sexta-feira, 31 de outubro de 2014
Prontuário médico
Quando rompeste comigo,
Sofri tu nem sabes como.
Ainda hoje me dói o figo,
Ainda hoje me dói o estomo.
Sofri tu nem sabes como.
Ainda hoje me dói o figo,
Ainda hoje me dói o estomo.
Orfanato
Às vezes ela se põe a mamar o peito dele. Ele imagina quanta felicidade ela deve ter proporcionado às garotas, nos anos de orfanato.
Aquilo que é
Aquilo que é essencial
Não passa nem passará.
É sempre agora, hoje, atual,
E vive, e existe, e está.
Não passa nem passará.
É sempre agora, hoje, atual,
E vive, e existe, e está.
Ele
Quando ouço alguém citar o velho doido que no tweeter só fala de amor, admito que fico desconfiado.
Integridade
Um poeta pode transformar um pedaço de pão numa rosa. Mas jamais faria o contrário, ainda que morresse de fome.
Mens insana
Que vale mais um demente
Do que uma pessoa sã
Sei eu, sabe toda gente,
E Erasmo de Roterdã.
Do que uma pessoa sã
Sei eu, sabe toda gente,
E Erasmo de Roterdã.
Nem sempre
Nem sempre o poeta corresponde ao perfil. Há alguns que, se virados de ponta-cabeça, não lhes cai uma estrela dos bolsos.
Hasta siempre
Tu me mataste, querida,
Pena que só uma vez.
Ah, por que o deus que me fez
Me deu somente uma vida?
Pena que só uma vez.
Ah, por que o deus que me fez
Me deu somente uma vida?
Trocista
Compramos o espelho, levamos para casa, limpamos suas manchas e ele nos retribui fazendo caretas.
"Estadão"
Às vezes, na Caetano Álvares, surgia uma lua tão grande e tão inacreditavelmente cor de abóbora e irreal que eu a olhava bem, procurando ver se não havia nela um hambúrguer com ketchup escorrendo pelas bordas e um logotipo do McDonald's.
Par
A louquinha da fazenda apaixonou-se pelo espantalho. Só ele entende as histórias que ela, enquanto lhe oferece pão e maçãs, conta interminavelmente, tarde após tarde.
Solução
Nasceu um bezerrinho com cara de gente. Assim que o viu, o fazendeiro o matou e mandou queimarem o espantalho.
Quites
Ela gostou dele pelos seus modos bruscos e sua língua áspera. Ele gostou dela por suas mãos macias e seu extrato bancário.
"Juana aos quarenta e dois", de Eduardo Galeano
"Lágrimas da vida inteira, brotadas do tempo e da pena, empapam a sua cara. No fundo, no triste, vê nublado o mundo. Derrotada, diz adeus.
Vários dias durou a confissão dos pecados de toda a sua existência frente ao impassível, implacável padre Antonio Núfiez de Miranda, e todo o resto será penitência. Com tinta de seu sangue escreve uma carta ao Tribunal Divino, pedindo perdão.
Já não navegarão suas velas leves e suas quilhas graves pelo mar da poesia. Sor Juana Inês de la Cruz abandona os estudos humanos e renuncia às letras. Pede a Deus que lhe dê como presente o esquecimento e escolhe o silêncio, aceita-o, e assim perde a América sua melhor poetisa.
Pouco sobreviverá o corpo a este suicídio da alma. Que se envergonha a vida de durar-me tanto..."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, publicado pela L&PM.)
Vários dias durou a confissão dos pecados de toda a sua existência frente ao impassível, implacável padre Antonio Núfiez de Miranda, e todo o resto será penitência. Com tinta de seu sangue escreve uma carta ao Tribunal Divino, pedindo perdão.
Já não navegarão suas velas leves e suas quilhas graves pelo mar da poesia. Sor Juana Inês de la Cruz abandona os estudos humanos e renuncia às letras. Pede a Deus que lhe dê como presente o esquecimento e escolhe o silêncio, aceita-o, e assim perde a América sua melhor poetisa.
Pouco sobreviverá o corpo a este suicídio da alma. Que se envergonha a vida de durar-me tanto..."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, publicado pela L&PM.)
Cúmplices
Os poetas garantem ter um pacto com as rosas e os passarinhos. As rosas não desmentem e os passarinhos não negam.
Tarde
Hora de sair para o sol, de olhar para as árvores, de tentar descobrir por que essas pequenas coisas fazem tanta gente feliz.
Fernanda Lima
Fernanda Lima é uma dessas belezas que o tempo constrói aos poucos, movido pelo ideal da perfeição.
No asilo
O velho Aníbal observa os estertores da mosca na sopa. Em cada olho uma lágrima. Ele se levanta, com cara de asco: justo hoje, que é canja. Afasta-se. Quando ele já está no corredor para o dormitório, eu o ouço dizer duas vezes, com voz de choro, como um filho recriminando o pai: Deus! Deus!
Blusa
Reconheci tua blusa no bazar de caridade e beijei furtivamente os ombros, rocei os lábios pelo bispo, pelo cavalo, pela rainha, cuidando para que meus suspiros fossem ouvidos só por mim e pelo meu coração atormentado.
Saneamento
Os poetas deveriam ser escorraçados e banidos assim que fossem apanhados suspirando diante de uma mulher ou de um arco-íris.
"Funeral", de Wislawa Szymborska
"Tão de repente, quem podia adivinhar?"
"nervos e cigarro, eu bem que avisei"
"mais ou menos, obrigado"
"desembrulhe essas flores"
"o irmão também foi do coração, deve ser de família"
"com essa barba eu nunca ia reconhecer você"
"a culpa é dele, estava sempre metido em alguma"
"aquele novo ia fazer o discurso, não consigo encontrar ele"
"O Kazek está em Varsóvia, o Tadek no exterior"
"só você foi esperta, trouxe o guarda-chuva"
"e daí que era o mais talentoso deles"
"um quarto de passagem, a Baska não vai concordar"
"claro que ele tinha razão, mas isso ainda não é motivo"
"com uma portinha esmaltada, adivinha quanto"
"duas gemas, uma colherinha de açúcar"
"não era da conta dele, pra que isso"
"só azuis e só números pequenos"
"cinco vezes, e nenhuma resposta"
"que seja, eu podia, mas você também podia"
"ainda bem que pelo menos ela tinha esse cargo"
"não, não sei, talvez parentes"
"o padre é a cara do Belmondo"
"ainda não estive nessa parte do cemitério"
"sonhei com ele faz uma semana, foi um pressentimento"
"não é feia a filha"
"é que nos espera a todos"
"deem pêsames à viúva por mim, tenho que correr para"
"no entanto em latim soava mais solene"
"foi-se, acabou-se"
"adeus, minha senhora"
"que tal uma cerveja"
"me ligue, a gente se fala"
"o número quatro ou o doze"
"vou pra cá"
"nós pra lá".
(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)
"nervos e cigarro, eu bem que avisei"
"mais ou menos, obrigado"
"desembrulhe essas flores"
"o irmão também foi do coração, deve ser de família"
"com essa barba eu nunca ia reconhecer você"
"a culpa é dele, estava sempre metido em alguma"
"aquele novo ia fazer o discurso, não consigo encontrar ele"
"O Kazek está em Varsóvia, o Tadek no exterior"
"só você foi esperta, trouxe o guarda-chuva"
"e daí que era o mais talentoso deles"
"um quarto de passagem, a Baska não vai concordar"
"claro que ele tinha razão, mas isso ainda não é motivo"
"com uma portinha esmaltada, adivinha quanto"
"duas gemas, uma colherinha de açúcar"
"não era da conta dele, pra que isso"
"só azuis e só números pequenos"
"cinco vezes, e nenhuma resposta"
"que seja, eu podia, mas você também podia"
"ainda bem que pelo menos ela tinha esse cargo"
"não, não sei, talvez parentes"
"o padre é a cara do Belmondo"
"ainda não estive nessa parte do cemitério"
"sonhei com ele faz uma semana, foi um pressentimento"
"não é feia a filha"
"é que nos espera a todos"
"deem pêsames à viúva por mim, tenho que correr para"
"no entanto em latim soava mais solene"
"foi-se, acabou-se"
"adeus, minha senhora"
"que tal uma cerveja"
"me ligue, a gente se fala"
"o número quatro ou o doze"
"vou pra cá"
"nós pra lá".
(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Aquele que
O poeta é aquele bobalhão que, quando abre a boca, dela só saem flores e palavras esdrúxulas.
Deixar pra lá
Num poeta hão de se tolerar certas coisas. Se ele tirar de um bolso um coelho e começar a conversar com ele, convém não estranhar - mesmo que ele chame o coelho de Camões.
Lógica
Quando nos olhamos no espelho e dizemos "lindo", o espelho só pode achar que estamos falando dele.
Anzol
Uma frase de ouro às vezes não passa de sorte de principiante. Quarenta anos depois, o escritor estará ainda lançando seu anzol, em vão.
Sentinela
Do muro eletrificado,
A incorrigível libido
Espreita o quarto apagado
Onde dorme o amor proibido.
A incorrigível libido
Espreita o quarto apagado
Onde dorme o amor proibido.
Só ele
Ainda que nos atire contra os rochedos e nos afogue nas profundezas, jamais aceitaremos um timoneiro que não seja o desastrado amor.
"Opinião sobre a pornografia", de Wislawa Szymborska
"Não há devassidão maior que o pensamento.
Essa diabrura prolifera como erva daninha
num canteiro demarcado para margaridas.
Para aqueles que pensam nada é sagrado.
O topete de chamar as coisas pelos nomes,
a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
a perseguição selvagem e debochada dos fatos nus,
o tatear indecente de temas delicados,
a desova das ideias - é disso que eles gostam.
À luz do dia ou na escuridão da noite
se juntam aos pares, triângulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros.
Seus olhos brilham, as faces queimam.
Um amigo desvirtua o outro.
Filhas depravadas degeneram o pai.
O irmão leva a irmã mais nova para o mau caminho.
Preferem o sabor de outros frutos
da árvore proibida do conhecimento
do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
toda essa pornografia na verdade simplória.
Os livros que os divertem não têm figuras.
A única variedade são certas frases
marcadas com a unha ou com o lápis.
É chocante em que posições,
com que escandalosa simplicidade
um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kama Sutra conhece.
Durante esses encontros só o chá ferve.
As pessoas sentam nas cadeiras, movem os lábios.
Cada qual coloca sua própria perna uma sobre a outra.
Dessa maneira um pé toca o chão,
o outro balança livremente no ar.
Só de vez em quando alguém se levanta,
se aproxima da janela
e pela fresta da cortina
espia a rua."
De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)
Essa diabrura prolifera como erva daninha
num canteiro demarcado para margaridas.
Para aqueles que pensam nada é sagrado.
O topete de chamar as coisas pelos nomes,
a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
a perseguição selvagem e debochada dos fatos nus,
o tatear indecente de temas delicados,
a desova das ideias - é disso que eles gostam.
À luz do dia ou na escuridão da noite
se juntam aos pares, triângulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros.
Seus olhos brilham, as faces queimam.
Um amigo desvirtua o outro.
Filhas depravadas degeneram o pai.
O irmão leva a irmã mais nova para o mau caminho.
Preferem o sabor de outros frutos
da árvore proibida do conhecimento
do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
toda essa pornografia na verdade simplória.
Os livros que os divertem não têm figuras.
A única variedade são certas frases
marcadas com a unha ou com o lápis.
É chocante em que posições,
com que escandalosa simplicidade
um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kama Sutra conhece.
Durante esses encontros só o chá ferve.
As pessoas sentam nas cadeiras, movem os lábios.
Cada qual coloca sua própria perna uma sobre a outra.
Dessa maneira um pé toca o chão,
o outro balança livremente no ar.
Só de vez em quando alguém se levanta,
se aproxima da janela
e pela fresta da cortina
espia a rua."
De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Paranoia
Depois que entrei no tweeter, estou estranho. Sempre acho que tem uma multidão me seguindo.
Possibilidades
A língua é como um garoto solto no supermercado. Ninguém nunca sabe onde ela vai se enfiar.
Inventário
Com o poeta foi encontrado
Um poema curto, um cartão
E também um coração.
Tudo, claro, em mau estado.
Um poema curto, um cartão
E também um coração.
Tudo, claro, em mau estado.
Quarta
Será mais um dia em que morreremos mais um pouco, jubilosos pela renovada ventura que é ir morrendo pela sagrada causa do amor.
Nós não
O amor mata pelo menos um de nós por dia, como numa novela de Agatha Christie. A cada morte nos apalpamos, incrédulos, com a tristeza lenta dos excluídos.
Perfeição
O espantalho novo era tão convincente que a lua, por um instante, se escondeu atrás de uma nuvem, com a mão nos seios.
Um trecho de Herta Müller
"As ninhadas de gato que nasciam no inverno eram afogadas em um balde com água quente, e aquelas que nasciam no verão, em um balde com água fria. Após o afogamento, os gatos eram enterrados no monte de esterco, tanto no inverno como no verão."
(De Depressões,tradução de Ingrid Ani Assmann, publicado pela Editora Globo.)
(De Depressões,tradução de Ingrid Ani Assmann, publicado pela Editora Globo.)
Cotação do dia (3)
Me sinto como uma borboleta espetada, observada por um menino que diz a outro: olha que feia, esta.
Cotação do dia (2)
Se um cachorro me seguir por um quarteirão, ou meio, acreditarei que Deus existe.
Perfeição
O espantalho novo era tão convincente que a lua, por um instante, se escondeu atrás de uma nuvem, com as mãos nos seios.
Caçamba
Veio então o garrafeiro
E carregou com cuidado
Um coração bom, inteiro,
Pelo amor cruel rejeitado.
E carregou com cuidado
Um coração bom, inteiro,
Pelo amor cruel rejeitado.
Só
De todo o amor, restou só
Um livro como lembrança.
O resto, o sonho, a esperança,
Virou cinza, nada, pó.
Um livro como lembrança.
O resto, o sonho, a esperança,
Virou cinza, nada, pó.
Foi
Pois é, foi belo, foi lindo,
Como um sol de primavera.
Pois é mas não era infindo,
Pois é, foi lindo, já era.
Como um sol de primavera.
Pois é mas não era infindo,
Pois é, foi lindo, já era.
Guichê
Sei bem qual é meu quinhão.
Dos prêmios sempre o menor,
Dos males sempre o pior,
Das culpas a danação.
Dos prêmios sempre o menor,
Dos males sempre o pior,
Das culpas a danação.
"Certa gente", de Wislawa Szymborska
"Certa gente fugindo de outra gente.
Em certo país sob o sol
e algumas nuvens.
Deixam para trás certo tudo o que é seu,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos nos quais agora se fita o fogo.
Trazem às costas trouxas e potes
quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia.
No silêncio alguém cai de exaustão,
na algazarra alguém rouba de alguém o pão
o filho morto de alguém é sacudido.
À sua frente uma estrada sempre errada,
uma ponte, mas não a de que precisam,
sobre um rio curiosamente rosado.
Ao redor uns disparos, ora mais perto, ora mais longe,
no alto um avião meio rodopiante.
Viria a calhar certa invisibilidade,
uma parda rochosidade
ou melhor ainda a inexistência
por um tempo breve ou mesmo longo.
Algo ainda vai acontecer, mas onde e o quê.
Alguém vai lhes barrar o caminho, mas quando, quem,
em quantas formas e com que intenções.
Se tiver escolha,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida."
(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)
Em certo país sob o sol
e algumas nuvens.
Deixam para trás certo tudo o que é seu,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos nos quais agora se fita o fogo.
Trazem às costas trouxas e potes
quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia.
No silêncio alguém cai de exaustão,
na algazarra alguém rouba de alguém o pão
o filho morto de alguém é sacudido.
À sua frente uma estrada sempre errada,
uma ponte, mas não a de que precisam,
sobre um rio curiosamente rosado.
Ao redor uns disparos, ora mais perto, ora mais longe,
no alto um avião meio rodopiante.
Viria a calhar certa invisibilidade,
uma parda rochosidade
ou melhor ainda a inexistência
por um tempo breve ou mesmo longo.
Algo ainda vai acontecer, mas onde e o quê.
Alguém vai lhes barrar o caminho, mas quando, quem,
em quantas formas e com que intenções.
Se tiver escolha,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida."
(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)
terça-feira, 28 de outubro de 2014
Cotação do dia
O médico lhe disse que tudo estava bem, que só lhe faltava um pouquinho mais de vontade de viver. E um gato.
Fora do expediente
À noite, quando ninguém o fiscaliza, o espantalho come maçãs e vai beber água no riacho.
A dona
A menininha recolhe a folha do chão e dá à mãe. A mãe diz que a folha é da árvore. "Quer, árvore, quer?", a menina então oferece.
Ardil
É um bem-te-vi que, expulso e ignorado pelo grupo, chama os outros e ele mesmo responde, falseando o gorjeio.
Onde se fala de combates e derrotas (versão final)
Não temos nada a fazer.
Lutamos muito, perdemos,
Vivemos muito, sofremos,
Nos resta apenas morrer.
Nos contentamos em ter
Se não o que pretendemos,
Se não o que merecemos,
O que pudemos colher.
É pouca coisa, talvez,
Para quem fez o que fez
Pensando em tudo ganhar.
Mas está ditada a sorte,
Lutar não adianta. A morte
Logo virá nos chamar.
Lutamos muito, perdemos,
Vivemos muito, sofremos,
Nos resta apenas morrer.
Nos contentamos em ter
Se não o que pretendemos,
Se não o que merecemos,
O que pudemos colher.
É pouca coisa, talvez,
Para quem fez o que fez
Pensando em tudo ganhar.
Mas está ditada a sorte,
Lutar não adianta. A morte
Logo virá nos chamar.
Promessa
Morderia tua blusa e mastigaria, até esfarinhá-los, esses malditos botões que se obstinam em me privar do calor do teu colo.
Norma
Que nós saibamos morrer,
Que alívio não supliquemos,
E nunca venha a saber
O ingrato amor que morremos.
Que alívio não supliquemos,
E nunca venha a saber
O ingrato amor que morremos.
"Primeira foto de Hitler", de Wislawa Szymborska
"E quem é essa gracinha de tiptop?
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe;
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão essas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.
Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos."
(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe;
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão essas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.
Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos."
(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
Aniversário
Não te mandarei flores, desta vez. Flores não miam, não se espreguiçam no colo, não pedem afagos.
Fernanda Lima (2ª edição)
Fernanda Lima é magia,
O poema da exatidão,
Os números da escansão
E a alma da geometria.
O poema da exatidão,
Os números da escansão
E a alma da geometria.
Dever
De todos, o mais atroz,
O que mais nos suplicia,
Passo a passo, noite e dia,
É o dever de sermos nós.
O que mais nos suplicia,
Passo a passo, noite e dia,
É o dever de sermos nós.
Pauta
Escrever bem pouco, menos,
Não falar mais da tristeza,
Cantar o amor, a beleza
E outros assuntos amenos.
Não falar mais da tristeza,
Cantar o amor, a beleza
E outros assuntos amenos.
Prudência
Ninguém que tenha juízo
E saiba a vida viver,
Deve com o amor se meter
Se não for mesmo preciso.
E saiba a vida viver,
Deve com o amor se meter
Se não for mesmo preciso.
Que seja então adeus (versão final)
Se já não te anima a chama,
Aquela que à vida dá
O sentido que nela há
E identifica quem ama.
Se a ti já não te comovem
Aquelas tardes douradas,
Aquelas juras juradas
Que a mim até hoje me movem.
Se este amor que me enternece
Ao teu juízo parece
Ter chegado já ao fim,
Se já não lembras de mim
Nem estou nos sonhos teus,
Que seja isto, então: adeus.
Aquela que à vida dá
O sentido que nela há
E identifica quem ama.
Se a ti já não te comovem
Aquelas tardes douradas,
Aquelas juras juradas
Que a mim até hoje me movem.
Se este amor que me enternece
Ao teu juízo parece
Ter chegado já ao fim,
Se já não lembras de mim
Nem estou nos sonhos teus,
Que seja isto, então: adeus.
Coautora
De ti sou um devedor.
Com o amor que não me deste
E com a dor que me impuseste
Tu me tornaste escritor.
Com o amor que não me deste
E com a dor que me impuseste
Tu me tornaste escritor.
Estoque
Que o blog sobreviva, se puder, dos velhos frutos. Os novos, se nascerem, serão murchos e mesquinhos.
27 de outubro
O último carro de som sumiu na esquina. Talvez a poesia possa murmurar alguma coisa, agora.
Certeiro
A chuva desviou seus pingos, para poupar-te, mas um deles, atrevido e amoroso, caiu em tua testa e, descendo pelo nariz, beijou teu batom escarlate.
Soneto da tristeza circense (versão final)
Escrever foi a sina que me coube
E crendo nessa sina me empenhei
Como pela coroa luta um rei,
Entretanto escrever eu nunca soube.
Derrotado, infeliz, amargurado,
Vencido pela própria incompetência,
Tenho afinal agora a consciência
De que escrever jamais foi o meu fado.
Se fosse, o amor jamais escarneceria
De meus versos, de minha poesia,
Não os submeteria a humilhação.
Se fosse, o amor acaso chamaria
Este texto, que eu chamo de elegia,
De farsa ou de comédia-pastelão?
E crendo nessa sina me empenhei
Como pela coroa luta um rei,
Entretanto escrever eu nunca soube.
Derrotado, infeliz, amargurado,
Vencido pela própria incompetência,
Tenho afinal agora a consciência
De que escrever jamais foi o meu fado.
Se fosse, o amor jamais escarneceria
De meus versos, de minha poesia,
Não os submeteria a humilhação.
Se fosse, o amor acaso chamaria
Este texto, que eu chamo de elegia,
De farsa ou de comédia-pastelão?
Fernanda Lima
Fernanda Lima deveria ser nomeada ministra das segundas-feiras, para enfim redimi-las.
Fonte
Eu te beberia inteiro, minha fonte, até que em minha garganta a tua água salina começasse a emitir grugrulejos, como se nela murmurasse o mar.
Me diz
Em ti, coração de pedra,
Alheio à dor e à tristeza,
Algum sentimento medra,
Além da crua aspereza?
Alheio à dor e à tristeza,
Algum sentimento medra,
Além da crua aspereza?
Peça
A ele coube o papel de morrer de amor, enquanto os outros morrem estrangulados pela luxúria que os aperta como uma sucuri no cio.
Desdém
No tempo em que a vida sorria para nós, éramos jovens e orgulhosos demais para lhe dar atenção.
Um trecho de Katherine Mansfield
"Não ouso trabalhar nada mais esta noite. Aqui, eu tenho uma terrível insônia e sofro de terrores noturnos. Foi por isso que pedi um outro Dickens; se leio Dickens na cama, ele distrai o meu espírito. Meu trabalho me excita de tal forma que à noite me sinto quase insana e durante todo o dia trabalho quase sem interrupção. Uma grande parte já está copiada e endereçada a você, para o caso de me acontecer algum infortúnio. Coragem! Há um grande pássaro negro voando sobre mim, e eu tenho tanto medo de que ele pouse, fico tão aterrorizada. Não sei exatamente que espécie de pássaro é ele."
(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicação da Editora Revan.)
(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicação da Editora Revan.)
domingo, 26 de outubro de 2014
Sabedoria
Saiu à janela e gritou amor, como se depois de sete décadas houvesse afinal descoberto a essência a a razão de viver.
Eleição (2)
Bom seria um domingo em que tropeçássemos em impressos nos quais houvesse, só, a soberana face do amor.
Um dia
Um dia irei gritar teu nome aí com tanto escândalo e impudicícia que só te restará açular tuas cachorras contra mim. Reconhecendo-me, elas me lamberão o rosto antes de morder-me e devorar-me.
www.rubem.wordpress.com
Hoje, uma situação familiar. Um avô, seu neto, uma aventura no quintal. No início da história um gato, que é sempre a melhor maneira de começar um relato (ou terminá-lo). Bom domingo.
Bom dia
Bom dia para os sobreviventes da noite, para os supliciados do amor e de suas lembranças, para os que veem no sol uma trégua para o sofrimento. Boa noite para os que regaram a madrugada com suas lágrimas. Se eu fosse escritor, teria composto um poema, ou ao menos alguns versos que pudessem talvez confortar, com a minha desgraça, desgraças alheias. Tenho para dar a vocês, companheiros de infortúnio amoroso, um silêncio que já anuncia, sem palavras, o silêncio final. Que eu esteja sofrendo as derradeiras dores, e que a vocês seja dado ainda um tempo para que o amor, castigando-os, os faça receber na carne e na alma aquele martírio cheio de venturas que só o amor pode propiciar.
Cotação da madrugada (2)
Fiz tanto estardalhaço aqui, esparramei tanta espuma, espalhei pétalas, falei de amor como se de amor entendesse. Foram quatro anos e meio. Esse foi o tempo que durou meu ímpeto, essa a eternidade que cantei em meus desvarios. Eu me iludi, eu os iludi. Sou apenas uma pessoa reles, abjeta, desprezível. Desculpem-me ao menos, se não puderem perdoar-me.
Cotação da madrugada
Blog febril, morituro. Autor febril, morituro. Tudo assim, banal. Não tenho mais forças para a poesia, para o drama, para a corda libertária. Deus, que fim!
sábado, 25 de outubro de 2014
Personagem
Nenhuma sala, por mais requintada que seja a decoração, está completa se nela faltar um sofá cheio de pelos de gato.
Fernanda Lima
Para enumerar as metáforas de beleza que cabem a Fernanda Lima, uma centena precisará representar mais do que cem, e a casa do milhar haverá de ser um esplendoroso palácio.
Pós-banho
Escrever sobre ti me provoca um êxtase igual ao que sentia o escravo favorito da rainha Krystal quando era chamado para enxugar com os lábios cada um dos dedos do seu pé.
Hierarquia
Depois dos beijos e de tudo mais, ela jamais se esquecia de me dizer obrigado, para que eu não ousasse ver naquilo algo mais que um trabalho prestado.
Um trecho de Herta Müller
"Eu ia para o quintal penteada e vestida e me trancava na privada, abaixava a calcinha e me sentava na fedida casinha chorando alto para mim mesma. Chorava lá para ninguém me apanhar e, quando ouvia passos lá fora, imediatamente me calava e fazia barulhos com o papel higiênico, pois sabia que nesta casa não se podia chorar sem motivo. Mamãe me batia às vezes quando eu chorava, e dizia, bem, agora você finalmente tem um motivo."
(Do livro Depressões, tradução de Ingrid Ani Assmann, publicado pela Editora Globo.)
(Do livro Depressões, tradução de Ingrid Ani Assmann, publicado pela Editora Globo.)
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
Cassino
Uma frase de ouro às vezes não passa de sorte de principiante. Trinta, quarenta anos depois, o escritor estará ainda procurando outra.
Tetas
Me agradaria mamar em ti gulosamente, como se eu fosse aquele teu filho estragado pela criada viciosa e pelos livrinhos de sacanagem.
Lucro (para a Pris)
Eu te agradeço as horas de aflição,
Cada minuto agudo de agonia,
Cada dor, cada mortificação
Que me reconciliaram com a poesia.
Cada minuto agudo de agonia,
Cada dor, cada mortificação
Que me reconciliaram com a poesia.
Passa-se o ponto
Amanhã ou depois, o blog será uma lembrança para poucos. Tanto clamor passou por ele, tanta dor, tantos anseios, e, no entanto, quem puser os olhos sobre ele verá uma casa comum, onde será lícito supor que tenha vivido um pachorrento professor de geografia ou um corretor de seguros. Não, não serão lágrimas as manchas nas paredes. Serão a umidade e o descaso do proprietário, de quem se dirá vagamente que morreu ou foi morar em Piracicaba.
Um poema de Emily Dickinson
"Do Drama, a mais viva expressão é o dia comum,
Que nasce e morre à nossa vista;
Diversamente, a Tragédia,
Ao ser recitada, se dissipa
E é melhor encenada
Quando o público se dispersa
E a bilheteria é fechada.
"Hamlet" seria Hamlet,
Inda que Shakespeare não o criasse,
E "Romeu", embora sem mais lembranças
De sua Julieta,
Seria perpetuamente encenado
No coração humano -
Único teatro que, sabidamente,
O proprietário não consegue fechar."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
Que nasce e morre à nossa vista;
Diversamente, a Tragédia,
Ao ser recitada, se dissipa
E é melhor encenada
Quando o público se dispersa
E a bilheteria é fechada.
"Hamlet" seria Hamlet,
Inda que Shakespeare não o criasse,
E "Romeu", embora sem mais lembranças
De sua Julieta,
Seria perpetuamente encenado
No coração humano -
Único teatro que, sabidamente,
O proprietário não consegue fechar."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
23 de outubro
Adianta abrir o jornal?
Procuro Pessoa em vão,
Borges, Machado, Nerval.
Maldita seja a eleição.
Procuro Pessoa em vão,
Borges, Machado, Nerval.
Maldita seja a eleição.
Querer, querer, querer
Queremos, queremos, queremos. Pequeno é o mundo para tanto querer. Quando essa obsessão se torna maior do que nós, astuciosamente nós a chamamos de amor ou ideal.
Livro
Folheei hoje um livro que me deste, e as páginas, estranhando a aspereza de minhas mãos, perguntaram onde estavam as tuas mãos. Respondi que no peito de um marinheiro.
Último raio de sol
O amor é uma garota desenganada que pede para ir ao jardim do hospital para ser tocada pela última vez por um raio de sol.
Beleza
Beleza, é em teu louvor
Que os astros brilham de espanto,
Que as rosas nascem do encanto
E os homens morrem de amor.
Que os astros brilham de espanto,
Que as rosas nascem do encanto
E os homens morrem de amor.
Cócega
O pior que pode acontecer a um morto é não poder dar um tabefe na mosca que insiste em pesquisar qual é a sua narina direita e qual é a esquerda.
Cotação da noite
Se no último suspiro disseres o nome dela, talvez só fique um fio de saliva no travesseiro do hospital.
Minha vida coube em tua bolsinha
Se eu do amor fosse ainda crente
Se dele não desconfiasse,
Se eu fosse tolo, inocente,
Talvez o amor compensasse.
Talvez, se nele eu confiasse
Como confiei ternamente,
Eu outra vez me enganasse,
Talvez pior que antigamente.
Mas uma coisa não mais
Eu poderia jamais
Dar a ti como ontem dei:
A vida, que tu pegaste,
Na tua bolsa guardaste,
E eu nunca recuperei.
Resumo
Tanta trigonometria,
Tanta hipotenusa, abscissa.
No fim, a dor, a agonia,
A morte, o velório, a missa.
Tanta hipotenusa, abscissa.
No fim, a dor, a agonia,
A morte, o velório, a missa.
Inveja
Quando penso que decerto há homens muito mais tristes do que eu, sinto ser essa uma de minhas mais deploráveis inferioridades.
Prodigalidade
É generoso o amor. Sempre nos dá mais corda do que aquela de que precisamos para nos enforcar.
Exemplo
Por que Deus não nos fez pequenos como as formigas? Não conheço uma formiga barriguda, jactanciosa, literata, cineasta. Nenhuma que ambicione o Oscar ou o Nobel.
Um trecho de Luiz Carlos Cardoso
"Fracassado, sim. Mas acho que perdedor expressa melhor essa condição. Ou seja, é o especialista em perder, devido a uma falha trágica em si. Falha trágica também não, pois essa impõe um valor de rei Édipo que é exagerado atribuir ao perdedor. Enfim, sempre perde, o perdedor. E de tal modo traz incutida a sina de perder que se especializa nos empreendimentos cujo fracasso seja mais inevitável e rápido. Seu sentido se apura na intenção de farejar a perda possível, persegui-la e alcançá-la."
(Do romance Crime improvável, publicado pela Ficções.)
(Do romance Crime improvável, publicado pela Ficções.)
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Aniversário
Obrigado pelas setenta e seis flores que não me mandaste. Meu gato não olhará para elas com ciúme e terá lugar sobre a mesa para se escarrapachar, se quiser.
BO
No dia em que o desmascararam, ele já havia convencido mais uma incauta de que era a reencarnação de Castro Alves.
Segundo turno
Para onde foi a poesia?
Só escuto rataplãs
Que prometem, noite e dia,
Mentirosos amanhãs.
Só escuto rataplãs
Que prometem, noite e dia,
Mentirosos amanhãs.
Perfil
É uma indesculpável rata,
Não pega bem, soa fraco,
Pegar um cão vira-lata
E o chamar de fura-saco.
Não pega bem, soa fraco,
Pegar um cão vira-lata
E o chamar de fura-saco.
Soneto de como se acende o fogo do amor e do sexo (versão final)
Se bem que, ao se resumir,
Mais chances haja de errar,
Mulheres gostam de ouvir
E aos homens cabe falar.
A alguns agrada mentir,
No louvor exagerar,
Maior afeto fingir,
Paixão maior simular.
Vale tudo nesse jogo,
Vale até mesmo a verdade.
Importa apenas que o fogo,
Seja do amor ou do sexo,
Arda com intensidade
A um simples beijo ou amplexo.
Mais chances haja de errar,
Mulheres gostam de ouvir
E aos homens cabe falar.
A alguns agrada mentir,
No louvor exagerar,
Maior afeto fingir,
Paixão maior simular.
Vale tudo nesse jogo,
Vale até mesmo a verdade.
Importa apenas que o fogo,
Seja do amor ou do sexo,
Arda com intensidade
A um simples beijo ou amplexo.
"A ponte", de Mario Benedetti
"Para cruzá-la ou não cruzá-la
eis a ponte
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país
trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar
venho com as faces da insônia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra
nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco
eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país."
(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)
eis a ponte
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país
trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar
venho com as faces da insônia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra
nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco
eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país."
(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)
terça-feira, 21 de outubro de 2014
Tempo
Por mais um desses enganos
Que falseiam a verdade,
O amor durou só dois anos,
Em vez de uma eternidade.
Que falseiam a verdade,
O amor durou só dois anos,
Em vez de uma eternidade.
Soneto da integridade do ser (versão final)
Nós fomos tão aplicados,
Nós nos esforçamos tanto,
Quisemos ser, e no entanto
De ser já estamos cansados.
Fomos tão compenetrados
(Nem mesmo Deus sabe quanto)
Que hoje o nosso riso e o pranto
Repetem ritos passados.
Buscamos nossa unidade,
Nossa personalidade,
Ousamos ser novo ser.
Podendo ser tantos, somos
O que ontem e anteontem fomos,
E assim sempre, até morrer.
Nós nos esforçamos tanto,
Quisemos ser, e no entanto
De ser já estamos cansados.
Fomos tão compenetrados
(Nem mesmo Deus sabe quanto)
Que hoje o nosso riso e o pranto
Repetem ritos passados.
Buscamos nossa unidade,
Nossa personalidade,
Ousamos ser novo ser.
Podendo ser tantos, somos
O que ontem e anteontem fomos,
E assim sempre, até morrer.
Pedinte
O artista é um cachorro inseguro que suplica constantes afagos. Vende uma obra-prima por um sorriso e, já no instante seguinte, acha que lesou o comprador.
Um trecho de Choderlos de Laclos
"À espera da felicidade de te rever, entrego-me, minha doce amiga, ao prazer de te escrever. E é ocupando-me de ti que empresto algum encanto ao pesar da distância. Retraçar meus sentimentos, recordar-me os teus, é para meu coração verdadeiro gozo; e é com este que mesmo o tempo das privações oferece mil bens preciosos a meu amor."
(De As ligações perigosas, tradução de Sérgio Milliet, publicação do Círculo do Livro.)
(De As ligações perigosas, tradução de Sérgio Milliet, publicação do Círculo do Livro.)
Acalanto
Ah, durmamos, durmamos, nesta abençoada hora da noite em que as batalhas eleitorais arrefecem.
Alma
A gaiola escancarar,
Mirar o céu, as estrelas,
Querer tocá-las, vê-las,
Ganhar a amplidão, voar.
Mirar o céu, as estrelas,
Querer tocá-las, vê-las,
Ganhar a amplidão, voar.
Fernanda Lima
Num possível dicionário de metáforas, arco-íris seria um dos sinônimos de Fernanda Lima.
Questão de higiene
Quando o amor põe as luvas, não é para não deixar suas impressões digitais, mas para não sujar seus dedos em nossa garganta.
Mordomo
A partir do momento em que numa trama se introduz o amor, todos os outros suspeitos perdem um pouco de sua importância.
Soneto da paz que se procura merecer (versão final)
Agora os dias inteiros
São nossos. Nada nos chama,
Ninguém mais nos quer nem ama,
Nós fazemos os roteiros.
O amor já não nos reclama
Aqueles atos useiros
Nem os tormentos vezeiros,
Extinta está sua flama.
Agora que estamos sós,
Cuidemos enfim de nós,
Busquemos a nossa paz.
Possamos hoje ser só
Aquele pouco de pó
Sob a inscrição: aqui jaz.
São nossos. Nada nos chama,
Ninguém mais nos quer nem ama,
Nós fazemos os roteiros.
O amor já não nos reclama
Aqueles atos useiros
Nem os tormentos vezeiros,
Extinta está sua flama.
Agora que estamos sós,
Cuidemos enfim de nós,
Busquemos a nossa paz.
Possamos hoje ser só
Aquele pouco de pó
Sob a inscrição: aqui jaz.
"Subúrbia", de Mario Benedetti
"No centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
há uma fonte luminosa um chafariz
que levanta convicções coloridas
e é lindo contemplá-las e segui-las
no centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
há uma dor que palmo a palmo
vai ganhando seu tempo
e é útil aprender sua marca firme
no centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
a morte fica longe
a calma tem cheiro de chuva
a chuva tem cheiro de terra
isto me contaram porque eu
nunca estou no centro da minha vida."
(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)
no núcleo capital da minha vida
há uma fonte luminosa um chafariz
que levanta convicções coloridas
e é lindo contemplá-las e segui-las
no centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
há uma dor que palmo a palmo
vai ganhando seu tempo
e é útil aprender sua marca firme
no centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
a morte fica longe
a calma tem cheiro de chuva
a chuva tem cheiro de terra
isto me contaram porque eu
nunca estou no centro da minha vida."
(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
Birras
De quem diz seminal, mulherio, patota, visceral, crucial. E de quem não diz amor quando quer dizer.
Soneto dos dois vitais aprendizados (versão final)
Viver não faz meu estilo.
Não tenho preparo, jeito,
Em tudo vejo defeito,
Ou nisto, ou nisso, ou naquilo.
Disseram que era tranquilo,
Que eu logo estaria afeito,
Que para viver fui feito,
E mais isso e mais aquilo.
Eu só sei que envelheci
E a viver não aprendi,
Nem sei se vou aprender.
O que me aflige é pensar
Se saberei me portar
Quando me couber morrer.
Não tenho preparo, jeito,
Em tudo vejo defeito,
Ou nisto, ou nisso, ou naquilo.
Disseram que era tranquilo,
Que eu logo estaria afeito,
Que para viver fui feito,
E mais isso e mais aquilo.
Eu só sei que envelheci
E a viver não aprendi,
Nem sei se vou aprender.
O que me aflige é pensar
Se saberei me portar
Quando me couber morrer.
Soneto de quantos podem ocupar uma cama
A ti eu não mentirei.
Ao saber que até o Loxas
Te andou metido nas coxas,
Admito que me queimei.
E quando me confirmaram
Que os dedos de Ígor Catunda
Dedilharam tua bunda,
Meus nervos se alucinaram.
Confesso que isso me doeu:
Por que todos menos eu?
Mas, depois da frustração,
Aceito já o fracasso
E a pergunta que me faço
É outra agora: por que não?
Ao saber que até o Loxas
Te andou metido nas coxas,
Admito que me queimei.
E quando me confirmaram
Que os dedos de Ígor Catunda
Dedilharam tua bunda,
Meus nervos se alucinaram.
Confesso que isso me doeu:
Por que todos menos eu?
Mas, depois da frustração,
Aceito já o fracasso
E a pergunta que me faço
É outra agora: por que não?
Dublagem
Não era a tua voz, amor, mas como a brisa a imitou bem esta noite, sussurrando na veneziana.
Logotipo
Cinco dedos torcendo o pescoço de uma rosa - essa é a imagem que tenho hoje do amor e de sua mão impiedosa.
Terceirizando
Para poupar o amor, eu mesmo teci a teia na qual ele me enredou. Se eu o tivesse, lhe daria também o ferrão com que ternamente me matou.
Relendo Pessoa
Não sou um animal sadio
não tenho cio
não fornico
não procrio
Tenho uma vida discreta
e se sou louco
como queria o poeta
sou mas só um pouco.
não tenho cio
não fornico
não procrio
Tenho uma vida discreta
e se sou louco
como queria o poeta
sou mas só um pouco.
"Transgressões", de Mario Benedetti
"Todo mandato é minucioso
e cruel
eu gosto
das frugais transgressões
por exemplo inventar o bom
amor
aprender
nos corpos e em seu corpo
ouvir a noite e não dizer
amém
traçar
cada um o mapa de sua audácia
mesmo que nos esqueçamos
de esquecer
é certo
que a recordação nos esquece
obedecer cegamente deixa
cego
crescemos
somente na ousadia
só quando transgrido alguma
ordem
o futuro
se torna respirável
todo mandato é minucioso
e cruel
eu gosto
das frugais transgressões."
(Do livro Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicado pela Record.)
e cruel
eu gosto
das frugais transgressões
por exemplo inventar o bom
amor
aprender
nos corpos e em seu corpo
ouvir a noite e não dizer
amém
traçar
cada um o mapa de sua audácia
mesmo que nos esqueçamos
de esquecer
é certo
que a recordação nos esquece
obedecer cegamente deixa
cego
crescemos
somente na ousadia
só quando transgrido alguma
ordem
o futuro
se torna respirável
todo mandato é minucioso
e cruel
eu gosto
das frugais transgressões."
(Do livro Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicado pela Record.)
domingo, 19 de outubro de 2014
Caçamba
Se o amor leva jeito de ser um desses cujas marcas você não poderá mostrar daqui a dois anos, melhor deixá-lo já. Não se exigem sonetos nem quadrinhas laudatórias, mas que haja ao menos um papel rabiscado, mesmo que com erro de português: ti amo.
Ouropéis
Amor é uma dessas baboseiras às quais damos tanto valor que acabam se tornando coisas sérias
Soneto da mútua compaixão (versão final)
Talvez um dia saibamos
O que de fato ocorreu
Com o afeto que alimentamos
E tão depressa morreu.
Jamais nós nos explicamos
Como foi que aconteceu,
Onde foi que nós erramos,
Se a culpada és tu ou eu.
Aquele amor declarado
E tantas vezes jurado
Terá sido só ficção?
Se foi, é hora de assumir
E de nunca mais mentir.
Tenhamo-nos compaixão.
O que de fato ocorreu
Com o afeto que alimentamos
E tão depressa morreu.
Jamais nós nos explicamos
Como foi que aconteceu,
Onde foi que nós erramos,
Se a culpada és tu ou eu.
Aquele amor declarado
E tantas vezes jurado
Terá sido só ficção?
Se foi, é hora de assumir
E de nunca mais mentir.
Tenhamo-nos compaixão.
Cotação do dia
Uma lacuna, uma angústia, uma perda. Continuo onde há quatro anos me disseram que ela ia passar. Já se tornou um gato velho o gatinho que lhe trouxe de presente.
O Altair
Pena eu não poder, quando ouço os passarinhos lá fora, distinguir qual deles canta. Como gostaria de dizer: olha o Fagundes, olha o Lino, olha o Nico. Talvez seja melhor assim: não saber que não canta mais o Altair, porque morreu.
Soneto do amor esmoler (versão final)
É triste o tempo em que o amor
Esquece a origem divina,
A mão estende na esquina
E esmola sem pundonor.
Pede por Deus, por favor,
À mulher feita, à menina,
Uma porção pequenina
De simpatia ou calor.
E a quem lhe nega atenção
Encara com brusquidão
E ameaça as chagas mostrar -
Pretexto que ele sempre usa
E do qual até abusa
No ofício de pedinchar.
Esquece a origem divina,
A mão estende na esquina
E esmola sem pundonor.
Pede por Deus, por favor,
À mulher feita, à menina,
Uma porção pequenina
De simpatia ou calor.
E a quem lhe nega atenção
Encara com brusquidão
E ameaça as chagas mostrar -
Pretexto que ele sempre usa
E do qual até abusa
No ofício de pedinchar.
Soneto do dia depois do qual nenhum outro haverá (versão final)
No dia que nos tocar,
Saibamos agradecer
O que pudemos viver
E de nada nos queixar.
Na hora de os olhos fechar,
Possamos enaltecer
O que eles puderam ver:
O céu, os barcos, o mar.
Se alguém, contudo, trouxer
Em um recado bonito
O adeus daquela mulher
Que tanto amamos outrora,
Cuspamos nesse maldito
E o botemos para fora.
Saibamos agradecer
O que pudemos viver
E de nada nos queixar.
Na hora de os olhos fechar,
Possamos enaltecer
O que eles puderam ver:
O céu, os barcos, o mar.
Se alguém, contudo, trouxer
Em um recado bonito
O adeus daquela mulher
Que tanto amamos outrora,
Cuspamos nesse maldito
E o botemos para fora.
Empáfia
O best-seller é o déspota da literatura. Empurra os outros livros na estante, faz chacota deles e pensa que cada Monsieur M ou Mademoiselle N de uma página qualquer, das suas seiscentas, são mais importantes que Ana Karênina ou Madame Bovary.
Sombra
Em cada ficção, a morte deve estar sempre presente, como está na vida. O leitor precisa senti-la em cada passo, ainda que seja um momento em que o personagem A vai simplesmente atravessar a rua.
Gole
Tomamos um gole. Soubemos que maior ventura jamais seria provada pelos nossos lábios. Conservamos o gosto enquanto pudemos. Ficamos ali, como se, ficando, pudéssemos travar o tempo. Passou-se uma hora, duas. Chegou a noite, densa, mas não nos importava mais olhar para o rio. Sabíamos que era outro, já. Mesmo assim, bebemos outro gole. E foi como nos disseram que seria. Era água, só água.
Pechisbeques
O pior tipo de poeta é aquele que adorna a beleza com tantas bijuterias que a transforma numa caipirona velha vestida como puta para um jantar beneficente.
Miragem
Lábios esquivos, quimera, doçura imerecida, inalcançável tesouro, como parecia sempre impossível cada beijo antes, e inacreditável depois.
"Síndrome", de Mario Benedetti
"Ainda tenho quase todos meus dentes
quase todos meus cabelos e pouquíssimos brancos
posso fazer e desfazer o amor
subir uma escada de dois em dois
e correr quarenta metros atrás do ônibus
ou seja que não deveria sentir-me velho
mas o grave problema é que antes
não reparava nesses detalhes."
(Do livro Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)
quase todos meus cabelos e pouquíssimos brancos
posso fazer e desfazer o amor
subir uma escada de dois em dois
e correr quarenta metros atrás do ônibus
ou seja que não deveria sentir-me velho
mas o grave problema é que antes
não reparava nesses detalhes."
(Do livro Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)
sábado, 18 de outubro de 2014
Cotação da noite (2)
Seguir na tarefa de editar o amor, mantendo só as boas passagens e melhorando-as. Deixá-lo ridículo, infantil, risível, como ele foi tantas vezes e deveria ter continuado a ser.
Cotação da noite
Novamente pegar a história do amor e expurgá-la. Cada vez ela fica melhor, como uma dessas novelas adolescentes. Foi assim, é, foi assim, tenho certeza, eu digo à minha consciência quando ela se põe a resmungar.
Soneto dos dias em que buscas o amor (versão final)
Que tristes são esses dias
Em que sais buscando o amor
E voltas com o dissabor
De vires com as mãos vazias.
Que tristes as ironias
Que com todo o despudor
Te lançam seja onde for,
Além de outras vilanias.
Até quem por quem sofreste
E por quem quase morreste
Te olha com sumo desdém.
E pensar que é só por ela
Que manténs a vida e aquela
Tênue esperança também.
Em que sais buscando o amor
E voltas com o dissabor
De vires com as mãos vazias.
Que tristes as ironias
Que com todo o despudor
Te lançam seja onde for,
Além de outras vilanias.
Até quem por quem sofreste
E por quem quase morreste
Te olha com sumo desdém.
E pensar que é só por ela
Que manténs a vida e aquela
Tênue esperança também.
Misericórdia
Por um defeito do pintor ou da tinta, o homem com a espingarda, na tela, envelhece. Talvez a lebre se salve.
... se lhe parece
Conforme seja o seu gosto,
Ou o seu modo de ver,
Morrer é um modo suposto
De continuar a viver.
Ou o seu modo de ver,
Morrer é um modo suposto
De continuar a viver.
... queijo queijo
Podes ser puro, ético, honesto. Isso é contigo. Se fores romancista, porém, não contamines teus personagens com essas virtudes. Nada mais insosso que hagiografias disfarçadas.
Babão
O amor é o bobo da aldeia.
Vive de boca aberta,
não para dizer a palavra certa,
mas para lamber a lua cheia.
Vive de boca aberta,
não para dizer a palavra certa,
mas para lamber a lua cheia.
São Paulo, sábado, 9h
Na pracinha, vinte manifestantes olhando feio para o céu e clamando: "Chove, filho da puta!"
Assim
Nós nos encontraríamos e nos sentaríamos a uma mesinha. Sem um beijinho, sem um abraço, sem um oi (as palavras nos cansaram tanto, e já não confiamos em nenhuma...). Teríamos combinado que seriam irrevogavelmente dez minutos. Pediríamos o protocolar cafezinho com pão de queijo. Nos olharíamos finalmente como deveríamos ter nos olhado sempre. Não perguntaríamos nada de nós. Só nos olharíamos, olharíamos. Dez minutos para nos olharmos e guardarmos para sempre nossos rostos no nosso melhor dia. Depois nos iríamos, sem um beijinho, sem um abraço, sem um até mais. Jamais nos veríamos. E eu não precisaria de mais nada para me reconciliar com a vida e com a ideia de que nem tudo que se diz com a voz da paixão é mentira.
Velho
Até os orelhões deram de enganar o poeta velho. Quando ele começa a contá-las, à noite, elas se multiplicam, se dividem, se mesclam, se confundem, e morrem de rir. Como é cruel o riso de uma ovelha.
Como o amor deve ser
O amor tem de ser como um abraço de sucuri: único, fatal. Deve estraçalhar os ossos e fazer saltar fora o coração - e a alma, se houver.
Certos dias
Há dias em que o amor, mais generoso, nos dá quatro ou cinco deliciosas chibatadas a mais, antes de nos soprar as costas.
O amor, aquele cansaço
O amor parece aqueles cursos longos, de anos e anos, em que no final nos negam o diploma. Isso depois de todo o cansaço de tentar conhecer a amada ou o amado, de saber se ele ou ela gosta de verde ou azul, se ama ou se detesta Woody Allen, de lembrar se seu aniversário é em setembro ou agosto. Melhor entrar num bar noturno, com o nome talvez de Copacabana, encontrar uma dançarina chamada Lola, descobrir que mediante um agradinho ela pode depois do show se mostrar melhor a você num motel, incluindo uma tatuagem de L num lugar que você talvez imagine - e ir.
Época
Nessa época, a do amor, você estava aprendendo uma linguagem semelhante à da poesia. Você se esqueceu de tudo. Restaram o caderno e as garatujas.
Ardilosa
A poesia sempre dá um jeito de nos pegar desprevenidos. É infatigável, meticulosa, e usa truques sujos, como fazer surgir à nossa frente, um menino cego diante de um arco-íris.
De cara
O que logo notei em você foram sua boca e seus dentes. Imaginei, já naquele instante, as palavras com que ela me feriria e os sulcos que eles abririam em minha carne.
Quase dez
Dizem que somos uma seita. Não sei. Somos sete, raramente oito ou nove. Acreditamos na beleza e a cultuamos. Alguns nos chamam de poetas.
Em vão
Você se previne, não lê poemas, não compra romances, não vai ver certos filmes. Tudo corre bem até que, numa tarde de primavera, a brisa lhe traz a voz de Charles Aznavour. Pronto, você está perdido.
Soneto dos olhos que fechados ainda veem
Eu fecho os olhos em vão.
Com tantos rogos rogados,
Não me ajudou ainda a mão
A conservá-los fechados.
Quem dera tê-los lacrados,
Imersos na escuridão,
Já que, da vida cansados,
Dela não querem visão.
Quem dera mortos estarem
Para nunca mais olharem
Para o que não devem ver.
Que mortos sempre ficassem
E que nunca mais olhassem
Para os que os fazem morrer.
Com tantos rogos rogados,
Não me ajudou ainda a mão
A conservá-los fechados.
Quem dera tê-los lacrados,
Imersos na escuridão,
Já que, da vida cansados,
Dela não querem visão.
Quem dera mortos estarem
Para nunca mais olharem
Para o que não devem ver.
Que mortos sempre ficassem
E que nunca mais olhassem
Para os que os fazem morrer.
De Martha Medeiros sobre as celebridades
"Celebridade, que poderia ser uma palavra definidora de alguém notável, passou a designar qualquer um. E qualquer um fazendo revelações constrangedoras e vulgares, desfrutando de uma fama meteórica e provocando um deslumbramento patético nos simples mortais. Aquela ali é a Ariadna? É a Geisy? Uma é a transexual que ficou uma semana na casa do Big Brother, a outra foi discriminada por usar minissaia na faculdade, é o currículo profissional delas. Causam o mesmo alvoroço que Demi Moore e Ashton Kutcher, que por sua vez causam o mesmo frisson que o pai do Michael Jackson, que é tão famoso quanto o blogueiro que surgiu ontem no YouTube. Se Lúcifer saísse do inferno para dar uma banda por aqui, teria mesa cativa no Fasano,
Ao perdermos os critérios de quem realmente merece destaque, só o que se destaca é nossa pobreza cultural."
(Do livro Feliz por nada, publicado pela L&PM.)
sexta-feira, 17 de outubro de 2014
Cento e trinta e quatro
O amor é um desses tropeções que a gente quer dar bem lá em cima, no primeiro degrau de uma escada de cento e trinta e quatro.
Isso aí
Estou com você. Se o amor fosse um pouco mais certinho, um pouco menos enrolado e um tantinho mais maneiro, não ia ter graça nenhuma.
Pregos
O amor jamais será um sinônimo de paz e conforto. O amor haverá de ser sempre uma cama de faquir.
Soneto do que deves ao amor defunto
Que não te poupem as dores
E nem a melancolia,
Se o amor passado tu fores
Rememorar algum dia.
Mas não lhe ofereças flores,
Porque ele as rejeitaria,
Há orgulhosos amores,
Mais do que se suporia.
Se tu não te importares
E meu conselho aceitares,
Serei contigo bem franco.
Como o mataste menino,
Nada de preces nem hino.
Dá-lhe só um caixão branco.
E nem a melancolia,
Se o amor passado tu fores
Rememorar algum dia.
Mas não lhe ofereças flores,
Porque ele as rejeitaria,
Há orgulhosos amores,
Mais do que se suporia.
Se tu não te importares
E meu conselho aceitares,
Serei contigo bem franco.
Como o mataste menino,
Nada de preces nem hino.
Dá-lhe só um caixão branco.
Soneto que exalta o choro civilizado
Se nós tivéssemos sido
O que para nós sonhamos,
Qual seria hoje o sentido
Das lágrimas que choramos?
Desde que nos associamos
Temos tão forte investido
E, por mais que nós façamos,
Só perdas temos colhido.
Se tudo fosse propício
Como pareceu no início,
Seria bem diferente.
É assim. Glória ao vencedor
E que chore o perdedor,
Mas chore decentemente.
O que para nós sonhamos,
Qual seria hoje o sentido
Das lágrimas que choramos?
Desde que nos associamos
Temos tão forte investido
E, por mais que nós façamos,
Só perdas temos colhido.
Se tudo fosse propício
Como pareceu no início,
Seria bem diferente.
É assim. Glória ao vencedor
E que chore o perdedor,
Mas chore decentemente.
Um poema de Verlaine para Rimbaud
"Que Anjo duro assim me estorva
entre os ombros, enquanto
eu alço voo ao Paraíso? (...)
Tu, o Ciumento, que me acenaste,
ora, eis-me aqui, eis-me aqui, eu todo!
Rumo a ti rastejo, ainda indigno!
Monta em minhas costas e tripudia!"
(Extraído do livro Rimbaud - A vida dupla de um rebelde, de Edmund White, tradução de Marcos Bagno.)
entre os ombros, enquanto
eu alço voo ao Paraíso? (...)
Tu, o Ciumento, que me acenaste,
ora, eis-me aqui, eis-me aqui, eu todo!
Rumo a ti rastejo, ainda indigno!
Monta em minhas costas e tripudia!"
(Extraído do livro Rimbaud - A vida dupla de um rebelde, de Edmund White, tradução de Marcos Bagno.)
A pergunta
Um dia talvez nos reencontremos. Provavelmente eu não conseguirei falar. Saiba desde já, então, a pergunta que tenho a fazer: por quê?
Cotação do dia (2)
Fechemos os ouvidos aos boatos e os olhos às evidências. Talvez o amor não tenha morrido.
Cotação do dia
Nesta altura do campeonato, morrer deixou de ser uma hipótese e já tem todo o jeito de ser a solução.
Conspiração
Quem ama a poesia só admite essa fraqueza a outro amante da poesia, e quase sempre em voz baixa, no escuro.
Soneto em que se investiga a falência do amor
Depois de tantos ardis,
De tão grandes falcatruas
Tanto minhas quanto tuas,
De tantas manobras vis,
Depois dos golpes que demos
Até o amor arruinar,
É tempo já de explicar
Tudo aquilo que fizemos.
No dia da acareação,
Como nos comportaremos?
Nisso tu pensaste, já?
Imploraremos perdão?
O que ao amor nós diremos?
E o amor, acreditará?
De tão grandes falcatruas
Tanto minhas quanto tuas,
De tantas manobras vis,
Depois dos golpes que demos
Até o amor arruinar,
É tempo já de explicar
Tudo aquilo que fizemos.
No dia da acareação,
Como nos comportaremos?
Nisso tu pensaste, já?
Imploraremos perdão?
O que ao amor nós diremos?
E o amor, acreditará?
"Amor de tarde", de Mario Benedetti
"É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer 'e aí?' e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono."
(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Editora Record.)
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer 'e aí?' e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono."
(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Editora Record.)
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
O único
O amor impossível é o único. Fora disso, o que há é a carne e suas bem-sucedidas ou malogradas tentativas de entretenimento.
Cautela
Nunca diz às mulheres que a habilidade nos seus dedos, sempre enaltecida por elas, vem de contar notas no banco. Acha que não seria romântico.
Rosa dos ventos
Nos lábios dos marinheiros estavam teu nome e vestígios da ávida passagem deles pela tua oferecida tatuagem.
Soneto do tempo findo
Não há mais tempo nenhum
Para um soneto supino
De feitio alexandrino
E nem para um mais comum.
Devendo ficarei o hino
De concepção incomum
Que prometi a ti, num
Dia longe, dezembrino.
Sinto muito, minha amiga,
Mas essa dívida antiga
Não a poderei pagar.
Morrendo em lenta agonia,
Não mais que um luxo seria
Eu me pôr a versejar.
Para um soneto supino
De feitio alexandrino
E nem para um mais comum.
Devendo ficarei o hino
De concepção incomum
Que prometi a ti, num
Dia longe, dezembrino.
Sinto muito, minha amiga,
Mas essa dívida antiga
Não a poderei pagar.
Morrendo em lenta agonia,
Não mais que um luxo seria
Eu me pôr a versejar.
Xícara
Engatadas por artimanhas amorosas, as duas moscas se descuidam do rumo e, antes de morrer na xícara fumegante, zumbem ainda num êxtase de sexo e chocolate açucarado.
Palma
Minha mão retém na palma memórias imaginadas de ti e, nos dias de aflição, as imprime naquela parte do meu corpo que jamais te tocou.
Modo de ver
Como punição supina
O Amor os fez beber urina.
Alguns acharam um pouco humilhante,
Alguns acharam que não.
O Amor os fez beber urina.
Alguns acharam um pouco humilhante,
Alguns acharam que não.
Cotação da tarde
Logo os poemas de amor começam a feder na gaveta. Rosas falsas, frutas podres, vermes mexendo-se preguiçosamente entre as silabas.
Soneto que louva o poder do amor
A um homem nada mais cabe
Senão fazer o que deve
E o que a razão lhe prescreve:
Não o que quer; o que sabe.
Não deve ser presunçoso
E achar que será possível,
Mesmo que seja impossível,
Sair sempre vitorioso.
Mais forte que o homem é o amor,
Capaz de tudo o que for.
Ele, sim, pode fazer
Um pobre sentir-se nobre,
Um rico sentir-se pobre,
Um morto querer viver.
Senão fazer o que deve
E o que a razão lhe prescreve:
Não o que quer; o que sabe.
Não deve ser presunçoso
E achar que será possível,
Mesmo que seja impossível,
Sair sempre vitorioso.
Mais forte que o homem é o amor,
Capaz de tudo o que for.
Ele, sim, pode fazer
Um pobre sentir-se nobre,
Um rico sentir-se pobre,
Um morto querer viver.
Soneto das lembranças levemente melhoradas
Vivemos para lembrar,
Tudo é para nós passado.
O novo não tem lugar,
O futuro está vedado.
Nos resta agora ficar
Em nosso sofá amado
E as recordações puxar,
Entre dormindo e acordado.
Às vezes, nesse exercício,
Exageramos no vício
De tudo nosso exaltar.
É uma forma interessante
De tornar menos maçante
O jogo de recordar.
Tudo é para nós passado.
O novo não tem lugar,
O futuro está vedado.
Nos resta agora ficar
Em nosso sofá amado
E as recordações puxar,
Entre dormindo e acordado.
Às vezes, nesse exercício,
Exageramos no vício
De tudo nosso exaltar.
É uma forma interessante
De tornar menos maçante
O jogo de recordar.
Dentro de nós
Dentro de nós há uma corda, uma nota, um som que só o violino tocado pelo arco certo despertará.
Todas
No dia em que você abrir todas as janelas para a poesia, descobrirá quantas palavras tem o vento para lhe dizer.
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
Meia-noite
Ainda às vezes o sexo, lobo estropiado, se põe a uivar como na juventude e enche a cama de suor, insônia e aflição.
Termômetro
Parece um menino quando se põe a dizer nomes de mulher e, a cada um deles, espera a cotação da braguilha.
Juntos e ofegantes
Apostar corrida com o amor, como se fôssemos dois cãezinhos brincalhões cujo objetivo não fosse vencer, mas chegar juntos e ofegantes.
Gatinho
Eu era assim. Se ela se queixasse de um respingo de molho na blusa, lá estava eu a lambê-la, até apagá-lo. Gatinho, ela me chamava.
Ainda não
Agora, assim que o sentam no sofá ele dorme. A respiração já está inaudível e às vezes alguém vem vê-lo, esperançoso. Quem sabe. Mas não, ele ainda vive.
Mosca
Deixam a tevê ligada a tarde toda, só para ele. Mas o que ele gosta de observar são os voos da mosca pela sala. De vez em quando ela pousa no seu colo, como um gato interesseiro. Não sabe quantos dias uma mosca vive. Gostaria que essa fosse a mesma que ele segue encantado há uma semana. Afeiçoou-se a ela.
Números
A avó anda se atrapalhando nas contas. Hoje finalmente achou a caixa em que guarda as estrelas que vem colecionando desde a primeira, que apanhou quando tinha seis anos. Ela chegara a suspeitar da nova empregada, mas ao abrir a caixa havia trinta e sete, em vez de trinta e seis. Uma delas lhe pareceu estranha, bem mais jovem que as outras, uma filhotinha. Quando a terá colhido? Ah, agora se lembra: no sonho da véspera.
Um poema de Eugenio Montale
"O que de mim soubeste
não foi mais que a aparência,
a túnica que reveste
nossa humana aventura.
E talvez além do pano
o azul tranquilo estivesse;
tapava o claro céu
um simples sigilo.
Ou era de fato a estapafúrdia
mudança de minha vida,
o abrir-se de uma terra
incendiada que jamais verei.
Restou assim esta casca
minha real substância;
o fogo que não se amortece
para mim chamou-se: ignorância.
Se divisas uma sombra, não é
sombra - mas eu próprio.
Pudesse arrancá-la de mim
e te ofereceria de presente."
(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)
não foi mais que a aparência,
a túnica que reveste
nossa humana aventura.
E talvez além do pano
o azul tranquilo estivesse;
tapava o claro céu
um simples sigilo.
Ou era de fato a estapafúrdia
mudança de minha vida,
o abrir-se de uma terra
incendiada que jamais verei.
Restou assim esta casca
minha real substância;
o fogo que não se amortece
para mim chamou-se: ignorância.
Se divisas uma sombra, não é
sombra - mas eu próprio.
Pudesse arrancá-la de mim
e te ofereceria de presente."
(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)
Cotação do dia (3)
O avô distingue-se dos móveis da sala porque de vez em quando ainda fala e pede um café.
Cotação do dia (2)
Respirar com moderação, se bem que fosse glorioso morrer com os pulmões obstruídos por pétalas.
Cotação do dia
Disfarçar a corcunda, andar (ou algo parecido) e tentar não morrer ainda. Talvez no caminho um texto se abra, como uma flor.
Manhã
Hora de sair para o sol, como se não fôssemos um navio velho, e fingir que ouvimos ainda as gaivotas e as vemos rabiscando o caderno azul.
Soneto de como estão hoje aquelas juras
Estão agora prescritas
As juras todas de amor
Que com febre e com fervor
Um dia nos foram ditas.
Sobre elas paira a tristeza
De tudo quanto gorou
Depois que se proclamou
Com tanto viço e firmeza.
Nós nos lembramos de tudo,
Das frases, do conteúdo,
Do jeito como as disseram.
Tão puras nos pareceram,
Tão fundo nos comoveram,
E tão mentirosas eram.
As juras todas de amor
Que com febre e com fervor
Um dia nos foram ditas.
Sobre elas paira a tristeza
De tudo quanto gorou
Depois que se proclamou
Com tanto viço e firmeza.
Nós nos lembramos de tudo,
Das frases, do conteúdo,
Do jeito como as disseram.
Tão puras nos pareceram,
Tão fundo nos comoveram,
E tão mentirosas eram.
"Gato num apartamento vazio", de Wislawa Szymborska
"Morrer - isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.
Ouvem-se passos na escada
mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.
Ago aqui não começa
na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.
Cada armário foi vasculhado.
As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.
Espera só ele voltar,
espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho,
sobre patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio."
(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.
Ouvem-se passos na escada
mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.
Ago aqui não começa
na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.
Cada armário foi vasculhado.
As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.
Espera só ele voltar,
espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho,
sobre patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio."
(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
terça-feira, 14 de outubro de 2014
Gotas
O micro devia ter um monitor que, nas mensagens de amor, ficasse molhado como o papel das velhas cartas.
Cotação da noite
Ontem, tanto som, tanta fúria. Agora, um corpo aderido ao sofá, olhando a tevê. De vez em quando alguém, de má vontade, vem secar-lhe a baba.
Frugalidade
Humilde
minha alma
pediu pão só
e água
Negaram-lhe a água
e por um princípio
de equidade
e de proporção
recusaram-lhe também o pão.
minha alma
pediu pão só
e água
Negaram-lhe a água
e por um princípio
de equidade
e de proporção
recusaram-lhe também o pão.
Por quê?
Por que
em nome de Jesus
ninguém me esfola
ninguém me degola
ninguém me mata
ninguém me abduz?
em nome de Jesus
ninguém me esfola
ninguém me degola
ninguém me mata
ninguém me abduz?
Soneto das cores que tivemos (versão final)
Já fomos verdes. Nossa verdidão
Com tamanho verdor reverdecia
Que às vezes já nem real nos parecia,
Mas mero fruto da imaginação.
Já fomos de ouro. E nossa cor então
Tão forte e tão esplêndida luzia
Que disparate eu não cometeria
Se a equiparasse às chamas de um vulcão.
Já fomos vivos, já tivemos flores,
Fomos casa de ariscos beija-flores,
Honras de que a memória nunca esquece.
Mas hoje é o cinza-escuro a cor que temos,
Já não brilhamos mais, anoitecemos,
Enquanto a solidão amadurece.
Com tamanho verdor reverdecia
Que às vezes já nem real nos parecia,
Mas mero fruto da imaginação.
Já fomos de ouro. E nossa cor então
Tão forte e tão esplêndida luzia
Que disparate eu não cometeria
Se a equiparasse às chamas de um vulcão.
Já fomos vivos, já tivemos flores,
Fomos casa de ariscos beija-flores,
Honras de que a memória nunca esquece.
Mas hoje é o cinza-escuro a cor que temos,
Já não brilhamos mais, anoitecemos,
Enquanto a solidão amadurece.
"Elogio dos sonhos", de Wislawa Szymborska
"Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.
Falo grego fluente
e não só com os vivos.
Dirijo um carro
que me obedece.
Tenho talento,
escrevo grandes poemas.
Escuto vozes
não menos que os veneráveis santos.
Vocês se espantariam
com minha performance ao piano.
Flutuo no ar como se deve
isto é, sozinha.
Ao cair do telhado
desço de manso na relva.
Respiro sem problema
debaixo d'água.
Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.
Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer.
Assim que começa a guerra
me viro do melhor lado.
Sou, mas não tenho que ser
filha da minha época.
Faz alguns anos
vi dois sóis.
E anteontem um pinguim,
com toda a clareza."
(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
eu pinto como Vermeer van Delft.
Falo grego fluente
e não só com os vivos.
Dirijo um carro
que me obedece.
Tenho talento,
escrevo grandes poemas.
Escuto vozes
não menos que os veneráveis santos.
Vocês se espantariam
com minha performance ao piano.
Flutuo no ar como se deve
isto é, sozinha.
Ao cair do telhado
desço de manso na relva.
Respiro sem problema
debaixo d'água.
Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.
Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer.
Assim que começa a guerra
me viro do melhor lado.
Sou, mas não tenho que ser
filha da minha época.
Faz alguns anos
vi dois sóis.
E anteontem um pinguim,
com toda a clareza."
(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
Cotação do dia
Assim como ocorre no frio com os cobertores da caridade, deveria haver um acervo de memórias felizes posto à disposição de quem não tem nenhuma.
Menção honrosa
Se vocês me acham um sujeito carente, é uma boa aposta. Uma tarde eu fiquei esperando o amor na Vergueiro. Foram três horas, no fim das quais me contentei com um pingo de chuva.
Pateta
Nada como aquele amor inacreditavelmente tolo, que vê um castelo em cada casa e uma princesa em cada janela.
As lágrimas
Deixem que riam do amor. E estejamos sempre prontos para lhe dar as lágrimas que lhe negarem.
Identidade
Já somos tão um, meu sofá e eu, que quando me dói o braço nunca sei bem se é o dele ou o meu o braço que doeu.
Embrulhadinho
O amor é aquele ladrão para quem deixamos dinheiro esparramado pela sala e um sanduíche coberto com guardanapo na cozinha.
Alvo
Temos um acordo com as setas do amor: elas podem tentar mil vezes, até acertar. E, se quiserem acertar melhor, podem tentar mais mil.
Sempre lá fora
Não consigo imaginar o amor numa sala com lareira, com um gato no colo. O amor é sempre aquele pedinte sob chuva e frio, diante de uma casa sem campainha.
Quatro versos de Friedrich Hölderlin
"Assim é o homem; quando o bem lhe chega e até um Deus cuida dele
Enchendo-o de dons, não o reconhece e não quer saber.
Tem, antes, que sofrer; depois, quando nomeia o que ama,
Nada pode impedir que as palavras surjam como flores."
(Do livro Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
Enchendo-o de dons, não o reconhece e não quer saber.
Tem, antes, que sofrer; depois, quando nomeia o que ama,
Nada pode impedir que as palavras surjam como flores."
(Do livro Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
Mercado
O escritor se queixa. Seu livro teve duzentos e trinta e três mil leitores a menos que a nova Lei do Inquilinato.
Irreparável
Wislawa, Wislawa, ter sido seu coetâneo, quase seu patrício, e nunca tê-la visto nem falado com você. Dispensaria todas as outras maravilhas do mundo.
Cotação da noite
Zero, nada, traço. E a consciência de que jamais mereci mais que isso: zero, nada, traço.
Soneto do amor e do sexo
O amor é muito covarde.
Quer sempre esquentar o jogo,
Porém assim que arde o fogo
Finge não notar que ele arde.
E depois que o incêndio pega
E tudo põe-se a queimar,
O amor insiste em negar
E, contra a evidência, nega.
O sexo é mais consequente.
Tomado pela paixão,
Queima desvairadamente.
Mas ao contrário do amor
Ele não recua, não
Rejeita a chama e o fulgor.
Quer sempre esquentar o jogo,
Porém assim que arde o fogo
Finge não notar que ele arde.
E depois que o incêndio pega
E tudo põe-se a queimar,
O amor insiste em negar
E, contra a evidência, nega.
O sexo é mais consequente.
Tomado pela paixão,
Queima desvairadamente.
Mas ao contrário do amor
Ele não recua, não
Rejeita a chama e o fulgor.
Termos
Que adianta tantos sabermos
Se é um conhecimento vão?
De tantos milhões de termos,
Valem só o sim e o não.
Se é um conhecimento vão?
De tantos milhões de termos,
Valem só o sim e o não.
Soneto do réu contumaz
Dos que subvertem a paz,
O amor é sempre pioneiro,
O amor é sempre o primeiro,
O amor é réu contumaz.
Com que entusiasmo ele faz
Seu trabalho costumeiro
E como é exato e certeiro
O desassossego que traz.
Mas sempre, no tribunal,
Se isenta de todo mal,
E nisso há certa razão.
Instados a pronunciar-se
Se dele querem vingar-se,
Todos sempre dizem não.
O amor é sempre pioneiro,
O amor é sempre o primeiro,
O amor é réu contumaz.
Com que entusiasmo ele faz
Seu trabalho costumeiro
E como é exato e certeiro
O desassossego que traz.
Mas sempre, no tribunal,
Se isenta de todo mal,
E nisso há certa razão.
Instados a pronunciar-se
Se dele querem vingar-se,
Todos sempre dizem não.
Bem a calhar
Estarmos vivos é sorte.
Que cara íamos mostrar
Se assim não fosse, e se a morte
Viesse em casa nos buscar?
Que cara íamos mostrar
Se assim não fosse, e se a morte
Viesse em casa nos buscar?
Clube (para Wislawa Szymborska)
Um dia nosso clube de poesia terá seis ou sete sócios. Precisaremos comprar então quatro ou cinco cadeiras.
Uns (e os outros)
Os amores bem-comportados vão para os álbuns de fotos. Os outros, os que geralmente contam, vão para arquivos protegidos pelas mais inimagináveis senhas.
Um poema de Emily Dickinson
"Moro na possibilidade,
Casa mais bela que a prosa,
Com muito mais janelas
E bem melhor, pelas portas
De aposentos inacessíveis,
Como são, para o olhar, os cedros,
E tendo por forro perene
Os telhados do céu.
Visitantes - só os melhores;
Por ocupação, só isto:
Abrir amplamente minhas mãos estreitas
Para agarrar o paraíso."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
Casa mais bela que a prosa,
Com muito mais janelas
E bem melhor, pelas portas
De aposentos inacessíveis,
Como são, para o olhar, os cedros,
E tendo por forro perene
Os telhados do céu.
Visitantes - só os melhores;
Por ocupação, só isto:
Abrir amplamente minhas mãos estreitas
Para agarrar o paraíso."
(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
Cotação do dia (5)
A convicção de que Werther demorou talvez um pouco demais para se decidir, mas estava certo.
Conceito
O amor é aquela fraqueza de espírito que devemos estimular com todas as forças da nossa alma.
Validade
"Shakespeare? Não leio mais, já foi o tempo", ele disse, como se tivesse na não a embalagem de um produto vencido.
Cotação do dia (4)
Se tivéssemos sete vidas, como os gatos, nós as daríamos todas ao amor, mesmo que ele não as quisesse.
Cotação do dia (3)
Confessemos: dizemos que não, mas gostamos do amor bem piegas, choroso, infantil.
Diário
Não pode dizer que vive.
Caminha com seus pés fracos,
Junta aqui e ali seus cacos,
Dorme, acorda, sobrevive.
Caminha com seus pés fracos,
Junta aqui e ali seus cacos,
Dorme, acorda, sobrevive.
Questão de data
Perguntam-lhe se receia
A morte, e ele diz que não.
Morreu já faz tempo e anseia
Só pela confirmação.
A morte, e ele diz que não.
Morreu já faz tempo e anseia
Só pela confirmação.
Item derradeiro
Tem, como todos, uma lista de coisas que pretende fazer - antes de morrer, naturalmente. Uma delas, que exige certa competência e coragem, talvez o mate.
Agora que
Agora que o amor não mais o atormenta e não o persegue como um vira-lata sarnento, ele chegou a pensar em cuidar da vida. Descobriu que não tem nada do que cuidar.
Segunda do plural
Naquele dia em que ouvi
Aquelas coisas amáveis,
Éreis vós mesma que vi
Ou vós ali não estáveis?
Aquelas coisas amáveis,
Éreis vós mesma que vi
Ou vós ali não estáveis?
A literatura me mostra a língua
Palavras, tanta esperança
Eu pus em vós. Minha voz
Esperou tudo de vós...
Que tolo eu fui, que criança.
Eu pus em vós. Minha voz
Esperou tudo de vós...
Que tolo eu fui, que criança.
Na medida certa
Agora que meus dedos já não podem aspirar a façanhas maiores, talvez os deixes ficar um instante em teus cabelos, garimpando ouro.
Adiantamento
De quem lhe oferece bonanças, faça questão de receber antes as tempestades. Há castelos tão chatos e príncipes tão enfadonhos.
Tarde
Se eu tivesse tempo, ainda, gostaria de aprender a escrever. Ah, esses conceitos de autoajuda, essa baboseira de querer é poder. Tenho querido há sessenta anos.
Fama
É fácil jogar a culpa no amor, com a fama que ele tem e sua cara de mordomo de Agatha Christie, trazendo na bandeja do chá um facão capaz de degolar num golpe dez cordeiros.
Vida
Saber que tudo é somente
Uma ilusão, um momento,
E, antes que fujam com o vento,
Vivê-los intensamente.
Uma ilusão, um momento,
E, antes que fujam com o vento,
Vivê-los intensamente.
Ferida
Recordando o que vivi,
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.
"Sob uma estrela pequenina", de Wislawa Szymborska
"Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpe a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo o fio das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não poder estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpe a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo o fio das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não poder estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
domingo, 12 de outubro de 2014
Sapequices da poesia
A prosa deixa-se moldar com mais facilidade. A poesia tem sempre, mesmo nos mestres, certo espírito de rebeldia. Ela deixa o poeta ir à frente e vai todo o tempo fazendo caretas e torcendo para ele tropeçar.
Um trecho de Mariana Ianelli
"Setembro é quando brotam o branco e o carmesim. Eu, que nunca antes tive um jardim de azaleias, descubro essa felicidade nova como a abelha do poema de Emily Dickinson que entra na flor e se perde em bálsamo. A memória dos livros se mistura à memória das casas..."
(Da crônica "Setembro é quando rebentam o branco e o carmesim", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.
(Da crônica "Setembro é quando rebentam o branco e o carmesim", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.
Detalhe
"Eu acho que a família devia ter pedido para cortar."
"Cortar o quê?"
"O bigode. Não pega bem pra defunto."
"Cortar o quê?"
"O bigode. Não pega bem pra defunto."
Cotação do dia (4)
"Dizem que ele foi poeta."
"Ah, é? Não tem cara. Mas não deve ter sido importante. Tem tão pouca flor."
"Ah, é? Não tem cara. Mas não deve ter sido importante. Tem tão pouca flor."
Cotação do dia (3)
Não ouvirei o comentário do motorista furibundo: "Deviam fazer enterros só depois das dez da noite."
www.rubem.wordpress.com
No texto de hoje, falo de algo nem tão novo assim: briguinhas entre nora e sogra.
Sabor
Quem há que, tendo provado
O mel nos lábios do amor
E o sal no ventre dourado,
Possa olvidar seu sabor?
O mel nos lábios do amor
E o sal no ventre dourado,
Possa olvidar seu sabor?
Soneto do amor mentiroso
Há quem nos minta somente
Pelo prazer de iludir,
Pelo prazer de mentir,
Desinteressadamente.
Mentir é, para essa gente,
Uma forma de fugir
A esse tédio de existir
Que nos mata lentamente.
Mentem com tal despudor,
Sobre seu fictício amor,
Que nele nos fazem crer
De modo tão passional
Que não senti-lo tal qual
Nos faz querermos morrer.
Pelo prazer de iludir,
Pelo prazer de mentir,
Desinteressadamente.
Mentir é, para essa gente,
Uma forma de fugir
A esse tédio de existir
Que nos mata lentamente.
Mentem com tal despudor,
Sobre seu fictício amor,
Que nele nos fazem crer
De modo tão passional
Que não senti-lo tal qual
Nos faz querermos morrer.
Arenga
Durante alguns segundos, antes de abrir os olhos, ainda hoje ele é tentado a ouvir o velho discurso vazio das manhãs.
Paisagem
O que ele vê do sol, agora, é um reflexo no armário ou no criado-mudo, no quarto onde é sempre inverno.
Às vezes, ainda
Os domingos ainda vem chamá-lo às vezes, mas sobem a escada silenciosos e param diante da porta do seu quarto de doente.
"Agradecimento", de Wislawa Szymborska
"Devo muito
aos que não amo.
O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.
A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.
A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.
Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoaria.
Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.
As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.
E quando nos separam
sete colinas e ridos
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.
É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.
Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.
"Não lhes devo nada" -
diria o amor
sobre essa questão aberta."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
aos que não amo.
O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.
A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.
A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.
Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoaria.
Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.
As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.
E quando nos separam
sete colinas e ridos
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.
É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.
Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.
"Não lhes devo nada" -
diria o amor
sobre essa questão aberta."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
sábado, 11 de outubro de 2014
5.4 na Richter
O amor há de ser como um furacão: chegar, fustigar, destruir, arrasar. Não é amor aquele que se constrói em cotidianos e leva vinte anos para morrer. Isso é afeto, é brisa, sopro com que o vento ajeita o penteado das árvores no parque.
Quarentena
Ele e ela empurraram o amor para debaixo do tapete. Meses depois, quando foram fazer uma limpeza, nenhum dos dois mais sabia o que era aquilo.
Um trecho de Mariana Ianelli
"Raramente concede entrevistas este ermitão chamado Antonio Lobo Antunes. Não vai a lançamentos, não aparece, não promove seus livros. Uma vez, convidado a encerrar um congresso de medicina, não hesitou em frustrar as expectativas declarando que 'esperar que um escritor diga coisas interessantes é o mesmo que esperar de um acrobata que ande aos saltos mortais na rua'. Por muito que soe antipático, e com isso prove a outra face da fama, Lobo Antunes não participa da indústria do espetáculo por uma razão muito simples, talvez por isso mesmo incômoda, elementar feito água. Lobo Antunes não aparece porque, sendo escritor, está a escrever. Porque o tempo é curto para o que de melhor ele tem a fazer, e está fazendo - diante do papel, não dos microfones."
(Da crônica "Para aqueles a quem os dias são um sopro", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
(Da crônica "Para aqueles a quem os dias são um sopro", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
Anarquia (2)
Alguém nos deu esta manhã, certamente não para gastarmos os olhos com pesquisas eleitorais.
Anarquia
Ah, nesta manhã esquecer os rancores cívico-eleitorais e aspirar com vontade o ar, para absorver o que pudermos desse azul.
A felicidade
A maioria ama a rotina. Aceitaram desde cedo um conceito de felicidade e temem modificá-lo. Vivem mostrando fotos: olha como eu estou bem aqui, e aqui, e aqui. E olham para nós, para ver se estamos mesmo olhando. Receiam sair, um passo que seja, do passado. Têm borboletas entre as páginas dos romances favoritos.
sexta-feira, 10 de outubro de 2014
Companheiros
Meu sofá e eu somos, cada vez mais, um ser só. Já quase não saio. Prefiro ficar com ele. Cochilamos os dois, aconchegados. O mundo é o mundo, sempre lá fora.
Escrever com a alma
Não sei de ninguém que, no Brasil, esteja escrevendo tão bem quanto Mariana Ianelli. Quando digo escrever bem não quero dizer escrever certinho, de acordo com a gramática e os padrões literários. Quero dizer escrever com alma. Com toda ela, como Mariana.
Drama
Todos nós ansiamos pelo drama. Gostaríamos de ser personagens daqueles romances em que nada se alcança sem tormentos. A paz há de vir, desde que venha apenas no fim. Bonança sem tempestade não nos agrada. Iremos para o palácio e viveremos felizes para sempre, sim, mas só no último parágrafo.
O Nobel
Não li nada de Patrick Modiano. Ouvi algumas referências a ele, e só. Foi uma surpresa. Tomara que haja tempo ainda de conhecê-lo. Estou lendo o mais recente Coetzee, A infância de Jesus. Como nos seus outros livros, acho notável a simplicidade. Nada de truques, de arquiteturas, de artimanhas vocabulares. Tudo simples, linear, direto. Um dos últimos contadores de histórias. E como ele as conta bem.
Cotação do dia (2)
Não fizemos nada, nada realizamos. Mas toda manhã nos olhamos condescendentemente no espelho. Somos nossos cúmplices.
Cotação do dia
O tempo nos cobra. O que fizemos? Esquecemos dos nossos ideais? E nós dizemos: ah, aquilo? Eram só bobagens de menino.
Literatura
Logo a terra sufocará nossas palavras. Não farão falta, nunca fizeram. Que elas não poluam o solo, que não façam murchar as flores e apodrecer os frutos.
quinta-feira, 9 de outubro de 2014
Sinal verde
Se o assunto for o amor, confie no coração. Arrebente-se nos rochedos e depois jogue toda a culpa nele. Isso é ser racional.
Desmesuradamente incomensurável
Ao amor convém ser desmedido. Deve-se amar sempre ao máximo e achar-se que nunca se ama o suficiente.
Abençoada
Hora de ir para o sofá, atrair o sono com balinhas e torcer para que no sonho todos os ventos conduzam a Pasárgada.
Espertalhão
Houve um tempo em que, tendo a vida toda pela frente, eu a trocaria pela ventura de escrever um livro imortal. Hoje, oferecer o que tenho de vida, ainda que fosse por um romancezinho comum, seria pura patifaria.
Soneto daquela nossa louca alegria
Aquela louca alegria
Tão tola e destrambelhada
Que nós vivemos um dia
Hoje parece inventada.
Quem de nós dois suporia
Naquela época dourada
Que aquilo tudo daria
Em nada mais do que nada?
Se agora eu fosse lembrar
O que chegaste a falar
Nesse tempo de paixão,
E o que eu a ti disse, amor,
Quem ouvir, seja quem for,
Dirá: quanta embromação!
Tão tola e destrambelhada
Que nós vivemos um dia
Hoje parece inventada.
Quem de nós dois suporia
Naquela época dourada
Que aquilo tudo daria
Em nada mais do que nada?
Se agora eu fosse lembrar
O que chegaste a falar
Nesse tempo de paixão,
E o que eu a ti disse, amor,
Quem ouvir, seja quem for,
Dirá: quanta embromação!
Sobre a beleza de certos nomes
O poeta Manuel Bandeira, andando uma tarde pelo Rio, encantou-se com o nome de um bar: Península Tavares. Entrou e perguntou ao atendente no balcão o porquê daquela escolha. "Bem", respondeu o homem, "península eu, a bem dizer, não sei o que é, mas me pareceu bonito. Tavares sou eu, ao seu dispor." Também eu, às vezes, sou tomado de fascínio pelo nome de um estabelecimento comercial. De onde menos se espera vem a poesia. Hoje no meu caminho para o médico vi um: Armarinhos Fernando.
Marinha
Quando a luz da sala se apaga, as ondas da tela se aquietam, o veleiro cochila e as duas gaivotas interrompem o voo e dormem suspensas sobre o mar.
Um trecho de Mariana Ianelli
"Nada perdemos de sensatez no gosto pela fábula, de realismo no prazer da metáfora, apenas saímos da condição de miséria para a qual nos arrasta a falta de magia. A dança de Salomé continua a nos dizer o mesmo que nos diz a vida, todos os dias, que, afinal, mais cedo ou mais tarde, sempre perdemos a cabeça. Assim dizem os escritores nos seus devaneios, nos seus rodopios."
(Do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
(Do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
Cotação do dia (4)
No meu pesadelo você bebe água direto numa jarra imensa, engasga, gorgoleja, bochecha, gargareja. Imploro um gole. E você me diz que prefere se afogar.
Cotação da tarde (2)
Uma antevisão de hospitais, macas, transfusões, e médicos dizendo que bobagem, o senhor é tão moço.
Cotação da tarde
Uma nostalgia de navio que pela última vez atravessa o poente ensolarado e entra na definitiva treva.
Literatura, estágio final
Um esforço cada dia maior, para escrever frases que parecem pulseirinhas de artesanato.
Primas
É tolice querer explicar as grandes obras simplesmente pelas palavras e ideias que as compõem.
Barraquinha
Amor, por favor, me esquece,
Deixa de me perturbar.
Quem os teus ardis conhece
Jamais irá te comprar.
Deixa de me perturbar.
Quem os teus ardis conhece
Jamais irá te comprar.
Pênalti
"Um pênalti, meu Deus, olha aí, um pênalti! Ô número 3, tira logo esse bicho de dentro da área."
Rede social
Eu fingiria que não sou eu, tu fingirias não seres tu, e desta vez nos falaríamos como deveríamos ter feito.
Imunidade
Bem-aventurado é o leitor que consegue manter a vida inteira um intenso interesse e contato com a literatura sem se deixar levar pela tentação de ser escritor.
Ai, doce
Ai, doce obsessão querida,
Me deixa os dias fruir,
Me deixa à noite dormir,
Me deixa viver a vida.
Me deixa os dias fruir,
Me deixa à noite dormir,
Me deixa viver a vida.
Capítulo final
Não haverá alegrias,
Já todas mortas estão.
Machucam todos os dias
E sempre machucarão.
Já todas mortas estão.
Machucam todos os dias
E sempre machucarão.
Fila
Eu estou doente, não vês?
Espero apenas que venha
Do céu ou do inferno a senha
Dizendo que é minha vez.
Espero apenas que venha
Do céu ou do inferno a senha
Dizendo que é minha vez.
Um trecho de Jean Wyllis
"Homofobia é o nome que se dá ao medo, aversão ou ódio irracional que algumas pessoas nutrem em relação a gays, lésbicas, travestis e transexuais. Embora se manifeste muito mais em heterossexuais, a homofobia também está arraigada na alma de muitos homossexuais, o que não é de se espantar, já que estes recebem a mesma formação que transforma certos heterossexuais em homofóbicos."
(Do livro Tempo bom, tempo ruim, publicado pela Editora Paralela.)
(Do livro Tempo bom, tempo ruim, publicado pela Editora Paralela.)
terça-feira, 7 de outubro de 2014
Acalanto
Hora de dizer ao corpo que ele venceu mais um dia. Toda noite eu digo, e toda noite ele finge acreditar.
Relatório
Ao todo, foram dezoito.
Quatro morreram de febre,
Treze comeram biscoito
E um provou gato por lebre.
Quatro morreram de febre,
Treze comeram biscoito
E um provou gato por lebre.
Conta
Na história do meu tormento,
Faça-se a conta que for,
Caberão sempre ao amor
Noventa e nove por cento.
Faça-se a conta que for,
Caberão sempre ao amor
Noventa e nove por cento.
Destino
O horóscopo jamais mente,
Ele me ditou a sina.
Mandou-me amar loucamente,
E amar foi minha ruína.
Ele me ditou a sina.
Mandou-me amar loucamente,
E amar foi minha ruína.
Um trecho de Katherine Mansfield
"Tchekhov errou ao pensar que, se tivesse tido mais tempo, teria escrito mais detalhadamente, teria descrito a chuva, a parteira e o médico tomando chá. A verdade é que se pode colocar num conto apenas uma parte. Algo sempre fica sacrificado. Algo se perde. Tem-se que deixar de lado, sempre, um pouco ou muito daquilo tudo que a gente sabe e deseja usar. Por quê? Não tenho a menor ideia, mas é assim. É sempre uma espécie de corrida em que se tenta conseguir o mais que se possa, antes de desaparecer."
(Do livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)
(Do livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)
Terça
Terça boboca. Sonsa, sonsa. O sol já a convidou três vezes para dar uma volta por aí. E ela: ah, não sei, espera um pouco.
Vergueiro
Hora de ir trocar livros no Centro Cultural. Aquela expectativa enorme. Aí, chego lá e descubro que não saiu nenhum novo do Shakespeare.
Expediente
Aqui, do fundo do poço,
Eu grito salve-me, amor.
E ele: depois, por favor,
Estou em hora de almoço.
Eu grito salve-me, amor.
E ele: depois, por favor,
Estou em hora de almoço.
Marca registrada
Quando nos dizemos semelhantes a Deus, sabemos do que estamos falando: nós O criamos.
Apogeu
O amor há de ser sempre lembrado pelo melhor de todos os seus momentos. É fácil. São sempre uns dois só, ou três.
De Rosa Montero, sobre Sonia Tolstoi
"Outro caso clamorosamente injusto é o da pobre Sonia Tolstoi, que foi capaz de conviver durante quarenta e oito anos com o energúmeno do Leon Tolstoi, que era um louco feio, um indivíduo insuportável e messiânico, sem dúvida genial, mas também brutal, um reacionário profundo, um machista feroz: 'Sua atitude com as mulheres é de uma obstinada hostilidade. Nada lhe agrada mais do que maltratá-las', disse dele Máximo Gorki. Sem dúvida Tolstoi maltratou Sonia, que, apesar de tudo, o amava. Cuidava dele como uma escrava, suportava seus desprezos e seus insultos, passava a limpo todos os seus escritos (milhares de páginas ilegíveis), aconselhava-o literariamente e o recebia todas as noites em sua cama, engravidou dele dezesseis vezes. Sonia, que era uma grande leitora, tinha certeza de que seu marido era um gênio, e sua convicção adoçava a sua vida, de resto amarga."
(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)
(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
O nome
Uma noite, no jantar, lembrou-se do nome da sua namorada da adolescência e, ao dizê-lo, as sílabas dele tilintaram no prato. Emocionado, com os olhos úmidos, recolheu os dentes que tinham se soltado da prótese.
Catarina!!!
Agora, quando o velho diz amor,
A mulher ou a filha dedicada
Começam a gritar para a empregada
Que corra e vá pegar o babador.
A mulher ou a filha dedicada
Começam a gritar para a empregada
Que corra e vá pegar o babador.
Cotação do dia
Da boca a baba me escorre.
Não digo nada que preste.
Me roem a praga e a peste.
Mas este corpo não morre.
Não digo nada que preste.
Me roem a praga e a peste.
Mas este corpo não morre.
Soneto de como guardo tua geografia
Tenho na palma da mão
Toda a tua geografia,
O litoral, o sertão,
O relevo, a hidrografia.
Conheço a tua monção,
A área mais quente e a mais fria,
O teu áspero grotão,
A tua relva macia.
Nenhum traço do teu mapa
Da palma da mão me escapa,
Nenhum sinal ou detalhe.
E na memória também
Guardo cada um muito bem,
Caso algo no mapa falhe.
Toda a tua geografia,
O litoral, o sertão,
O relevo, a hidrografia.
Conheço a tua monção,
A área mais quente e a mais fria,
O teu áspero grotão,
A tua relva macia.
Nenhum traço do teu mapa
Da palma da mão me escapa,
Nenhum sinal ou detalhe.
E na memória também
Guardo cada um muito bem,
Caso algo no mapa falhe.
Sándor Márai
Sándor Márai é da linhagem dos obcecados, como Dostoiévski. Tudo nele é sombrio, interior e lancinantemente dramático. Só há lugar para o sofrimento, para a maldade, para a perversão máxima que só os seres humanos conhecem e usam para atormentar outros seres humanos. Alguém, não importa em que página apareça, há de ser destruído por alguém. Felicidade é uma palavra que Márai põe na boca dos tolos. Ler Márai é descobrir a justiça que há nos tormentos sofridos por esses tantos cretinos que apregoam o amor como o supremo bem da vida.
De Ernest Hemingway, sobre Paris
"Se você teve a sorte de viver em Paris, quando jovem, sua presença continuará a acompanhá-lo pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa móvel."
(Do livro Paris é uma festa, tradução de Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)
(Do livro Paris é uma festa, tradução de Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)
domingo, 5 de outubro de 2014
Ousadia
Quando perguntei por quê,
O amor quase me matou:
Dispensei todos, você
Foi só o que reclamou.
O amor quase me matou:
Dispensei todos, você
Foi só o que reclamou.
Terça-feira
Ela ia dizendo para ele agora vou te beijar aqui, e aqui, e aqui. Dizia e beijava, dizia e beijava. O umbigo ficou para o fim, porque ele foi sempre muito coceguento ali.
Cotação do dia
No tempo em que o amor era meu único senhor e dono, eu não ia atrás do circo nem quando ele passava na frente de minha casa.
Conta certa
Falando curto e direto,
Nossas maiores façanhas
Ou estão ainda em projeto
Ou não passam de patranhas.
Nossas maiores façanhas
Ou estão ainda em projeto
Ou não passam de patranhas.
Equívoco
Aquilo que aconteceu
Acho que não foi comigo,
Acho que não foi contigo.
Não eras tu, não era eu.
Acho que não foi comigo,
Acho que não foi contigo.
Não eras tu, não era eu.
sábado, 4 de outubro de 2014
Bituca
É triste quando o amor se sente como um cinzeiro no qual o homem que acabou de sair de um dos quartos do puteiro amassa o cigarro.
Dedões
A maior e mais bela intimidade que o amor me proporcionou foi quando me mostrou suas meias furadas.
Mérito
O amor me deu uma carta de recomendação tão elogiosa que logo fui adotado por uma senhora colecionadora de antiguidades que toda noite, antes de se deitar, me afaga, me beija e suspira.
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
Bruxaria
Amor, é você que, daí de longe, incita a ameixeira a roçar os dedos na minha janela, aflorando no quarto rumores de noites antigas?
Essencial
Amor, sem ti, que seria
Dos charlatães, dos profetas,
Dos que anseiam por magia,
Dos insanos e dos poetas?
Dos charlatães, dos profetas,
Dos que anseiam por magia,
Dos insanos e dos poetas?
Soneto das pretéritas alegrias
Agora, que aqui estou
Vivendo os últimos dias,
Lembro aquelas alegrias
Que você me propiciou.
E apalpo minhas mãos frias
Que um dia você pegou
E com carinho apertou
Nas suas, mornas e esguias.
Quem dera eu sentir pudesse
De novo aquele calor
Cuja lembrança enternece.
Por ele, minha querida,
Daria seja o que for:
A alma, o coração, a vida.
Vivendo os últimos dias,
Lembro aquelas alegrias
Que você me propiciou.
E apalpo minhas mãos frias
Que um dia você pegou
E com carinho apertou
Nas suas, mornas e esguias.
Quem dera eu sentir pudesse
De novo aquele calor
Cuja lembrança enternece.
Por ele, minha querida,
Daria seja o que for:
A alma, o coração, a vida.
Presente
Isto, enfia as unhas um pouco mais. Não, não é um relógio. É o meu coração. Podes ficar com ele. É teu.
Cotação do dia (6)
Eleição depois de amanhã, 5 de outubro de 2014, e eu mortificado pelo amor, aquele sentimento erradicado na Idade Média.
Cotação do dia (5)
Agarrei o gigante astutamente disfarçado de moinho e o intimei: "Proclama já a minha Dulcineia rainha da terra ou te quebro os braços."
Tarefa
Isentos já de ambição
Nós cumpriremos sem glória
E sem brilho nossa história:
Morrer é a nossa missão.
Nós cumpriremos sem glória
E sem brilho nossa história:
Morrer é a nossa missão.
Método
Fechando os olhos de horror,
Me matas como quem mata
Um ser reles, inferior,
Uma mosca, uma barata.
Me matas como quem mata
Um ser reles, inferior,
Uma mosca, uma barata.
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
Truque
Morramos bem devagar
Sem jamais dizermos nem
Por que nem sequer por quem,
Para ninguém se gabar.
Sem jamais dizermos nem
Por que nem sequer por quem,
Para ninguém se gabar.
Soneto que resume o que foi o amor
Foi um amor, nada mais,
Diz ele e, ao se recordar,
Tenta a história transformar
Em fatos todos triviais.
E empenha-se insanamente
Em desdizer e manchar
O que o fazia vibrar
Outrora tão ternamente.
Foi um amor passageiro,
Um vento morno, ligeiro,
Ele se convence, e chora.
Foi tolo, fútil, banal,
Mas não lhe cairia mal
Vivê-lo outra vez agora.
Diz ele e, ao se recordar,
Tenta a história transformar
Em fatos todos triviais.
E empenha-se insanamente
Em desdizer e manchar
O que o fazia vibrar
Outrora tão ternamente.
Foi um amor passageiro,
Um vento morno, ligeiro,
Ele se convence, e chora.
Foi tolo, fútil, banal,
Mas não lhe cairia mal
Vivê-lo outra vez agora.
Deixá-las
O passado é a gaveta que se deve manter fechada. Que as pétalas e as folhas soltas de poemas se sintam ainda como se hoje fosse o dia, trinta anos atrás, em que a mão carinhosa, depois de beijá-las, as guardou ali, para que nada as magoasse.
Uma só
Pensar duas vezes foi uma das coisas que andei fazendo na juventude. Hoje, não mais. Uma já me cansa tanto...
Soneto de como posso ainda louvar-te
Para louvar-te como antes,
Com toda aquela paixão,
Não tenho agora senão
Minhas vogais e consoantes.
Eu as escolho vibrantes,
Com elas faço uma canção
E a oferto de coração
Aos teus ouvidos amantes.
Se eu, querida, fosse agora
Abraçar-te como outrora,
Adivinho o teu muxoxo.
Dirias: meu caro amigo,
O que tu queres comigo,
Com esse teu abraço frouxo?
Com toda aquela paixão,
Não tenho agora senão
Minhas vogais e consoantes.
Eu as escolho vibrantes,
Com elas faço uma canção
E a oferto de coração
Aos teus ouvidos amantes.
Se eu, querida, fosse agora
Abraçar-te como outrora,
Adivinho o teu muxoxo.
Dirias: meu caro amigo,
O que tu queres comigo,
Com esse teu abraço frouxo?
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
Classificação
Olhem a lista e, por favor, se eu não for o homem mais triste do mundo, não me digam. Venho trabalhando tanto para isso.
Dois haicais de Alice Ruiz
"sem saudade de você
sem saudade de mim
o passado passou enfim"
***
"rede ao vento
se torce de saudade
sem você dentro"
(Do livro Haicais - Boa Companhia, organização de Rodolfo Witzig Guttila, publicado pela Companhia das Letras.)
sem saudade de mim
o passado passou enfim"
***
"rede ao vento
se torce de saudade
sem você dentro"
(Do livro Haicais - Boa Companhia, organização de Rodolfo Witzig Guttila, publicado pela Companhia das Letras.)
Gólgota
Os homens que levam os sentimentos ao extremo da loucura são os que acreditam ter a vocação do martírio.
Verborragia
Aprender todas as palavras - e depois descobrir que todas elas só servem para exaltar ou lamentar uma única: o amor.
História
O amor já era um item fora de catálogo no tempo em que os livros ainda se chamavam alfarrábios.
Soneto do último beijo
Ele a beijou como quem
Há muito tempo sabia
Que nunca mais beijaria
Com tanta paixão ninguém.
Beijou-a assim como nem
Um galã no melhor dia
Beijá-la conseguiria.
Beijou-a bem, muito bem.
Depois, já quase chorando,
Foi aos poucos se afastando,
Sem nem olhar para trás.
Lembra ainda como a beijou,
Lembra ainda como chorou
- E já tanto tempo faz.
Há muito tempo sabia
Que nunca mais beijaria
Com tanta paixão ninguém.
Beijou-a assim como nem
Um galã no melhor dia
Beijá-la conseguiria.
Beijou-a bem, muito bem.
Depois, já quase chorando,
Foi aos poucos se afastando,
Sem nem olhar para trás.
Lembra ainda como a beijou,
Lembra ainda como chorou
- E já tanto tempo faz.