubem

 Algumas divagações sobre poetas e mulheres

https://rubem.wordpress.com/2021/07/11/de-poetas-e-mulheres-raul-drewnick/

Perfis

 É um tipo esquisito. A primeira coisa que faz toda manhã, ao sair de casa, é olhar para o céu. Dizem que assim ele cumprimenta o sol e há quem, por isso e por outros gestos estranhos, o chame de poeta. Na mesma rua mora um rapaz de vinte e poucos anos, com dois livros publicados, em quem os vizinhos reconheceriam um poeta, se ele tivesse o hábito de desejar bom dia ao sol.

Revolução

 Enquanto os defensores da velha literatura se ocupavam ainda com alpistes e quireras, Drummond enxotava os cisnes e os pombos parnasianos e ia introduzindo mineiramente leiteiros e outros extravagantes personagens na cena principal.

Fiscais

No tempo em que as estrelas tinham ainda alguma importância, eram os os poetas que atestavam sua veracidade. 

Ressalva

 Cheguei ao fim, reconheço.

Não façam caso, me ignorem,

Não me lamentem, não chorem,

Eu não valho, eu não mereço.

Miserere

 Comecei a me dizer poeta tão cedo e tanto me empenhei em fazer verossímil essa presunção que várias vezes cheguei a me convencer. Que me perdoem todos aqueles que eu possa ter iludido com minha reles embromação.

Currículo

 Minha tese de mestrado

Tem a morte como assunto.

Sou um aluno aplicado,

Hei de ser um bom defunto.

Releitura

Quando, cinquenta anos depois, abriu a gaveta onde estavam escritos em esmerada letra os sonetos de sua juventude, decepcionou-se. Tinha lido já o terceiro e seus olhos permaneciam obstinadamente secos. 

Humildade

 Tenho uma convicção: a de que um poeta presunçoso nunca receberá a visita de um haicai.

Resumo

Nasci triste. Isso fez de mim um menino orgulhoso. Repugnava-me o riso dos adultos, como quase tudo que lhes era próprio. Horrorizava-me pensar que logo seria um deles. Quando descobri a literatura, escravizei-me aos personagens atormentados, aos miseráveis e aos derrotados. Ela nunca me faltou. Até hoje me dá o pão amargo que me alimenta. 

Doktor Alzh

 Estou num momento mau,

Que péssima fase, a minha.

Minha alma virou mingau

E meu cérebro, farinha.

Depreciação

 Ando tão diverso, já,

De modos e de feições

Que a Morte, se me aceitar,

Há de ser com restrições.

Necessidade

 Depois que se casou com uma viúva pobre e mãe de três filhos, o poeta passou a fazer recitais para um só tipo de público: o pagante.

De bom tamanho

 Na ideia de imortalidade do escritor municipal não há uma passagem por Estocolmo. Há uma reunião na câmara de vereadores e uma votação que lhe garantirá um lugar de estátua na praça central. Isso lhe bastaria. Se pudesse pedir algo mais, seria que o plantassem de frente para o pequeno lago.

Opacidade

 É um desses poetas que, numa antologia de quinze, fazem sempre pensar que com catorze ela ficaria bem melhor.

Identidade

 Enquanto o poeta social se identifica apresentando a carteirinha do sindicato, o poeta comum continua dependendo dos passarinhos e dos seus colegas de ofício.

Composição de preço

Que todo sacrifício imposto pela literatura seja assumido pelos escritores e que eles resistam à tentação de repassá-lo aos leitores. 

Antecedentes

Cinquenta anos atrás, quando se esmerava para escrever seus sonetos, ele os classificava em duas categorias: os românticos e os realistas. Na época, eles ainda não se dividiam em dolosos e culposos. 

A promessa

 A promessa de dedicar a vida inteira à literatura é uma imprudência que só se deve cometer depois dos cinquenta ou sessenta anos.

Programa

Que será de mim, de ti,

De nós, telespectadores,

Quando acabar a CPI? 

Currículo

 Reprovada por sua verdeza,

a banana se inscreveu

num curso de madureza.

Lições amargas

Nem sempre nos é propícia a maturidade. Podem ser amargas suas lições. Uma das que fazem parte de minha experiência é a descoberta, tão tardia, de que a poucos é dada a bênção de exprimir a beleza com a poesia.

A poderosa

Das atividades que podem levar um homem ao fracasso, uma das mais fascinantes e infalíveis é a literatura. 

Itinerário

O pior momento, para um escritor, é aquele no qual descobre que nem todos os caminhos levam a Estocolmo. 

Pecado original

 Minha desafortunada aventura poética começou muitos anos atrás, com um equívoco que há de se perdoar a um adolescente. Eu queria ser Shakespeare, eu desejava ser Fernando Pessoa, eu ambicionava ser Camões. Não houve uma voz sensata para me dizer que, com aquelas pretensões, eu só poderia ser um humorista. 

Sonetinho dos maiorais

Certos poetas dizem ter

Escrito obras magistrais

E nos asseguram ser

Maiores que os maiorais.

Quem irá desmerecer

Tais obras, fundamentais,

Quem ousará desdizer

Escritores tão geniais?

Diante dessas excelências

Tenhamos só reverências,

Deixemo-nos seduzir.

Sejamos uma só voz,

Digamos ser todos nós

Maiores que Shakespeare. 

O sonho

 Na primeira, na segunda e na terceira noites, o cavalo branco apareceu no sonho de Marcinha. Ninguém o montava, mas tratava-se de um cavalo especial, era fácil ver. Na quarta noite, ele surgiu montado por um príncipe. O coração de Marcinha se acelerou. Ela abriu um sorriso que se manteve enquanto cavalo e príncipe desapareciam no sonho que nunca mais se repetiu.

A marca

Repentinamente, no velório, a viúva dirigiu um olhar furibundo a um grupo de mulheres e perguntou quem era a sirigaita. Seu dedo apontava uma sorridente boca de batom no colarinho do defunto.

A causa

 Deste lago não sai mais cisne, disse, meio jocosa, meio tristemente, o velho sonetista quando lhe perguntaram por que não escrevia mais.

Ser ou não ser

Na casa do filósofo a torneira,

Toda vez que se fecha, nunca sabe

Se a gota é a última ou a derradeira. 

Crème de la crème

Mais do que os prosadores, os poetas às vezes são tentados a seguir o conceito da arte pela arte e a buscar a perfeição, como se a literatura fosse um passatempo refinado para entreter os deuses.

Obra

Escrevi algumas coisinhas razoáveis nestes anos todos em que venho tentando ser poeta, duas ou três, mas  ninguém, nem mesmo eu, que me odeio tanto, devo deixar de reconhecer isso.

Hoje, na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2021/06/27/banca-de-retalhos-raul-drewnick/

Publicista

 Ao resolver dedicar-se a causas sociais, o poeta apresentou seu primeiro projeto: a fixação de cotas para rimas pobres.

Pânico

Houve um tempo em que se podia sacar um soneto numa rua qualquer sem que os passarinhos e os transeuntes se pusessem em fuga.

Sazonal

 Ser chamado de poeta futuroso é uma dessas coisas que, como o amor, só têm sentido pleno dos quinze aos, digamos, vinte anos.

Memória punitiva

Um chato sabe sempre, do primeiro ao último, os versos do nosso pior poema, ainda que ele tenha treze além do final.

Aldrava

Por que não ouves minhas queixas?

Por que me tratas mal assim?

Ó, sésamo, por que te fechas?

Por que não te abres, gergelim?

Um

Sabe que um poema, um poema só, bem-sucedido, pode transformar a cotação e a vida de qualquer poeta bisonho. Um poema que há tantas décadas ele vem tentando.

Otimista

 Implora a Deus que o socorra

E possa lhe conceder

Que, se possível, não morra

Ou que morra sem sofrer.

Fogo brando

 O que nos últimos sessenta anos houve entre mim e a poesia foi, contra a minha vontade, do conhecimento de não mais do que meia dúzia de enfastiados leitores.

Lambda

De uma loira longilínea não se deve exigir atrativo nenhum além daquele que usufrui a ponta de nossa língua ao dizermos as duas palavras da deliciosa aliteração: loira longilínea. 

Em círculos

 Muda pouco o meu sistema.

Ou um poema estou fazendo

Ou estou fazendo um poema.