sexta-feira, 30 de junho de 2017

A voz rouca

O velho poeta sente, cada vez mais atenuado, o impulso de causar ainda espanto. Tenta novos temas, testa outras formas, pensa que lhe voltou o ímpeto da juventude. Substitui seus cisnes e seus lagos por vertiginosas cenas e nelas introduz uma vigorosa cacofonia urbana. Mas o único espanto que consegue provocar nos jovens é a pergunta: como certos mortos mantêm a capacidade de respirar e escrever?

Intimidades

O bobo da corte diz que a rainha tem, próximo do umbigo, um J artisticamente inscrito. O nome do bobo da corte é Francis. Só aos amigos ele revela que é Francis James e que, nas peripécias noturnas, a rainha Lisbeth implora que ele a chame de Fofa.

Modelo

Hoje ele imita Deus com tanta veracidade que lamenta não ter começado antes. Talvez fosse possível a perfeição.

Hoje no portal do Estadão eu...

... ofereço um poema. Nada tenho de melhor.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/aceitam-um-poema/

"Sob as pontes do amor", de René Depestre

"Vejo-te aos quinze anos amante de tua prima
para ti sua beleza é um fio telegráfico
onde teus desejos pousam seus gritos de pássaro...
Com ela por vezes engolfas-te num rio
que corre sobre a efígie das chamas de seu corpo
e nossas delícias se unem em um rápido sol
e são como luar sobre a noite dos peixes...

Aos quinze anos te vejo unido à Bem-Amada
que fertiliza as famintas glebas de teu sangue...

Oh Bem-Amada então eu não sabia
de mais negra e radiosa missa do que aquela
que baixinho teus seios celebravam
no âmago de minhas veias no âmago de minhas veias!

Ai de mim!

Uma tarde, lembras-te? ela retoma
as chaves de seu corpo adolescente
chaves de meus horizontes
e eis que estás arruinado eis que estás condenado."

(Tradução de Idelma Ribeiro de Faria, Editora Hucitec.)

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Orfandade

Quem dos humanos tem dó?
Por acaso merecemos
Sofrer tudo que sofremos
Para nos tornarmos pó?

Tal mas talvez não qual

A sinonímia não é
Por si só plena e certeira.
Fé não parece tão fé
Se dita de outra maneira.

Convicção

Por uma tradição que vem passando desde a primeira até a mais recente das gerações, os cisnes acreditam que a lua e todos os lagos do mundo existam unicamente para lhes realçar a beleza.

Drama

Morrer faz parte do enredo,
É fato mais do que fato.
Uns morrem no terceiro ato,
Os outros morrem mais cedo.

Jesus via Net

Me ajuda, meu  bom Jesus.
Tua senha deste-me um dia
Que eu busco hoje em agonia.
Não sei, Senhor, onde a pus.

Solidariedade

Nada há de mais cristalino.
Um sino imita outro sino.
Se um toca, os outros também;
Blém um, blém dois, três blém.

Gêmeas

Quando Ismália enlouqueceu,
Ismênia não se condoeu
E pôs-se na torre a cantar:
"Se era para uma das duas pirar,
Antes ela do que eu."

... embora pareça

Não, tonitruante não é o nome de um astro de Hollywood.

Suor

Salgada e precisa,
No meio de um e outro seio,
A gota desliza.

Início de "O homem duplicado", de José Saramago

"O homem que acabou de entrar na loja para alugar uma cassete vídeo tem no seu bilhete de identidade um nome nada comum, de um sabor clássico que o tempo veio a tornar rançoso, nada menos que Tertuliano Máximo Afonso. Ao Máximo e ao Afonso, de aplicação mais corrente, ainda consegue admiti-los, dependendo, porém, da disposição de espírito em que se encontre, mas o Tertuliano pesa-lhe como uma lousa desde o primeiro dia em que percebeu que o malfadado nome dava para ser pronunciado com uma ironia que podia ser considerado com uma ironia que podia ser considerada ofensiva."
(Publicação da Companhia das Letras.)

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Apogeu

O velho parnasiano atingiu a perfeição em sua técnica. Transforma qualquer tossezinha seca em acessos de gloriosos dodecassílabos.

Cotação do dia

Cada dia a mais de convívio com meu corpo me impõe a certeza de que, se a poesia um dia resolver voltar, precisará crer na existência de pelo menos um fiapo de alma, ainda, em mim.

De corpo inteiro

O amor é como o Diabo. A essa altura da história da humanidade, não há como pintá-lo pior.

Façanhas

Você diz ter morrido tantas vezes. Que falta de humildade, que desperdício. Pode vir a lhe fazer falta, no dia.

Vindita

Lhe agradaria ter sido
Um escritor rejeitado,
Humilhado, desprezado,
Pelo Nobel redimido.

Lojinha da Poesia

Não, hoje não tenho nenhum
enjambement. Se ainda precisar,
por favor passe amanhã.

Iluminação

Conhecer Fernando Pessoa nos devolve imediatamente à infância. Como nos soa pueril tudo que escrevemos.

Penúltimos passos

Que gozo estarmos assim
Longe das mesquinharias,
Do reles, das ninharias,
E tão perto já do fim.

Sic transit

César foi tão poderoso.
Que inveja de nós teria
Se nos visse hoje, num dia
De sol tão pleno e glorioso.

Modo de ser

Mais valem pugnas que paz.
A dor é o que me constrói.
Execro o que não me dói,
O que me dói me perfaz.

Início de "A incrível e triste história da cândida Eréndira e sua avó desalmada", de Gabriel García Márquez

"Eréndira estava banhando a avó quando começou o vento de sua desgraça. A enorme mansão de argamassa lunar, perdida na solidão do deserto, estremeceu até os fundamentos com a primeira investida. Mas Eréndira e a avó estavam acostumadas aos riscos daquela natureza desatinada, e mal notaram a intensidade do vento no banheiro adornado de pavões-reais repetidos e mosaicos pueris de termas romanas."
(Tradução de Remy Gorga, filho, publicação do Círculo do Livro.)

terça-feira, 27 de junho de 2017

Titanic

Faz tempo que o Brasil afunda.
Num ano a corrupção sobeja,
No outro a bandalheira abunda.

Mario Quintana

A poesia de Mario Quintana nos recebe sempre simpaticamente, como o desenho de um sol sorrindo na folha inicial do caderno de desenho de um menino de seis anos.

Círculo

Os poetas nos encantam quando fazem o sol sorrir ou uma fonte cantar. As crianças não se entusiasmam tanto. Estão habituadas a essas fantasias tão caras à poesia. Logo serão instadas a adotar a linguagem dos adultos. Quem, dentre elas, vier a se dedicar o ofício da poesia precisará recuperá-la quando for o tempo.

Ajeitadinha

Sugeriram ao poeta concretista que, antes de lançar a segunda edição de seu livro, desse ao menos uma boa mão de tinta nele.

Crueldade

O crítico desconstruiu o poema concretista pedra por pedra

Atenuante

Poemas abomináveis cometidos entre os quinze e os vinte e cinco anos deveriam ser classificados na categoria dos pecadilhos literários.

O mistério

O que você sente hoje é que deve continuar escrevendo. Qual é exatamente o motivo você já soube, mas há muito tempo.

Meteorologia

Com mil trovões!
Quem semeia tempestades
Se afoga em inundações.

Início de "Tia Júlia e o escrevinhador", de Mario Vargas Llosa

"Nesse remoto tempo, era eu muito jovem e vivia com meus avós numa quinta de paredes brancas da Rua Ocharán, em Miraflores. Estudava em São Marcos, direito, acredito, resignado a ganhar a vida mais tarde com uma profissão liberal, embora, no fundo, teria preferido chegar a ser escritor. Tinha um trabalho de título pomposo, salário modesto, apropriações indébitas e horário elástico: diretor de informações da Rádio Panamericana."
(Tradução de Remy Gorga, filho, Editora Nova Fronteira.)

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Estações

O passarinho o que espera?
Por que tanta hesitação?
Se já não fez primavera,
Como irá fazer verão?

Peculiaridade

Num poema parnasiano, as borboletas flutuam como se não fossem de mármore.

Aquele, lembra?

A má fama o acompanha. Décadas se passaram, seu rosto mudou, tudo nele está diferente, mas sempre há quem, vendo-o seja onde for, aponte: "Não é aquele dos sonetos?"

Mal-entendido

Houve tempo no qual se acreditava que os poetas fossem seres místicos. Foi com muito custo que eles se desfizeram dessa fama.

Opinião

Considero a falta de lirismo uma falha de caráter.

Paz

Num haicai, o silêncio, se for perturbado, há de ser no máximo pelo rumor, mais adivinhado que real, de uma borboleta.

O melhor dos dias

O escritor acordou sorrindo. Era domingo e ele tinha acabado de receber o Nobel. Espreguiçou-se, bocejou. Olhou para o alto e para os lados, como se estranhasse o quarto. O sorriso se desfez. No instante anterior, estava em Estocolmo. No seguinte, no Parque São Lucas, sem discurso nem Nobel. Domingos deveriam estar imunes a sonhos cruéis.

Equívoco

Não. Pesporrência não é um jorro disso que você pode estar imaginando.

"Polaca de Aspäker", de Eric Axel Karlfeldt

"Por que permanecemos sentados, imóveis e silentes,
as palavras caras já se esgotaram todas?
Os lábios jovens já foram todos beijados,
esses que sorriem em torno desta mesa?
Já se casaram todas as jovens donzelas,
que andam a curtos passos pela sala?
Já não há mais lares a ser constituídos?
Não há corações que ardam à nossa volta?

Vou urdir a lã, enrolar as meadas,
fabricar a manteiga e tosquiar as ovelhas.
Meus lábios nunca, nunca receberam beijos,
e talvez não os recebam ainda este ano.
Colherei bagas, tecerei o burel,
e trabalharei tanto que ficarei esguia.
Se tiver um esposo quando já for velha,
é a ti que escolherei, desde que estejas jovem."

(Tradução de Ivo Barroso, da coleção Prêmios Nobel de Literatura, Editora Delta.)

domingo, 25 de junho de 2017

Autenticidade

O concretista pesporrento
dá três pancadinhas no poema:
"É puro cimento!"

De qualquer jeito

Contra a gramática não há salvação. Ela nos pega pela regra ou pela exceção.

O que é

Não, definitivamente. Trepanação não é um ato sexual que envolve três ou mais participantes.

Fama

Se não fossem os poetas, de que se gabariam hoje a lua e as estrelas?

A dúvida

Tantas décadas depois, não sei se continuo escrevendo por alguma fé que possa ter ainda na literatura, ou por um desses hábitos que nos velhos são tão comuns quanto seu mau humor.

Cotação do dia

Tristezas passadas, movendo ainda inúteis moinhos.

Bem ali

A lojinha era ali, bem na esquina. Hoje é uma academia de ginástica. Ele se lembra das prateleiras impecavelmente arranjadas, dos artigos de bazar e papelaria. Tinham sido bons anos. Veio a derrocada, e o que resta de tudo são as dívidas, que ele ainda paga mês e mês. Ficou também a foto da placa, no celular. Às vezes ele olha para ela: Loja do Wellington. Contempla as letras vermelhas e suspira: eu fui o Wellington.

Comme il faut

Ama os outros
na medida certa.
É filantropo
ma non troppo.

De Ruy Castro, sobre James M. Cain

"James Cain teve um grande problema como escritor: passou a vida sendo comparado a Ernest Hemingway, Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Qualquer escritor normal adoraria que isso lhe acontecesse, mas essas comparações faziam Cain sofrer como o diabo. E com um agravante: ele era comparado favoravelmente. Hemingway, Hammett e Chandler, que não eram trouxas, nunca reclamaram por serem escalados em sua companhia. Mas Cain talvez tivesse razão de sofrer: ele preferiria que o comparassem a Dostoiévski."

(Da apresentação do livro O destino bate à porta, Editora Brasiliense.)

sábado, 24 de junho de 2017

Para Inês Pedrosa

Ilibada Inês
hurra uma
hurra duas
e mais uma vez.

Refrão de cançoneta

O capitão morreu subitamente
e o imediato também
imediatamente.

Reverência

Há uma torre em Pisa
ao redor da qual
o vento se faz brisa.

Presente

Eu te daria a lua
se ela não fosse outra dessas ninharias
que há tanto tempo
os poetas vêm oferecendo
em seus poemas
com o carimbo de cortesia.

Obra

Quando se mudou de Pedra Abaixo para Pedra Acima, o poeta concretista precisou de três caminhões dos maiores para transportar seus poemas. Felizmente, estava com vinte anos na época.

Cerimonial

O sol da tarde, antes de se deitar no sofá, pergunta à gata: "Posso, Majestade?"

Da poesia

Havemos de transmitir a poesia com a modéstia que sempre deve caber a quem não é senão um instrumento de uma voz superior.

Penúria

Era mais pobre do que poderia imaginar e querer para si o mais fervoroso dos poetas românticos.

Fora de época

Deveríamos ter tentado antes. Tanto tempo desperdiçado. A quem enganaremos agora, com estes olhos que lisonjeiam para pedir a condescendência devida aos morituros?

Agradinho

Não há nada que agrade mais aos poetas que um bom afago, embora eles sempre digam que não o querem e não o merecem.

Mania

Gramático é aquele tipo capaz de chamar três simpáticas palavras - ontem à noite - de locução adverbial de tempo, ou coisa pior.

Início de "A louca da casa", de Rosa Montero

"Estou acostumada a organizar as lembranças da minha vida em torno de um rol de namorados e de livros. Os diversos relacionamentos que tive e as obras que publiquei são as referências que marcam minha memória, transformando o ruído informe do tempo em uma coisa ordenada."
(Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicação da Ediouro.)

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Equilíbrio

Um cuidado que o poeta deve ter é o de não se encantar excessivamente com a beleza do seu ofício a ponto de ser tentado a assumir como tema único, ou principal, as peculiaridades do seu trabalho.

Oratória

Se deixarem um poeta se lastimar, ele em cinco minutos demonstrará ser mais injustiçado que Jesus Cristo, e mais virtuoso.

Sonho

Eu gostaria de ter sido um escritor amado por seus leitores, tivessem sido eles quantos tivessem sido. Não me importaria o ano ou o século em que eu houvesse vivido. É estranho isso, eu reconheço. Parece uma aspiração retroativa, uma dessas esquisitices típicas de um homem a quem o futuro já não diz muito.

Defesa da rosa

A rosa não esconde o desapontamento quando é citada em livros de botânica. Invoca a majestade que lhe atribuíram os poetas e diz que a rosa dos textos de botânica não é ela, é no máximo uma prima distante.

Unidos pelo consumo (para Silvana Guimarães)

Com expressões furiosas,
cada qual com seu argumento,
queixa-se o poeta romântico de um
e o poeta concretista de outro aumento -
um do preço da dúzia de rosas,
outro do preço do saco de cimento.

Do mesmo saco

Os poetas concretistas jamais admitiram, mas o que pretenderam sempre foi também terem sua torrezinha de marfim.

Bem-aventurança

O mais venturoso dos tolos é aquele que nada sabe de sua tolice. O apaixonado é o exemplo clássico.

Uma colherada de Henri-Frédéric Amiel

"A minha indiferença é antes adquirida que original. O que é antigo em mim é a desesperança, e a reflexão preferida à ação. O mal de Hamlet é também o meu mal. É, igualmente, a tendência de uma grande parte dos pensadores alemães, e o fundo búdico da doutrina de Schopenhauer. O impulso animal e a vontade são inferiores ao pensamento."
(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações.)

No portal do Estadão

Hoje escrevo sobre uma das paixões da minha vida: o haicai.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/no-haicai-a-alma-japonesa/

quinta-feira, 22 de junho de 2017

COTAÇÃO DO DIA

Sinto-me como se há muitos anos estivesse esperando um gato cuja entrega tivessem adiado, adiado, adiado. Hoje me avisaram que o gato morreu um dia depois de prometido.

Explicação (para Inês Pedrosa)

A paradinha que certas palavras precisam dar para recompor a respiração recebe o nome de hiato.

Democracia

Tudo bem que, se tiver alguma reclamação a fazer, um cachorro se ponha a latir. O problema é que os cachorros do meu bairro andam com uma pauta de reivindicações ampla demais.

Técnica

Como meio-termo entre um ponto e dois, Emily Dickinson preenchia o espaço com um traço.

Imagem

Eu gostaria de poder mostrar ao mundo algo mais que este olhar apatetado de quem descobriu que a vida não é lá essas coisas.

Companhia

Era um poeta execrado pelos outros. Andava sempre acompanhado por maus sonetos.

Tradição

A gramática tem essa má fama desde que farmácia se escrevia com "ph".

Amizade

Enquanto eu estiver respirando,
Do superlativo serei amicíssimo.
Quem mais, podendo me chamar de vivo,
Me chamará de vivíssimo?

De Robert Bréchon, sobre Fernando Pessoa

"Pessoa amou uma mulher, Ofélia, a ponto de pensar em casar com ela, ou de fingir que pensara nisso. Sua obra é cheia de poemas e de páginas de prosa que exaltam a mulher amada - sempre virgem, se possível mãe, e de preferência ausente. É um devoto do Eterno Feminino, mas esse culto da feminilidade,em si, situa-se num espaço imaterial, longe da esfera dos sentidos, fora do corpo. Pergunto-me se sua vocação inconsciente não seria satisfazer simultaneamente duas exigências contraditórias, que um Gide, entre outros, conseguiu perfeitamente conciliar: casar com a alma de uma mulher e com o corpo de rapazinhos."

(Do livro Fernando Pessoa - Estranho e estrangeiro, Editora Record.)

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Reticências (para Marcos Júnior Micheletti)

Reticências são lenços perdidos no céu por estrelas descuidadas.

A PERGUNTA

Toda manhã você se olha no espelho e pergunta: "Você é o tolo que se exauriu de amor?" E cada dia você se entende melhor, e seu sorriso se abre mais: "Sim, você é o tolo que se exauriu de amor."

Mania

Ainda hoje as vírgulas invocam direitos da época em que eram consideradas preciosos ornatos e, se deixarmos, penduram-se nos textos de ponta a ponta, como brincos.

Paraíso

Como eram leves, livres e alegres as aliterações antes de começarem a lhes apontar tantos tremendos defeitos.

Mão fechada

A poesia não nos atende mais quando lhe pedimos pão. Já nos conhece e sabe quanto, depois do pão, lhe exigiremos.

... enquanto dure

O ideal seria
que o amor fosse fortuito -
mas não muito.

Sob tortura

Era uma crase tão pavorosamente desgrenhada que eu disse ao gramático: "Tudo bem. Eu me entrego."

No dia

Quem acenderá uma vela para um soneto meu? E para os outros cento e tantos?

Impasse

Um sujeito indeterminado
Deixa um gramático possesso.
Como terminar um processo
Sem determinar um culpado?

Início de "Sonhos de Bunker Hill", de John Fante

"Meu primeiro encontro com a fama não foi nada memorável. Eu era ajudante de garçom na Confeitaria Marx. Foi em 1934. O lugar ficava na esquina da Rua Três com a Hill, em Los Angeles. Eu tinha vinte e um anos e morava num mundo que fazia fronteira com Bunker Hill, a oeste, a leste com a Rua Los Angeles, ao sul com Pershing Square e, ao norte, com o Civic Center. Eu era um ajudante de garçom inigualável, com grande estilo e talento para a profissão, e embora fosse terrivelmente mal pago (um dólar por dia, mais refeições), chamava considerável atenção enquanto girava de mesa em mesa, equilibrando a bandeja numa mão e arrancando sorrisos de meus fregueses."

(Tradução de Marilene Felinto, Editora Brasiliense.)

terça-feira, 20 de junho de 2017

MODO DE AGIR

Que você nunca se queixe de nada que deu ao amor. E, se você for tolo, como parece, perdoe tudo que ele não lhe deu.

Nem tanto assim (para Luiz Roberto Guedes)

Muito do que nos velhos é atribuído à experiência, principalmente em sexo, deveria ser creditado à imaginação.

Completo (para Herena Barcelos)

Ele é famoso porque, nos lances sadomasôs, seu chicote estala notas de La Cumparsita.

No caderno Viagem do Eatadão

Gilberto Amendola num texto supergostoso hoje, cheio de humorísticos naufrágios e navegações à deriva.

Anacronismo

Só recentemente compreendi que desde 1960 as histórias de amor não provocavam nada mais excitante do que bocejos.

Contraste

Os castelos dos poetas românticos se esvaíam. Os dos concretistas desmoronavam.

Ordem

O parnasiano guardava na gaveta de materiais poéticos o cisne, a lua e as estrelas.

A diferença

Poetas com mania de grandeza não fazem quadrinhas. Fazem quarteirões.

Amor filial

Um gramático, assim como um juiz de futebol, deve pensar na própria mãe sempre que for emitir uma opinião.

Sonho

Escrevi com pseudônimo um livro de sacanagem de tanto sucesso que nunca mais precisei usar meu nome.

Modus operandi

Se você abriu a janela esta manhã e um passarinho se pôs a cantar, ele, você e o sol terão sido mais uma vez vítimas da propaganda enganosa da Vida.

Dependência

De uns tempos para cá, só consigo rir quando consulto o manual. Gargalhar, nunca mais.

Bukowskiana

Lá pelas cinco
peguei as duas no trottoir
e fomos para o quarto
fazer ménage à trois.

Início de "A brincadeira favorita", de Leonard Cohen

"Breavman conhece uma garota chamada Shell cujas orelhas foram furadas para poder usar brincos compridos e filigranados. Os furos infeccionaram e agora ela tem uma pequena cicatriz no lóbulo de cada orelha. Ele as descobriu por baixo dos cabelos dela."
(Tradução de Alexandre Barbosa de Souza, Cosacnaify.)

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Soneto dos prazeres da cama (versão final)

Dos outros agora são
As alegrias da cama,
O fogo súbito, a chama,
Os gozos, a possessão.

Dos outros é agora a mão
Que toca, pede, reclama,
A boca que grita que ama
E exige a consumação.

Ontem era ele que arfava,
Que estremecia, gozava
E sempre queria mais.

Hoje ele lembra somente
De tudo só vagamente
E bem sabe que jamais.

COTAÇÃO DO DIA

Um morto, se bem treinado, sorriria melhor que eu.

Cotação do dia

Em nos devorar
em porções ou inteiro
o amor é useiro
e vezeiro.

Coro

Falemos de flores, por que não? E de amores. Por que desdenharíamos os temas que tão caros foram sempre aos nossos irmãos poetas? Se estivessem ainda entre nós, cantariam conosco.

Estágio avançado

Hoje lido bem com o amor. Atiro-o para o alto, bem alto, e recolho-o graciosamente. Não tenho receio de que caia e se espatife. Se cair e se espatifar, sei que é da natureza dele. Logo estará de pé, inteiro, pedindo aplausos. O amor é um saltimbanco.

Espécies

Quem quer morrer pela literatura pode escolher entre dois modos: o poético e o prosaico.

Definição

Amor é hoje só uma dessas tantas palavras que os jovens vão buscar no google.

Gaveta

O amor é uma das bobagens que guardo daquele tempo, conservadas em naftalina.

Bruxa

São Paulo é uma cidade de homens mesquinhos e mulheres secas. Um arco-íris só floresce aqui por engano meteorológico e geográfico.

Na praia

Deste-me sempre tanto azo
A me perder em teu mar.
Pobre de mim! Fez-me o acaso
Em teu raso me afogar.

Dois poemas de Emily Dickinson traduzidos por Idelma Ribeiro de Faria

"Oh, mel de um instante
Não conheço o teu  poder!
Proíbe-me.
Até que meu dote diminuto,
Minha flor não frequentada
Te mereça."

                    ***

"O fruto proibido é saboroso e pode
Dos pomares legais escarnecer.
Como é enjoativa a doçura da ervilha
Encerrada na fava do dever."

Do livro T.S. Eliot, Emily Dickinson e René Depestre, Editora Hucitec.)

domingo, 18 de junho de 2017

O contrato

O CONTRATO - Começamos renunciando a ninharias. Aprendemos a negociar. Persistimos. Acabamos renunciando a tudo. Viver não é tudo. Conviver é o lema.

Poeminha para se ler de lábios molhados (p/ Ana Clara Beauvoir)

Molly Bloom
duplo sinônimo de antirrecato
nome de se falar lento
com a língua no palato.

Cotação do dia

Depois que aprendeste a fingir, já não te cobram como antes. És como os outros. Vives.

Conteúdo (Para Edilaine Lopes e Inês Pedrosa)

Exceto aquele 1% de ginástica e contorcionismo, o amor é todo emoção e lirismo.

Hoje na revista Rubem,

falo de definições e, para ser justo, de indefinições.
(www.rubem.wordpress.com)

Cotação do dia

Pode ser só impressão minha,
Mas acho que não vou durar.
Cansam-me coisas comezinhas
Como andar e respirar.

Autoria (Para Inês Pedrosa)

Responda depressa:
Quem escreveu Dom Casmurro?
Não me venha com Eça.

Competência

Se conheces um rouxinol
não perguntes a um pardal
o que é um si bemol.

Datas

Em 1900 e tantos
ela lhe prometeu
que seria sua amada.

Às vezes ela ainda promete
mas é já 2017 -
e até agora nada.

Quando

O que será de nós no dia em que os verbos se conjugarem e se voltarem contra nós?

Reconsiderando

Não, bispote não é uma autoridade religiosa secundária.

Do manual do escritor

Ser lido ou não ser lido pode não parecer nada hoje. Amanhã, será a razão de ter sido ou não ter.

Detalhe

Um olhar atento veria
que o terno do defunto
era o mesmo do casamento.

"Um herdeiro de Carlito", de René Depestre

"Dá a teu lirismo calças largas
grandes sapatos um jaleco estreito
uma bengala um bigode e um chapéu
e armado desses fogos desce à rua
para ajudar a esperança e a pálida ternura
a levar sem recuar seus alforjes de cinza."

(Tradução de Idelma Ribeiro de Faria, do livro T.S. Eliot, Emili Dickinson e René Depestre, Editora Hucitec.)

sábado, 17 de junho de 2017

Altri tempi (para Rose Marinho Prado)

Ganhei a vida dizendo ser revisor e fingindo ser gramático. Não tive a mesma sorte como poeta.

Reconhecimento

Venturoso foi o tempo em que aos poetas se dava desconto na compra de flores e nos exames pulmonares.

Tecla em desuso

Jovens poetas malogrados apresentam cada vez menos a alegação de terem sido corrompidos por velhos sonetistas.

Nova fase

Quem frequenta os bastidores da gramática assegura que ela, finalmente preocupada com a opinião pública, pensa em negar toda relação com a crase e os verbos irregulares.

MÉRITO

Quando o amor nos deixou e afinal olhamos para nós, depois de por tanto tempo havermos olhado só para ele, soubemos por que ele estava indo embora. Porque nós não o merecíamos.

Procon

Se provarem que rir é mesmo o melhor remédio, quanto custará cada gargalhada?

Rotina

O poeta é capaz de ver a imagem de Deus num arco-íris e julgar isso um fato corriqueiro, ligado ao seu ofício.

Medida

Um poeta não deve se comover até às lágrimas. Sempre se espera algo mais dele.

História

O amor era um costume bastante disseminado até meados do século XIX.

Obstinação

Os poetas herméticos não se revelam nem nos autos de um processo.

Haja!

Todo edificante mantém ao menos um pé no paulificante.

Moderno Parnaso

Os poetas não contam mais sílabas, não rimam e - afortunadas são as mulheres de hoje - desistiram de fazê-las musas.

Obrigação

Quando exaltam o amor, é preciso reconhecer que os poetas estão defendendo seu ofício.

Hábito

Os gatos hoje sonham mais com pacotes de ração que com passarinhos.

Estatística

Meninos moradores de rua não costumam fugir de casa.

"Todos os reconhecem", de René Depestre

"Em todos os cantos do mundo
os reconhecem
pelo leite que emana de seu riso.

Os reconhecem
por seu coração dilacerado
por seus músculos sem repouso.

Os reconhecem
por suas pernas delgadas
seus pulsos de rijo metal
e pelos rouxinóis que em sua garganta fazem ninho.

Em todos os cantos do mundo.
Negros de tristes tempos."

(Tradução de Idelma Ribeiro de Faria, do livro T.S. Eliot, Emily Dickinson, René Depestre, publicado pela Editora Hucitec.)

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Alô, Molly (para Silvana Guimarães)

Querida molly
cismática senhora bloom
se fosses fonte
e me aceitasses
eu te exauriria gole a gole
minhamolly
e pouco me importaria
se depois me exaltasses
ou me execrasses
minhabloom
em teus monólogos de fogo
ou em monólogo nenhum.

Spleen

O Sol foi acometido por um tardio acesso de romantismo e anda se queixando: ah, Deus, que tédio. Mais um dia!

Tipos

Pior que o declamador que tosse e para no meio do poema é aquele que vai até o fim.

Tesouro

Guardemos um pouco de nossa pureza. Para que os nossos mortos não nos censurem quando formos visitá-los.

Labirinto (para Cassionei Niches Petry)

Sou mesmo um tolo.
No Bloomsday
Saí procurando Leopoldo.
Todos o viram,
Só eu não o encontrei.

Caos

E se as categorias gramaticais entrassem todas em greve?

Lógica

O pior que pode acontecer a um sujeito oculto é ser descoberto por um gramático.

... direi quem és (p/ Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha0

Há verbos de muito boa índole desencaminhados por sujeitos de mau caráter. Apalpar, por exemplo.

Limite

Quando parecemos estar nos dando bem com a gramática e enfiamos a mão por dentro de sua saia, ela nos espeta com uma crase.

Ostracismo

Que despeito deve sentir o defunto quando nota lá pelas tantas que todos já perderam o medo e o respeito e que não é mais ele o assunto.

Ampulheta

Cuide do rango seu
que eu cuido do meu
enquanto Deus na cozinha
assa nossa batatinha.

Imagem

A gramática parece uma bruxa velha com cachimbo e azia.

Anticlímax

As asas azuis da borboleta escapam do poema e enredam-se num parequema.

Como?

O que que você disse ser mesmo parequema?

Névoa

Não confio mais na memória. As palavras me vão fugindo e zombam de mim como crianças provocando um cão velho. Não me importo se perder a congruência, o tirocínio, a credibilidade, o descortino, o solipsismo e outras empertigadas preciosidades. Que me restem algumas palavrinhas com as quais eu possa ao menos, ainda que por passatempo, continuar sem alarde e sem pretensão exercitando minhas riminhas de ocasião.

Norma

Casos que tenham como objeto a crase deveriam ser julgados não por um, mas por uma junta de gramáticos.

Hoje no portal do Estadão...

... beijos são o assunto da crônica. Espero não ter escolhido mal.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/beijos-ah/

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Fernandônimos (para Inês Pedrosa)

Repeti Fernando Pessoa ao meu jeito. Fui mais de cem, como ele, com uma diferença: fui um pior que os outros.

Aquela aflição

Aquela aflição que nos dá a beleza, quando se revela. Aquele instante que acabou de passar, que não se repetirá e que nos deixará para sempre a pergunta: terá havido mesmo aquilo? E a resposta: não. Como nós mereceríamos, ainda que por um momento, sentir-nos como deuses?

De lua (para Ana Clara Beauvoir)

Sou instável. Estou sempre sujeito a chuvas, trovoadas e principalmente aos ensolarados sorrisos da moça do tempo.

Quando for

Conheceremos então nossa alma, e ela nos levará, como se fôssemos leves como ela, a uma paragem de nuvens brancas onde julgaremos, com uma dessas certezas únicas, ver Rilke e Bach.

Tristeza

Foi pena você não ter querido me ouvir. Eu julgava ser um passarinho naquele tempo. Talvez você concordasse.

Engano

Sinto desapontá-lo, mas trepanação não é tudo isso.

Obviedades

Quem nasce em Cuba é cubano,
Quem nasce em Chipre é cipriota,
Quem sofre de amor é humano,
Quem morre de amor é idiota,

Sete anos

Enquanto a Labão Jacó servia
corria o tempo sem dó
e sua amada Raquel envelhecia.

Manicômio

Quando Ismália enlouqueceu,
apaixonou-se por outro demente
que infelizmente não era eu.

Vazio

De tudo quanto hoje não somos
o que mais falta nos faz
é aquele menino que fomos.

No dia

Tenhamos no fim
ao menos dez amigos
ou coisa assim
que atestem nossa índole pura
e dez inimigos
ou coisa assim
que perdoando nossa essência impura
não se neguem a regar
com seu amarelo rancor
nossa sepultura.

Bestialógico

Alea jacta est
disse o romeno
como se em Roma estivesse
e não em Bucareste.

O jeito

Quem quiser saber do amor e de outras quinquilharias, que vá ao sebo buscar uma história da carochinha.

Um trecho de Inês Pedrosa

"Cláudia caminhava pela primeira vez sem destino. Seguiu o cheiro e o som até encontrar o mar inteiro diante dela, um azul imenso, duro e dócil, que transformava a luz numa outra coisa mais forte e escura. Não soube quantas horas ficou sentada naquela rocha, porque subitamente o tempo aparecera para apagar os traços domésticos da existência. Perdeu o domínio do mundo e sentiu-se embriagada por um riso estranho, interior, que não tinha qualquer relação com o seu velho hábito de rir."

(De A instrução dos amantes, publicação da Planeta.)

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Pavana para uma infanta defunta

Ela sonhou que era uma borboleta chamada a levar as notas de uma pavana à distante campa de uma infanta defunta e, por se atrasar no caminho, quando chegou não havia nem campa nem infanta defunta, mas um gramado gloriosamente estendido sob o sol.

Ora ora

Na gramática
vai bem sempre tudo
mas porém todavia contudo.

Valores

Se você não tem um gato, mas teve, eu lhe digo: você já foi muito melhor.

Soberba

Às vezes penso que alimentei com demasiada ambição minha tristeza.

Vanglória

Que presunção tivemos naquelas vezes todas em que nos apresentamos como lacaios do Amor. Quem, olhando para nós, acreditaria que tão elevado Senhor pudesse nos aceitar? Por que não nos mantivemos calados? Estaríamos livres das zombarias que nos atiram hoje na rua. Quisemos ser mais do que podíamos.

Foi há muito tempo. Ele confiava tanto no seu pacto com a poesia que, se dissesse lixo, urina, ou palavras piores, tinha certeza de que elas se transformariam em folha, chuva ou flor.

Perda total

Que bobagem foi o amor. Tão imperativo e tão fugaz. Tão pródigo em juras, tão mentiroso. Pena não lhe termos dado mais corda. Como suavemente nos mataria. O que fizemos? Quanto perdemos,ah, quanto. O que faremos com esta paz, aborrecida como a amadora pintura de um lago?

Astro

Como é exibido o sol. Toda manhã vem nos pedir aplausos. Mas nunca nos diz o que faz quando precisamos dele para nos livrar de nossos fantasmas, à noite, e ele não vem.

As faces

Reconheçamos: o bem, em nós, é mais trabalhoso que o mal. Precisamos nos concentrar para receber Deus, pensar num horário adequado à cerimônia que Ele impõe. Já o Diabo nos visita quando quer, e vem tão à vontade...

Um soneto de Pablo Neruda

"Diego Rivera com a paciência do osso
buscava a esmeralda do bosque na pintura
ou o vermelhão, a flor súbita do sangue,
recolhia a luz do mundo em teu retrato.

Pintava o imperioso talhe do teu nariz,
a centelha de tuas pupilas desbocadas,
tuas unhas que alimentam a inveja da lua,
e em tua pele estival, tua boca de melancia.

Te pôs duas cabeças de vulcão acesas
por fogo, por amor, por estirpe araucana,
e sobre os dois rostos dourados da greda

te cobriu com o casco de um incêndio bravio
e ali secretamente ficaram enredados meus olhos
em tua torre natal: tua cabeleira."

(De Cem sonetos de amor, tradução de Carlos Nejar, L&PM.)

terça-feira, 13 de junho de 2017

Anfiguri

Dê uma resposta rápida a esta:
quem diz hoje em dia
diz também ontem em véspera?

Personalidade

Meu instinto bovino
me instiga a me exprimir:
para mim, mais fácil
do que tugir é mugir.

Sombra (para José Almada)

No início, era o verbo. Mas já, atrás de uma das árvores do Paraíso, um advérbio espreitava.

Como ela poderia?

Reconheço que ela, talvez por meu exemplo, se esforçou para ser lírica. Mas como conseguiria? Na época, enlevado pela arte, eu tinha alma de passarinho.

Deus é uma ninharia

Era domingo. Mencionado como promessa do ano, o jovem poeta lia no restaurante pela segunda vez o texto do jornal quando um freguês, numa mesa distante, fez a outro a antiga pergunta: Deus existe? O poeta sorriu. Não era um assunto que naquele instante pudesse lhe interessar.

Gato de óculos

Tive um gato que vivia derrubando livros da estante. Não respeitava Shakespeare, Cervantes, Proust. No dia em que atirou lá de cima Sófocles, receei que ele pudesse ser punido com algum infortúnio grego. Mas morreu de velhice, muitos anos depois, imagino que bem mais sábio.

Pureza

Quem me dera voltar ao tempo em que eu podia ver as coisas sem a obrigação de submetê-las à avaliação da poesia.

Fofura

O poeta parnasiano aponta o filho recém-nascido: "Vai ser melhor do que eu. Olhem essas mãos. Dedos de contar sílabas e acariciar estrelas."

Ou, ou e ou

Cor de rosa ou cor-de-rosa?
Se essa dúvida lhe vier,
Como sempre me vem,
Substitua por rosicler.

Vanglória

Ter uma alma poética - podemos desejar algo mais puro que isso, podemos não nos orgulhar disso, ainda que seja a causa de nossa desgraça?

Um soneto de Rainer Maria Rilke

"Boca de fonte, oh boca generosa,
dizendo sem cessar a mesma água pura.
Máscara de mármore em face da figura
fluente da água. E entre esta boca e a fonte,

os aquedutos de onde vem. De longe,
contornando túmulos e montes de Apenino,
colhes neles o canto que aqui, límpido,
escorre de teu queixo enegrecido

na calha aberta. É surdo o ouvido
de mármore, onde sonora e em vão
murmuras incessante...

Ouvido da terra. A água fala então
só a si mesma? Se lhe interpõem
Uma vasilha, para de falar."

(Tradução de Ferreira Gullar, O prazer do poema, publicado pela Edições de Janeiro.)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Preparativos

É um desses poetas que precisam estar sempre com os óculos bem ajustados e a lua no ponto certo.

Leveza

Poesia é uma palavra que, mesmo se lida só com os olhos, sem sequer um sussurro, provoca nos lábios um alvoroço como o de um passarinho pousando numa roseira.

Arte

Tive alguma intuição do amor, certos vislumbres. O bastante para imaginar o êxtase que deve ter cabido àqueles que o conheceram plenamente e que assim puderam expressá-lo.

Amanhã

 Põe Mozart para tocar. Serão os derradeiros sons do seu último dia. Não chora, embora hoje possa. No último dia não poderá.

Um choro (para Rose Marinho Prado)

Eu ando precisando de um choro daqueles que esgotam a alma. Um choro único, como aquele do dia em que minha mãe se foi.

Cotação do dia

Provoco ainda olhares - embora sejam hoje neutros como aqueles que se dirigem a mais um pôr de sol.

Concorrência

Quando seu último cisne morreu, o poeta romântico atribuiu também isso à rancorosa inveja dos rivais e resolveu cuidar melhor do roseiral.

Rendição

Venho me sentindo como um merceeiro que, desconfiado da própria mercadoria, se desculpa antecipadamente perante o comprador. Sei o estado em que se encontram meus versos e já não tenho esperança de melhorá-los.

Heráldica

No meu brasão
o leão rampante
é um cabrito derrapante.

Armagedom

Dia haverá
o final
em que nosso gozo atual
será arguido
pesado sopesado
pelas orelhas erguido
e exibido
e condenado:
pecado pecado pecado.

Similaridade

Assim como ocorreu com o amor, talvez devamos reconhecer que não merecemos a poesia.

Distração

Em manhãs de tédio
e tardes de aporrinhação
Deus sopra nuvens pelo céu
como bolhas de sabão.

Estoque

Chorar é uma das poucas coisas boas que me restaram.

Resumo

Quisemos muito
fizemos muito
quisemos mais
quisemos alto
quisemos acima
fizemos mais
fizemos muito
fizemos tudo
nenhuma obra-prima.

"Procissão do enterro", de Oswald de Andrade

"A Verônica estende os braços
E canta
O pálio parou
Todos escutam
A voz na noite
Cheia de ladeiras acesas."

domingo, 11 de junho de 2017

Piramidal

Sonho de empreiteiro:
ir ao Egito e reconstruir
aquilo tudo inteiro.

O "Aliás", do Estadão

Registrar, ainda que com uma palavra só, o exemplar de hoje: notável.

Cotação do dia

Não sei se a tristeza é motivo de orgulho. Às vezes penso que sim, quando ouço certas gargalhadas através das quais se escancaram gargantas quase obscenas.

Alô

Depois que rompemos, minha cara Belinda, notei uma diferença: se hoje eu quisesse notícias sobre aquele cantor, Roberto Carlos, precisaria procurar nos jornais.

Cortesia

Dediquei-lhe um poema, e ela agradeceu como se agradece a alguém que nos tenha informado que a rua beltrano de tal é a segunda à esquerda depois do farol.

Maktub

E todas as vertentes
para o lago eterno
aonde não chega som
vertem e verterão.

Conceito

A poesia social
costuma ter pouco açúcar
e muito sal.

Eco

Como pode uma voz antiga, tanto tempo depois, causar a um coração volúvel um alvoroço tão inesperado?

Hipótese

Talvez você pudesse fazer voltar o passarinho que cantava em minha ameixeira. Quem mais?

Síndrome de Estocolmo

Ah, aqueles dias em que eu assobiava a caminho do meu cativeiro amoroso. Terão mesmo existido?

Um pouco mais de Hjalmar Söderberg

"Há de chegar o dia em que o direito a morrer será reconhecido como ainda mais importante e mais inalienável do que o direito a colocar uma cédula na urna de votação. E, quando esse momento chegar, os doentes incuráveis - bem como todos os 'criminosos' - terão direito a receber a ajuda de um médico para se libertar."

"As pessoas querem ser amadas; se não for possível, admiradas; se não for possível, temidas; se não for possível, detestadas e desprezadas. Querem despertar sentimentos nos outros. A alma estremece perante o vazio e deseja o contato a qualquer preço."

"Não tenho nenhum apreço especial por mim mesmo, seja pela casca ou pelo conteúdo. Mas eu não gostaria de ser um outro."

(Do romance Doutor Glas, tradução de Guilherme da Silva Braga, publicado pela Editora Arte & Letra.)

sábado, 10 de junho de 2017

Perguntinha cívica

A quem pagaremos o jantar hoje? E amanhã? Talvez seja melhor não saber.

Resumo semestral

Não sou lido nos Estados Unidos nem no Reino Unido. Nem no Recife nem em Garanhuns. Como, aliás,em lugar nenhum.

Bestialógico

O calcanhar de Aquiles? Como eu saberia? Aqui não é açougue nem aula de anatomia.

Cotação do dia

Meu coração grita ainda para ser compreendido, cada vez menos, cada vez mais fraco.

Nostalgia

Já tive a honra de ser sacudido por tormentas. Hoje até as brisas, se me encontram no caminho, mudam de rumo.

Acontecimento (para Liberato Vieira da Cunha)

Se me pedissem uma resposta rápida, eu diria que o único fato importante que me ocorreu foi a infância.

O papel (para Rose Marinho Prado)

No teatro, eu gostaria de ser aquele personagem de que todos rissem, menos a garota de blusa escolar xadrez distraída com suas pipocas.

No mínimo (para Tuca Kors)

Se o dia não desagradar aos gatos, se os deixar sossegados no sofá, já merecerá algum crédito.

Cautela (para Márcia Fiúza)

Tenho um receio: o de provar a alegria e me afeiçoar a ela.

Profissão de fé

Porque há muito optamos
por nosso modo esdrúxulo de ser,
vivamos menos. Escrevamos.

Foco

Cabe-nos encontrar
em nosso tempo de viver
nosso tempo de escrever.

Particularidade

Uma diferença:
o soneto é todo forma
e o haicai é todo essência.

Dois exemplos da prosa de Hjalmar Söderberg

+ "Não, não existe sonho de felicidade que por fim não morda o próprio rabo."

+ Todos os meus pensamentos e os meus sonhos em relação à natureza são provavelmente baseados em impressões poéticas e artísticas."

(Do livro Doutor Glas, tradução de Guilherme da Silva Braga, publicado pela Editora Arte & Letra.)

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Como foi

Adão e Eva furtaram Deus e foram morar num paraíso fiscal.

Sabedoria original

Entre outras tacadas certeiras,
Deus construiu o mundo
Sem empreiteiras.

Mudando o jogo

Lixem-se todos os nobéis
e esqueçamos os outros galardões
reservados aos escritores.
Voltemos a ser só escritores
e releiamos Camões.

Relações

Que a poesia se diga associada à beleza, entende-se facilmente. Quanto aos poetas, seria preciso avaliar essa associação caso a caso.

Correção de rumo

Um pouco mais para lá
assim ótimo viva
à deriva bem à deriva.

Hoje no portal do Estadão...

... o texto é sobre uma obsessão que atinge 0,001% da população mundial.

http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/a-obsessao-do-nobel/

Sinônimo

Se você acha melhor essa palavra, sim: eu sofro de querofobia.

Convite

Não me cai bem a alegria. Pesa-me como maquilagem. Se você quiser compartilhar algo comigo, vá ao lugar onde três homens estiverem relatando seus infortúnios. Escolha o mais triste deles e eu lhe darei o que tenho de mais honesto e melhor.

Hem?

Diga-me: onde mesmo você ouviu dizer que belonave é um navio bonitão?

Ranking

Tentemos de novo
desta vez mais
persistamos lutemos
mantenhamos ao menos
o que já conquistamos
com nossa mediocridade.

Soneto do aspirante ao Nobel (versão final)

Perguntam-me o que eu faria
Para ganhar o Nobel,
E eu, para ser a mim fiel,
Digo que bajularia

Para obter esse laurel,
Os membros da Academia
E se preciso daria
Propina até ao bedel.

A alma cederia ao Diabo,
No pacto incluiria o rabo
E aceitaria o conselho

De o nome modificar
E à Suécia me apresentar
Com o nome de Paulo Coelho.

"Vício na fala", de Oswald de Andrade

"Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados."

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Numa boa

Zurrem os burros ou não,
miem os gatos ou não miem,
dane-se tudo: carpe diem!

Males (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Mais do que o fumo
mais do que o álcool
o vício do gramático
é o "h" aspirado.

Júbilo

O velho poeta está feliz (radiante, como ele prefere dizer). Venceu finalmente a licitação e pode esparramar em seus sonetos quantas rosas brancas quiser, sem precisar citar a fonte.

Resumo

Com tantos anos dedicados à literatura, o que posso dizer é que, se mereço algo, é no máximo um diploma de serviços prestados com toda a honestidade, embora  sem nenhum brilho.

Recurso

Se nos enganamos com a poesia, não é motivo para nos mortificarmos. Podemos atenuar nosso fracasso com aquela desculpa: éramos tão meninos.

Invocação

Consumiu dez anos para formar sua imponente biblioteca. Hoje, toda vez que passa diante dela, renova o apelo: "Ó, vós, que me fitais, por que não me ajudais?"

Protagonismo

Entrou então na sala de velório um homem tão empertigadamente vestido que alguns se perguntaram se, por questão de mérito, não caberia a ele o papel de defunto.

Ensinamento (para Edilaine Lopes)

A poesia não me libertou. Só me ensinou como exprimir o júbilo que pode sentir uma alma cativa.

Diagnóstico (para Inês Pedrosa)

Dói-me a alma
e também áreas externas
como os braços e as pernas.

Início de "Doutor Glas", de Hjalmar Söderberg

"Mas por que eu haveria de encontrar repetidas vezes o pastor Gregorius? Não posso ver esse homem sem pensar numa anedota que certa vez ouvi a respeito de Schopenhauer. O austero filósofo estava sentado num canto do café que tinha o hábito de frequentar, sozinho como de costume; de repente a porta se abre e um homem de aparência desagradável entra no recinto. Schopenhauer observa-o com o semblante desfigurado pela repulsa e pelo horror. põe-se de pé num sobressalto e começa a golpear a cabeça do sujeito com a bengala. O motivo era simplesmente a aparência dele."

(Tradução de Guilherme da Silva Braga, publicação da Editora Arte e Letra.)

quarta-feira, 7 de junho de 2017

De pássaros

Se a outro poeta  brasileiro, além de Mario Quintana, fosse concedido o dom de voar, seria Casimiro de Abreu. Castro Alves, não. Castro Alves derrubaria tudo ao seu redor.

Le mot juste

Horizonte é uma palavra bela demais para ser usada estritamente em textos geográficos.

Gurus

Os poetas sexagenários iludem os novatos dizendo-lhes que é preciso maturidade para falar de uma rosa.

Culto

A mãe do poeta, também ela amante da poesia, recomendava-lhe desde cedo que nunca escrevesse com a mão que usava para urinar.

Rancor

Para escritores muito velhos, o Nobel não é um prêmio, é uma vingança.

Os mártires

No caminho para Estocolmo morreram milhões de jovens que acreditavam saber o que é literatura e milhões de velhos que fingiam saber.

Alarme falso

Não, incunábulo não é um palavrão latino.

Recurso final

A última tentativa que sempre se faz para salvar um poema é mostrar como ele soa musical.

Ainda que

Cisne? Seria demasiada presunção. Me satisfaria ser um onagro, se um zurro meu, entre cem, pudesse ser, ainda que por suprema benevolência, uma forma de manifestação poética.

Aquém

Sempre tive certa habilidade com as palavras. Nunca,porém, o suficiente para exprimir as inquietações de minha alma.

"Metade pássaro", de Murilo Mendes

"A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de comer às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam."

terça-feira, 6 de junho de 2017

Isenção

Ao morto já não importa
se inês de castro sobreviveu
ou se também está morta.

Sine qua non

Sem ego, não há poetas. É preciso tê-lo, ainda que seja só para negá-lo.

Paroxismo

O lirismo, em mim, passou da fase romântica. Dói-me como um mal físico. Eu o sinto queimar, arder, latejar em meu peito e, quando penso que já não poderei suportá-lo, ele queima, ele arde, ele lateja ainda mais, como se cada crise fosse aquela que há de me matar em espasmos de dor e ventura.

Família

Para cada parente
dois dissidentes
e quatro contraparentes.

Lembrete

Homens dos livros, descubram-me,
antes que os homens das pás
venham e cubram-me.

Gratidão

O bem-te-vi, imortalizado pelo velho poeta em pelo menos quinze sonetos, veio avisá-lo esta manhã de que a associação dos moradores do bairro abriu um concurso de poesia.

Antípodas

Ele se despoja da última esperança, enquanto os poetas jovens premeditam o Nobel.

"Soneto", de Jorge de Lima

"Essa pavana é para uma defunta
Infanta, bem-amada, ungida e santa,
E que foi encerrada num profundo
Sepulcro recoberto pelos ramos

De salgueiros silvestres para nunca
Ser retirada desse leito estranho
Em que repousa ouvindo essa pavana
Recomeçada sempre sem descanso,

Sem consolo, através dos desenganos,
Dos reveses e obstáculos da vida,
Das ventanias que se insurgem contra

A chama inapagada, a eterna chama
Que anima esta defunta infanta ungida
E bem-amada e para sempre santa."

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Autoperfil (para Ludenbergue Góes e Patricia Mesquita)

Escolha eu fiz a certeira:
Engenheiro, não barão;
Folha jamais, estadão;
E limão, jamais limeira.

Nota de falecimento

Alguns que terão nos lido
comentarão não é aquele que
ou então deve ser aquele que
e de um poema ou dois lembrarão
e talvez de um deles
um diga aquele é bom
e de outro diga outro que não

Talvez sejamos absolvidos
por esses seis ou sete
ou talvez recebamos
uma branda condenação
antes que concluam coitado morreu moço
pode ser até que melhorasse
se tivesse ocasião.

Hipótese

Se postos um à frente do outro, meus sonetos não chegariam a dar um giro em torno da Terra - e tampouco melhorariam.

A vê-los (para Silvia Galant François)

Com que empáfia passam diante de nós certos navios, na praia, como se não estivéssemos ali para vê-los. Navios não têm nariz, eu sei, mas o deles me parece tão arrebitado nessas horas.

Pleníssimo

O poeta, hoje, há de ser diferente. Já não lhe basta ter o coração dos românticos. É preciso mais. Um sino, talvez. Um sino que, se necessário, lhe estoure o peito para ser retumbante.

Definição (para Inês Pedrosa)

Inefável seria, se alguma coubesse, a palavra certa para definir um haicai.

No sofá

Do que sinto falta, hoje, é de ter à mão um daqueles romances cor-de-rosa com desfecho previsível, que eu pudesse ler até a página 9 ou 10 antes de cochilar.

Obra-prima

Talvez tenhamos estado
a dois passos da nossa obra-prima
talvez tenhamos passado
por ela numa esquina
talvez ela nos tenha acenado
numa tarde não muito longínqua

Talvez tenha sido uma menina
que não há muito tempo
nos tenha sorrido
num daqueles momentos únicos
em que a poesia toda se expressa
num sorriso de menina

Talvez tenha sido essa menina
talvez não tenha sido essa
mas outra que em outro momento
a essência da poesia expressava
mas não a viste e passaste.
(Ah, era pouco o tempo e tinhas tanta pressa)

Estocolmo

Tomou uma decisão. Vai começar a escrever o discurso com que receberá o Nobel. É um desses escritores que planejam tudo. Tem vinte anos e hoje o jornal de Alecrim da Serra publicou seu primeiro texto.

A resposta (para Silvana Guimarães)

Se nos perguntarem diremos
que somos ainda o que fomos
quando éramos meninos?
Diremos que ainda temos
a flama da poesia e nela ardemos?
Será isso que responderemos?
Se respondermos, acreditarão em nós?
E nós, acreditaremos?

"Memória", Carlos Drummond de Andrade

"Amar o perdido
deixa confundido
este meu coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão."





domingo, 4 de junho de 2017

Cotação do dia

Às vezes acredito ainda que possa ser um escritor. Consola-me isso, embora já nem tanto.

Hoje na Rubem...

... mais um dos textos com os quais finjo ser escritor.
https://rubem.wordpress.com/2017/06/04/balburdia-textual-raul-drewnick/

Esquina

Um dos pequenos catadores de lixo puxa da caçamba uma embalagem de supermercado:
"Um gato. Argh, que cheiro!"
"Aqui tem outro, olha", diz o segundo menino. "Argh! Mais fedido que o seu!"

Como foi

O poeta lembra-se de como se iniciou sua decadência: "Foi quando as flores, assim do nada, começaram a me pedir crachá."

Tradição

Estou no ramo há cinco décadas, o escritor diz, como se fosse o dono de um restaurante em Roma.

Metamorfose

Os poetas parnasianos não morriam, transformavam-se em estátuas.

Drummondiana

O primeiro escritor
e o segundo
na abertura da bienal
falam mal do terceiro.

Perfil

Não piscava, não sorria.
Era um desses
poetas de antologia.

As duas

De todas as que tive
e das que não tive
daquelas todas que mantive
e daquelas que vim a perder
as únicas virtudes
que gostaria de ainda ter
seriam o esplêndido estouvamento
e a maravilhosa juventude.

"Contrição", de Bocage

"Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava.
Ah, cego, eu cria, ah, mísero pensava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
A existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,
Esta alma que sedenta em si não coube,
No abismo vos subiu dos desenganos.

Deus... oh Deus! quando a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube."

,

sábado, 3 de junho de 2017

3/6/2017 (para Inês Pedrosa)

Que hoje, minha cara Inês,
Por ter o nome que tem,
Se o dia não valer cem,
Que valha ao menos por três.

Prêmio de consolação (para Silvana Guimarães)

Quando ela vier
tu saberás que mãos
tocaram Baudelaire
no último dia
que olhos fitaram Rimbaud
quando os próprios ele fechou
e hás de te satisfazer
com essa gloríola
de com eles compartilhar
ao menos essa ocasião
embora sem discurso
sem pompa
nem galardão.

Fama

Que um poeta não negue sua intimidade com as estrelas. Os leitores nunca lhe perdoariam isso.

Crueldade

Com que satisfação o avô antipoético explicou cientificamente ao neto de sete anos como se forma um arco-íris.

Humm, não sei (para Henrique Fendrich)

Às vezes a crônica é vista com certa má vontade. Não é incomum que alguém, ao ler um texto de Rubem Braga sobre a era de ouro do Rio de Janeiro, faça aquela cara clássica de ressalva: tudo lindo, mas datado demais.

Talião

É um inimigo figadal
amplamente correspondido
por inimigos viscerais.

Ritos

É um poeta de academia
com todos os certificados
e a documentação em dia.

A falsa modéstia

O cinismo que há em quem pede, como se fosse uma ninharia: "A única coisa que eu quero, agora, é uma morte sem sofrimento."

Algo menos

Não, semicúpio não é essa sem-vergonhice toda que a palavra parece sugerir.

Pesadelo literário

Ele é um cágado brasileiro e velho chamado a receber um prêmio. Quando chega a Estocolmo, tão morto quanto vivo, dizem-lhe: Não é aqui. O que o senhor ganhou foi um jabuti.

"A mulher sentada", de João Cabral de Melo Neto

"Mulher. Mulher e pombos.
Mulher entre sonhos.
Nuvens nos seus olhos?
Nuvens sobre seus cabelos.

(A visita espera na sala;
a notícia, no telefone;
a morte cresce na hora;
a primavera, além da janela).

Mulher sentada. Tranquila
na sala, como se voasse."

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Currículo

Me alegraria ser um desses profissionais que puxam o cartão: poemas para todos os eventos e ocasiões, especialidade em rimas ricas e métricas clássicas.

Mercado

Enquanto houver literatura
haverá esperança, ao menos
na área de ficção.

Cotação do dia

Se eu tivesse aprendido ao menos um tantinho de poesia, seria um morituro bem mais resignado.

Shangrilá

O que esperas da poesia
um homem sensato
não pede nem à loteria.

Ruptura

Comigo me desavim
Com tal exacerbação
Que quando me digo sim
O que sempre entendo é não.

A quem e o quê?

Que nome se há de dizer
no dia da última aflição
no momento derradeiro
que ajuda esperar
que bênção querer
em nosso instante mais solene
e esperar de quem
e querer de quem
se gastamos já
nosso deus inteiro
nas demandas miúdas
de nosso afã corriqueiro?

Hoje no portal do Estadão

Um curioso diálogo de um aluno com sua professora.

http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/a-idade-certa-do-amor/

Humildade

Já não me seduzem os enfeites. Aprendi a lição da humildade e repasso os poemas quase como me vêm. Tiro uma palavrinha daqui, coloco uma ali. Descobri que me calha melhor transcrever do que escrever. Seja qual for a voz que dite os poemas, que eu a honre e não a deturpe.

Mea-culpa

Fui hodierno
quase atual
faltou-me ser moderno.

"Senhor feudal", de Oswald de Andrade

"Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Boto ele na cadeia."


quinta-feira, 1 de junho de 2017

Tantinho a mais (para Inês Pedrosa)

Se fosses duas, Inês,
Seria bem adequado,
Porém bem mais apropriado
Se tu fosses logo três.

Manifesto (para Inês Pedrosa)

Poetas gongóricos
vates pletóricos
bardos retóricos
panfletários de ocasião
deixai-me com minhas rosas
enquanto fazeis revolução.

Futuro

Se me couber ainda um poema
quem sabe dois ou dez
que diferença fará
se nunca fez
chover uma
ou uma centena de vezes
sobre um solo
que a chuva nenhuma
nunca deu certeza alguma?

Íntimos

Tão camaradas andamos a tristeza e eu que ela, já de manhã, quando desperto, traz o lenço certo para as lágrimas do meu dia.

Retificando

Não, florilégio não é o privilégio de que gozam as flores.

Bem a calhar

As musas dos poetas concretistas tinham olhos de gelo e coração de pedra.

Nas entranhas da sombra

Venho me enganando com frases curtas de contestável brilho. Tomei este atalho imaginando recuperar logo o fôlego e voltar à estrada principal,. Foi há muito tempo, já. Tanto que, se pensasse ainda em retomar o caminho da literatura, precisaria antes localizar o sol.

Esperança

Depois de passar o inverno dentro de um romance de Machado de Assis, a traça, atacada por uma agudíssima melancolia, conseguiu chegar à ensolarada parte da estante reservada aos livros de autoajuda.

"Beleza e verdade", de Emily Dickinson, tradução de Manuel Bandeira

"Morri pela beleza, mas apenas estava
Acomodada em meu túmulo,
Alguém que morrera pela verdade
Era depositado no carneiro contíguo.

Perguntou-me baixinho o que me matara:
- A beleza, respondi.
- A mim, a verdade -é a mesma coisa,
Somos irmãos.

E assim, como parentes que uma noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou os nossos lábios
E cobriu os nossos nomes."