terça-feira, 30 de abril de 2019
Matilde
Embaixo das suas, ela guarda a calcinha de Matilde. Faz um ano, hoje, e ela a apanha como se tocasse uma flor. Puxa-a devagar, quase ritualmente, cheira-a e ali onde o batom um ano atrás imprimiu sua boca ela começa a deixar beijos sobre beijos. Beija, beija. Tilde, Tilde. Depois coloca a calcinha de novo no fundo da gaveta, embaixo da calcinha que ela própria usou naquela noite e na qual Matilde gravou também os contornos de seus lábios sequiosos.
O caminho dos dedos
Quando ela se deita, a pequena elevação no ventre, que se destaca quando ela está em pé, se aplaina e se mostram plenos os tesouros que ele, aturdido como um menino, quer explorar, sem saber por onde começará. Pede às mãos que o guiem. Elas, ainda tímidas, vão buscar uma pepita nos cabelos, apalpam o rosto, os seios, e descem devagar para o ventre. Ali se demoram mais, tateando a morna planície pela qual lentamente irão deslizar para outra elevação, esta protegida e demarcada por uma tênue e úmida relva que aos dedos caberá prazerosamente tocar.
A terceira vez
É a terceira noite e, quando ela começa a beijá-lo na boca, ele sabe para onde seguirão depois os beijos, e o caminho que tomarão as mãos dela, e onde o apalparão suavemente, e onde o apertarão. Depois das primeiras vezes, chegou a imaginar que o roteiro fielmente cumprido por ela acabasse, pela obviedade, tornando menos vivo o prazer. Hoje sabe que na repetição está o maior gozo do desfrute e - ainda que ontem e anteontem tenha procurado se concentrar para não atingir tão rapidamente o paraíso - parece o que é: um colegial em sua terceira noite de amor.
Daquele bloquinho meio secreto
O barco que na infância ele comandava, gritando ordens para vinte tripulantes, foi tomado agora por vinte mulheres piratas, e ele chama em vão os tripulantes, dizimados por elas na abordagem. Só se salvará com a condição de se submeter como escravo sexual de todas. A primeira, a que chefia as outras, já se aproxima dele, que, deitado e nu, se concentra para atendê-la. Honrará seu passado, não se desmerecerá, ainda que morra na cama. Para deixar clara sua disposição de cumprir o dever que lhe cabe como derrotado, faz uma bravata. Olha para a pirata que já se debruça nua sobre ele e desafia: "Podem vir todas juntas, se quiserem." E deixa que ela se deite sobre ele, que ela o monte e cavalgue, porque esse é o direito do vencedor, sempre.
Gendarme
Fui acordado à meia-noite por um fantasma que, num francês colérico e atropelado, quis saber qual era o meu nome, se era eu o dono da casa, censurou-me pela desordem que observou em cada canto e fez outras perguntas, pelas quais ficou claro que duvidava de minha honestidade. Fui respondendo com o quase nenhum conhecimento que me restou de dois anos de Aliança Francesa e, no fim, ele, já aparentemente tranquilizado, me estendeu um cartão: Monsieur Javert.
Lembrança cinematográfica
A bala de morango havia trocado de boca já várias vezes quando, de repente, ela não a devolveu. Ele sabia que o joguinho tinha terminado. Estava começando o filme. Era sempre assim. Ela gostava dele, mas gostava mais de cinema. Porém não a ponto de impedir que ele passasse a mão nas suas pernas finas e nos seios que finalmente davam a ela um aspecto de mulher quase feita.
Um daqueles textos
Enquanto a observa tomar o sorvete com a pequena colher, ele - que se habituou a ser modesto até nas fantasias - não se fixa na boca e na língua, nem no que elas poderiam lhe proporcionar, se tocassem amavelmente seu corpo. Fica olhando a mão e acompanhando a graça com que pega o sorvete e o leva aos lábios - sabor de chocolate misturado ao morango do batom. Nem pensa no que sentiria se essa boca quisesse deixar marcas amorangadas no seu corpo. Continua fascinado pela mão e imagina que felicidade ela deve semear no corpo de um homem que a mereça (e aí, sim, com a bem-vinda ajuda da língua e da boca). E pensa também no caminho que esses cinco dedos, na cama e no chuveiro, podem seguir no corpo da mulher que agora, com avidez requintada, revelada só pelos olhos, lambe a última colherada de sorvete.
Também daquele bloquinho
Ela encosta a boca na boca dele e diz para dentro dela se ele quer. Ele, sem descolar os lábios dos lábios dela, responde que sim, quer muito. Sempre que se beijam é assim, depois dessa pergunta e dessa resposta que se repetem várias vezes, até que as bocas, não aguentando mais, se dão inteiras e se reconhecem com a molhada intensidade das línguas.
Daquele bloquinho
Gostaria de ter morrido numa daquelas noites em que o prazer era como um copo cheio de vinho capitoso à espera de que o primeiro pingo pingasse fora da taça, para que os outros todos se derramassem com aquela ansiedade que só a insuportável exaltação dos sentidos, provocada pelo amor, proporciona.
segunda-feira, 29 de abril de 2019
Norma
Os sonetos só deveriam ter permissão de voltar à cena depois de umas aulas de modéstia com os haicais.
Pé atrás
Desconfia dos poemas que o encantam e nos quais nota a ausência da palavra amor. Receia acostumar-se.
domingo, 28 de abril de 2019
Infalibilidade
Um gramático está sempre pronto
para corrigir tudo que dizes,
estejas tu, apedeuta, em Perdizes
ou estejas tu nas Perdizes.
para corrigir tudo que dizes,
estejas tu, apedeuta, em Perdizes
ou estejas tu nas Perdizes.
Ainda que
Havemos de manter algum lirismo, ainda que para consumo exclusivamente próprio ou para atender ao apelo de um obstinado saudosismo.
sábado, 27 de abril de 2019
Satisfação
Dizer que escrevo com toda a honestidade não melhora um parágrafo meu. Mas como me faz bem dizer.
Forma de tratamento
O escritor de coquetel gaba-se de saber o nome de cada um dos garçons do bufê, embora, para garantir seus rissoles e sua coca, chame todos de "Simpatia" ou "Amizade".
Conhecimento de causa
No fim da palestra, curvando-se para agradecer os aplausos, Deus mostrou conhecer melhor do que ninguém suas criaturas. Com um sorriso, convidou os espectadores: "Agora, espaço aberto para os comentários. E para as críticas."
sexta-feira, 26 de abril de 2019
Logo ao que interessa
No primeiro minuto da primeira palestra das seis que se comprometera a dar, Deus, quando começou a falar do plano geral do ciclo, foi interrompido por um estudante: "O Senhor pode ir direto a Adão e Eva?"
Declaração de bens
Meu patrimônio é a tristeza. Desde menino eu o venho juntando. Não tenho grades nem trancas em casa.
Pecúlio
Na casa do velho poeta há uma gaiola sem passarinho, uma casinha sem cachorro e uma centena de poemas sem poesia.
quinta-feira, 25 de abril de 2019
Só depois
De longe, ele olha para a mulher, para o seu corpo grande, majestoso. Ele gostaria de abraçá-la, não por luxúria, mas pelo aconchego, pelo calor que adivinha haver nos seus braços. Ficaria abraçado a ela por muito, muito tempo. E só depois, se não conseguisse conter-se, começaria a mover as mãos e os lábios. Só depois, como agora acontece, quando imagina tudo, deixaria mexer-se a sua calça, como se um bicho ansioso se esforçasse para escapar pelos botões. Mas seria carinhoso todo o tempo, porque é de carinho que precisa, mais do que tudo, e é carinho o que ele mais tem para dar.
Ossos do ofício
Se Deus fosse escritor, estaria até hoje por aí, em feiras de livros, dando autógrafos e palestras para explicar seus processos de criação.
Modéstia
Honesto foi aquele que, tendo escrito uma peça e verificado que era igualzinha a "Romeu e Julieta", de Shakespeare, reconheceu: a dele é um pouquinho melhor.
Dura lex sed lex
Para garantir que tivéssemos o direito de represália, cada chato deveria ter pelo menos duas mães.
quarta-feira, 24 de abril de 2019
Aquela quadrinha infame
Sempre que de ti preciso,
A minha imaginação
Mostra o rumo à minha mão
E leva-me ao paraíso.
A minha imaginação
Mostra o rumo à minha mão
E leva-me ao paraíso.
Um daqueles textos sob suspeita
Conhecem-se há um mês e ele há alguns dias vem tentando beijar-lhe a nuca, mas toda vez ela dá sinais, até ríspidos, de que não quer. Já foram três vezes ao motel, já se exercitaram em amplo repertório, mas, quando ele aproxima os lábios das orelhas dela, ensaiando fazê-los escorregar para a nuca, ela os afasta. Talvez imagine que beijar a nuca seja um pretexto dele para, dali, conquistar um pouco mais de território nas suas costas, e não só para a boca. Mas ele nem pensa nisso. Quer só, porque para ele seria o prazer máximo, levantar os cabelos dela e beijar-lhe a penugem que supõe haver debaixo deles, fina como ouro em pó.
terça-feira, 23 de abril de 2019
Castigo
No sonho, a mulher, vestida só com um sutiã e uma calcinha de pele de tigre, tira-lhe a camisa, aprisiona as mãos dele em duas argolas suspensas, fixadas na parede, e começa a chicoteá-lo, ao mesmo tempo em que pergunta: "Quem pichou o meu muro? Foi você? Responda alto. Foi você? E o que você escreveu? Fale alto. Eu não entendi. Gostosa? Foi isso? Gostosa? Foi?"
Outra daquelas folhas
Às vezes, como hoje, sua sede é de água salgada. Reminiscências de praia e de mar lhe vêm à língua e ele fixa os olhos na blusa cavada, sempre que os braços, levantando-se para ajeitar os cabelos, deixam à mostra as perturbadoras axilas.
Um daqueles papéis destinados ao fogo
O amor o cansou tanto que ele não tem forças nem para morrer. Deitado, espera a Morte. Hoje ela veio, mas, puta escolada, depois de tirar a saia, o sutiã e a calcinha, avisa que só se deitará com ele se ele tiver ainda o que lhe dar. Está doidona, com o sexo em fogo, e ou ele se dispõe a morrer como um homem ou ela irá procurar um rapaz que ela possa prender entre as pernas e asfixiar pouco a pouco, amorosamente, como uma sucuri quebrando os ossos de um novilho.
segunda-feira, 22 de abril de 2019
Mais um daqueles textos culposos
O dedo médio se move lento. Avança - se essa for a palavra adequada - meio milímetro por minuto. Está próximo da fonte e, por astúcia e para seu proveito, retarda-se para desfrutar um pouco mais o sedoso contato com a folhagem úmida. Sabe que logo será substituído por um pesquisador menos delicado que não dará atenção às folhas ruivas e se atirará direto à fonte salgada.
Confissão
Não sou um formador de opinião. Desconheço meu próprio ofício. Nada entendo de flores, nem de pássaros, nem de amor.
Catástrofe
À tradução de um poema concreto deveria dar-se o nome de depredação: não costuma ficar pedra sobre pedra.
Daquele bloquinho meio clandestino
Encanta a ela a maciez com que ele lhe toca os cabelos. Os dedos parecem os de um joalheiro mexendo em um daqueles diademas que, por sua preciosidade, só saem do cofre em ocasiões excepcionais. Ele quase realiza o prodígio de tocar sem tocar e, ao mesmo tempo, é como se avaliasse fio por fio com a delicadeza de quem sente, em cada um, que o ouro, assim como os seres humanos, tem uma alma. O rosto dele é o rosto que teria a beatitude. E, no entanto, em cada toque suave ele imagina estar com os dedos mergulhados em ouro, sim, mas num ouro de fios mais espessos e de um olor mais denso e morno que o dos cabelos.
Estilo
Era um fantasma incomum. Na farra
Em vez de uísque ou de rum
O maganão bebericava
conhaque de alcatrão
de são joão da barra.
Em vez de uísque ou de rum
O maganão bebericava
conhaque de alcatrão
de são joão da barra.
domingo, 21 de abril de 2019
Hoje na revista Rubem
Era um morto carrancudo, nada satisfeito com seu novo estado.
https://rubem.wordpress.com/2019/04/21/frases-sem-compromisso-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2019/04/21/frases-sem-compromisso-raul-drewnick/
sábado, 20 de abril de 2019
Daquele bloco oculto na escrivaninha
Quando a ausência dela se prolonga e se faz insuportável, ele, para desmerecê-la, se põe a imaginá-la gorda, toda gorda em tudo: coxas, seios, braços, pernas, nádegas. Às vezes, acrescenta-lhe celulite. Não tem dado certo essa contramanobra da imaginação. Por pior que a retrate, no fim está sempre sussurrando gorda, gorda, minha gorducha.
Onan
Ainda hoje, quando ele a evoca,
Ela se faz tão presente
Que até seu cheiro ele sente
Se com ternura se toca.
Ela se faz tão presente
Que até seu cheiro ele sente
Se com ternura se toca.
Soneto das faces da fortuna
Um com uma trova se anima,
A outro só um soneto enfuna,
Cada um com sua obra-prima,
Cada um com sua fortuna.
Enquanto ansiosos esperam
A glória que nunca vem,
Em rimas ricas se esmeram
E em versos de ouro também.
A isso tudo indiferente
O concretista veemente
Empenha-se com coragem
Em resolver seu problema:
Construir nos fundos do poema
Uma piscina e a garagem.
A outro só um soneto enfuna,
Cada um com sua obra-prima,
Cada um com sua fortuna.
Enquanto ansiosos esperam
A glória que nunca vem,
Em rimas ricas se esmeram
E em versos de ouro também.
A isso tudo indiferente
O concretista veemente
Empenha-se com coragem
Em resolver seu problema:
Construir nos fundos do poema
Uma piscina e a garagem.
Soneto das lições do gozo
As compliecadas noções
De côncavo e de convexo,
Assim como outras lições
Ele as aprendeu com o sexo.
Com o sexo aprendeu a ver
Que entre receber e dar
E entre dar e receber
Pelos dois convém optar.
Aprendeu também os vícios
De acariciar orifícios
E de adestrar sua mão
Na arte de tornar o gozo
Mais gostoso, mais gozoso,
E de eriçar a paixão.
De côncavo e de convexo,
Assim como outras lições
Ele as aprendeu com o sexo.
Com o sexo aprendeu a ver
Que entre receber e dar
E entre dar e receber
Pelos dois convém optar.
Aprendeu também os vícios
De acariciar orifícios
E de adestrar sua mão
Na arte de tornar o gozo
Mais gostoso, mais gozoso,
E de eriçar a paixão.
sexta-feira, 19 de abril de 2019
"Já sei que não sabes", de Miguel Barnet
"Já sei que não sabes quem foi Rimbaud
nem tens sequer ideia de quem ele amou
nas areias da Abissínia,
o que te importa se Dickens ou Borges ou Baudelaire
amaram ou desamaram se tu do amor só conheces
essa partícula mínima, natural, carnal, mas preciosa
que talvez nem Rimbaud, nem Dickens, nem Borges
nem Baudelaire puderam saborear.
O que te importa saber quem eles foram,
nem o que fizeram, nem a quem amaram ou desamaram.
O que te importa se neste momento,
neste precioso momento,
sobes por minha enraivecida vontade
a um trono altíssimo, inalcançável,
onde tu és a única coisa real."
(De Poetas da América de canto castelhano, tradução de Thiago de Mello, publicação da Global.)
nem tens sequer ideia de quem ele amou
nas areias da Abissínia,
o que te importa se Dickens ou Borges ou Baudelaire
amaram ou desamaram se tu do amor só conheces
essa partícula mínima, natural, carnal, mas preciosa
que talvez nem Rimbaud, nem Dickens, nem Borges
nem Baudelaire puderam saborear.
O que te importa saber quem eles foram,
nem o que fizeram, nem a quem amaram ou desamaram.
O que te importa se neste momento,
neste precioso momento,
sobes por minha enraivecida vontade
a um trono altíssimo, inalcançável,
onde tu és a única coisa real."
(De Poetas da América de canto castelhano, tradução de Thiago de Mello, publicação da Global.)
Naquela folha avulsa (2)
A flor escura, tocada por dedo hábil e autorreverente, faz flutuar no quarto um odor salgado, um aroma morno, um perfume de mormaço. É o momento em que, toda noite, ela pensa no marinheiro imaginário a quem deu o nome de Jim.
Naquela folha avulsa (1)
Sopra mais uma vez, leve, bem leve, como se não soprasse. A perolazinha do umbigo parece dar uma piscada, como um olho brincalhão, e um pouco abaixo a penugem ruiva começa a despertar, como o trigal à primeira brisa da manhã.
quinta-feira, 18 de abril de 2019
Um instante para falar de uma gata fujona (para o Gianluca e a Nicole)
Se alguma gata perdida
For parar em um livrinho,
No início, meio ou finzinho,
Tem obrigação o autor,
Se desalmado não for,
De lhe oferecer comida,
Mesmo que seja, ai que horror,
Uma lebre distraída
Ou um tolo passarinho.
For parar em um livrinho,
No início, meio ou finzinho,
Tem obrigação o autor,
Se desalmado não for,
De lhe oferecer comida,
Mesmo que seja, ai que horror,
Uma lebre distraída
Ou um tolo passarinho.
Comichão (para Lourença Lou)
"Mais pra cima, isso, agora um pouco pra direita, aí, acho que foi bem aí" - a garota, com o ombro nu, vai indicando o ponto em que ela e o namorado sabem que nenhum mosquito a picou, ponto que ele suga deliciado, com o pretexto de aliviar uma comichão que os dois fingem existir, empenhando-se cada vez mais no joguinho e ampliando a área macia e morna na qual o mosquito gostaria de ter estado.
Daquele caderno, lembra?
"Eu vou lhe avisar", disse a mulher para o homem sentado nu na beirada da cama. "Você vai viciar tanto nisso que depois vai querer todo dia. Vou acabar com a sua fortuna em três tempos." O homem sorriu: "Então vem me mostrar como é." Ela se aproximou, ajoelhou-se entre as pernas dele e começou a bater os cílios com tanta rapidez e tamanho ruído que era como se o quarto tivesse sido invadido por um bando de gaivotas.
Consenso
Sim, o amor é aquele tema antigo sobre o qual os poetas não se cansam de falar e que os leitores não se cansam de ouvir.
Equívoco
O poeta concretista convidou o jornalista a entrar. "Senta. Não, aí não. Esse é o meu novo poema."
Risco
Todo amor há de querer ser eterno, e de revelar essa presunção com o máximo alarde. A quem agrada vrer um trapezista fazendo acrobacias sobre uma rede de proteção?
Crise
Há em qualquer velório aquele momento em que nem o defunto nem o cafezinho com biscoitos servido infatigavelmente pela simpática viúva parecem capazes de manter os amigos interessados. Mesmo os parentes começam a ser vencidos pelos bocejos.
quarta-feira, 17 de abril de 2019
Daquele caderno escondido no fundo (II)
Pensa que se ago
ela o bei
que se ago
ela se me
que se agora
ele a bei
jasse
que se ago
ela se me
xesse
ele talvez ago
nizasse
como ago
niza de gozo
em pulsa
ções
em estreme
ções
em convul
sões
até se imobilizar
(triunfador derrotado
estendido sobre
o território conquistado).
ela o bei
que se ago
ela se me
que se agora
ele a bei
jasse
que se ago
ela se me
xesse
ele talvez ago
nizasse
como ago
niza de gozo
em pulsa
ções
em estreme
ções
em convul
sões
até se imobilizar
(triunfador derrotado
estendido sobre
o território conquistado).
Daquele caderno escondido no fundo (I)
Olha mais uma vez para a mão. Faz pelo menos meia hora, já, que ela se mostrou tão surpreendentemente audaz, mas ele parece não acreditar ainda no que ela foi capaz de fazer. Olha de novo para ela, e de novo a cheira, para que o odor marinho o convença.
Perda total
Perder um gato, não ter notícias dele (por tanto tempo que se começa a recear tê-las) é um dos infortúnios a que nenhum de nós deveria estar sujeito.
Convivência
Venho me dando bem melhor comigo. Simplifiquei-me. O amor não é mais uma entre dez prioridades. É a única.
Peculiaridade
Se lhe resta algum senso, alegre-se (ou lastime-se). Você ainda não é um escravo do amor.
terça-feira, 16 de abril de 2019
segunda-feira, 15 de abril de 2019
domingo, 14 de abril de 2019
A palavra
Eu queria lhe dizer
uma dessas palavras
que ditas são irrevogáveis
e que pequenas
são formidáveis
e que têm a fama
quem sabe merecida
de tornar provável o possível
e o fugaz imperecível
e de fazer a vida merecer
ser chamada de vida
Você pensou em amor?
Tudo bem, eu pensei também.
É uma boa palavra.
uma dessas palavras
que ditas são irrevogáveis
e que pequenas
são formidáveis
e que têm a fama
quem sabe merecida
de tornar provável o possível
e o fugaz imperecível
e de fazer a vida merecer
ser chamada de vida
Você pensou em amor?
Tudo bem, eu pensei também.
É uma boa palavra.
Sociedade (p/ Sabrina Dalbelo e Paula Giannini)
Às vezes a poesia funciona; quando não, é nossa a falha.
sábado, 13 de abril de 2019
sexta-feira, 12 de abril de 2019
Infância do gênio
Quando menino, encantou mãe e pai uma noite ao dizer que tinha contado duzentas e trinta e sete estrelas no céu. O encanto logo se desfez. Não havia ali o prenúncio de um matemático ou de um astrônomo na família. Era apenas o primeiro desalentador sinal de que a malograda história do avô poeta poderia repetir-se.
Repilicando Quintana
Aos que pretendam imitar Mario Quintana recomenda-se que comecem com árvores baixas e gorjeios simples.
Joyciana
Um fantasma merece ser respeitado mesmo quando aparece peladinho à meia-noite em nossa cama e, meio em inglès, meio em português, nos chama de Nora e diz que quer transar?
Passo a passo
Na, manhã, calorenta, a, tartaruga, manda, às, favas, a, gramática, e, torce, para, que, se, esparramem, mais, algumas, vírgulas, pelo, caminho, para, que, em, cada, uma, ela, possa, dar, uma, paradinha, e, uma, descansadinha.
Trunfo
Se um gato estiver nela, ou pelo menos perto, nenhuma frase há de se considerar desesperançada.
quinta-feira, 11 de abril de 2019
quarta-feira, 10 de abril de 2019
Declaração à praça
Pessoal, eu poderia estar roubando, matando, lavando dinheiro por aí. Mas, com a graça de Deus e para desprazer dos leitores, vou aqui fazendo meus sonetinhos, um por dia só, para não cansar minha musa.
terça-feira, 9 de abril de 2019
segunda-feira, 8 de abril de 2019
Épocas
Os poetas antigos vinham testemunhados por pássaros e, se alguma dúvida persistia, bastava-lhes pegar no bolso, com o lenço, as pétalas de rosa. Os de hoje chegam com aquele cartãozinho de visita feito em casa.
Represália
Se me vê sorrir, minha melancolia se enciúma e ameaça negar-me lágrimas quando eu as pedir para os meus poemas.
domingo, 7 de abril de 2019
Sobre um texto de Mariana Ianelli na revista Rubem
O poeta torce para que sua solidão não seja abolida por nada, mesmo que seja um gato.
Hoje na revista Rubem
Algumas frases talvez não de efeito, mas seguramente de defeito.
https://rubem.wordpress.com/2019/04/07/algumas-frases-para-que-mais-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2019/04/07/algumas-frases-para-que-mais-raul-drewnick/
sábado, 6 de abril de 2019
Perfil
É um desses homens de oitenta
que julgando ter quarenta
sobre a vetusta gravata
babam bravatas de amor.
que julgando ter quarenta
sobre a vetusta gravata
babam bravatas de amor.
sexta-feira, 5 de abril de 2019
quinta-feira, 4 de abril de 2019
O provérbio
Em toda calamidade
seja o atingido um rei
ou um cidadão obscuro
na foto do processo do seguro
ao lado do rei
diante do palácio desmoronado
ou do pobretão
no sobradinho arruinado
uma figura aparece
que parece dizer
eu não disse
eu não avisei?
seja o atingido um rei
ou um cidadão obscuro
na foto do processo do seguro
ao lado do rei
diante do palácio desmoronado
ou do pobretão
no sobradinho arruinado
uma figura aparece
que parece dizer
eu não disse
eu não avisei?
quarta-feira, 3 de abril de 2019
terça-feira, 2 de abril de 2019
De Michel de Montaigne, sobre os gozos exagerados
"Não há nada tão incômodo, tão enfastiante quanto a abundância. Que apetite não se desencorajaria ao ver trezentas mulheres à sua mercê, como as tem o grande senhor em seu serralho?"
(De Ensaios sobre a amizade, tradução de Julia da Rosa Simões, publicação da L&PM Pocket.)
(De Ensaios sobre a amizade, tradução de Julia da Rosa Simões, publicação da L&PM Pocket.)
Direitos autorais
Todos os seus sonetos -
cento e vinte e dois primores -
foram parar na casa de penhores.
cento e vinte e dois primores -
foram parar na casa de penhores.
Conversa de portão
"Você viu? A Susi morreu."
"A Susi lambisgoia.?"
"É. Aquela que queria roubar nossos maridos."
"Pena que ela não roubou o meu."
"A Susi lambisgoia.?"
"É. Aquela que queria roubar nossos maridos."
"Pena que ela não roubou o meu."
O céu de Mario Quintana
Quando Mario Quintana diz que não há céu como o de Porto Alegre, fala com conhecimento do assunto: como poeta e como passarinho.
Pelo contrário
Sim, nós nos dedicamos à literatura como se nada na vida pudesse ser mais importante. E isso há quanto tempo? Desde sempre, pelo que lembramos. E daí?, nos perguntam. E dai?, nós concordamos. Os livros de autoajuda não dizem, mas em literatura a fé não remove montanhas.
segunda-feira, 1 de abril de 2019
Assim seria
Morrer deveria ser como pedir licença para sair um momento, ir ouvir Chopin e esquecer-se de voltar.
1º de abril
Morreu hoje em São Paulo o soi-disant poeta Raul Drewnick, aos oitenta anos. Desde os sessenta lutava bravamente contra a vida.
Argumento
Diremos amor - e cada pecado nosso será perdoado por quem nos perguntar qual foi o sentimento que nos moveu.
Só assim
Se me pedirem para falar mal do amor, que nesse dia eu esteja lacônico ou - melhor - afônico.
Tim-tim por tim-tim
Se Machado de Assis estivesse vivo, seria convocado por uma CPI para esclarecer se Capitu, afinal, traiu Bentinho ou não.
Paradoxo
Curiosos são os poetas que dizem não suportar elogios. Como se tivessem outro tipo de recompensa.
Melhor ainda
A vizinha, contemplando o defunto:
"Belo homem, o seu marido, Ivete........1
"Belo? Você não viu nada? Espere, que eu vou buscar uma foto dele, de bermuda, na praia."
"Belo homem, o seu marido, Ivete........1
"Belo? Você não viu nada? Espere, que eu vou buscar uma foto dele, de bermuda, na praia."