domingo, 31 de janeiro de 2016

Verbete

Estratagema é o tipo de recurso que usaríamos numa conquista amorosa, se não soasse tão pernóstico.

Norma

Sempre que escrevermos, tentemos respeitar, se não todos os leitores, ao menos aquele que há em nós.

Rei Sol

No domingo à noite, tomou uma decisão: a partir dali, só escreveria sobre assuntos realmente importantes. Na segunda, logo cedo, depois do café, começou sua autobiografia.

www.rubem.wordpress.com

Hoje, na revista Rubem, falo da treva e de coisas que só a ela se revelam.

Um poema de Yeats

"Bebi a cerveja do País dos Jovens
E choro porque agora sei tudo:
Fui uma aveleira, e da minha folhagem
Penderam a Estrela Guia e o Arado Torto
Em tempos imemoriais:
Fui um junco pisado pelos cavalos:
Fui um homem, inimigo do vento,
Sabendo apenas, entre todas as coisas, que a sua cabeça
Não poderá repousar no peito nem os seus lábios nos cabelos
Da mulher amada, até morrer.
Oh besta dos mundos ermos, pássaro do ar,
Tenho de suportar os teus gritos amorosos?"

(Do poema "Ele pensa na sua grandeza passada quando fazia parte das constelações celestes", de Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 30 de janeiro de 2016

Cotação do dia

Ter vivido tanto foi o mais longo dos meus descuidos.

Soneto das amoráveis caminhadas

Como nos apetecia
Naquele tempo dourado
Ouvir o alegre chamado
Que, vindo, o amor nos fazia.

Ternamente, dia a dia,
Por um caminho abençoado,
Pelo sol assinalado,
Pela mão nos conduzia.

Todo dia nós dizíamos
Que nunca nos cansaríamos,
E o amor, em retribuição,

Dizia que também não.
Porém ele se cansou,
Foi bom enquanto durou.

Dois versos de John Donne

"Cheio do amor dela, possa eu antes tornar-me
Louco com uma grande coração, que idiota sem nenhum."

(Do poema"Sonho", do livro Elegias amorosas, tradução de Helena Barbas, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Etiqueta

A um homem nunca se peça,
Depois de deixá-lo entrar
E de o quarto lhe mostrar,
Que sem sexo se despeça.

Parônimos

Dom-juan, em momentos íntimos às vezes ele troca o nome da parceira de cama. Chama isso de atos fálicos.

Futebol a.C. e d.C.

A história do futebol divide-se em duas fases. A primeira, conhecida como a.C., vai até 1910, quando se inicia a época de ouro.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Cotação do dia

Quando eu estiver definitivamente morto, talvez minhas palavras ganhem o charme que hoje não têm, e a amada precise procurar o lencinho que seu coração de pedra esqueceu há tantos anos na blusa xadrez.

Sempre-vivas

De repente, anos depois, as feridas de amor reabrem-se na pele como flores.

Pauta

Esquecer cada vez mais
Escrever cada vez menos
Desistir de existir
Persistir no desistir
Consumir-se
Extinguir-se.

Melhor idade

O mais certeiro gatilho do Oeste
não dá mais tiro que preste.
Perdeu toda a pontaria,
Já não acerta nem a bacia.

Quatro versos de John Donne

"Como o doce suor das rosas numa destilaria,
Tal o que exuma dos poros irritados dos almiscareiros,
Como o bálsamo todo-poderoso do Este antigo,
Assim são as gotas de suor nos seios da minha Amante."

(Do poema "Comparação", do livro Elegias amorosas, tradução de Helena Barbas, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Cotação da noite

Morrer seria a solução, se já não tivesse sido usada. Restam os horrorosos sonetos.

Sinopse

Vocês acham O guarani
um livro poético?
Não sei. A Ceci é così così
e o Peri, patético.

Dois versos de Friedrich Hölderlin

"Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?"

(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Perseverança

Até para não ser nada é preciso ter  certa força de vontade.

Brincadeira

No orfanato, só quando é dia de a menina de olhos tristes aguar as flores o sol improvisa nos pingos do regador um arco-íris.

Só um

A beleza deveria ser um instante único, cujo êxtase nos cegasse para todos os demais.

Seleção

Ver a beleza em todas as coisas é talvez um modo de desperdiçá-la.

De cada dia

Não tenhamos vergonha de nossa poesia, mesmo que ela pareça um pão duro, seco e único na mesa sem toalha de um camponês.

Dois versos de Georg Trakl

"Oh, é tão sério o rosto dos mortos mais queridos.
Mas a alma alegra-se de justa contemplação."

(De De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, edição da Iluminuras.)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Hibridismo

A prosa poética, salvo em casos raros, como Liberato Vieira da Cunha e Mariana Ianelli, resulta em espécimes similares às minhocas, não se sabendo nunca onde começa a prosa e onde termina a poesia.

Aparências

Seria doce entregar-se
ao mar num dia sereno
a uma faca uma corda um veneno

Seria doce entregar-se
a qualquer ato
que sendo matar-se
funcionasse assim como um disfarce
e por um nome melhor
um misericordioso eufemismo
pudesse chamar-se.

Seis poemas curtos de Yu Xuanji

"Ascende o odor do incenso ao altar de jade
Levo um convite solene à mansão dourada."

                               ***

"Alegra-se a alta nuvem, entre sonhos tristes
O olhar do céu permanece, um olor mais que flores."

                               ***

"Campos abrem-se em estradas: a primavera
traça sinais de música na paisagem."

                               ***

"Desde o silêncio cresce o protesto mudo
Cai antes uma, e um par: são lágrimas rubras."

                              ***

"Estreita lua brilha, uma clareira
e o duro vento à curta veste, a fenda."

(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicação da Editora Unesp.)








Tratamento

Nunca chame uma mulher de rainha logo no primeiro encontro. Princesa já está muito bom.

Efeito colateral

Tá certo que amor é uma besteira. Mas precisava doer tanto?

A velhice (para Marcos Kern II)

A velhice só serve para você ficar pedinchando na esquina e ganhar uns eufemismos.

Cotação do dia

Desde 2010, é a primeira vez que me sinto assim morto.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

As estrelas mais jovens alvoroçavam-se quando viam Mario Quintana. Seguiam-no, piscavam para ele, acotovelavam-se em correrias, temendo perdê-lo de  vista. As mais antigas, com o majestoso ar de quem conversou com Bilac, diziam: para que todo esse escândalo? Mas, embora mais contidamente, seguiam também Quintana, tentando abafar os suspiros.

Sintomas

Quem vai querer
morrer de pleurisia
de pneumonia
de tumor?

Tão mais elegante morrer
de melancolia
de poesia
de amor.

"O torrão e o seixo", de William Blake

"'O Amor jamais a si quer contentar,
Não tem cuidado algum com o que é seu;
Sacrifica por outro o bem-estar,
E, a despeito do Inferno, erige um Céu.'

Esse era o canto de um Torrão de Terra,
Pisado pelas patas da boiada;
Mas um Seixo, nas águas do regato,
Modulava está métrica adequada:

'O Amor somente a si quer contentar,
Atar alguém ao próprio gozo eterno;
Sorri quando o outro perde o bem-estar,
E, a despeito do Céu, ergue um Inferno.'"

(De William Blake - Poesia e prosa selecionadas, tradução Paulo Vizioli, edição da Nova Alexandria.)

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Opiniões

Alguns escritores dizem que escrever é para eles uma doença, outros dizem que é sua cura. Deveriam perguntar-se o que é para o leitor a literatura.

Tabela

Ele reclama do preço
ela faz ouvidos de mercador
na rua do ouvidor.

Bingo

Teve aquele velhinho que passava de vez em quando, apontava para o céu e dizia: vai chover. E não chovia. Um dia ele apontou para o coração e disse: vou morrer. Não se sabe se acertou, porque nunca mais apareceu.

In medio

No meio estão sempre a virtude
os centros equidistantes
e as coisas maçantes.

Se ou se

Não sei que coisa é mais mítica
se minha saúde mental
se minha fortuna crítica.

Que linda

Que linda tu és
puxando-me para dentro de ti
dizendo aqui aqui

Que linda tu és
usando-me gastando-me
mordendo-me comendo-me

Que linda tu és
gozada saciada
afastando-me com os pés.

Comme il faut

Ninguém estranha ver o amor com seu melhor terno e flores na mão. Ele é gentil com suas vítimas. Quando elas morrem, ele é visto no velório, com um terno ainda mais elegante e flores frescas.

Uns braços

Uns braços bastaram para Machado de Assis escrever um dos contos mais eróticos da literatura mundial. Uma aula para quem tem no repertório sexual só seios pontiagudos e nádegas prodigiosas. O velho Bruxo sabia de tudo e de algumas coisas mais. Se ele tivesse ouvido a voz de Priscylla Mariuszka Moskevitch...

Falha

Quando você aplica a primeira metáfora a uma mulher - ave, princesa, flor -, e usa o primeiro diminutivo - lindinha, benzinho, gatinha -, está abrindo o caminho para a sua servidão.

Questão de tempo

Quando descobrimos que não sabemos viver, não há mais como se reiniciar o aprendizado.

Consolação

A senectude é a época em que devemos nos contentar com eufemismos.

Sabedoria

No amor, e no resto, não ganhe muito, para não ter muito a perder.

"Vi uma capela toda de ouro", de William Blake

"Vi uma capela toda de ouro;
Ninguém passava os seus umbrais;
Muitos lá fora em pé choravam
Com orações e prantos e ais.

Vi levantar-se entre os pilares
Brancos da porta uma Serpente;
Após forçar, forçar, forçar,
Rompe ela os gonzos de ouro à sua frente.

E pelo chão que recamavam
Rubis e contas a brilhar,
Toda a extensão viscosa arrasta,
Até chegar ao branco altar.

E lá vomita o seu veneno
Por sobre o Vinho e o Pão divinos.
Voltei-me então para um chiqueiro
E me deitei entre os suínos."

(De William Blake - Poesia e prosa selecionados, tradução de Paulo Vizioli, edição da Nova Alexandria.)

Cotação do dia

Lábios loucos sempre berram para ouvidos moucos.

Ali

A puta velha são paulo
suga o sêmen dos homens e seu ouro
na rua do sumidouro.

Merecimento

Malha todas as manhãs e segue estritamente a dieta. Quer ser um morto apresentável.

Do ramo

Há cinquenta anos ensaia o discurso com que receberá o Nobel. Arranja sempre um jeito de melhorá-lo.

Amém

Deus nos livre dos maus sonhos
dos oradores fanhos
e dos escritores enfadonhos.

Desperdício

Um poeta deve ter mais vidas do que um gato e sacrificá-las todas pelo amor.

Corruptela

Quando vejo a palavra bibliófilo, imagino um velhote com uma vassourinha encarapitado na estante.

Provocação

O amorzinho mais gostoso e pecaminoso
que a puta velha são paulo faz
é atrás da igreja do Brás.

Um sonho de Jack Kerouac

"'Parem com isso' digo para um bando de garotos malucos com quem brinco na montanha-russa quando um deles começa a fazer estardalhaço das proezas com maconha que lhes ensinei  - 'Ah, pô, quem tem que parar é você mesmo' é a resposta de meus discípulos. Estamos de calção e camiseta e me sinto exausto de ter que manter a tradição da Geração Beat e tudo é lúgubre no sonho - Acordo no Hotel dos Maltrapilhos em Lowell -
É só na quietude da igreja de Sainte Joanne D'Arc, no grande dia cinzento de 21 de novembro de 1954 que vi: 'A Geração Beatífica'."

(De O livro dos sonhos, tradução de Milton Persson, edição da L&PM Pocket.)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Cotação da noite

Se querer fosse mesmo poder, por que continuo vivo?

Legado

Nós deixaremos talvez
Um poemazinho banal,
Bonito, porém igual
Ao que uma porção já fez.

Modo de preparar

Aqui diversa
é a poesia

Misturamos farinha
à agonia

Em São Paulo não há
lugar para ambrosia.

Michê

São Paulo é uma puta
de repertório completo
dá a frente e
oferece o verso

A frente dá aleatoriamente
mas por amor à rima
o verso preferentemente
no vale do Anhangabaú.

Postura

Como ficará nossa presunção
deitada de costas
no caixão?

Anais

Nos lembraremos do sol
retirando-se piedosamente
como se já precisasse
para que a noite descesse
sobre onde jazíamos
depois do combate
e nossa desonra ocultasse.

Causa mortis

Depois que bate bate
e o amor não vem atender
o coração para de bater.

Promoção

Na nova casa
ainda faz a faxina diária -
mas agora é secretária.

Dois versos de John Donne

"A perfeição reside na unidade: prefere
Primeiro uma mulher, e depois só uma coisa nela."

(De Elegias amorosas, tradução de Helena Barbas, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

OMS

Escrever é como fumar: sempre acaba prejudicando terceiros.

Subsídio para compor o rosto de Pris

Pelo que lembro de Priscylla, ela no rosto é uma bem-sucedida mescla de Drew Barrymore e Julianne Moore.

Tira-teima

Obrigado papai google
por nos livrar da decoreba
e dos sabe-tudo.

Obstinação

Quando se faz de rogado
o amor é
um burro empacado.

Morrerias

Se soubesses o gozo que cada um dos teus elaborados suplícios trouxe à minha carne, morrerias de desgosto. Sinto falta deles, minha querida, e só de lembrá-los minha pele se arrepia, prazerosa.

Nobreza

Se Priscylla houvesse me estrangulado naquela manhã, teria usado luvas das quais se livraria imediatamente - não por temer consequências criminais, mas por nojo do meu pescoço plebeu.

Foto

Se vocês tiverem uma foto de Priscylla Mariuszka Moskevitch, olhem e digam se esses olhos, se esses lábios, se esse rosto parecem capazes de ser os olhos, os lábios e o rosto de alguém cruel o bastante para matar um homem com o obstinado perfeccionismo de um assassino profissional.

Musa

Eu te agradeço por me matares tão continuadamente, por me manteres tão amorosamente atento à tua crueldade que não tenho tempo sequer para pensar em flores e em estrelas, esses bisonhos objetos de inspiração dos poetas.

Quatro versos de Friedrich Hölderlin

"Entretanto resplandecem lá no alto, serenos, os cumes de prata,
E neles a luminosa neve está coberta de rosas.
E mais alto ainda, acima da luz, mora o Deus
Puro e ditoso, deleitado pelo movimento dos sagrados raios."

(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

O retrato de Priscylla

Uma ajuda para quem quiser compor o retrato de Priscylla Mariuszka Moskevitch (já foi feita uma tentativa no 'face'): seus olhos são azuis, embora eu confesse jamais ter olhado diretamente para eles, com receio de ser tragado, como acabei sendo.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Priscylla

Vão-se apagando em mim os traços de Priscylla Mariuszka Moskevitch. Falei já tanto dela aqui que os leitores talvez tenham melhor noção do seu rosto que eu. Ajudem-me, com palavras ou ilustrações, a recuperar esse rosto - fonte de tantas angústias e tantas venturas amorosas.

Cotação do dia

Se eu tivesse morrido em 2013, estaria exatamente como agora: três anos sem ver Priscylla Mariuszka Moskevitch.

Personagens

Numa história de amor,
se é história policial,
há sempre um inocente
de olhos tolos e feição bovina.

Numa história de amor
está sempre presente,
se é uma história normal,
uma mulher - a assassina.

O capitão

Algumas noites ainda
o amor recruta
seus marinheiros mortos
resgata o barco
perdido no tempo
e buscando repetir
inteiramente igual
a catástrofe original
se lança outra vez
contra as ondas tormentosas
e os rochedos.

Trauma

A palavra pudica tem complexo por não ser proparoxítona.

Segundinha

Começou a pensar na origem da palavra biscoito e sua mente suja logo lhe ofereceu uma solução.

Soneto dos dois dentro do carro

Ela lhe disse que não,
Que só se estivesse morta,
Mas ele pegou-lhe a mão,
Foi ao carro e abriu a porta.

Entra aí, ele convidou,
Ela continuou negando,
E quando por fim entrou
Ainda estava resmungando.

Depois de entrar, entretanto,
Já não se queixava tanto.
Tudo que ele lhe pedia

Ela hesitava, se amuava,
Mas no banco se ajeitava,
Se concentrava e fazia.

"O outro lado", de Alberto Martins

"A vida após a  morte
não é tão fácil
de ser levada.

Não para quem morre
mas para quem fica:
todo o pessoal da retaguarda.

Que inferno ir à praia
na manhã vazia
- de canal a canal
sem dar palavra.

O morto pelo menos
escapou do dia a dia:
já não precisa lavar o pé
antes de entrar em casa."

(Do livro Cais, publicação da Editora 34.)

sábado, 23 de janeiro de 2016

Cotação do dia

Quando está difícil ficar triste, ele pensa no amor.

Tantos dezembros

Eu gostaria de ter morrido estrangulado por ela naquela manhã. Como eram longos seus dedos de artista. Estiveram tão próximos do meu pescoço. Foi há tantos dezembros, tantos. Confiei demais, e inutilmente, nos seus olhos assassinos.

Predestinados

Os que morrerão de amor
continuam seu aprendizado
acendendo velas a deus
vendendo a alma ao diabo.

Sanguessuga

O poeta é como um dono de circo. Explora o amor no trapézio, submete-o ao globo da morte. Quando ele envelhece, dá-lhe a função de malabarista. Em seguida, a de palhaço. Depois, coloca-o para vender ingressos. Uma noite assaltam a bilheteria, e o amor, eleito culpado, passa a cuidar do carrinho de pipocas, lá fora.

1%

Às vezes, assim como a brisa ao pentear a verde cabeleira das árvores, o acaso ajeita uma frase melhor do que um escritor.

Ter tido

Amamos, ah, como amamos,
Até nosso amor morrer.
Por que agora nos queixamos?
Que mais queríamos ter?

De Elias Canetti, sobre o ofício do poeta

"O que ocorre, na realidade, é que ninguém será hoje um poeta se não duvidar seriamente do seu direito de sê-lo. Quem não vê o estado do mundo em que vivemos dificilmente terá algo a dizer sobre ele. O perigo de que é alvo, antes preocupação central das religiões, deslocou-se para o aquém. O ocaso do mundo, experimentado mais de uma vez, é visto com frieza por aqueles que não são poetas; alguns há que calculam suas chances de fazer disso o seu negócio e engordar cada vez mais com ele. Desde que as confiamos às máquinas, as profecias perderam todo o valor."

(Do livro A consciência das palavras, tradução de Márcio Suzuki, edição da Companhia das Letras.)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Porque ninguém é de ferro

Da série "Ninguém pensou nisso antes?": livro que não fica de pé é brochura.
(Pede-se aos autores que tenham registrado a frase que formem fila no portão F, para as reclamações.)

Soneto da cafeteria

Bastou-me ver-te uma vez
Onde agora nunca estás,
Só uma vez, tempos atrás,
E o amor me fez o que fez.

Foi bastante aquele dia,
Um só, nada mais do que isso,
E eu caí em teu feitiço,
No café da livraria.

Ah, quantas vezes voltei,
E a única coisa que sei
É que não mais vieste aqui.

Eu venho ainda e, com tristeza,
Imagino ver-te à mesa,
Como aquela vez te vi.

Sobre os três amores de Kafka

"Cumpre assinalar que em Kafka, que no colóquio só raras vezes se sentia livre, o amor sempre nascia da palavra escrita. As três mulheres mais importantes da sua vida foram Felice, Grete Bloch e Milena. Em todos os três casos, seus sentimentos brotaram de cartas."

(De A consciência das palavras, tradução de Herbert Caro, edição da Companhia das Letras.)

O nome inteiro de Pris

Quando ela me disse que se chamava Priscylla Mariuszka Moskevitch, senti que era um nome para ser guardado como se guardam os irreveláveis ingredientes dos sortilégios e dos amavios.

Gosma

Os mais asquerosos autoelogios são os indiretos. Como o do homem que diz que a dele é a mais ciumenta das mulheres.

Mario Quintana

Toda vez que penso num passarinho, penso em Mario Quintana. E vice-versa.

Sintomas

Algumas das cintilações que tem visto são tão maravilhosamente estranhas e belas que, se forem recados da insanidade, ele está pronto e ansioso para acolhê-la.

Obra

Agradam-lhe os elogios, não por vaidade, mas por serem cada vez mais necessários à sua sobrevivência. Ao artista, que vem matando metodicamente o homem, cabe agora salvá-lo, ou fazê-lo merecedor de dez palavras a mais no necrológio.

Soneto da canção antiga

Como as nuvens, erradias,
E o sopro das brisas mansas,
Vão-se assim as esperanças,
Assim escapam os dias.

O que agora tu dirias,
Depois de tantas andanças,
Se perguntassem das danças,
Dos risos, das alegrias?

Agora onde estão o ruído,
O brilho, a vida, o alarido?
Tudo se foi, só tu não.

Tu, meu tolo incorrigível,
Esperas ainda o impossível:
Reouvir a antiga canção.

De Elias Canetti sobre Kafka

"A essa altura, nada o mantém de pé a não ser a lamúria, que assume o lugar da criação literária, embora seja de um valor muito inferior a esta, e converte-se no fator unificador. Mas, sem ela, Kafka emudeceria totalmente e se fragmentaria em suas dores."

                                                                     ***

"Talvez não se deva esquecer que as cartas que Kafka nesse primeiro período dirigia a Felice, ainda que não se nos afigurem como cartas amorosas no sentido convencional, contêm mesmo assim algo estreitamente ligado ao amor: para ele é importante que a moça deposite na sua pessoa alguma esperança."

(Do livro A consciência das palavras, tradução de Márcio Suzuki e Herbert Caro, edição da Companhia das Letras.)

Priscylla moleca

Priscylla Mariuszka Moskevitch me apareceu esta noite com um saiote colegial xadrez. Com despudor de menina, mostrou-me a língua e correu, com seus tênis guinchando como se rissem de mim. Eu a persegui e engoliria sua língua com a minha, se a duração do sonho tivesse permitido.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Por Priscylla

Por Priscylla Mariuszka Moskevitch eu destroçaria moinhos, negociaria minha alma com o Diabo e venderia Sancho Pança aos canibais.

Nos sonhos

Nos sonhos ela é uma menina e, para que ela exerça desde cedo seu poder, ele é um menino. Ela lhe nega sempre algo miúdo, algo pequeno, algo mínimo. Ele chora e diz que se vingará quando crescerem. Mas, assim como hoje, ele não se vinga nunca e sente nisso um prazer desses que só um menino rejeitado sente.

Cativeiro

Aqueles que o amor sequestra recebem os restos que ele lhes dá para comer num prato de bordas lascadas, e lambem tudo, até a última migalha, como se fosse ambrosia.

Cúmplices

Destroçado por uma rejeição amorosa, implorava em suas orações pela morte. Mas esta, assim como o amor, se fazia de surda.

Vocação

Penso que da poesia se deve esperar sempre um prodígio, ainda que seja um desses menores, tímidos como uma formiga.

Diferença

Para João Cabral, uma pedra era uma pedra. Para Drummond, uma pedra era um dos disfarces da poesia.

Nomenclatura

Às vezes, o que faz um livro ser definido como infantil não é o tema, é o escritor.

Teimosia

Shakespeare morreu há tanto tempo, e o que estamos nós fazendo ainda? Ofendendo sua memória ou cansando a beleza?

Etapas

No princípio
eram os verbos da natureza:
nascer
crescer
amadurecer
murchar

Depois vieram verbos
estranhos:
desejar
iludir
trair
atormentar

Então o Senhor
criou o homem
a mulher
o amor
montou um departamento
e chamou o Diabo para gerenciar.

Preço justo

O amor só não está entre os produtos da loja de dois reais porque os fregueses o achariam muito caro. Seria preciso fazer pacotes com três ou quatro unidades.

"Uma temporada no temporal", de Alberto Martins

"Namorou outras vidas
como se esta não bastasse
e em sua mochila de apetrechos
transportou vários excertos
de outros corpos
reinventados de cor.
No meio da chuvarada
despiu o guarda-chuva e as galochas
- ah, a inutilidade de um livro-caixa das paixões!
como se a vida desse ouvidos
a perdas, enganos...
Viver é amar - entre estranhos.
Por isso, na falta
da eterna tempestade tropical,
foi morar noutros extremos:
areias e rochedos,
clima de Saara-mental."

(Do livro Cais, publicado pela Editora 34.)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Cotação do dia

O primeiro sinal de libertação de nossa  alma é dado pela morte do amor e de qualquer desejo ou esperança de ressuscitá-lo.

Rábula

Quando se vê acuado, Deus invoca sempre o princípio da antiguidade.

Oxalá

Talvez sejam amáveis os dedos da morte e ela nos tire a vida tão agradavelmente quanto o amor nos tirou.

Soneto do melhor professor

Para quem quiser ter ciência
Do que é ventura e o que é dor,
Não há nenhuma experiência
Mais proveitosa que o amor.

Para ensinar o que a vida
Nos tira e a vida nos dá,
Em que peso e em que medida,
Melhor professor não há.

O amor é tão primordial,
Tão necessário e essencial
Para o nosso aprendizado,

Que se ele não existisse
Alguém, não lembro quem, disse
Que deveria ser criado.

Carma

Se aos poetas dessem a cada um uma enxada, como os ressentidos sugerem, eles cavariam a terra para nela plantar as mais preciosas espécies de amor.

Soneto das duas faces do amor

O jovem, seja qual for,
Crê que tudo se resolve,
Tudo se cura e se absolve,
Se feito em nome do amor.

Mas o velho assim não pensa
E, declarando-se doente,
Diz categoricamente
Ser o amor a sua doença.

Assim é o amor: desafia
Qualquer estudo ou teoria
E toda definição.

Ora é delícia, doçura,
Ora suplício, tortura:
Suprema contradição.

Circo

Frases de efeito costumam ser confundidas com alta literatura. Escritor não é o trapezista em seu malogrado salto triplo. Nem é quem, embaixo, tenta em vão socorrê-lo. Escritor é aquele que no dia seguinte, com um balde, água e sabão, retira as manchas de sangue porque à noite, com um novo trapezista, o espetáculo vai continuar, com plateia dobrada.

Soneto de Sor Juana Inés de la Cruz sobre a velhice

"Olhou Célia uma rosa que no prado
ostentava feliz a pompa vã
e com enfeites de carmim mui sã
banhava alegre o rosto delicado;

e disse: - Goza, sem temor do Fado,
o breve curso dessa fase louçã,
pois não poderá a morte de amanhã
tirar o que hoje já tiver gozado;

e embora chegue a morte pressurosa
e tua fragrante vida te recolha,
não sintas o morrer bela e mimosa:

vê o que a experiência te aconselha
que é fortuna morrer sendo formosa
e não ver o ultraje de ser velha."

(De Letras sobre o espelho, tradução de Vera Mascarenhas de Campos, edição da Iluminuras.)


terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Menção honrosa

Ali no mar onde ele
por amor se afogou
arma-se em certas tardes
um arco-íris raquítico
contra o qual os cachorros latem
e os meninos atiram pedras.

Coautora

Fonte de minhas melhores inspirações
e de todas as demais
se eu ganhasse o nobel
o pulitzer
o jabuti
sei sem erro nenhum
sem nenhuma hesitação
que tua participação
seria de cinquenta por cento
mais um ou então
de cinquenta e um
e um tanto mais.

Recordação

Frequentemente recordo como estavas naquela manhã. Mais estouvada do que nunca vieste, e tua mochila, cheia dos livros e dos desenhos que tu querias me mostrar, esbarrou em todas as cadeiras e mesas da cafeteria, até chegares a mim. Eu me lembro de como te chamei mentalmente naquele instante, e ao me lembrar choro e murmuro: cavalona, ah, minha querida cavalona.

Encontro

Saindo da chuva, ela veio e me abraçou. Seus cabelos estavam frios, e eu não sabia - pobre de mim - que seu coração também.

Um soneto de Sor Juana Inés de la Cruz

"Ao que ingrato me deixa, busco amante;
ao que amante me segue, deixo ingrata;
constante adoro a quem meu amor maltrata;
maltrato a quem meu amor busca constante.

Ao que trato de amor, acho diamante,
e sou diamante ao que de amor me trata;
triunfante quero ver ao que me mata,
e mato ao que me quer ver triunfante.

Se a este pago, sofre meu desejo;
se rogo àquele, meu orgulho encolho;
de entr'ambos modos infeliz me vejo.

Porém eu, por melhor partido, escolho
de quem não quero, ser violento ensejo,
que, de quem não me quer, infame abrolho."

(De Letras sobre o espelho, tradução de Vera Mascarenhas de Campos, publicação da Iluminuras.)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Soneto do indesejável conhecimento

Depois que o amor me escolheu
E certeiro me flechou,
Alguma coisa ocorreu
E minha vida mudou.

Não sei o que aconteceu
Depois que ele me acertou,
Mas eu já não sou mais eu,
Mas eu não sou mais quem sou.

Antes do amor eu vivia,
Mas ainda não compreendia
Que sentido há em viver.

Agora eu sei, aprendi,
E tanto amei e sofri
Que era melhor não saber.


Palavrar

Como Joyce, Guillermo Cabrera Infante conhecia o instinto de promiscuidade que há nas palavras, o desejo de se cruzarem, de se possuírem, de se entregarem à prodigiosa aventura da procriação.

Retrô

Morrer na zona
com o sangue aos borbotões
apunhalado por um gigolô
e uma canção
de ernesto lecuona.

"Do alto de um guindaste", de Alberto Martins

"refém
de cargas
e armazéns
de rotas
e promissórias
commodities
extraviadas
e contrabando
sem nota

- aqui eu moro -

entre bandeiras
de diferentes donos
e as grossas placas
de aço do abandono."

(Do livro Cais, Editora 34.)

Cântico

Se vais te deixar montar
que seja por quem
não seja desses que arfam
mas que se arfar
e se palavras te disser
que sejam minha amiga
palavras que te digam
se puta elas te disserem
que és a melhor puta
que já foi uma mulher.

Quatro versos de Friedrich Hölderlin

"E tal como é inútil à terra oferecer-lhe a agradável
Erva curativa e nenhum zéfiro consegue estancar o sangue que fermenta,
O mesmo me acontece, caríssimos! Assim parece, e não haverá ninguém
Que possa aliviar-me da tristeza do meu sonho?"

(Do poema "Pranto de amor de Ménon por Diotima", do livro Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Soneto do amor, meu patrão (p/ Priscylla Mariuszka Moskevitch)

Quando prometi prover
Seu bolso e sua despensa,
O amor, como recompensa,
Deixou-me sobreviver.

Deixou-me também, cortês,
As suas plantas regar,
A sua casa lavar
E o seu carro japonês.

Desde que seu criado sou,
Ele nunca se queixou
E nem de mim falou mal.

Não me maltrata, ao contrário:
Dá-me em cada aniversário
Um paninho e um avental.

Mestre (para Jorge Cláudio Ribeiro)

Para expressá-lo por inteiro
Na sua exata dimensão
De humano valor e espírito cristão,
O nome de Jorge Cláudio Ribeiro
Devia ser Jorge Cláudio Ribeirão.

Polska

Tão sórdido é o homem, tão vil, tão destruidor. E, no entanto, se ouvimos Chopin, se lemos Wislawa, toca-nos o impulso do perdão. A arte suaviza os traços de Caim.

Soneto do amor como ele é

Na arte de não se mostrar
Nunca a ninguém por inteiro
O amor é useiro e vezeiro,
Sem concorrente nem par.

Eu dele posso falar
De modo pleno e certeiro,
Como apenas um cordeiro
De um lobo pode tratar.

No início, para nos ter,
Esforça-se para ser
Amável, e por nós chora.

Depois, como um canibal
Ou um voraz animal,
Ele nos mata e devora.

"À espera de um amigo que não veio por causa da chuva", de Yu Xuanji

"Gansos e peixes informaram de tua ausência
O galo e o milho desperdiçam-se a este tempo
Tranquei-me a casa, uma gaiola sob a lua
Caem fios de seda e à cortina se diluem
Tão perto a fonte, vem das pedras seu rumor
mas longe o rio, soam às margens suas ondas
Só em viagem, vem-me o outono, chega, acerca-se o sol
e este poema é o que me resta, cada verso."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

Modéstia

Não aspira à glória. Seu sonho é escrever poemas que possa depois esfarelar e atirar aos famintos passarinhos da praça.

Ascendente

Na Idade Média, Víktor Drewnick, o Sandeu, foi lançado à fogueira não por falsificar arcos-íris, mas por fazê-los mais belos e autênticos que os originais.

Dica

O decote dela
deixa implícito
o sexo explícito.

Balcão de 1,99

Hoje, na "Rubem" (www.rubem.wordpress.com), exponho algumas frases acessíveis a qualquer bolso.

"Equilibrista", de Cecília Meireles

"Alto, pálido vidente,
caminhante do vazio,
cujo solo suficiente
é um frágil, aéreo fio!

Sem transigência nenhuma,
experimentas teu passo,
com levitações de pluma
e rigores de compasso.

No mundo, jogam à sorte,
detrás de formosos muros,
à espera de tua morte
e dos despojos futuros.

E tu, cintilante louco,
vais, entre a nuvem e o solo,
só com teu ritmo - tão pouco!
Estrela no alto do polo."

(De Antologia poética, edição da Global.)


sábado, 16 de janeiro de 2016

Orlando

Por tua boca suja
tua voz de marujo
amiga eu te juro
que quase pulei o muro
troquei de roupa no escuro
e me tornei tua maruja.

Soneto do que ainda posso fazer por ti

Eu poderia morrer
Por ti com solicitude
Da mesma forma que pude
Por ti sofrer e viver.

Eu poderia fechar
Os olhos bem lentamente
E definitivamente
Deixá-los assim ficar.

Quem sabe, minha querida,
Seja essa a melhor saída.
Eu, morto, te pouparia

De minha abjeta presença
Do meu amor, esta doença,
De minha tola poesia.

Sinopse

Fiz de mim o mais medíocre dos meus personagens: fraco, insosso e vítima da mais previsível e monótona das moléstias - o amor.

562

São Paulo velha vadia
ralando ainda pelo pão
na ipiranga na são joão
no brás na vila maria.

Prosódia

Me ajude seu google
me diga se é dúblin
se é dublin
mas não demore
diga loga pra mim
antes que acabe meu estoque
de rimas em in.

Melhor idade

Quixote fracote
eu derrubava um moinho por ano.
Derrubo agora trinta por mês
graças a deus e ao ômega 3.

"O poeta pede a seu amor que lhe escreva", de García Lorca

"Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura."

(De Sonetos do amor obscuro e divã do Tamarit, tradução de William Agel de Mello, edição da Folha de S. Paulo.)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Soneto do tempo exato do amor

Tão ávido é o coração
Que, mal consegue um espaço,
Ensaia já novo passo
Para ampliar sua extensão.

Como pode ser assim?
Pelo amor se bate tanto,
Se suplicia, e no entanto
Depois que consegue, enfim,

Incorre na leviandade
De dar a esse sentimento
Pretensões de eternidade.

Tolice. O amor há de ser
Sempre não mais que um momento
Entre o nascer e o morrer.

Mario Quintana

Em quase todas as fotos de Mario Quintana, sinto nele a vontade de dar uma piscadinha e dizer: se quiser me levar a sério, fique à vontade, mas não exagere.

Cota

Se eu tivesse poder, estabeleceria uma norma para melhorar a literatura: em cada parágrafo deveria estar presente um gato. Outra norma seria proibir parágrafos com mais de cinco linhas.

Língua

Vem sonhando com umbigos. Acorda sentindo sempre o gosto daquele envergonhado ouro de bijuteria.

"Um pouco de Strauss", de Paulo Henriques Britto

"Não escrevas versos íntimos, sinceros,
como quem mete o dedo no nariz.
Lá dentro não há nada que compense
todo esse trabalho de perfuratriz,
só muco e lero-lero.

Não faças poesias melodiosas
e frágeis como essas caixinhas de música
que tocam a 'Valsa do Imperador'.
É sempre a mesma lenga-lenga estúpida,
sentimental, melosa.

Esquece o eu, esse negócio escroto
e pegajoso, esse mal sem remédio
que suga tudo e não dá dá nada em troca
além de solidão e tédio:
escreve pros outros.

Mas se de tudo que há no vasto mundo
só gostas mesmo é dessa coisa falsa
que se disfarça fingindo se expressar,
então enfia o dedo no nariz, bem fundo,
e escreve, escreve até estourar. E tome valsa."

(De Artes e ofícios da poesia, organização de Augusto Massi, publicação da Secretaria Municipal de Cultura do município de São Paulo.)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Sempre

Basta pensar nela para sentir logo abaixo do umbigo aquelas convulsões doloridas, como as de um peixe lutando para escapar da rede.

Sentidos

Quando ele a vê, a ponta de um dos seus dedos se inquieta e em sua língua há uma palpitação de sal.

E se...?

Quando ele pensa no futuro, tem receio de um dia julgar algum pecado mais jubiloso que a luxúria.

Cotação do dia

Me sinto tão acabado
tão pronto e preparado
quanto um defunto bem caprichado.

Atitude

Lancemos sobre o amor as culpas e maldições que merece. Esfreguemos seu focinho na areia e enchamos de palmadas sua bunda pecaminosa.

Off

Às vezes - confessemos - escrever não é mais do que uma aporrinhação.

Recomendação

Não esquecer de dizer
que a família drewnick
é um ramo do clã leminski.

Mario Quintana

Escrever seria um ato comum e isento de suspeitas de magia, se em casos como o de Mario Quintana as palavras não tivessem a mania de se apresentar sob formas nas quais é impossível não reconhecer estrelas, flores e passarinhos.

Peritagem

A morte não deveria nos trazer tanta responsabilidade e preocupação. É algo que vai depender da opinião de terceiros.

Futebol

Atirada para cima, a moeda não deu cara nem coroa. Imobilizou-se no ar, paralisada pela acrofobia.

Doxomania

Desde o primeiro alexandrino que comete, a aspiração do poeta parnasiano é tornar-se estátua.

Sonho

Qualquer pato de lagoa gostaria de ser um cisne parnasiano.

Compostura

Os defuntos de bigodinho não inspiram respeito.

O medo

Quando nos couber morrer,
Sem nos queixar haveremos
De à ordem obedecer.
Viver é o que nós tememos.

Bom-senso

Os poetas concretistas não fazem poemas longos porque temem a fadiga dos materiais.

Ontem

Sempre conheço as pessoas tardiamente. Por que não cheguei ontem? Ah, que lástima. Ainda na semana passada, quem diria, fulano era uma espécie de mecenas, sicrano era editor de poesia, beltrana era uma espécie de deusa pagã devotada ao sexo.

"Coração de verão", de Armando Freitas Filho

"Num automóvel na Barra
no fusca com vista para o mar
mar que se repete e não troca
seu único disco de lágrimas
te vejo a olho nu - tão nua
que vou sem direção
com meu ambulante amor
sem freios
sobre molas e rodas
neste trailer de suspiros."

(De Artes e ofícios da poesia, organização de Augusto Massi, publicado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Peculiaridade

Toda vanguarda, em arte, costuma ter a voz grossa e as pernas curtas.

Caminho

Quem conversa com seus botões acaba numa camisa de força.

História

Quando cheguei, já tinham te colhido.
Faz muito tempo. Quanto, já nem sei.
Foi a primeira vez que perguntei
Se não era melhor eu ter morrido.

Requisito

O amor é um titanic.
Só merece menção
Se for a pique.

Um trecho de Alicia Ortega

"Um místico é um homem que sabe e um teólogo é um homem que crê. Mais que isso. Não é o mesmo ter nadado (caso do místico) que ser um teórico da natação (caso do teólogo)."

(De A mística e os místicos, edição da ECE.)

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Réu

Me agradaria ser alguém de quem pudesses dizer coisas horríveis, alguém que pudesses acusar de atos abomináveis, ainda que imaginários.  Aquele comprimido na tua taça de champanhe naquela noite, aquela insinuação de estupro, aquele ensaio de violação. Que pecados eu não assumiria para ter meu nome em teus lábios?

"Seu Lima em seu portão", de Alcides Villaça

"trinta anos depois
entra o balão gigante na conversa
trinta anos depois
enche-se aquela rua nesta
trinta anos depois
o que se fala ateia aclara aquece
trinta anos depois
Seu Lima está muito antes
acaba de acender a mecha e acena
trinta anos depois."

(De Artes e ofícios da poesia, organização de Augusto Massi, edição da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Ah, é?

Quando, depois de cinco minutos de conversa boba, o velhote admitiu que o que pretendia mesmo era falar de amor, a garota franziu as narinas: "Tiozinho, está sentindo esse cheiro de naftalina?"

No deserto

Atroz, para um homem, é viver para uma crença que ninguém com ele compartilha, principalmente se essa crença for o amor.

Mario Quintana

Para cada dois dedos de prosa, Mario Quintana vinha com duas mãos de poesia.

Alfabeto

Meu maior feito eu o devo menos à literatura que à biblioteconomia. Na estante, Dostoiévski é vizinho de Drewnick.

Cláusula

A única obrigação que a arte tem com a vida é a de citá-la como fonte, quando for necessário.

Ainda que

Uma crença há de persistir em nós. Um dia, ainda que seja o último, algumas palavras, ao menos por condescendência, se arranjarão de tal forma em uma frase que talvez alguém possa finalmente nos chamar de escritor.

Sabedoria

Só sai do sofá
Quando precisa.
Se necessidade não há,
O gato se economiza.

"Ai, voz secreta do amor escuro!", de García Lorca

"Ai, voz secreta do amor escuro!
Ai, balido sem lãs! Ai, ferida!
Ai, agulha de fel, camélia caída!
Ai, corrente sem mar, cidade sem muro!

Ai, noite imensa de perfil seguro,
montanha celestial de angústia erguida!
Ai, cão em coração, voz perseguida,
silêncio sem confim, lírio maduro!

Foge de mim, quente voz de gelo,
não queiras perder-me na mata
onde sem fruto gemem carne e céu.

Deixa o duro marfim de minha cabeça,
apiada-te de mi, rompe meu dó!
Que sou amor, que sou natureza!"

(De Sonetos do amor obscuro e divã do Tamarit, tradução de William Agel de Mello, publicação da Folha de S. Paulo.)


domingo, 10 de janeiro de 2016

Cotação do dia

Se um homem pode morrer por amor, que o faça, enquanto a ideia lhe parece boa. E, para que não venham depois com hipóteses como cardiopatia ou pancreatite, que ele deixe tudo bem claro, por escrito, com os agradecimentos a Deus por lhe haver proporcionado tão maravilhoso fim.

O amor e suas armas

O amor é como o assassino das novelas policiais. Muito mais hábil, porém. Inútil será tentar encontrar com ele um punhal, um revólver, uma agulha envenenada. São outras suas armas: o modo de passar os dedos entre os cabelos, para sentir-lhes o ouro, o jeito de molhar as sílabas de palavras como paixão, a forma de nos olhar como se duas estrelas tivessem visto subitamente em nós algo que nunca pressentimos.

Catadão

As chamadas obras completas, principalmente aquelas organizadas depois da morte dos poetas, são responsáveis pelo aparecimento de calamidades como acrósticos e descalabros como trovinhas.

Suprassumo

Para os poetas românticos
melhor que um cântico
só muitos cânticos.

New look

Se me visses
Haverias de rir

Sou hoje um velho
que passa o dia cochilando
esperando a hora de dormir.

Conduta

Do amor nós haveremos de falar sempre baixinho, como se estivéssemos velando o sono de nosso defunto mais querido.

"Do amoroso esquecimento", de Mario Quintana

"Eu agora, - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?"

(De Os melhores poemas de Mario Quintana, edição da Global.)

sábado, 9 de janeiro de 2016

Cotação do dia

Há cinco anos nenhum amigo me telefona, mas eu não os censuro. Há cinco anos também eu penso que morri.

As marcas

Da batalha do amor
saíste dilacerado
como um noviço

Trazes as marcas ainda
mas jamais saberás
quem as provocou

Se Deus
se Satanás
pouco te importa

Tu as lambes
como as lambeste
tempos atrás.

Cura

O amor precisou morrer
para eu saber
que nele sempre esteve o erro

Hoje rio como um bufão
como feito um leão
e durmo como um bezerro.

Letra D

Naquele tempo, eram tantos os nomes de homens em tua agenda que, quando falaste em Deus, pensei se ele também seria frequentador de tua cama.

Conceito

Morrer por amor não deveria ser uma virtude que alguém precisasse proclamar.

"Manifesto coprofágico", de Glauco Mattoso

"a merda na latrina
daquele bar da esquina
tem cheiro de batina
de botina
de rotina
de oficina gasolina sabatina
e serpentina

bosta com vitamina
cocô com cocaína
merda de mordomia de propina
de hemorroida e purpurina

merda de gente fina
da rua francisca miquelina
de teresina de santa catarina
e da argentina

merda comunitária cosmopolita e clandestina
merda métrica palindrômica alexandrina

ó merda com teu mar de urina
com teu céu de fedentina
tu és meu continente terra fecunda onde germina
minha independência minha indisciplina

és avessa foste cagada da vagina
da américa latina."

(De Artes e ofícios da poesia, organização de Augusto Massi, edição da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Vampiro amoroso

Quem quer encontrar romantismo em Dalton Trevisan deve estar preparado para situações como aquela em que o velhote safado implora de joelhos, à garota já não tão desinteressada quanto no início da conversa, que o deixe lamber seus dois dentinhos da frente.

Releitura

Perfeccionista, ele recria as lembranças do amor com um zelo que não dispensa as sugestões de uma imaginação escandalosamente apaixonada.

Alma

Para sabermos que ainda a temos, a alma deveria deixar-se ver, como um passarinho, mesmo que, voando ao lado de outros, fosse o menos belo de todos e mal soubesse cantar.

"Carta a um candidato aos exames imperiais", de Yu Xuanji

"Fiz poesia, triste e quieta no meu canto,
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, a oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso.

Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais.
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria.

Acaba a música, rompeu-se o instrumento.
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho,
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina,
É primavera, passa ao rio este momento."

(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução deRicardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicação da Editora Unesp.)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Hipótese

Eu diria que teu coração é de pedra, se tivesses um.

O dia

Tu dirás: coitado, ele era tão bonzinho. Será a homenagem que me farás, tentando arrancar lágrimas desses teus olhos que há muito sabes estarem irrevogavelmente secos.

"Carta a um amigo", de Yu Xuanji

"Vastas, inquietas, as ruas sem bons amigos.
Passam-se os dias, envergo o meu melhor vestido,
Frágil no espelho é meu rosto, os soltos cabelos,
Cobre-me em bruma leve o perfume do incenso.
É primavera, o desejo encontra-me agora.
Vejo-me à imagem de ilustres divas de outrora,
À porta jovens ditosos param seus carros,
Vergam salgueiros à hora, flores se abrem."

(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicação da Editora Unesp.)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Cópia

Quem vai morrer de amor tem os
Sintomas tolos, banais,
Estupidamente iguais
Àqueles que nós dois temos.

Um pouco mais dos tormentos amorosos de Werther

"Que desgraça! Perdi toda a energia, vejo-me caído numa inquieta indolência; não posso estar inativo e, apesar disso, não consigo fazer coisa alguma. Já não tenho imaginação nem sensibilidade; a natureza já não me impressiona, e os livros me entediam."

(De Os sofrimentos de Werther, edição da W.M. Jackson.)

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Traços

Cada vez que fala de amor, hoje, é como se estivesse mencionando um avô muito querido, cujos traços, que vão se apagando na sua memória, ele precisa reavivar mexendo em fotos antigas com um sentimento de culpa semelhante ao que teve quando, menino, colou pela primeira vez numa prova.

Mais um trecho de "Os sofrimentos de Werther", de Goethe

"Não conheço o homem de quem posso recear-me no coração de Carlota, mas, quando ela me fala do seu futuro esposo, fico como aquele a quem roubam honrarias e dignidades, obrigando-o ainda a entregar a espada."

(Edição da W.M. Jackson.)

Sobre a palavra amor

Quanto mais as conhece, mais se decepciona com as palavras. Amor, por exemplo. É só amor isso que ele sente? Não pode ser só amor essa aflição, essa ansiedade, esse ímpeto de voar, de chegar alto, de alcançar a nuvem mais elevada, de gritar amor, amor, de furar com esse grito a nuvem e fazê-la chover sobre certa casa, somente sobre essa casa, onde uma mulher aparecerá à janela e sorrirá, julgando estar maluca porque lhe parecerá ter ouvido a chuva dizer seu nome no jardim.

Um trecho de Goethe

"É caso para enlouquecer ver a gente essas criaturas que vagueiam pelo mundo sem sentir coisa alguma do que faz a outras palpitar o coração."

(De Os sofrimentos de Werther, edição da W.M. Jackson.)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Soneto do menino que saiu para se divertir

Culpa nenhuma ele sente
Enquanto, dissimulado,
Tendo a rua atravessado,
Vai para a calçada em frente.

E remorso ele não tem
Quando, sem pestanejar,
Se detém para falar
Com a puta que lhe diz: "Vem!"

E também não sente dó
Por haver furtado a avó
E esse dinheiro ir gastar

Não num rinque de patim,
Mas sordidamente assim,
Num quarto de lupanar.

Um trecho de "Os sofrimentos de Werther", de Goethe

"Chego por vezes a não compreender como ela possa amar outro... como ela ouse amar outro... quando eu a trago aqui no coração, que ela enche inteiramente, quando ninguém mais conheço, ninguém mais vejo e nada mais possuo no mundo senão a ela!..."

(Edição da W.M. Jackson.)

Avareza

Ele descobriu que todas as palavras curtas, quando sussurradas ao ouvido da mulher amada, soam para ela como a palavra amor. Economiza então esta para que, no momento exato, quando a disser com toda a sonoridade de suas quatro letras, pelo menos para ele ela soe fresca como um daqueles riachos primaveris dos romances antigos.

Soneto dos falsos vitoriosos

Um dia talvez tenhamos,
Por nosso empenho obstinado
Ou por um lance bem dado,
As graças a que aspiramos.

Se tivermos o que ansiamos,
Dinheiro, amor devotado
E sucesso incontestado,
Muito bem. Se não, mintamos.

Simulemos, dia a dia,
Que o que nos move é a alegria,
A quem nos quiser ouvir.

Quantos, que inveja nos trazem,
Nenhuma outra coisa fazem
Senão vitórias fingir.

Um trecho de Goethe

"Hoje não pude ir à casa de Carlota; impediu-me de o fazer uma reunião a que não me era possível faltar. Que fazer? Mandei lá o criado que me serve, só para ter depois ao pé de mim alguém que tivesse estado junto dela. Com que impaciência o esperei e com que alegria o vi chegar! Estive quase tentado a agarrá-lo pela cabeça para o beijar!"

(De Os sofrimentos de Werther, edição da W.M. Jackson.)

domingo, 3 de janeiro de 2016

Vestígios

Ele se lembra dela
como se lembra
de uma canção antiga
tão antiga
que ele nunca se lembra
da letra inteira
e da melodia
só se lembra de meia.

Sine qua non

Para ler livros como O gigante Pantagruel e Satyricon, é preciso, mais que olhos, ter estômago.

Soneto do amor e sua cúmplice

O amor tem as costas largas
E, ansioso por se culpar,
Assume, sem se queixar,
Nossas perdas mais amargas.

Sobre ele nós despejamos,
Além de nosso desprezo,
Todo o insuportável peso
Das coisas em que falhamos.

Por ele é que nós não fomos,
Por ele é que nós não somos
Shakespeare nem Baudelaire.

O amor, eterno culpado,
É quase sempre auxiliado
Por uma bela mulher.

www.rubem.wordpress.com

Hoje, na revista Rubem, falo de coisinhas ligadas à literatura e de quem sabe fazê-la.

"A ocasião perdida", de Robert Louis Stevenson

"Adeus, belo dia, bela luz que morres!
Eu que sou terra, contemplo o ocidente,
E vejo o imenso sol que desce.
Adeus. Nunca mais nos voltaremos a encontrar.

Adeus. Suspirando contemplo
Mais esta ocasião que se perde.
Impotente jazo na minha tenda:
Adeus, belo dia, tão desperdiçado!

Adeus, belo dia. Se algum Deus
Comanda esta pobre nuvem de pó,
Também criou esta ocasião
E preparou o seu próprio obstáculo.

Deixai-o com a sua divina vingança -
Dá-me o sono, dá-me o despertar,
Armado e a postos, e pede-me para
Representar o herói do dia que vem!"

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 2 de janeiro de 2016

Ingredientes

Tudo dependerá de se ter coragem ou não. Sempre haverá uma corda, as mãos e um bom motivo para atá-la ao pescoço.

Historinha

Ele morreu
com o nome dela
na ponta da língua

Tinha fome de amor
morreu à míngua
porque ela generosa
e sua bolsa dadivosa
andavam salvando órfãos na Índia.

Casos

Diante de personagens de Faulkner ou de Dostoiévski o leitor, pelo menos no início, sempre reluta em ver neles qualquer semelhança consigo mesmo. Encara-os como um psiquiatra encararia pacientes sem nenhuma relação com os padrões humanos.

Brinquinho

A arte pode ser simples e vulgar como uma bijuteria. É sob essa forma que ela mais costuma agradar à maioria.

Doses

Alguns conquistam penosamente o direito de morrer. Envolvem-se com o amor, por ele são envolvidos nas usuais tramas de ciúme e traição, e padecem agonias que os dessangram até seus rostos parecerem máscaras de zumbi ou vampiro. Melhor agem os que, sabendo ser o amor um veneno, o bebem num só gole e podem exibir, durante as honras  fúnebres, uma face semelhante a uma corada maçã.

Hoje

Ali onde antes
ele tinha algo
que na literatura debochada
chamam de espada
e às vezes
de lança pulsante
ele tem hoje uma haste
uma varinha
que tocada pela brisa amorosa
canta sempre a mesma melodia
uma história de tempos muito passados
de amores malogrados
monótona como uma ladainha.

"Da arte pura", de Mario Quintana

"Dizem eles, os pintores, que o assunto não passa de uma falta de assunto: tudo é apenas um jogo de cores e volumes. Mas eu, humanamente, continuo desconfiando que deve haver alguma diferença entre uma mulher nua e uma abóbora."

(De Os melhores poemas de Mario Quintana, edição da Global.)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Soneto do perdedor

Já coisa alguma me apraz.
A batalha está perdida
E ir bem ou ir mal a vida
Pouco importa, tanto faz.

Nem horas boas nem más
São hoje a minha medida.
Minha alma tola, vencida,
Aspira somente à paz.

Vivi pelo amor somente
E pela literatura
E aos dois dei intensamente

O mais extremo vigor
E a dedicação mais pura
Que já deu um sonhador.

Como no início

Gostaria de voltar a ter com os livros aquela relação simples do seu tempo de menino, de se deixar tomar pela magia deles sem ficar procurando os truques que os escritores usam e que ele quer aprender para se tornar um.

E se...?

Quando imagina como será quando estiver morto, tem certeza de que se portará como um defunto exemplar e não criará problema nenhum até que o enterrem, Só sente alguma aflição quando lhe vem à cabeça a hipótese de o carro funerário topar no caminho com a magnificência de um arco-íris.

Rigor

Os escritores que planejam seus livros detalhe a detalhe me dão certa pena. São como crianças que, tendo à disposição toda a praia, se põem a calcular de quantos baldes de areia precisarão para erguer um castelo.

Pureza

A poesia deveria fazer-se por si mesma. Qualquer sinal que um homem deixe num poema, uma vírgula que seja, traz sempre a suspeita de  mistificação.

Prêt-à-porter

O amor há de ser lembrado
sempre como foi
no seu melhor dia
ainda que nesse dia
nós o tenhamos maquilado
e simulado
que podia um dia haver
em que sem ser
ele pelo menos
melhor viesse a parecer.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Pois desde que me dei por gente procuro o romance em que se resuma toda a paixão, os sonhos, os desejos, as ambições, a dor, a solidão, o humor, o patético extravio do bicho-homem. Cultivo a esperança de ainda achá-lo. Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Vermelho e o Negro, Suave é a Noite bateram perto de meus devaneios.Mas ainda há estantes vazias na biblioteca secreta de minha alma."

(Do livro O silêncio do mundo, publicado pela AGE Editora.)

Cotação da meia-noite

Tristeza. Não foi o que eu sempre quis? Fiz por merecê-la.