segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
Um livro notável
Wellington Pereira é um desses raríssimos homens que podemos chamar hoje de polímata. Nada que pertença à experiência humana lhe é indiferente. A tudo ele aplica o olhar atento e o espírito analítico. Mestre em jornalismo, comunicação e sociologia, autor de livros nessas e em outras áreas, Wellington, professor na Universidade Federal da Paraíba, é um legítimo agitador de ideias e provocador cultural, uma poderosa voz contra o marasmo e a mesmice. Seu mais recente livro é um presente para a literatura infantojuvenil. Vovó nos protege reúne histórias que serão lidas com muito prazer pelas crianças, às quais se destinam, e - pela riqueza de menções a grandes escritores de todos os tempos - pelos adultos. Conjunto de preciosos textos curtos, que bem serviria como introdução ao fascinante mundo da arte, em especial à literatura, Vovó nos protege é uma obra que se constituiria num valioso auxiliar para os professores interessados em transmitir aos jovens algumas noções fundamentais. Sinto não ter habilidade para reproduzir aqui ao menos a capa desse livro que indico entusiasticamente.
Os derrotados
Tentemos rir, mesmo que
Rir não seja mais, no fim,
Que isso: eu rir-me de você
E você rir-se de mim.
Rir não seja mais, no fim,
Que isso: eu rir-me de você
E você rir-se de mim.
A verdade
Envergonha-se do tempo em que se exibiu como adepto do amor e depois, considerando-o uma crença menor, o renegou. Sabe hoje que o indigno era ele - e sempre será.
Súmula
Acredito que, se bem escolhidos, dez ou doze romances podem dar conta de tudo que realmente importa na trajetória do homem no planeta.
Cláusula rescisória
Jamais se considere um homem sem saída. Talvez você não tenha lido com atenção a última folha do contrato que assinou com a vida. Releia a cláusula final, aquela que fala da morte. Isso, aquela última, em letra bem miúda.
Artigo 1º
Você pode não ter talento, você pode escrever mal, e até muito mal. Mas, por favor, não seja desonesto. Se você sabe que seu livro não presta, não o leve aos editores. Melhor que eles gastem papel reeditando a menos significativa de todas as peças de Shakespeare.
Soneto do amor insensível
Por seu renome sagrado,
Por sua reputação
Sem nódoa ou contestação,
O amor se faz de rogado.
Para manter seu reinado
Ele, sem hesitação,
Diz "não", e repete "não",
Mesmo ao seu ser mais amado.
Para as queixas não ouvir
Dos que vivem a pedir
Por sua misericórdia,
Ele finge surdo ser.
E, se é preciso morder
A mão que lhe acena, morde-a.
Por sua reputação
Sem nódoa ou contestação,
O amor se faz de rogado.
Para manter seu reinado
Ele, sem hesitação,
Diz "não", e repete "não",
Mesmo ao seu ser mais amado.
Para as queixas não ouvir
Dos que vivem a pedir
Por sua misericórdia,
Ele finge surdo ser.
E, se é preciso morder
A mão que lhe acena, morde-a.
Dois trechos de Huberto Rohden
"Já observava Kant que nada é sucessivo em si, mas tudo é sucessivo em mim; a pseudossucessividade está nos meus sentimentos, não na realidade; esta é totalmente simultânea, independente de tempo (sucessividade duracional), e de espaço (sucessividade dimensional). A sucessividade induracional se chama 'Eterno' (ausência de tempo), e a sucessividade indimensional se chama 'Infinito' (ausência de espaço)."
***
"Meditar não é pensar. Meditar é esvaziar-se totalmente de qualquer conteúdo do ego e colocar-se, plenamente consciente, diante da plenitude da Fonte, ou em linguagem da Sagrada Escritura: 'Sê quieto - e saberás que Eu sou Deus.'"
(Do livro Einstein - O enigma do universo, edição da Martin Claret.)
***
"Meditar não é pensar. Meditar é esvaziar-se totalmente de qualquer conteúdo do ego e colocar-se, plenamente consciente, diante da plenitude da Fonte, ou em linguagem da Sagrada Escritura: 'Sê quieto - e saberás que Eu sou Deus.'"
(Do livro Einstein - O enigma do universo, edição da Martin Claret.)
domingo, 28 de fevereiro de 2016
Revista Rubem
Falo hoje na crônica (www.rubem.wordpress.com) de mortos, de amor e de vida, que são uma só entidade.
Quem sabe
No teu dia final, talvez ela vá te ver, se não estiver muito ocupada. Se estiver, quase certamente mandará flores. Não enviará aquele bilhete que esperaste a vida toda, porque já terás assumido a doce inocência dos analfabetos.
Corréus
Sejamos justos. Digamos,
Agora que o amor morreu,
Que foste tu, que fui eu,
Que fomos nós que o matamos.
Agora que o amor morreu,
Que foste tu, que fui eu,
Que fomos nós que o matamos.
Bola de cristal
Nosso amor não vingaria,
Era fácil prever. Eu
Tinha tudo de sandeu,
E ela, nada de sandia.
Era fácil prever. Eu
Tinha tudo de sandeu,
E ela, nada de sandia.
Um pouco da saudável loucura de Nietzsche
"Não são os vossos pecados, é a vossa parcimônia que clama ao céu! A vossa mesquinhez até no pecado, isso é que clama ao céu!"
(De Assim falou Zaratustra, tradução de Alex Marins, edição da Martin Claret.)
(De Assim falou Zaratustra, tradução de Alex Marins, edição da Martin Claret.)
sábado, 27 de fevereiro de 2016
Minibiografia
O amor começou
mendigando por pão
persistiu prosperou
e tem hoje capitais
em paraísos fiscais
controle acionário
de um negócio bilionário
no setor de embromação
capangas às pampas
rolls-royces mais de dez
um lago com jacarés
e heliponto na mansão.
mendigando por pão
persistiu prosperou
e tem hoje capitais
em paraísos fiscais
controle acionário
de um negócio bilionário
no setor de embromação
capangas às pampas
rolls-royces mais de dez
um lago com jacarés
e heliponto na mansão.
Comedimento
Nós, que cantamos o amor,
Tenhamos moderação.
Que não lhe falte canção
Quando morto ele já for.
Tenhamos moderação.
Que não lhe falte canção
Quando morto ele já for.
Nietzsche
"Eu não sou um homem, sou dinamite."
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016
Carcereiro
É noite já, e o amor não
Veio ainda nos vistoriar
E pelas grades passar
A nossa água e o nosso pão.
Veio ainda nos vistoriar
E pelas grades passar
A nossa água e o nosso pão.
Paronímia
Nietzsche fala da necessidade e da conveniência de se morrer a tempo. É um conceito sobre o qual não me cabe filosofar. Já morri há tempo.
Sobre o novo tempo
Quando ofereci a alma ao amor, ele sorriu. Agradeceu, mas não aceitou. Disse que não se usava mais esse tipo de transação: tudo era havia muito tempo resolvido só na esfera carnal, sem margem para complicações futuras. Deu-me uma piscada, perguntou se eu conhecia um bom motel por ali e, tomando-me a mão, quis saber onde estava meu carro. No meio do caminho, como se me oferecesse uma pechincha, sugeriu que, se fosse um carro espaçoso, talvez nem precisássemos de motel.
Uma frase de Nietzsche
"Eu só amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque são esses os que atravessam de um para outro lado."
(De Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, tradução de Alex Marins, edição da Martin Claret.)
(De Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, tradução de Alex Marins, edição da Martin Claret.)
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
Morte
Não mais verei esse bando
De sórdidos impostores
Falando de alma e de amores
E eructando, e defecando.
De sórdidos impostores
Falando de alma e de amores
E eructando, e defecando.
Aspiração (para Cecilia Zioni)
Eu gostaria de escrever textos que depois da leitura pudessem ser torcidos para transformar-se em lágrimas.
O que vale
O verdadeiro registro da vida e dos sentimentos do homem é a arte. A história não é mais que um tedioso rol de datas e de nomes.
Versão curitibana
Se fossem personagens de Dalton Trevisan, Romeu e Julieta não precisariam conhecer a segunda pessoa do plural para se entenderem. Nem fariam questão de conhecer. Não perderiam tempo com isso. Iriam direto ao assunto. E, se no final tomassem veneno, seria em copos de requeijão com o rótulo raspado.
Ketelbey
Minha alma dispersa
procurava sua alma irmã
num mercado persa.
Um mercador consternado
me disse que eu estava atrasado:
"Isto aqui já é o Irã."
procurava sua alma irmã
num mercado persa.
Um mercador consternado
me disse que eu estava atrasado:
"Isto aqui já é o Irã."
De Nietzsche sobre Heine
"A ideia suprema de poeta lírico me foi dada por Heinrich Heine. Em vão busco todos os reinos dos milênios por uma música tão doce e apaixonada. Ele possuía aquela malícia divina sem a qual sou incapaz de imaginar o perfeito - estimo o valor dos homens e das raças pelo quão necessariamente concebem o deus como inseparável do sátiro."
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
Oh, céus
Tomou um bico amoroso e, como foi formado na escola romântica, amuou-se, ensimesmou-se, enrodilhou-se como um cãozinho rejeitado. Se querem consolá-lo, recusa. Não lhe deem água e comida. Não as quer. Geme num canto, no outro, em todos. Pode haver sofrimento igual? É preciso anotar o que ele diz. Pode ser valioso, imaginaram. Anotaram, e foi isto só: oh, Deus, oh, destino, oh, sorte cruel! Juntaram tudo em três linhas. Não chegam a ser um poema. Melhor seria ter gravado os ganidos.
Inépcia
Se expressássemos, mesmo, o que sentimos, se isso que nós dizemos ser amor chegasse mesmo como amor aos outros, a resposta não seria este silêncio.
Mérito
O amor morreu há tanto tempo, e o aroma que dele ficou é este que, se não for o da santidade, bem parece e bem mereceria ser.
Cotação do dia
Abra o coração, abra-o mais, escancare-o. O que você pode ainda temer? Já riem de você, agora gargalharão. Isso é mais do que merece seu numerozinho pobre, esse discurso de um velho que insiste em falar de amor, como uma galinha cacarejando um poema de Rimbaud. Escancare o coração e abra amplamente os ouvidos para os risos gorgolejantes. É o melhor aplauso que você conseguirá, com esses versos em que as estrelas parecem pedacinhos de bolacha mergulhados em leite morno, para que você não se lastime uma vez mais por seus frágeis dentes.
Um trecho de Nietzsche
"Mas que me aconteceu? Como me libertei do nojo? Quem rejuvenesceu meus olhos? Como voei às alturas onde a gentalha não mais senta à beira do poço?"
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
Cotação da tarde
A sensação de que me olham como se eu tivesse, carimbado na testa: idiota. E a certeza de que não é só isso.
Cotação do dia
Tenho hoje a certeza de que o amor não era a batalha que eu imaginei. Era só uma escaramuçazinha, e eu era o cavalo.
Mario Quintana
Aonde Quintana chegasse
Sabia-se que a poesia
Podia ser que tardasse
Mas certamente viria.
Sabia-se que a poesia
Podia ser que tardasse
Mas certamente viria.
Substituta
Que bela e doce menina você é. Como me agradaria se fosse com você que ela me tivesse traído. Você não tem pelos longos nos braços, nem no peito, e saberia dar a ela as carícias certas. Ah, como vocês, minhas abelhas, saberiam sugar, uma da outra, o saboroso batom.
Ela
Se ela morrer antes, ninguém saberá por ele. Há muito tempo não lhe pronuncia nem o nome. Os mais chegados notarão apenas certo alívio nele, como se tivesse se livrado do peso de uma bruxa, mais amaldiçoada que as outras, por ter sido de todas a mais querida.
Soneto da festa à qual faltaremos
Estaremos mortos quando,
No giro das estações,
Estiver o amor voltando
Com risos e com canções.
Temos tão bem definhado
Que a nossa derradeira hora,
E o nosso dia marcado
Poderiam ser agora.
O amor, quando outra vez vier
E o convite nos trouxer
Para cantar e dançar,
Não encontrará ninguém
Com desejo nenhum, nem
De dançar nem de cantar.
No giro das estações,
Estiver o amor voltando
Com risos e com canções.
Temos tão bem definhado
Que a nossa derradeira hora,
E o nosso dia marcado
Poderiam ser agora.
O amor, quando outra vez vier
E o convite nos trouxer
Para cantar e dançar,
Não encontrará ninguém
Com desejo nenhum, nem
De dançar nem de cantar.
Uma frase de Nietzsche
"Oh, eu a encontrei, meus irmãos! Aqui, no mais alto, brota para mim a nascente do prazer! E há uma vida da qual gentalha nenhuma bebe conosco!"
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
Vodu
Que durmas muito mal e entres num pesadelo no qual implores que te tirem o algodão das narinas, e que te respondem: cala a boca, morta!
Chumbo trocado
Há momentos em que, mesmo se você tiver um avô exterminador de passarinhos ou uma avó que entretinha soldados austríacos, não deve curvar-se diante de sanfoneiros de voz caprina, fotógrafos de ocasião, ladrões de gado, bailarinos de frete, motoristas que não sabem guardar silêncio, empregadas alcoviteiras, hermeneutas futebolísticos, bisonhos estudantezinhos de filosofia e principalmente malucas do tipo fumacê.
Cotação do dia
Houve tempo em que eu sentia, em cada passo, a morte me acompanhando. Hoje sinto que a morte não me acompanhe mais.
A verdade
Não se enganem. Um escritor nunca é tão alheio a vantagens quanto possa parecer. É sempre venal, corrupto, vil. Simula idealismo, assume pose de mártir, mas está sempre pronto para entregar a alma por um Nobel, um Jabuti, uma menção honrosa em Curitiba, dez linhas de louvor num suplemento cultural. Os escritores têm alma de mercador e por um sorriso, por um elogio no facebook, curvam a espinha e, se os leitores souberem negociar, eles até se ajoelharão para beijar seus pés e proclamar a beleza daquela possível verruga num dos dedos, digna de meia dúzia de beijinhos molhados.
Doida
A literatura nega camisa a tantos mortos de fome, e oferece fardões a meia dúzia de canastrões.
Sonhos
Com o tempo, seus sonhos mais voluptuosos começam a requerer interpretação. No de ontem, uma borboleta pousava na relva num fim de tarde, e as duas não se moviam até o anoitecer.
Para aqueles álbuns de aniversariante
A prosa
é a voz de quem goza.
A poesia,
a queixa de quem se angustia.
é a voz de quem goza.
A poesia,
a queixa de quem se angustia.
Fetiche
Ele olhava para aquela mochila que ela sempre carregava e imaginava a vertigem que sentiria se fosse um dos objetos ali dentro, sempre ansiando pelo instante em que os dedos dela trouxessem a esperança de um toque, tateando naquela intimidade escura e morna.
Razão
Bem fazem os homens que na agenda têm endereços de motéis. Que mulher há de querer seguir um poeta? Os poetas só conhecem o caminho das estrelas e da lua.
Acepção
Uma noite na zona
um dicionarista
perguntou a uma putona
se tudo aquilo que ele via
a perder de vista
era mesmo tudo marafona.
um dicionarista
perguntou a uma putona
se tudo aquilo que ele via
a perder de vista
era mesmo tudo marafona.
Um trecho de Nietzsche
"Uma pequena mulher correndo atrás de sua vingança seria capaz de atropelar o próprio destino. A mulher é indizivelmente mais malvada que o homem, também mais sagaz; bondade na mulher já é uma forma de degeneração."
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, edição da Companhia das Letras.)
domingo, 21 de fevereiro de 2016
Cotação do dia
Se ela o retratasse, talvez relevasse alguns dos seus defeitos, não por condescendência ou compaixão, palavras que ela odeia, mas para não enfear sua tela.
Posse
Quando ela ordena agora!, ele se compadece de todos os césares mortos, alheios já aos suplícios e aos gozos, e crava-se dentro dela, com a irrefutável legitimidade da carne viva e cobiçosa.
Estações
O amor -
aquele de verdade
que na juventude
é uma virtude -
não passa na senectude
de inconfessada obscenidade.
aquele de verdade
que na juventude
é uma virtude -
não passa na senectude
de inconfessada obscenidade.
Ter-se
Se for seu destino arder no inferno, já escolheu o pecado: a luxúria. A simples palavra já o deixa em estado de febre e, quando é tomado por seus sintomas, ele se torce, se retorce, se contorce, se dobra, se curva, se recurva, e morde-se nos lábios, e arranha as próprias palmas das mãos, e se inteiriça, e se goza, como se se possuísse.
Ao menos um
Seja com o leitor, seja com Deus ou seja com o Diabo, algum compromisso o escritor haverá de ter, a não ser que estejamos falando de entretenimento.
Cole
Ele gostaria de ter morrido numa tarde muito antiga de abril, ouvindo uma brisa que assobiasse uma canção de Cole Porter - uma tarde tão antiga que hoje ninguém mais se lembrasse daquela tolice toda de ele haver morrido de amor.
Uma pitada de sal
Na ponta da língua
ele tem ainda
um fiozinho sedoso
de gosto salino
e aquele desejo de sempre
de nesse rito
cumprido diariamente
ver algo que ao menos aparente
ter algo de pecaminoso.
ele tem ainda
um fiozinho sedoso
de gosto salino
e aquele desejo de sempre
de nesse rito
cumprido diariamente
ver algo que ao menos aparente
ter algo de pecaminoso.
Quatro versos de Friedrich Hölderlin
"Luz do Amor! Também envolves os mortos no ouro do teu brilho!
Imagens de um tempo mais radioso, sois vós que me iluminais pela noite fora?
Sede bem-vindos vós jardins suaves, vós montes do poente,
E vós silenciosos caminhos do bosque."
(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Imagens de um tempo mais radioso, sois vós que me iluminais pela noite fora?
Sede bem-vindos vós jardins suaves, vós montes do poente,
E vós silenciosos caminhos do bosque."
(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)
sábado, 20 de fevereiro de 2016
Cotação do dia
Nenhuma memória se igualará à de certa blusa xadrez na qual os dedos do sol imprimiam seu ouro.
Certificado
Em seis anos, coloquei quase vinte e quatro mil textos aqui. O que mais preciso fazer para ter reconhecida minha sandice? Certos estão aqueles que sugerem dar-se a cada poeta uma enxada e mandá-los cavar.
Qualquer coisa
Depois de seis décadas tentando, o escritor já nem pensa em obra-prima. Ficaria feliz com uma frase, mesmo que fosse alguma semelhante às de autoajuda, tão boboca quanto todas elas costumam ser. Que realização seria ouvi-la, junto com a citação do seu nome. Como gostaria de ser o autor daquele insuperável "querer é poder".
Tratamento
Os que têm certo pudor de apresentar-se como escritores, como fariam na época em que eram chamados de literatos?
Superior
Quando lhe perguntaram se escrever podia ser considerado seu ganha-pão, o romancista ofendeu-se: "É uma visão mesquinha de minha literatura."
Touché
Conversando com um grupo de jovens poetas que não pareciam dispostos a lhe reconhecer o talento, o velho parnasiano lançou seu argumento decisivo: "Sou o maior especialista brasileiro em dodecassílabos."
Puro ouro
Certo poeta parnasiano, depois de limar e polir um soneto, olhou para os catorze fulgurantes versos e desafiou: "Agora, ceguem-me."
"A arte para as crianças", de Eduardo Galeano
"Ela estava sentada numa cadeira alta, na frente de um prato de sopa que chegava à altura de seus olhos. Tinha o nariz enrugado e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda:
- Conta uma história para ela, Onélio - pediu. - Conta, você que é escritor...
E Onélio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto:
- Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mamãezinha dizia: 'Você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha.' Mas o passarinho não ouvia a mamãezinha e não abria o biquinho...
E então a menina interrompeu:
- Que passarinho de merdinha - opinou."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
- Conta uma história para ela, Onélio - pediu. - Conta, você que é escritor...
E Onélio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto:
- Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mamãezinha dizia: 'Você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha.' Mas o passarinho não ouvia a mamãezinha e não abria o biquinho...
E então a menina interrompeu:
- Que passarinho de merdinha - opinou."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016
Cláusula
Sim, falemos de amor ou de outra baboseira
Que a leve, minha amiga, a não mais regatear
O que eu daria tudo para desfrutar.
Sim, falemos de amor, amiga, como queira.
Que a leve, minha amiga, a não mais regatear
O que eu daria tudo para desfrutar.
Sim, falemos de amor, amiga, como queira.
Persona
Ainda há leitores que imaginam os poetas como seres pálidos com uma flor na lapela. Ainda há poetas que se imaginam assim.
Grande Machado
Se não houvesse Escobar e as entrelinhas, Capitu seria hoje só o que o maçante Bentinho certamente faria dela.
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016
Soneto da mão recompensada
Ele, olhando agora a mão
Com que no rosto a afagou,
Com que no corpo a tocou
Com febre, pressa e paixão,
E, lembrando como a amada
A beijava ternamente
Pagando assim o presente
De ser tão bem manuseada,
Beija-a como se outra vez
Tudo que outrora a mão fez
Tivesse se reprisado
E como se a boca sua
Fosse a da amada que, nua,
Pagasse o gozo gozado.
Com que no rosto a afagou,
Com que no corpo a tocou
Com febre, pressa e paixão,
E, lembrando como a amada
A beijava ternamente
Pagando assim o presente
De ser tão bem manuseada,
Beija-a como se outra vez
Tudo que outrora a mão fez
Tivesse se reprisado
E como se a boca sua
Fosse a da amada que, nua,
Pagasse o gozo gozado.
Um trecho de Cristovão Tezza
"Escrever é sempre a expressão de um fracasso, com o qual não se aprende nada - ao contrário da vida real, em que o erro nos melhora. Na literatura acontece o contrário: a presunção doentia que nos leva a escrever e que eventualmente encontra aquela mínima ressonância - o prato de resto de comida do cão faminto, ao qual nos lançamos com a língua de fora - acaba por nos corromper a alma por inteiro de maneira que em poucos anos não servimos para mais nada senão medir a própria incompetência, linha a linha."
(De Beatriz, publicação da Record.)
(De Beatriz, publicação da Record.)
Pegar ou largar
Lançar-se nos braços do amor ou jogar-se do viaduto são sempre momentos únicos. É lançar-se ou jogar-se.
Vocação
Para os suicidas mais convictos, há um momento em que morrer se transforma num projeto de vida.
Certeza
Se a vida insiste em falhar
E vive a decepcionar-te,
Na morte podes confiar.
Ela fará sua parte.
E vive a decepcionar-te,
Na morte podes confiar.
Ela fará sua parte.
Lógica
Em tudo existe uma essência
Que nos obriga e submete.
Se é questão de competência,
A morte é o que nos compete.
Que nos obriga e submete.
Se é questão de competência,
A morte é o que nos compete.
Ônibus
De atenção não carecemos
E nem de dar o sinal.
Até dormir nós podemos,
A morte é o ponto final.
E nem de dar o sinal.
Até dormir nós podemos,
A morte é o ponto final.
Nem aí
O que o amor de mais cruel tem
É quando nós lhe dizemos
Que sem ele morreremos,
E ele, distraído, diz: hem?
É quando nós lhe dizemos
Que sem ele morreremos,
E ele, distraído, diz: hem?
"Janela sobre as perguntas", de Eduardo Galeano
"Sofia Opalski tem muitos anos, ninguém sabe quantos, ninguém sabe se ela sabe. Tem apenas uma perna, anda em cadeira de rodas. As duas estão bem gastas, ela e a cadeira de rodas. A cadeira tem parafusos frouxos, e ela também.
Quando ela cai, ou quando cai a cadeira, Sofia chega, do jeito que der, até o telefone e disca o único número do qual se lembra. E pergunta, lá do fim do tempo:
- Quem sou eu?
Muito longe de Sofia, em outro país, está Lucia Herrera, que tem três ou quatro anos de vida. Lucia pergunta, lá do princípio do tempo:
- O que quero eu?
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Quando ela cai, ou quando cai a cadeira, Sofia chega, do jeito que der, até o telefone e disca o único número do qual se lembra. E pergunta, lá do fim do tempo:
- Quem sou eu?
Muito longe de Sofia, em outro país, está Lucia Herrera, que tem três ou quatro anos de vida. Lucia pergunta, lá do princípio do tempo:
- O que quero eu?
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
Menção honrosa
Porque nossos braços já não são os mesmos, as árvores derrubam gentilmente seus frutos para nós. Não são os melhores, sabemos, mas já aprendemos a não nos lamentar.
Épico, mas nem tanto
Quem se julga heroico quando se declara disposto a dar a vida pelo amor não faz nada além de reproduzir um hábito muito comum outrora.
Siso
O velho que se isenta de falar do amor revela a sabedoria de não se expor em um assunto no qual já não se sente à vontade.
Cotação do dia
Só depois de rirem muito toda vez que eu falava de amor eu comecei a perceber que havia algo errado - não em meu vocabulário, mas talvez em mim. Sempre fui um mau arauto, especialmente de sentimentos.
Aviso
Se formos a um cinema, não creia que eu irei pelas pipocas, ainda que eu lhe jure que sim. Tenho outros traumas de infância não resolvidos.
De mortuis nihil nisi bonum
Os melhores amores são os finados. Quem haverá de falar mal deles, ainda que possam ter merecido? Amores mortos são como as rosas dos poetas: eternas em sua fugacidade.
Masoch
O que está sempre em jogo no amor é a fixação de um domínio, de uma primazia. Mesmo que esse domínio e essa primazia consistam, para quem os fixa, em submeter-se de plena vontade ao domínio e à primazia do parceiro amoroso.
Um texto de Eduardo Galeano
"Ramona Caraballo foi dada de presente assim que aprendeu a caminhar.
Lá por 1950, sendo ainda menina, ela estava como escravazinha numa casa de Montevidéu. Fazia de tudo, a troco de nada.
Um dia, a avó chegou para visitá-la. Ramona não a conhecia, ou não se lembrava dela. A avó chegou vinda do interior, do campo, muito apressada porque tinha que regressar em seguida. Entrou, deu uma tremenda surra na neta e foi embora.
Ramona ficou chorando e sangrando.
A avó tinha dito, enquanto erguia o rebenque:
- Você não está apanhando por causa do que fez. Está apanhando por causa do que vai fazer."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Lá por 1950, sendo ainda menina, ela estava como escravazinha numa casa de Montevidéu. Fazia de tudo, a troco de nada.
Um dia, a avó chegou para visitá-la. Ramona não a conhecia, ou não se lembrava dela. A avó chegou vinda do interior, do campo, muito apressada porque tinha que regressar em seguida. Entrou, deu uma tremenda surra na neta e foi embora.
Ramona ficou chorando e sangrando.
A avó tinha dito, enquanto erguia o rebenque:
- Você não está apanhando por causa do que fez. Está apanhando por causa do que vai fazer."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
Soneto dos sonetos pavorosos (versão final)
Que vais fazer, minha amada,
Dos meus mimos amorosos,
Daquela sonetalhada,
Dos madrigais horrorosos?
Ah, bem poderia ser,
Pois és deles a razão,
Que conseguisses fazer
Melhor minha inspiração.
Outro poeta merecias
Por todas as alegrias
Que de ti eu recebi.
Ah, triste é não ter valor
Tudo que com tanto amor
Para ti eu escrevi.
Dos meus mimos amorosos,
Daquela sonetalhada,
Dos madrigais horrorosos?
Ah, bem poderia ser,
Pois és deles a razão,
Que conseguisses fazer
Melhor minha inspiração.
Outro poeta merecias
Por todas as alegrias
Que de ti eu recebi.
Ah, triste é não ter valor
Tudo que com tanto amor
Para ti eu escrevi.
Soneto do que para o amor sobra (versão final)
Do que respingou nas toalhas,
Do que ficou sob as mesas,
Das carnes, das sobremesas,
O amor recolhe as migalhas.
Do mel vertido nas palhas,
Das maçãs e das framboesas
Mordidas sem sutilezas,
O amor só colhe as rapalhas.
Amor, que praga rogaram,
Que maldição te lançaram,
O que fizeram contigo?
Para a fartura nasceste
E na opulência cresceste,
Mas vives como um mendigo.
Do que ficou sob as mesas,
Das carnes, das sobremesas,
O amor recolhe as migalhas.
Do mel vertido nas palhas,
Das maçãs e das framboesas
Mordidas sem sutilezas,
O amor só colhe as rapalhas.
Amor, que praga rogaram,
Que maldição te lançaram,
O que fizeram contigo?
Para a fartura nasceste
E na opulência cresceste,
Mas vives como um mendigo.
Mario Quintana
Na literatura do Rio Grande do Sul, houve a fase do gaúcho montado, a do gaúcho a pé e, com Mario Quintana, a época do gaúcho alado.
Mario Quintana
O melhor, em Mario Quintana, era que ele parecia ser um homem como qualquer outro. E era.
Mario Quintana
Em qualquer outro, a simplicidade de Mario Quintana poderia ser tida até como exasperante.
O amor como justificativa da existência
Se eu fosse um apóstolo do amor, se eu fosse digno dessa missão, o livro-base de meu culto - a bíblia, por assim dizer - seria O museu da inocência, de Orhan Pamuk. Não conheço nenhum que se equipare a ele em força lírica, em delicadeza, em suavidade. Eu daria a alma para tê-lo escrito - o que, na verdade, significa que gostaria de ter vivido a história do personagem, Kemal, subjugado por uma lembrança amorosa tão aguda e agradável de ser sofrida que ele bem mereceria mais de uma vida para vivê-la. O museu da inocência é para aqueles que não se envergonhariam de lamber uma estátua do amor, ainda que fosse obra do pior dos escultores e feita da mais reles das argilas.
Ainda assim
Por mais que nos doa, por
Pior que nele alguém esteja,
Abençoado sempre seja
O cativeiro do amor.
Pior que nele alguém esteja,
Abençoado sempre seja
O cativeiro do amor.
Randômico
Por mais racionalmente que encare a literatura, o escritor sempre estará, diante de um texto, como um garimpeiro novato torcendo por um improvável veio de ouro.
Tesouro
Nos seus momentos de máxima luxúria, ele se contorce imaginando que tira com amorosas mordidas a perolazinha que ela tem no umbigo. Cada vez que recompõe a cena, já mais habituado e hábil, morde mais devagar e carinhosamente.
Mario Quintana
Quando dizia que São Pedro pintava em Porto Alegre os mais belos crepúsculos do mundo, Mario Quintana, modéstia à parte, sabia do que estava falando. Ninguém entendia mais de céu e de Porto Alegre que ele.
Mario Quintana
No meio da escada um anjo chamou: Mario. Quintana não se alvoroçou. Devia ser só mais um dos anjos poetas que viviam a procurá-lo com um poema torto na mão, em busca de ajuda.
Mario Quintana
Na primeira vez que assassinaram Mario Quintana, ainda não sabiam que Mario Quintana não morria.
Para inventar o mundo cada dia", de Eduardo Galeano
"Conversamos, comemos, fumamos, caminhamos, trabalhamos juntos, maneiras de fazermos o amor sem entrar-se, e os corpos vão se chamando enquanto viaja o dia rumo à noite.
Escutamos a passagem do último trem. Badaladas no sino da igreja. É meia-noite.
Nosso trenzinho próprio desliza e voa, anda que te anda pelos ares e pelos mundos, e depois vem a manhã e o aroma anuncia o café saboroso, fumegante, recém-feito. De sua cara sai uma luz limpa e seu corpo cheira a molhadezas.
Começa o dia.
Contamos as horas que nos separam da noite que vem. Então, faremos o amor, o tristecídio."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Escutamos a passagem do último trem. Badaladas no sino da igreja. É meia-noite.
Nosso trenzinho próprio desliza e voa, anda que te anda pelos ares e pelos mundos, e depois vem a manhã e o aroma anuncia o café saboroso, fumegante, recém-feito. De sua cara sai uma luz limpa e seu corpo cheira a molhadezas.
Começa o dia.
Contamos as horas que nos separam da noite que vem. Então, faremos o amor, o tristecídio."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016
Memória
Na velha major quedinho
quando a madrugada dormia
os caminhões do estadão
despertavam o dia.
quando a madrugada dormia
os caminhões do estadão
despertavam o dia.
Tensão máxima
Se não se tornar obsessivo, se não doer, se não machucar, se seus sintomas não forem semelhantes aos das moléstias mais agudas e fatais, o amor é tão inócuo e enjoativo quanto um copo de leite com groselha.
Desperdício
Quem te fez assim sedosa, assim macia, deveria reservar-te para mãos que não fossem as de um rude polaco para quem tanto faria Chopin ser o que foi ou ter sido um ferrabrás com vinte anos de prática no manejo de uma britadeira.
Um parágrafo de Cristovão Tezza
"O senso comum costuma considerar os escritores pessoas boas, sensatas e confiáveis. Como sou do ramo, e me conheço, sei que as coisas não são bem assim. Eles são bons só por escrito. Ao vivo, o risco é grande. Eu mesmo procuro evitar ao máximo a convivência com escritores, de modo a me proteger. Mas a lenda das nossas qualidades até que tem sido útil. Frequentemente sou convidado a participar de bienais, feiras de livros, mesas-redondas, atividades culturais. Como os leitores em geral não gostam de ler autores brasileiros, essa é sempre uma saída honrosa. 'Não li o seu livro ainda, mas o senhor fala muito bem!' Outra vantagem dessas viagens é que a gente vê Curitiba de longe e redescobre nossa imagem à distância."
(De Um operário em férias, edição da Record.)
(De Um operário em férias, edição da Record.)
Sobrevivência
Precisou recolher a língua rapidamente, porque a dela se tornara selvagem, rancorosa e convocara os dentes para vingá-la.
Urubu (para Gustavo José Remião e Fabíola Lacerda)
O urubu que pousar na minha sorte vai fartar-se de melancolias.
Cotação do dia
No dia em que resolver morrer, há de consultar a agenda dela. Não quer que ela precise, por educação, ocupar-se dele, ainda que seja só para enviar flores pela secretária.
Só o que interessa
Revirando a caçamba, o garotinho achou uma estrela. Tinha acabado de cair e palpitava ainda. Ele a pegou, deslumbrado. "Pai, olha que bonita!" O pai, que remexia outra caçamba, deu uma espiada de longe e recomendou, enérgico: "Larga essa porcaria. Larga, eu falei. Só latinha."
Laços
Na relação amorosa, se tu és o senhor, convém manteres a sobriedade. Mas, se és o vassalo, deves gritar ao mundo tua ventura.
Monotemático
Se você só sabe falar de amor, não se cale. Haverá sempre alguém disposto a ouvi-lo. Sempre houve.
Prece
Livrai-nos Senhor
das armadilhas do amor
dos seus vícios
de suas partes impudendas
de suas fendas
e seus orifícios.
das armadilhas do amor
dos seus vícios
de suas partes impudendas
de suas fendas
e seus orifícios.
Tão e... tão
Tudo que se tem a dizer sobre o amor é sempre inevitavelmente velho e sempre excitantemente novo.
Um trecho de Cristovão Tezza
"Eu não sei como escrevo um romance. E, acompanhando os colegas que falam a respeito, descubro que também eles não devem saber, porque nunca deparei com duas explicações semelhantes. Se chamassem dois engenheiros para explicar como construir um prédio e cada um dissesse uma coisa, suponho que um deles teria de ter o registro cassado. O que mostra que escrever é uma profissão desqualificada também por ser incapaz de se submeter a um mínimo controle de qualidade."
(Do livro Um operário em férias, edição da Record.)
(Do livro Um operário em férias, edição da Record.)
domingo, 14 de fevereiro de 2016
Conduta (para Camila Condini)
Jamais permitir que aquilo que se sussurra amorosamente ao nosso ouvido, ainda que seja uma sílaba só, fuja pelo outro.
www.rubem.wordpress.com
Hoje na revista Rubem exponho mais algumas dessas quinquilharias que teimo em achar poéticas.
Cotação do dia
Sou um velho caquético
gritando amor amor
como se o amor fosse ainda
um assunto poético.
gritando amor amor
como se o amor fosse ainda
um assunto poético.
Quatro textos de Eduardo Galeano
"A noite/1
Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada na minha garganta."
"A noite/2
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo."
"A noite/3
Eles são dois por engano. A noite corrige."
"A noite/4
Solto-me do abraço, saio às ruas.
No céu, já clareando, desenha-se, finita, a lua.
A lua tem duas noites de idade.
Eu, uma."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada na minha garganta."
"A noite/2
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo."
"A noite/3
Eles são dois por engano. A noite corrige."
"A noite/4
Solto-me do abraço, saio às ruas.
No céu, já clareando, desenha-se, finita, a lua.
A lua tem duas noites de idade.
Eu, uma."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
sábado, 13 de fevereiro de 2016
Mario Quintana
Porto Alegre
que inveja de ti.
Se pergunto por onde
Quintana andava
abrem-se os braços
indicando aqui lá ali.
E onde Quintana eu estava
em que inútil São Paulo
que nunca te vi?
que inveja de ti.
Se pergunto por onde
Quintana andava
abrem-se os braços
indicando aqui lá ali.
E onde Quintana eu estava
em que inútil São Paulo
que nunca te vi?
Prismas
Quando falamos genericamente, reconhecemos a insignificância do homem. Mas, quando estamos diante de nós mesmos, não nos importamos nem um pouco em nos excluir da espécie ou em fazer parte daquele 0,001% que constitui a exceção.
Contraste
Há leitores que não se espantam com as proezas dos heróis dos romances de cavalaria mas consideram absurdos os vagabundos de Beckett.
Custo-benefício
Se não se apressar, a morte encontrará tão pouco de mim que a viagem não valerá a pena.
Cotação do dia
Eu sempre quis morrer por uma boa causa. Tenho me esforçado, mas começo a desconfiar que o amor não deve ser uma delas.
"Janela sobre a palavra/1", de Eduardo Galeano
"Magda Lemonnier recorta palavras nos jornais, palavras de todos os tamanhos, e as guarda em caixas. Numa caixa vermelha guarda as palavras furiosas. Numa verde, as palavras amantes. Em caixa azul, as neutras. Numa caixa amarela, as tristes. E numa caixa transparente guarda as palavras que têm magia.
À vezes, ela abre e vira as caixas sobre a mesa, para que as palavras se misturem do jeito que quiserem. Então, as palavras contam para Magda o que acontece e anunciam o que acontecerá."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
À vezes, ela abre e vira as caixas sobre a mesa, para que as palavras se misturem do jeito que quiserem. Então, as palavras contam para Magda o que acontece e anunciam o que acontecerá."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016
"A pequena morte", de Eduardo Galeano
"Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu voo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016
Cotação do dia
Vontade de ser um refugiado do amor, adotado por uma dama de preferências eróticas excêntricas e dotada de paciência para tolerar minhas tantas inabilidades.
Equívoco
Amores já mortos
respiram ainda
em velhas gavetas
em cartas antigas
Como se hoje escritas
as palavras
palpitam ainda
na escuridão
e dizem amor
com a mesma apaixonada
e equivocada convicção.
respiram ainda
em velhas gavetas
em cartas antigas
Como se hoje escritas
as palavras
palpitam ainda
na escuridão
e dizem amor
com a mesma apaixonada
e equivocada convicção.
Mantra
No início, quando a literatura em nós é ainda só um projeto, nós nos dizemos, como incentivo: escrever, escrever, escrever. No meio do caminho, nossa voz já não é tão resoluta: escrever, escrever. E, no fim, como náufragos jogados ao mar, mais por teima que por esperança, suplicamos ainda: escrever.
Da obrigação da literatura
Se à literatura cabe alguma obrigação, é a de narrar o caos, a desordem, o absurdo da existência humana. Para os que querem acreditar na possibilidade de alguma lógica, recomenda-se a filosofia (se bem que até hoje ela não tenha apresentado senão hipóteses) ou as religiões (embora elas exibam certezas demais para quem deseja uma só, a única).
Um trecho de "Prosa de papagaio", de Gabriela Guimarães Gazzinelli
"Parece-me existir um consenso nos meios acadêmicos de que os papagaios somos os mais brasileiros dos brasileiros. Faço saber que tal consenso já se estabeleceu mesmo fora do território nacional. Ora, ora, que ave senão um papagaio teria sido escolhida por Walt Disney quando criou o personagem brasileiro Zé Carioca? E essa escolha não é de pouca consequência, leitor; sem exagero, o nosso Zé Carioca foi um instrumento de diplomacia no jogo das relações bilaterais. Isso dito, que sabiás, tucanos, jaburus,águias e araras formem um belo e colorido cortejo em torno do papagaio, primus inter pares.
(Publicado pela Editora Record.)
(Publicado pela Editora Record.)
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Soneto do menino que saiu para se divertir (versão final)
Culpa nenhuma ele sente
Enquanto, dissimulado,
Tendo a rua atravessado,
Vai para a calçada em frente.
E remorso ele não tem
Quando, sem nem vacilar,
Se detém para falar
Com a puta que lhe diz "vem!".
E também não sente dó
Por haver furtado a avó
E esse dinheiro ir gastar
Não num rinque de patim,
Mas gozosamente assim,
Num quarto de lupanar.
Enquanto, dissimulado,
Tendo a rua atravessado,
Vai para a calçada em frente.
E remorso ele não tem
Quando, sem nem vacilar,
Se detém para falar
Com a puta que lhe diz "vem!".
E também não sente dó
Por haver furtado a avó
E esse dinheiro ir gastar
Não num rinque de patim,
Mas gozosamente assim,
Num quarto de lupanar.
Receita (versão final)
Com dois quartetos
dois tercetos e algumas rimas
tu podes fazer
um soneto parnasiano
uma obra-prima
E com três quartetos
e um dístico final
tu podes fazer
um soneto shakespeariano
uma obra sem igual
Coragem meu rapaz coragem
mostra que tu és capaz
de contar doze sílabas
sem nenhuma transgressão
ao tratado de metrificação
E visto que Musas já não há
talvez te seja útil
deixar crescer um cavanhaque
comprar um monóculo um fraque
e bancares o Olavo Bilac.
dois tercetos e algumas rimas
tu podes fazer
um soneto parnasiano
uma obra-prima
E com três quartetos
e um dístico final
tu podes fazer
um soneto shakespeariano
uma obra sem igual
Coragem meu rapaz coragem
mostra que tu és capaz
de contar doze sílabas
sem nenhuma transgressão
ao tratado de metrificação
E visto que Musas já não há
talvez te seja útil
deixar crescer um cavanhaque
comprar um monóculo um fraque
e bancares o Olavo Bilac.
Michê (versão final)
São Paulo é uma puta
de repertório completo
dá a frente
e arreganha o verso
A frente dá aleatoriamente
mas por amor à rima
o verso preferencialmente
no vale do anhangabaú.
de repertório completo
dá a frente
e arreganha o verso
A frente dá aleatoriamente
mas por amor à rima
o verso preferencialmente
no vale do anhangabaú.
Mario Quintana
Entre ser sua própria estátua, brilhando ao sol de Porto Alegre, ou um passarinho pousando um instante sobre ela, Mario Quintana, se lhe perguntassem o que preferiria, responderia gorjeando.
Mídia
Os bilhetes de suicidas agora são compartilhados nas redes sociais, e há até quem lhes aponte os erros de português, embora já seja ponto mais ou menos pacífico que matar-se, ou não, e seja de que forma for, é questão de gosto.
Pavão
O suicida que escolhe o enforcamento é um tantinho mais exibicionista que os demais e não tem medo de altura.
Amavios
Há quase três anos, quando a insônia lhe crava as garras, imerge um punhado de pétalas num copo de água, joga açúcar, mexe tudo bem com a colherzinha, diz solenemente o nome dela três vezes na solidão do quarto e, três vezes também, pronuncia com fervor: volta, volta, volta. Há três anos ele se entrega a esse ritual com o mesmo empenho e igual esperança. Nunca a ninguém mencionou, nem ninguém parece ter suspeitado, essa conjuração noturna. Se bem que nos dois últimos meses alguns amigos venham dizendo que emagreceu e outros tenham observado que anda muito pálido.
Amanhã
Cuida-te. Quando eu morrer, não virei puxar-te os pés apenas. Serei um fantasma com ambições maiores.
"Bessie", de Eduardo Galeano
"Esta mulher canta suas feridas com a voz da glória e ninguém pode ficar surdo ou distraído. Pulmões da noite profunda: Bessie Smith, imensamente gorda, imensamente negra, amaldiçoa os ladrões da Criação. Seus blues são os hinos religiosos das pobres negras bêbadas dos subúrbios: anunciam que serão destronados os brancos e os machos e os ricos que humilham o mundo."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
terça-feira, 9 de fevereiro de 2016
Na carne
Sente a nostalgia dos tempos em que, súdito, vivia para cantar os primores de sua rainha e às vezes errava propositalmente uma nota ou um verso, para receber no braço o castigo das unhas majestáticas e rancorosas.
Soneto das intenções ocultas
Ninguém sabe ainda de nada:
Da sua desilusão,
Da longa cogitação,
Da resolução tomada.
A sorte já foi lançada.
Está marcada a ocasião,
Programada toda a ação
E até a arma foi comprada.
Para o bilhete final
Ele já tem o essencial,
Já sabe o que vai dizer.
Narrará a tola vida
Do escritor e do suicida.
Só falta agora escrever.
Da sua desilusão,
Da longa cogitação,
Da resolução tomada.
A sorte já foi lançada.
Está marcada a ocasião,
Programada toda a ação
E até a arma foi comprada.
Para o bilhete final
Ele já tem o essencial,
Já sabe o que vai dizer.
Narrará a tola vida
Do escritor e do suicida.
Só falta agora escrever.
Malevolência
Há quem na última hora invente uma doença da filha e fique escarrapachada a tarde toda diante da tevê, para furtar-se a um encontro de amor.
Soneto da contabilidade do amor
Foi simples. O amor me viu
No mesmo instante em que o vi.
Ele para mim sorriu,
Eu na hora retribuí,
Logo ele me seduziu,
Eu logo me seduzi,
Ele então me conduziu,
E obediente eu o segui.
Foi um tempo prodigioso.
Cada prazer, cada gozo
Com lágrimas eu paguei.
E, porque eu gozava tanto
Com o riso quanto com o pranto,
Com o amor somente ganhei.
No mesmo instante em que o vi.
Ele para mim sorriu,
Eu na hora retribuí,
Logo ele me seduziu,
Eu logo me seduzi,
Ele então me conduziu,
E obediente eu o segui.
Foi um tempo prodigioso.
Cada prazer, cada gozo
Com lágrimas eu paguei.
E, porque eu gozava tanto
Com o riso quanto com o pranto,
Com o amor somente ganhei.
"Carmem", de Eduardo Galeano
"Toda brilhosa de lantejoulas e colares, coroada por uma torre de bananas, Carmem Miranda ondula sobre um fundo de paisagem tropical de cartolina.
Nascida em Portugal, filha de um fígaro pobretão que atravessou o mar , Carmem é hoje em dia o primeiro produto de exportação do Brasil. O café vem depois.
Esta baixinha safada tem pouca voz, e a pouca voz que tem desafina, mas ela canta com as cadeiras e as mãos e com o piscar dos olhos, e com isso tem de sobra. É a mais bem paga de Hollywood; possui dez casas e oito poços de petróleo.
Mas a empresa Fox se nega a renovar seu contrato. O senador Joseph MacCarty denunciou-a como obscena, porque durante uma filmagem, em plena dança, um fotógrafo delatou intoleráveis nudezas debaixo de sua saia voadora. E a imprensa revelou que já em sua mais tenra infância Carmem tinha recitado para o rei Alberto da Bélgica, acompanhando os versos com descarados gestos e olhares que provocaram escândalo nas freiras e uma prolongada insônia no monarca."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Nascida em Portugal, filha de um fígaro pobretão que atravessou o mar , Carmem é hoje em dia o primeiro produto de exportação do Brasil. O café vem depois.
Esta baixinha safada tem pouca voz, e a pouca voz que tem desafina, mas ela canta com as cadeiras e as mãos e com o piscar dos olhos, e com isso tem de sobra. É a mais bem paga de Hollywood; possui dez casas e oito poços de petróleo.
Mas a empresa Fox se nega a renovar seu contrato. O senador Joseph MacCarty denunciou-a como obscena, porque durante uma filmagem, em plena dança, um fotógrafo delatou intoleráveis nudezas debaixo de sua saia voadora. E a imprensa revelou que já em sua mais tenra infância Carmem tinha recitado para o rei Alberto da Bélgica, acompanhando os versos com descarados gestos e olhares que provocaram escândalo nas freiras e uma prolongada insônia no monarca."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016
As duas na lojinha
A nova balconista já completou dois meses na lojinha. Olga está satisfeita com ela. É educada, discreta e boa vendedora. Com uma virtude adicional: quando não há freguesas para comprar as blusas, não fica puxando assunto. Entendem-se em silêncio, como agora: as duas estão no fundo da loja. Já apagaram quase todas as luzes. É hora de fechar. Olga pega uma blusa para recolocá-la no lugar. A balconista estende a mão para a mesma blusa. Os dedos se tocam. Olga se alvoroça. Olha para a balconista, com um sorriso de desculpa que não se abre convincentemente. O que é isso? O que ela vai pensar? Mas nos olhos da outra há um brilho diferente. Olga sente os dedos apertando os seus. Retribui. Reconhece agora o rosto da moça. Sim, é ela, a loira do filme pornô de ontem, na tevê, aquela que supliciava a mão da parceira morena. Agora, talvez como a loira no filme, ela morderá sua orelha. Quando ela avança com os lábios, Olga se lembra de como a cena continuava. Deixa-se morder e, em seguida, segura o rosto da balconista e manda: agora abre essa boca, que eu vou comer tua língua. A outra a chama de Pâmela e provoca: então come.
Sozinha
Está sozinha há muito tempo. Deve ser por isso que repentinamente, hoje cedo, se pegou beijando as costas da mão como se ali fosse a boca de alguém. Tinha acabado de tomar o café. No início sorriu, como uma garota fazendo uma travessura, mas alguma recordação íntima havia despertado nela, e no momento seguinte estava passando a língua na palma salgada. Começou a sussurrar amor, e logo se ouviu dizendo alto amor, amor. Tinha se levantado da cadeira, estava de pé no meio da cozinha e lambia agora a face interna do braço. Dava duas ou três lambidinhas lentas e ia dizendo amor, amor, amor, cada vez mais alto. Quando as pernas se puseram a tremer ela parou, retesou-se, esfregou uma coxa na outra e, porque já não dizia mas gritava amor, ligou o liquidificador e estremeceu com ele ensurdecedoramente.
"Rita", de Eduardo Galeano
"Conquistou Hollywood mudando de nome, de peso, de idade, de voz, de lábios e de sobrancelhas. Sua cabeleira passou do negro opaco ao vermelho afogueado. Para ampliar a testa, lhe arrancaram pelo por pelo através de dolorosas descargas elétricas. Em seus olhos, puseram pestanas como pétalas.
Rita Hayworth se disfarçou de deusa, e talvez o tenha sido, ao longo dos anos quarenta. Já os cinquenta exigem deusa nova."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Rita Hayworth se disfarçou de deusa, e talvez o tenha sido, ao longo dos anos quarenta. Já os cinquenta exigem deusa nova."
(De Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
domingo, 7 de fevereiro de 2016
Três ou dois
Daqui a três anos, ou até mesmo dois, ele pensa, ela será só uma mulher mais gorda que hoje, interessada apenas em ficar dia e noite vendo séries de tevê. Com a aflição que ainda lhe dá lembrar-se dela, ele procura fixar-se nessa antecipação do futuro e sente-se momentaneamente feliz, porque daqui a três anos, ou dois, estará isento de partilhar algum episódio de série com ela e de ter nas narinas o cheiro áspero daquele fuminho do qual ela certamente ainda não se terá livrado. Ele diz a si mesmo: já pensou? Ufa! Como foi bom terminar. Diz e espera o efeito, mas já não se sente feliz, nem aliviado. A culpa o faz então reprojetar a imagem dela, e ele a refaz tal qual foi há cinco anos, como talvez ainda esteja agora, tão bela e tão longe dele.
Cruzada
Mesmo dos poetas que falam de amor, só de amor, sempre se pode cobrar que falem um pouco mais. O amor há de ser intenso e constante como uma cruzada.
Uma tirada de Mario Quintana, contada por Juarez Fonseca
"A segunda versão do filme King Kong, com Jessica Lange, formava filas e filas no Cine Cacique, em 1976. Quintana relutava em ver, pois gostara muito da versão original co Fay Wray, um clássico dos anos 30, e temia decepcionar-se. O crítico Ivo Stigger, a quem chamava de 'Alemãozinho do Cinema', tanto insistiu que ele foi ver..
Voltou com os olhos brilhando:
'Fiquei tão erotizado!'
'Já sei, poeta, te apaixonaste pela Jessica Lange.'
'Que loirinha, que nada! Sensual é o gorilão. Ou não notaste que ele tem os peitos da Rachel Welsh?!...'"
(Do livro Ora bolas, edição da L&PM.)
Voltou com os olhos brilhando:
'Fiquei tão erotizado!'
'Já sei, poeta, te apaixonaste pela Jessica Lange.'
'Que loirinha, que nada! Sensual é o gorilão. Ou não notaste que ele tem os peitos da Rachel Welsh?!...'"
(Do livro Ora bolas, edição da L&PM.)
sábado, 6 de fevereiro de 2016
Requinte
No fim tornou-se cínico, e recomendava a ela que escolhesse melhor os homens com os quais ia traí-lo.
Madrugada
Nosce te ipsum
diz-lhe sempre a mesma mulher
no sempre mesmo sonho
incitando-o a cavar
mais fundo
mais dentro
enquanto ela continua dizendo
nosce te ipsum
nosce nosce
até ele acordar no meio de um gozo falso
que é mais uma tosse
do que um orgasmo.
diz-lhe sempre a mesma mulher
no sempre mesmo sonho
incitando-o a cavar
mais fundo
mais dentro
enquanto ela continua dizendo
nosce te ipsum
nosce nosce
até ele acordar no meio de um gozo falso
que é mais uma tosse
do que um orgasmo.
Pompa
Sempre que pudermos dizer mudança, não digamos metamorfose. Tudo que em nós tiver a possibilidade de soar falso, assim é que soará.
Prêmio
Quando as esperanças do amor tiverem se transformado em pó, sopra-as para cima e pede à mais afetuosa das brisas que as leve a uma nuvem tão alta quanto foi a aspiração delas enquanto estiveram vivas.
Partes
Para não provocar suspeitas, um poeta há de ter cabeça, tronco e membros, mesmo que só venha a usar o coração.
Os que
Os que não morrem de amor tornam-se tipos barrigudos, lerdos, que arrotam com saúde de bezerro e coçam o cu meticulosamente, como se subornassem uma esperança.
Um trecho de Cristovão Tezza
"A ideia não é tão absurda, defendeu-se: se somos o que nos veem, as mulheres deixam de ser mulheres muito mais cedo do que os homens deixam de ser homens."
(De O fotógrafo, publicado pela Record.)
(De O fotógrafo, publicado pela Record.)
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016
Cotação do dia
Quando ela descobrir que tudo que eu lhe disse era o que eu tinha no coração, não o terei mais para testemunhar.
Mario Quintana
Se uma pessoa me disser, uma só, que certas manhãs Mario Quintana distribuía migalhas de estrelas aos pombos, eu acreditarei - ainda que mil pessoas me assegurem, e provem, que nunca houve estrelas nem pombos em Porto Alegre.
Amor
Ele tremia toda vez que se encontravam. Era o tremor de sua alma agradecida por tanto encanto, mas também era, já, o receio que ele sentia de vir a ser devorado pelo amor, como depois ocorreu.
O detalhe
O homem entrou na sala de velório e cumprimentou todos, curvando solenemente a cabeça. Quem era? Ninguém sabia dizer. Enquanto todos se entreolhavam, ele andou até o defunto, parou. Tirou os óculos, colocou-os de novo. Sorriu, decepcionado. Saiu lentamente, acenando desculpas: "O meu defunto tem cavanhaque."
Pontos de vista
Queixam-se dele - e o acusam de pessimista - porque vive falando da morte. Ele responde que está pensando no seu futuro.
Nem mais isso
Os mortos moderninhos têm um motivo a mais para serem deplorados: a impossibilidade de tirarem uma selfie do momento supremo.
Outra historinha de Mario Quintana
"Saguão do Hotel Presidente, na Avenida Salgado Filho, um dos tantos endereços do poeta. O dono do hotel encontra Mario com as mãos no bolso do paletó, parado daquele seu jeito, olhando sem olhar, à espera de nada. E resolve interferir com uma brincadeira.
- Seu Mario, me disseram que o senhor vive dando em cima das moças que se hospedam no hotel...
Foi o que bastou para animar-se o velho sorriso ao mesmo tempo malicioso e ingênuo, quase adolescente:
- Olha, Pedrinho, não é verdade. Mas pode espalhar."
(Do livro Ora bolas - O humor de Mario Quintana, de Juarez Fonseca, edição da L&PM.)
- Seu Mario, me disseram que o senhor vive dando em cima das moças que se hospedam no hotel...
Foi o que bastou para animar-se o velho sorriso ao mesmo tempo malicioso e ingênuo, quase adolescente:
- Olha, Pedrinho, não é verdade. Mas pode espalhar."
(Do livro Ora bolas - O humor de Mario Quintana, de Juarez Fonseca, edição da L&PM.)
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016
Incompatibilidade
Amou a grandeza, sem ser jamais correspondido. Até seus infartos foram todos insignificantes, menos o último, que o matou e do qual ele não pôde se gabar.
Sina
O poeta romântico abriu a boca para beber um gole da repentina chuva noturna. Tomou dois e morreu no terceiro, com uma estrela entalada na garganta.
Igualdade
Aprendamos a tratar a morte com bom humor. Talvez ela seja uma piada tão boa quanto a vida.
Contendas
Do tempo em que
pelo amor combatia
quase nada lhe ficou.
Apenas uma pouca lembrança
duas ou uma fotografia
e de sua lança
outrora invencível
somente uma varinha flexível
como a haste de uma roseira.
pelo amor combatia
quase nada lhe ficou.
Apenas uma pouca lembrança
duas ou uma fotografia
e de sua lança
outrora invencível
somente uma varinha flexível
como a haste de uma roseira.
Uma historinha de Mario Quintana, contada por Juarez Fonseca
"Em seu escritório na Editora Sulina, o editor Sérgio Lüdtke recebe um poeta bageense. Quer que a Sulina promova o lançamento e a distribuição de seu livro, já pronto, em edição pessoal. Um dos argumentos para convencer Sérgio a abraçar a causa é o prefácio, mencionado com enorme orgulho e estampado, como se diz, em chamada de capa: 'Prefacio de Mario Quintana'. Sérgio foi conferir:
'A vida me ensinou que a gente só gosta de quem é parecido com a gente. Lendo os versos de Fulano de Tal, vejo que somos muito diferentes. Talvez esteja aí o seu grande valor. Mario Quintana.'"
(Do livro O humor de Mario Quintana, edição da L&PM.)
'A vida me ensinou que a gente só gosta de quem é parecido com a gente. Lendo os versos de Fulano de Tal, vejo que somos muito diferentes. Talvez esteja aí o seu grande valor. Mario Quintana.'"
(Do livro O humor de Mario Quintana, edição da L&PM.)
"Isadora", de Eduardo Galeano
"Descalça, despida, envolvida apenas pela bandeira argentina, Isadora Duncan dança o hino nacional.
Comete esta ousadia numa noite de 1916, num café de estudantes de Buenos Aires, e na manhã seguinte todo mundo sabe: o empresário rompe o contrato, as boas famílias devolvem suas entradas ao Teatro Colón e a imprensa exige a expulsão imediata desta pecadora norte-americana que veio à Argentina para macular os símbolos pátrios.
Isadora não entende nada. Nenhum francês protestou quando ela dançou a Marselhesa com um xale vermelho como traje completo. Se é possível dançar uma emoção, se é possível dançar uma ideia, por que não se pode dançar um hino?
A liberdade ofende. Mulher de olhos brilhantes, Isadora é inimiga declarada da escola, do matrimônio, da dança clássica e de tudo aquilo que engaiole o vento. Ela dança porque dançando goza, e dança o que quer, quando quer e como quer, e as orquestras se calam frente à música que nasce de seu corpo."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Comete esta ousadia numa noite de 1916, num café de estudantes de Buenos Aires, e na manhã seguinte todo mundo sabe: o empresário rompe o contrato, as boas famílias devolvem suas entradas ao Teatro Colón e a imprensa exige a expulsão imediata desta pecadora norte-americana que veio à Argentina para macular os símbolos pátrios.
Isadora não entende nada. Nenhum francês protestou quando ela dançou a Marselhesa com um xale vermelho como traje completo. Se é possível dançar uma emoção, se é possível dançar uma ideia, por que não se pode dançar um hino?
A liberdade ofende. Mulher de olhos brilhantes, Isadora é inimiga declarada da escola, do matrimônio, da dança clássica e de tudo aquilo que engaiole o vento. Ela dança porque dançando goza, e dança o que quer, quando quer e como quer, e as orquestras se calam frente à música que nasce de seu corpo."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
O grito
Tu gritarás amor! e ele, rindo, irá se afastando. Continuarás gritando, mas a única resposta que a brisa há de te trazer será, já quase inaudível, o som do riso dele, assinalando o horizonte como os cães de García Lorca.
Retrato
No dia em que conheceres o amor, guarda bem a face amável dele, o sorriso, os olhos que te prometem venturas. Nunca mais o verás assim.
Cautela
Quem se mete com o amor deveria ter ao menos sete vidas, como os gatos, e a capacidade de distinguir, como eles, entre os que os afagam, quem os ama e quem deseja apenas exercitar gratuitamente a sensualidade dos dedos ou conseguir uma boa companhia para uma selfie.
Fraude
A literatura, minha desculpa mais antiga, vem se tornando dia a dia menos convincente. Sinto-me como um farsante arrependido que espera ser desmascarado para pedir perdão.
Daltonianas
Sempre que pensa nas mulheres dos contos de Dalton Trevisan, o que imediatamente o excita é imaginar os tufos que elas têm nas axilas, dos quais se exala um vicioso cheiro de suor e desodorante caseiro.
"Frida",de Eduardo Galeano
"Tina Madotti não está sozinha frente aos inquisidores. Está acompanhada, de cada braço, por seus camaradas Diego Rivera e Frida Kahlo: o imenso buda pintor e sua pequena Frida, pintora também, a melhor amiga de Tina, que parece uma misteriosa princesa do Oriente mas diz mais palavrões e bebe mais tequila que um mariachi de Jalisco.
Frida ri às gargalhadas e pinta esplêndidas telas desde o dia em que foi condenada à dor incessante.
A primeira dor ocorreu lá longe, na infância, quando seus pais a disfarçaram de anjo e ela quis voar com asas de palha; mas a dor de nunca acabar chegou num acidente de rua, quando um ferro de bonde cravou-se de um lado a outro em seu corpo, como uma lança, e triturou seus ossos. Desde então ela é uma dor que sobrevive. Foi operada, em vão, muitas vezes; e na cama de hospital começou a pintar seus autorretratos, que são desesperadas homenagens à vida que lhe sobra."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Frida ri às gargalhadas e pinta esplêndidas telas desde o dia em que foi condenada à dor incessante.
A primeira dor ocorreu lá longe, na infância, quando seus pais a disfarçaram de anjo e ela quis voar com asas de palha; mas a dor de nunca acabar chegou num acidente de rua, quando um ferro de bonde cravou-se de um lado a outro em seu corpo, como uma lança, e triturou seus ossos. Desde então ela é uma dor que sobrevive. Foi operada, em vão, muitas vezes; e na cama de hospital começou a pintar seus autorretratos, que são desesperadas homenagens à vida que lhe sobra."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
terça-feira, 2 de fevereiro de 2016
Mario Quintana
Em Mario Quintana, a poesia era um ato corriqueiro como pegar um lenço - se bem que, no caso dele, isso sempre fizesse sair do bolso uma borboleta.
Ambição
Quando morrer, espera que a suspeita seja uma loira longilínea, de mãos delicadas, dessas que nasceram com a aptidão de percorrer as teclas de um piano e estrangular amorosamente um homem, ainda que ele não mereça esse mimo.
Fetiche
Não sabe como sentir-se: se moderninho, se depravado. Mas não consegue mais pensar em um umbigo sem imaginá-lo ornado por um piercing cujo gosto se esforça gozosamente para adivinhar.
Como se
Quando se lembra do amor, é como se estivesse na última fileira de um cinema, vendo um filme em preto e branco com um som quase inaudível e péssima projeção.
Bacanal - Parte II
Quando jovem, era comum ele se ver em sonhos nos quais, assediado por várias mulheres, pedia que tivessem paciência, porque atenderia todas. Esta noite, numa reprise de um daqueles sonhos, meia dezena de esplêndidas loiras que não tinham no corpo nada além de um par de botas acenou para ele que, andando covardemente para trás, perguntava: "Quem? Eu?", até acordar.
"Elas levam a vida nos cabelos", de Eduardo Galeano
"Por mais negros que crucifiquem ou pendurem em ganchos de ferro que atravessam suas costelas, são incessantes as fugas nas quatrocentas plantações da costa do Suriname. Selva adentro, um leão negro flameja na bandeira amarela dos cimarrões. Na falta de balas, as armas disparam pedrinhas ou botões de osso; mas a floresta impenetrável é o melhor aliado contra os colonos holandeses.
Antes de escapar, as escravas roubam grãos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijão e sementes de abóbora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam nos refúgios abertos na selva, as mulheres sacodem a cabeça e fecundam, assim, a terra livre."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
Antes de escapar, as escravas roubam grãos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijão e sementes de abóbora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam nos refúgios abertos na selva, as mulheres sacodem a cabeça e fecundam, assim, a terra livre."
(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, edição da L&PM.)
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
Manha de gato
O gato aquece as garras no filete de sol que se estende sobre ele, no sofá. Ansioso, ouve o ruído dos talheres sendo recolhidos na cozinha. Logo a garota que está passando uns dias na casa e sempre lhe faz uns agrados estranhos virá sentar-se e puxá-lo para o colo.
Acerto
Quando ele (ou ela) chegar até ali onde tua luxúria palpita e se umedece, que possas pensar por um instante que ao menos um dos dedos é meu. Se pecares, será por uma boa causa, e te juro que não revelo a ninguém.
Palavras
Se ela conhecesse as palavras êxtase e júbilo, talvez as dissesse agora, neste instante em que ele, como se cumprisse uma vingança longamente premeditada, lhe dá as derradeiras estocadas amorosas com um ímpeto que faz a cama gemer, só gemer, por ignorar, como ela, as palavras êxtase e júbilo.
Adesivo para mesa de micro
Há de ser tão agradável morrer
que nos perguntaremos por que
com todos os diabos e santos
perdemos tanto tempo em viver.
que nos perguntaremos por que
com todos os diabos e santos
perdemos tanto tempo em viver.
Cotação do dia
Quando eu não puder mais sentir-lhes o perfume, tu me mandarás flores que serão plantadas no meu peito frio e sáfaro.
Conhecimento
Depois de tantas décadas, não há para você outro jeito senão acreditar na poesia. Pelo menos na que os outros fazem.
"O epitáfio de Swift", de Yeats
"Swift navegou até ao seu repouso;
Não pode aí a feroz indignação
Lacerar-lhe o peito.
Imita-o se fores capaz,
Entorpecido viajante do mundo;
Ele serviu a liberdade do mundo."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Não pode aí a feroz indignação
Lacerar-lhe o peito.
Imita-o se fores capaz,
Entorpecido viajante do mundo;
Ele serviu a liberdade do mundo."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)