terça-feira, 30 de abril de 2019

Matilde

Embaixo das suas, ela guarda a calcinha de Matilde. Faz um ano, hoje, e ela a apanha como se tocasse uma flor. Puxa-a devagar, quase ritualmente, cheira-a e ali onde o batom um ano atrás imprimiu sua boca ela começa a deixar beijos sobre beijos. Beija, beija. Tilde, Tilde. Depois coloca a calcinha de novo no fundo da gaveta, embaixo da calcinha que ela própria usou naquela noite e na qual Matilde gravou também os contornos de seus lábios sequiosos.

O caminho dos dedos

Quando ela se deita, a pequena elevação no ventre, que se destaca quando ela está em pé, se aplaina e se mostram plenos os tesouros que ele, aturdido como um menino, quer explorar, sem saber por onde começará.  Pede às mãos que o guiem. Elas, ainda tímidas, vão buscar uma pepita nos cabelos, apalpam o rosto, os seios, e descem devagar para o ventre. Ali se demoram mais, tateando a morna planície  pela qual lentamente irão deslizar para outra elevação, esta protegida e demarcada por uma tênue e úmida relva que aos dedos caberá prazerosamente tocar.

A terceira vez

É a terceira noite e, quando ela começa a beijá-lo na boca, ele sabe para onde seguirão depois os beijos, e o caminho que tomarão as mãos dela, e onde o apalparão suavemente, e onde o apertarão. Depois das primeiras vezes, chegou a imaginar que o roteiro fielmente cumprido por ela acabasse, pela obviedade, tornando menos vivo o prazer. Hoje sabe que na repetição está o maior gozo do desfrute e - ainda que ontem e anteontem tenha procurado se concentrar para não atingir tão rapidamente o paraíso - parece o que é: um colegial em sua terceira noite de amor.

Daquele bloquinho meio secreto

O barco que na infância ele comandava, gritando ordens para vinte tripulantes, foi tomado agora por vinte mulheres piratas, e ele chama em vão os tripulantes, dizimados por elas na abordagem. Só se salvará com a condição de se submeter como escravo sexual de todas. A primeira, a que chefia as outras, já se aproxima dele, que, deitado e nu, se concentra para atendê-la. Honrará seu passado, não se desmerecerá, ainda que morra na cama. Para deixar clara sua disposição de cumprir o dever que lhe cabe como derrotado, faz uma bravata. Olha para a pirata que já se debruça nua sobre ele e desafia: "Podem vir todas juntas, se quiserem." E deixa que ela se deite sobre ele, que ela o monte e cavalgue, porque esse é o direito do vencedor, sempre.

Gendarme

Fui acordado à meia-noite por um fantasma que, num francês colérico e atropelado, quis saber qual era o meu nome, se era eu o dono da casa, censurou-me pela desordem que observou em cada canto e fez outras perguntas, pelas quais ficou claro que duvidava de minha honestidade. Fui respondendo com o quase nenhum conhecimento que me restou de dois anos de Aliança Francesa e, no fim, ele, já aparentemente tranquilizado, me estendeu um cartão: Monsieur Javert.

Lembrança cinematográfica

A bala de morango havia trocado de boca já várias vezes quando, de repente, ela não a devolveu. Ele  sabia que o joguinho tinha terminado. Estava começando o filme. Era sempre assim. Ela gostava dele, mas gostava mais de cinema. Porém não a ponto de impedir que ele passasse a mão nas suas pernas finas e nos seios que finalmente davam a ela um aspecto de mulher quase feita.

Um daqueles textos

Enquanto a observa tomar o sorvete com a pequena colher, ele - que se habituou a ser modesto até nas fantasias - não se fixa na boca e na língua, nem no que elas poderiam lhe proporcionar, se tocassem amavelmente seu corpo. Fica olhando a mão e acompanhando a graça com que pega o sorvete e o leva aos lábios - sabor de chocolate misturado ao morango do batom. Nem pensa no que sentiria se essa boca quisesse deixar marcas amorangadas no seu corpo. Continua fascinado pela mão e imagina que felicidade ela deve semear no corpo de um homem que a mereça (e aí, sim, com a bem-vinda ajuda da língua e da boca). E pensa também no caminho que esses cinco dedos, na cama e no chuveiro, podem seguir no corpo da mulher que agora, com avidez requintada, revelada só pelos olhos, lambe a última colherada de sorvete.

Também daquele bloquinho

Ela encosta a boca na boca dele e diz para dentro dela se ele quer.  Ele, sem descolar os lábios dos lábios dela, responde que sim, quer muito. Sempre que se beijam é assim, depois dessa pergunta e dessa resposta que se repetem várias vezes, até que as bocas, não aguentando mais, se dão inteiras e se reconhecem com a molhada intensidade das línguas.

Daquele bloquinho

Gostaria de ter morrido numa daquelas noites em que o prazer era como um copo cheio de vinho capitoso à espera de que o primeiro pingo pingasse fora da taça, para que os outros todos se derramassem com aquela ansiedade que só a insuportável exaltação dos sentidos, provocada pelo amor, proporciona.

Prudência

Não subestime ninguém.
Quem julga os outros
Pode julgar-se também.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Norma

Os sonetos só deveriam ter permissão de voltar à cena depois de umas aulas de modéstia com os haicais.

Pé atrás

Desconfia dos poemas que o encantam e nos quais nota a ausência da palavra amor. Receia acostumar-se.

Fidelidade

Morreria venturosamente pela poesia, se já não estivesse comprometido com o amor.

Confissão

Não conheço beleza mais digna e honesta que a de um haicai.

Lacuna

O poeta velho esqueceu-se da definição de rosa.

Modos de vir

Um haicai
ou vem sozinho ou vem
no bico de um passarinho.

domingo, 28 de abril de 2019

Infalibilidade

Um gramático está sempre pronto
para corrigir tudo que dizes,
estejas tu, apedeuta, em Perdizes
ou estejas tu nas Perdizes.

Ainda que

Havemos de manter algum lirismo, ainda que para consumo exclusivamente próprio ou para atender ao apelo de um obstinado saudosismo.

Andersen

Hoje na rua
com sua roupa nova
vi o rei
ele não corou
mas eu corei.

Logros

Também você acreditou
ter um pacto eterno com a poesia
como eu acreditei um dia.

sábado, 27 de abril de 2019

Tal qual

Um gato iraniano
é um gato persa
e vice-versa.

Satisfação

Dizer que escrevo com toda a honestidade não melhora um parágrafo meu. Mas como me faz bem dizer.

Anfiguri

Sonhou que com borges tomava
um ônibus para estocolmo
na barão da paranapiacaba.

Forma de tratamento

O escritor de coquetel gaba-se de saber o nome de cada um dos garçons do bufê, embora, para garantir seus rissoles e sua coca, chame todos de "Simpatia" ou "Amizade".

Conhecimento de causa

No fim da palestra, curvando-se para agradecer os aplausos, Deus mostrou conhecer melhor do que ninguém suas criaturas. Com um sorriso, convidou os espectadores: "Agora, espaço aberto para os comentários. E para as críticas."

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Sob medida

Amores transcendentais
devem durar o que durarem -
nem menos nem mais.

Logo ao que interessa

No primeiro minuto da primeira palestra das seis que se comprometera a dar, Deus, quando começou a falar do plano geral do ciclo, foi interrompido por um estudante: "O Senhor pode ir direto a Adão e Eva?"

Declaração de bens

Meu patrimônio é a tristeza. Desde menino eu o venho juntando. Não tenho grades nem trancas em casa.

Pecúlio

Na casa do velho poeta há uma gaiola sem passarinho, uma casinha sem cachorro e uma centena de poemas sem poesia.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Só depois

De longe, ele olha para a mulher, para o seu corpo grande, majestoso. Ele gostaria de abraçá-la, não por luxúria, mas pelo aconchego, pelo calor que adivinha haver nos seus braços. Ficaria abraçado a ela por muito, muito tempo. E só depois, se não conseguisse conter-se, começaria a mover as mãos e os lábios. Só depois, como agora acontece, quando imagina tudo, deixaria mexer-se a sua calça, como se um bicho ansioso  se esforçasse para escapar pelos botões. Mas seria carinhoso todo o tempo, porque é de carinho que precisa, mais do que tudo, e é carinho o que ele mais tem para dar.

Ossos do ofício

Se Deus fosse escritor, estaria até hoje por aí, em feiras de livros, dando autógrafos e palestras para explicar seus processos de criação.

Modéstia

Honesto foi aquele que, tendo escrito uma peça e verificado que era igualzinha a "Romeu e Julieta", de Shakespeare, reconheceu: a dele é um pouquinho melhor.

Dura lex sed lex

Para garantir que tivéssemos o direito de represália, cada chato deveria ter pelo menos duas mães.

Desempenho

Tão seguro se mostrava o morto que não parecia estar no seu primeiro velório.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Aquela quadrinha infame

Sempre que de ti preciso,
A minha imaginação
Mostra o rumo à minha mão
E leva-me ao paraíso.

Um daqueles textos sob suspeita

Conhecem-se há um mês e ele há alguns dias vem tentando beijar-lhe a nuca, mas toda vez ela dá sinais, até ríspidos, de que não quer. Já foram três vezes ao motel, já se exercitaram em amplo repertório, mas, quando ele aproxima os lábios das orelhas dela, ensaiando fazê-los escorregar para a nuca, ela os afasta. Talvez imagine que beijar a nuca seja um pretexto dele para, dali, conquistar um pouco mais de território nas suas costas, e não só para a boca. Mas ele nem pensa nisso. Quer só, porque para ele seria o prazer máximo, levantar os cabelos dela e beijar-lhe a penugem que supõe haver debaixo deles, fina como ouro em pó.

Testemunha

Continuo aqui onde me ignoraram.
Todos os dias já e também
Todas as caravanas passaram.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Castigo

No sonho, a mulher, vestida só com um sutiã e uma calcinha de pele de tigre, tira-lhe a camisa, aprisiona as mãos dele em duas argolas suspensas, fixadas na parede, e começa a chicoteá-lo, ao mesmo tempo em que pergunta: "Quem pichou o meu muro? Foi você? Responda alto. Foi você? E o que você escreveu? Fale alto. Eu não entendi. Gostosa? Foi isso? Gostosa? Foi?"

Outra daquelas folhas

Às vezes, como hoje, sua sede é de água salgada. Reminiscências de praia e de mar lhe vêm à língua e ele fixa os olhos na blusa cavada, sempre que os braços, levantando-se para ajeitar os cabelos, deixam à mostra as perturbadoras axilas.

Um daqueles papéis destinados ao fogo

O amor o cansou tanto que ele não tem forças nem para morrer. Deitado, espera a Morte. Hoje ela veio, mas, puta escolada, depois de tirar a saia, o sutiã e a calcinha, avisa que só se deitará com ele se ele tiver ainda o que lhe dar. Está doidona, com o sexo em fogo, e ou ele se dispõe a morrer como um homem ou ela irá procurar um rapaz que ela possa prender entre as pernas e asfixiar pouco a pouco, amorosamente, como uma sucuri quebrando os ossos de um novilho.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Mais um daqueles textos culposos

O dedo médio se move lento. Avança - se essa for a palavra adequada - meio milímetro por minuto. Está próximo da fonte e, por astúcia e para seu proveito, retarda-se para desfrutar um pouco mais o sedoso contato com a folhagem úmida. Sabe que logo será substituído por um pesquisador menos delicado que não dará atenção às folhas ruivas e se atirará direto à fonte salgada.

Confissão

Não sou um formador de opinião. Desconheço meu próprio ofício. Nada entendo de flores, nem de pássaros, nem de amor.

Catástrofe

À tradução de um poema concreto deveria dar-se o nome de depredação: não costuma ficar pedra sobre pedra.

Daquele bloquinho meio clandestino

Encanta a ela a maciez com que ele lhe toca os cabelos. Os dedos parecem os de um joalheiro mexendo em um daqueles diademas que, por sua preciosidade, só saem do cofre em ocasiões excepcionais. Ele quase realiza o prodígio de tocar sem tocar e, ao mesmo tempo, é como se avaliasse fio por fio com a delicadeza de quem sente, em cada um, que o ouro, assim como os seres humanos, tem uma alma. O rosto dele é o rosto que teria a beatitude. E, no entanto, em cada toque suave ele imagina estar com os dedos mergulhados em ouro, sim, mas num ouro de fios mais espessos e de um olor mais denso e morno que o dos cabelos.

Confidência

Para falar a verdade
sou um poeta comum
tendendo à mediocridade.

Estilo

Era um fantasma incomum. Na farra
Em vez de uísque ou de rum
O maganão bebericava
conhaque de alcatrão
de são joão da barra.

Decadência

Pífios fantasmas de hoje:
de cada três,
nenhum fala inglês.

sábado, 20 de abril de 2019

Daquele bloco oculto na escrivaninha

Quando a ausência dela se prolonga e se faz insuportável, ele, para desmerecê-la, se põe a imaginá-la gorda, toda gorda em tudo: coxas, seios, braços, pernas, nádegas. Às vezes, acrescenta-lhe celulite. Não tem dado certo essa contramanobra da imaginação. Por pior que a retrate, no fim está sempre sussurrando gorda, gorda, minha gorducha.

Onan

Ainda hoje, quando ele a evoca,
Ela se faz tão presente
Que até seu cheiro ele sente
Se com ternura se toca.

Soneto das faces da fortuna

Um com uma trova se anima,
A outro só um soneto enfuna,
Cada um com sua obra-prima,
Cada um com sua fortuna.

Enquanto ansiosos esperam
A glória que nunca vem,
Em rimas ricas se esmeram
E em versos de ouro também.

A isso tudo indiferente
O concretista veemente
Empenha-se com coragem

Em resolver seu problema:
Construir nos fundos do poema
Uma piscina e a garagem.

Soneto das lições do gozo

As compliecadas noções
De côncavo e de convexo,
Assim como outras lições
Ele as aprendeu com o sexo.

Com o sexo aprendeu a ver
Que entre receber e dar
E entre dar e receber
Pelos dois convém optar.

Aprendeu também os vícios
De acariciar orifícios
E de adestrar sua mão

Na arte de tornar o gozo
Mais gostoso, mais gozoso,
E de eriçar a paixão.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

"Já sei que não sabes", de Miguel Barnet

"Já sei que não sabes quem foi Rimbaud
nem tens sequer ideia de quem ele amou
nas areias da Abissínia,
o que te importa se Dickens ou Borges ou Baudelaire
amaram ou desamaram se tu do amor só conheces
essa partícula mínima, natural, carnal, mas preciosa
que talvez nem Rimbaud, nem Dickens, nem Borges
nem Baudelaire puderam saborear.
O que te importa saber quem eles foram,
nem o que fizeram, nem a quem amaram ou desamaram.

O que te importa se neste momento,
neste precioso momento,
sobes por minha enraivecida vontade
a um trono altíssimo, inalcançável,
onde tu és a única coisa real."
(De Poetas da América de canto castelhano, tradução de Thiago de Mello, publicação da Global.)

Lema

Nisto consista nossa arte:
que o que nos resta viver
não seja a pior parte.

Aviso

Não confundir Nabucodonosor com Tegucigalpa.

Naquela folha avulsa (2)

A flor escura, tocada por dedo hábil e autorreverente, faz flutuar no quarto um odor salgado, um aroma morno, um perfume de mormaço. É o momento em que, toda noite, ela pensa no marinheiro imaginário a quem deu o nome de Jim.

Naquela folha avulsa (1)

Sopra mais uma vez, leve, bem leve, como se não soprasse. A perolazinha do umbigo parece dar uma piscada, como um olho brincalhão, e um pouco abaixo a penugem ruiva começa a despertar, como o trigal à primeira brisa da manhã.

Paranoia

Aonde quer que eu vá
perseguem-me os advérbios:
aqui, ali, acolá.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Um instante para falar de uma gata fujona (para o Gianluca e a Nicole)

Se alguma gata perdida
For parar em um livrinho,
No início, meio ou finzinho,
Tem obrigação o autor,
Se desalmado não for,
De lhe oferecer comida,
Mesmo que seja, ai que horror,
Uma lebre distraída
Ou um tolo passarinho.

Comichão (para Lourença Lou)

"Mais pra cima, isso, agora um pouco pra direita, aí, acho que foi bem aí" - a garota, com o ombro nu, vai indicando o ponto em que ela e o namorado sabem que nenhum mosquito a picou, ponto que ele suga deliciado, com o pretexto de aliviar uma comichão que os dois fingem existir, empenhando-se cada vez mais no joguinho e ampliando a área macia e morna na qual o mosquito gostaria de ter estado.

Daquele caderno, lembra?

"Eu vou lhe avisar", disse a mulher para o homem sentado nu na beirada da cama. "Você vai viciar tanto nisso que depois vai querer todo dia. Vou acabar com a sua fortuna em três tempos." O homem sorriu: "Então vem me mostrar como é." Ela se aproximou, ajoelhou-se entre as pernas dele e começou a bater os cílios com tanta rapidez e tamanho ruído que era como se o quarto tivesse sido invadido por um bando de gaivotas.

Presença

Se o assunto a ser tratado for o amor, não mande representante.

Consenso

Sim, o amor é aquele tema antigo sobre o qual os poetas não se cansam de falar e que os leitores não se cansam de ouvir.

Equívoco

O poeta concretista convidou o jornalista a entrar. "Senta. Não, aí não. Esse é o meu novo poema."

Risco

Todo amor há de querer ser eterno, e de revelar essa presunção com o máximo alarde. A quem agrada vrer um trapezista fazendo acrobacias sobre uma rede de proteção?

Crise

Há em qualquer velório aquele momento em que nem o defunto nem o cafezinho com biscoitos servido infatigavelmente pela simpática viúva parecem capazes de manter os amigos interessados. Mesmo os parentes começam a ser vencidos pelos bocejos.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Daquele caderno escondido no fundo (II)

Pensa que se ago
ela o bei
que se ago
ela se me
que se agora
ele a bei
jasse
que se ago
ela se me
xesse
ele talvez ago
nizasse
como ago
niza de gozo
em pulsa
ções
em estreme
ções
em convul
sões
até se imobilizar
(triunfador derrotado
estendido sobre
o território conquistado).

Daquele caderno escondido no fundo (I)

Olha mais uma vez para a mão. Faz pelo menos meia hora, já, que ela se mostrou tão surpreendentemente audaz, mas ele parece não acreditar ainda no que ela foi capaz de fazer. Olha de novo para ela, e de novo a cheira, para que o odor marinho o convença.

Perda total

Perder um gato, não ter notícias dele (por tanto tempo que se começa a recear tê-las) é um dos infortúnios a que nenhum de nós deveria estar sujeito.

Conduta

Há homens tão inseguros que se desculpam depois de contar piadas. Eu já não as conto mais.

Convivência

Venho me dando bem melhor comigo. Simplifiquei-me. O amor não é mais uma entre dez prioridades. É a única.

Peculiaridade

Se lhe resta algum senso, alegre-se (ou lastime-se). Você ainda não é um escravo do amor.




terça-feira, 16 de abril de 2019

A dúvida

Comentaram que o tio havia morrido de amor, e o menino perguntou que doença era aquela.

Júbilo

Uma aflição de amor deve ser completa: toda nenhuma rosa, toda somente espinhos.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Gênero

Numa república ou numa tirania
sempre se deu a João
o que se negou a Maria.

O de sempre

Numa novela policial é sempre
aquele o assunto: quem já é
e quem logo vai ser defunto.

domingo, 14 de abril de 2019

A palavra

Eu queria lhe dizer
uma dessas palavras
que ditas são irrevogáveis
e que pequenas
são formidáveis
e que têm a fama
quem sabe merecida
de tornar provável o possível
e o fugaz imperecível
e de fazer a vida merecer
ser chamada de vida

Você pensou em amor?
Tudo bem, eu pensei também.
É uma boa palavra.

sábado, 13 de abril de 2019

Pergunta

Quem há de
estando sob o poder de Circe
querer evadir-se?

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Infância do gênio

Quando menino, encantou mãe e pai uma noite ao dizer que tinha contado duzentas e trinta e sete estrelas no céu. O encanto logo se desfez. Não havia ali o prenúncio de um matemático ou de um astrônomo na família. Era apenas o primeiro desalentador sinal de que a malograda história do avô poeta poderia repetir-se.

Repilicando Quintana

Aos que pretendam imitar Mario Quintana recomenda-se que comecem com árvores baixas e gorjeios simples.

Joyciana

Um fantasma merece ser respeitado mesmo quando aparece peladinho à meia-noite em nossa cama e, meio em inglès, meio em português, nos chama de Nora e diz que quer transar?

Passo a passo

Na, manhã, calorenta, a, tartaruga, manda, às, favas, a, gramática, e, torce, para, que, se, esparramem, mais, algumas, vírgulas, pelo, caminho, para, que, em, cada, uma, ela, possa, dar, uma, paradinha, e, uma, descansadinha.

Trunfo

Se um gato estiver nela, ou pelo menos perto, nenhuma frase há de se considerar desesperançada.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Quintana

Mario Quintana entendia-se bem tanto com os quero-queros quanto com os canários-belgas.

Geografia

O gato metropolitano sonha com sardinhas em lata.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Declaração à praça

Pessoal, eu poderia estar roubando, matando, lavando dinheiro por aí. Mas, com a graça de Deus e para desprazer dos leitores, vou aqui fazendo meus sonetinhos, um por dia só, para não cansar minha musa.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Último recurso

Que Deus me acuda.
Perdi a fé em tudo, até
Nos livrinhos de autoajuda.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Que

Creia o poeta
no milagre da poesia
ainda que não acredite
na própria taumaturgia.

Épocas

Os poetas antigos vinham testemunhados por pássaros e, se alguma dúvida persistia, bastava-lhes pegar no bolso, com o lenço, as pétalas de rosa. Os de hoje chegam com aquele cartãozinho de visita feito em casa.

Represália

Se me vê sorrir, minha melancolia se enciúma e ameaça negar-me lágrimas quando eu as pedir para os meus poemas.

domingo, 7 de abril de 2019

Sobre um texto de Mariana Ianelli na revista Rubem

O poeta torce para que sua solidão não seja abolida por nada, mesmo que seja um gato.

Frase de Mário de Andrade

"Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres."

sábado, 6 de abril de 2019

Secular

Aquela querela entre o cravo e a rosa corre ainda em segredo de justiça.

Romantismo

Alguns poetas funcionam ainda só à base do elogio. São os mais megrinhos e caloteiros.

Perfil

É um desses homens de oitenta
que julgando ter quarenta
sobre a vetusta gravata
babam bravatas de amor.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

O de sempre

Classicismos são modernismos que demoraram um pouco mais para sair de cena.

Acerto

Ela o beija por caridade. Ele, bom cristão, aceita e solta grunhidinhos de bebê saciado.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

... em ponta de faca

Tento fazer poesia há muito tempo. O suficiente para já ter desistido.

O provérbio

Em toda calamidade
seja o atingido um rei
ou um cidadão obscuro
na foto do processo do seguro
ao lado do rei
diante do palácio desmoronado
ou do pobretão
no sobradinho arruinado
uma figura aparece
que parece dizer
eu não disse
eu não avisei?

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Meia-noite

No beco perto do canal
um clima de novela
policial noir.

Silabada

Porra-louca foi Heliogábalo.
Que nós o lastimemos
Se não pudermos gabá-lo.

terça-feira, 2 de abril de 2019

De Michel de Montaigne, sobre os gozos exagerados

"Não há nada tão incômodo, tão enfastiante quanto a abundância. Que apetite não se desencorajaria ao ver trezentas mulheres à sua mercê, como as tem o grande senhor em seu serralho?"
(De Ensaios sobre a amizade, tradução de Julia da Rosa Simões, publicação da L&PM Pocket.)

Direitos autorais

Todos os seus sonetos -
cento e vinte e dois primores -
foram parar na casa de penhores.

Omissão

Na declaração do IR
seu maior bem ficou fora:
o gato chamado Pierre.

Conversa de portão

"Você viu? A Susi morreu."
"A Susi lambisgoia.?"
"É. Aquela que queria roubar nossos maridos."
"Pena que ela não roubou o meu."

O céu de Mario Quintana

Quando Mario Quintana diz que não há céu como o de Porto Alegre, fala com conhecimento do assunto: como poeta e como passarinho.

Pelo contrário

Sim, nós nos dedicamos à literatura como se nada na vida pudesse ser mais importante. E isso há quanto tempo? Desde sempre, pelo que lembramos. E daí?, nos perguntam. E dai?, nós concordamos. Os livros de autoajuda não dizem, mas em literatura a fé não remove montanhas.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Fernando

Quanto deve ter sofrido o Pessoa para morrer todos que era.

Assim seria

Morrer deveria ser como pedir licença para sair um momento, ir ouvir Chopin e esquecer-se de voltar.

1º de abril

Morreu hoje em São Paulo o soi-disant poeta Raul Drewnick, aos oitenta anos. Desde os sessenta lutava bravamente contra a vida.

Para Wislawa

Se não houver circo
cinema futebol ou putaria
alguns gostam de poesia.

Argumento

Diremos amor - e cada pecado nosso será perdoado por quem nos perguntar qual foi o sentimento que nos moveu.

Só assim

Se me pedirem para falar mal do amor, que nesse dia eu esteja lacônico ou - melhor - afônico.

Ponto final

Sem meias-palavras: Bentinho era chato pra cacete.

Tim-tim por tim-tim

Se Machado de Assis estivesse vivo, seria convocado por uma CPI para esclarecer se Capitu, afinal, traiu Bentinho ou não.

Paradoxo

Curiosos são os poetas que dizem não suportar elogios. Como se tivessem outro tipo de recompensa.

Brasão

Amor é bom e gostoso
Com romance ou sem romance.
Honny soit qui mal y pense.

Melhor ainda

A vizinha, contemplando o defunto:
"Belo homem, o seu marido, Ivete........1
"Belo? Você não viu nada? Espere, que eu vou buscar uma foto dele, de bermuda, na praia."

Pontos de vista

Quem escreve para si mesmo ou não confia nos leitores ou os preza demais.