quarta-feira, 30 de novembro de 2011
Valor
Dizes não entender o que vejo em ti. Ah, como deprecias teus olhares, ah, que pouco valor tu dás aos teus sorrisos.
Reflexo
Depois que te conheci,
Tudo em mim se transformou.
Há muito não sou eu, sou
Só um reflexo de ti.
Tudo em mim se transformou.
Há muito não sou eu, sou
Só um reflexo de ti.
Apostila
Recusar missões
atribuições
lemas
Relegar obrigações
aporrinhações
problemas
Desdenhar comemorações
condecorações
emblemas
E cantar canções
e declamar poemas
e entre ser
muito e ser pouco
ser apenas ser
e viver apenas
na medida exata
do que exige a vida.
atribuições
lemas
Relegar obrigações
aporrinhações
problemas
Desdenhar comemorações
condecorações
emblemas
E cantar canções
e declamar poemas
e entre ser
muito e ser pouco
ser apenas ser
e viver apenas
na medida exata
do que exige a vida.
Joguinho
Eu te afagaria como se fosses um gato, te perdoaria e te suplicaria que jamais me arranhasses. Correriam os dias, e seriam tão monótonos, que num deles eu te provocaria, te importunaria, até que de novo me arranhasses e eu precisasse outra vez decidir se merecias meu perdão e meus afagos.
Protagonista
Estarás rodeado de parentes e amigos. Falarão de ti, e alguns, mais emocionados, falarão contigo, aos murmúrios. Serás o centro do espetáculo e, se pudesses, te levantarias, apesar de tua timidez, para fazer um agradecimento, ainda que breve. Mas como será bom não poderes, como será venturoso estares dispensado de tudo, até de fingir que rezas acompanhando o padre, como tantas vezes fingiste.
Pétalas
Às vezes me ponho a imaginar viagens para os teus dedos e, por alguns instantes, meu rosto parece a superfície de um lago tocada pelas pétalas soltas de uma rosa.
Exceção
Tu deves bem entender
Que maravilhosa exceção
(Quando a regra é não te ver)
É ver-te, é tocar-te a mão.
Que maravilhosa exceção
(Quando a regra é não te ver)
É ver-te, é tocar-te a mão.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
Patti Smith
Ah, os sonhos
Ontem Patti Smith
me apareceu em um
tirou sua pele de cordeiro
ficou nua como um lobo
e disse me decifra
me decifra seu bobo
ou eu te como inteiro
Porque hesitei
ela os dentes em mim cravou
e me chamando de Rimbaud
Rimbaud meu rei
meu Arthurzinho
inteiro me devorou.
Ontem Patti Smith
me apareceu em um
tirou sua pele de cordeiro
ficou nua como um lobo
e disse me decifra
me decifra seu bobo
ou eu te como inteiro
Porque hesitei
ela os dentes em mim cravou
e me chamando de Rimbaud
Rimbaud meu rei
meu Arthurzinho
inteiro me devorou.
O clube
Disseram-lhe que ela era fácil e nada exigente, mas advertiram-no de que devia ficar preparado. Preparado para o quê?, ele perguntou, mas apenas sorriram e não esclareceram nada. No dia seguinte, quiseram saber como tinha sido, e ele disse que tudo bem. Ela havia sido mesmo fácil e nada exigente. E as costas?, quiseram saber. Estão em carne viva, que unhas ela tem. Isentaram-no de mostrar as marcas. Todos tinham sinais idênticos - eram como um distintivo para os que frequentavam a cama da mulher fácil.
Preferência
Das gotas que no teu banho para ele escorrem, o umbigo prefere as que passam pela tua boca.
Lagos
Não, os teus olhos não são
Lagos. Se fossem, num dia
Em que me dissesses não,
Num dos dois me afogaria.
Lagos. Se fossem, num dia
Em que me dissesses não,
Num dos dois me afogaria.
Teu nome
Serei o mais triste dos velhinhos do asilo. Me acharão antipático, porque pouco falarei e saberão de mim só o essencial. Mas, toda vez que me surpreenderem sorrindo, me apontarão: "Olha, ele está se lembrando dela." E dirão teu nome.
Cotação
Se me perguntam como estou, não digo, mas deveria, que perguntem a você. Termômetro e cotação não são propriamente palavras poéticas, mas como elas se aplicam bem a você quando o assunto sou eu e minha alma.
Sabedoria
Conheces tão pouco a vida
e te lanças aos livros
e recorres aos sábios
e perguntas aqui e lá:
a sabedoria onde está?
E te respondem uns que é aqui
e te garantem outros que é lá
e entre lá e aqui
e entre aqui e lá
tu ficas oscilando
tu ficas hesitando
até que um dia
milhares de dias
depois daquele
em que te puseste
a buscar a sabedoria
em que saíste para procurá-la
descobres que envelheceste
que estás no mesmo lugar
e que nunca vais achá-la.
e te lanças aos livros
e recorres aos sábios
e perguntas aqui e lá:
a sabedoria onde está?
E te respondem uns que é aqui
e te garantem outros que é lá
e entre lá e aqui
e entre aqui e lá
tu ficas oscilando
tu ficas hesitando
até que um dia
milhares de dias
depois daquele
em que te puseste
a buscar a sabedoria
em que saíste para procurá-la
descobres que envelheceste
que estás no mesmo lugar
e que nunca vais achá-la.
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Pepitas
Escorrendo pelos teus cabelos, a chuva apanhou neles um punhado de ouro e começou a esparramar pepitas na calçada.
Tudo
Foi tanto amor, tanto, que
O pão que me alimentava
E até o ar que eu respirava,
Tudo, tudo era você.
O pão que me alimentava
E até o ar que eu respirava,
Tudo, tudo era você.
Quando
Quando disseres adeus,
Que eu esteja muito absorto,
Ou surdo ou então já morto
E não ouça os lábios teus.
Que eu esteja muito absorto,
Ou surdo ou então já morto
E não ouça os lábios teus.
Woman
Se queres matar-me, é simples. Espera aquele momento, na noite, em que, segurando as lágrimas, não posso impedi-las porém de se mostrar à beira dos olhos. Coloca então no You Tube John Lennon cantando Woman. Terás três minutos para abandonar a cena do crime.
Amiga
Que bênção estar assim, sem nada para querer ou fazer. Se a morte viesse agora, eu me deixaria levar e talvez até pusesse a mão no seu ombro: vamos, amiga.
domingo, 27 de novembro de 2011
O plano
Um dia, vão te dizer que eu estou preparando um plano para subir à lua e lá escrever, bem grande, o teu nome. É mentira, não acredites. O plano já está pronto.
Belo quadro
Um dia, se lembrares, podes pôr-me em uma de tuas telas. Não precisa ser nada especial. Posso ser a espuma de uma onda, um fiapo de nuvem, algo que só tu saibas que sou eu, algo simples, que faça parte, embora mínima, de um desses tesouros que tuas mãos diariamente fazem. Eu ficarei ali, espuma ou fiapo, e meu coração se encherá de orgulho toda vez que alguém disser: "Belo quadro, este."
O rapaz
Depois de dar dois beijos, o rapaz tímido, que havia levado trinta encontros para ousá-los, avisou à garota que precisava dizer uma coisa. Ela se preparava para dizer-lhe que ele poderia ousar mais, ousar tudo, quando ele, pegando-lhe a mão, perguntou: "Você me desculpa? Perdi a cabeça. Eu não devia ter feito isso."
Preciosa
És preciosa. Se estou tenso,
Só tu podes acalmar-me,
Porque só tu, amor, tens o
Segredo de hipnotizar-me.
(Inspirado pelo verso "You have the power to hypnotize me", de Cole Porter, em "You do something to me".)
Só tu podes acalmar-me,
Porque só tu, amor, tens o
Segredo de hipnotizar-me.
(Inspirado pelo verso "You have the power to hypnotize me", de Cole Porter, em "You do something to me".)
De nada
Não tenho vontade mais de nada. Preguiça de tudo: de me vestir, de olhar para a árvore que balança seus braços para me cumprimentar, para a flor que se abre no caminho. Preguiça até de dormir. Chegou a hora de reconhecer que minha velhice tem direitos adquiridos e consolidados.
sábado, 26 de novembro de 2011
Cenário
É quando o amor morre que notamos que todo o resto morreu também ou, se permaneceu vivo, é tão desprezível e inútil quanto o cenário de uma peça que jamais se reencenará.
Ele
Sentava-se aqui nesta poltrona, onde eu me sento agora. Sinto a rigidez do couro. Quando ele estava vivo, seus braços me enlaçavam a cintura e seus beijos me bafejavam a nuca. Fazíamos isso sempre que podíamos e seríamos felizes se não fosse o medo de sermos surpreendidos pela mulher, que tinha o passo leve. Depois que ele morreu, ela pediu que eu continuasse trabalhando aqui, disse que eu sou de confiança. Sempre que posso, eu me sento nesta poltrona e finjo sentir os braços dele em mim. Às vezes, quando a mulher vai passar o dia com a irmã, eu me deito na cama, que ele e eu usamos, infelizmente não tanto quanto queríamos.
Braguilha
A garota estava recolocando a saia quando o homem lhe estendeu o dinheiro. Ela se queixou: "Aqui só tem dez. Nós combinamos vinte, lembra?" O homem balançou a cabeça e sorriu um sorriso de dentes amarelados: "Ando com a memória fraca." Ela: "Eu tenho quatro irmãos. Com estes dez, dois vão passar fome." O homem começou a abrir a braguilha de novo: "Vão nada. Depende só de você." Ela deixou escorregar a saia para o chão. "É isso aí, você entende as coisas logo", o homem disse, tirando outra nota do bolso.
Moleca
Para mim nasceste ontem
és uma molecona
uma guria
que comigo brincas
como uma gata nova
com um rato velho brincaria
Me pegas na sala
me levas para o canto
me trazes para o centro
me enrolas e desenrolas
me deixas largado
e de novo me agarrras
me cravas as garras
e quando eu já
do jogo imbuído
peço que as garras
me enterres mais
e suplico
e imploro
mais mais mais
me atiras para o lado
ratinho asqueroso
contigo não brinco jamais.
és uma molecona
uma guria
que comigo brincas
como uma gata nova
com um rato velho brincaria
Me pegas na sala
me levas para o canto
me trazes para o centro
me enrolas e desenrolas
me deixas largado
e de novo me agarrras
me cravas as garras
e quando eu já
do jogo imbuído
peço que as garras
me enterres mais
e suplico
e imploro
mais mais mais
me atiras para o lado
ratinho asqueroso
contigo não brinco jamais.
Como um gato
Trago-te em mim como quem carrega um gato muito jovem e querido e que ainda nem sabe miar, mas a todo instante me demonstra seu amor, fincando as garras em minha camisa, se ameaço tirá-lo do colo e colocá-lo no chão.
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Ah
Ah, como me agradaria
Dar-lhe o que você merece,
Ah, quanto amor lhe daria,
Se em mim tanto amor houvesse.
Dar-lhe o que você merece,
Ah, quanto amor lhe daria,
Se em mim tanto amor houvesse.
Hoje
As mulheres me davam lugar nos seus sonhos e um travesseiro em sua cama. Hoje, quando me veem, me oferecem um sorriso amistoso e assento no metrô.
Catalogação
Gostaria de colocar o amor na categoria das coisas simples. Ele ficaria entre as flores, os pássaros, as nuvens, a brisa. Mas as flores me desassossegam, os pássaros me entristecem, as nuvens me pesam, a brisa me enlouquece?
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
Quintal
Na tigelinha azul, o leite amornado pelo sol se arrepia quando sente as primeiras lambidas da áspera língua do gato.
Amadora
Molecona, gostava de dar-se aos rapazes na areia, ouvindo o rugido do mar. Havia noites em que eram três. Um dia, um quarentão lhe garantiu que ela poderia ganhar muito dinheiro. Ela trocou a praia por uma cama e, como lhe dissera o homem, em dois anos comprou um apartamento, de frente para o mar. Recebe homens que marcam com ela pelo telefone e às vezes, com o carro que também comprou, vai ao encontro deles em todos os pontos da cidade. Da janela do apartamento, ou de dentro do automóvel, olha para a praia e sente no peito uma angústia, uma saudade profunda do tempo em que se dava na areia, por amor ou diversão, e depois, pegando sua bicicleta, voltava saciada para casa, como uma garota que se cansou de brincar.
O rosto
O cirurgião plástico restaurou o rosto dela, devastado na infância pela fervura de um caldeirão, e foi um trabalho tão benfeito que ela agora, quando se deita com os rapazes, não lhes diz mais obrigada.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Por onde andas
Nem imaginas
por onde andas
a horas tantas
da madrugada
quando tua ausência
me é cobrada
por minha alma
atormentada
Nem pressentes
por onde caminhas
quando em tua cama deitada
adormecida
dormem também
tuas mãos
porém não dorme
a minha
Não sabes
que me tocas a campainha
e sobes a escada
e entras no quarto
e te deitas na cama
onde te espera e chama
minha alma enfim
apaziguada.
por onde andas
a horas tantas
da madrugada
quando tua ausência
me é cobrada
por minha alma
atormentada
Nem pressentes
por onde caminhas
quando em tua cama deitada
adormecida
dormem também
tuas mãos
porém não dorme
a minha
Não sabes
que me tocas a campainha
e sobes a escada
e entras no quarto
e te deitas na cama
onde te espera e chama
minha alma enfim
apaziguada.
Cupido
No dia em que me alvejou
Com suas setas certeiras,
De ti o Amor me tornou
Teu servo, embora não queiras.
Com suas setas certeiras,
De ti o Amor me tornou
Teu servo, embora não queiras.
Em mim
Houve um momento
no dia
em que te senti em mim
tão toda
tão inteira
que me apalpei
e parecia
que eras tu
quem me apalpava
ou tu quem tornava
certeira a mão
com que eu te sentia.
no dia
em que te senti em mim
tão toda
tão inteira
que me apalpei
e parecia
que eras tu
quem me apalpava
ou tu quem tornava
certeira a mão
com que eu te sentia.
Balanço
Do sobe e desce da vida,
Do que à ventura nos leva
Ou nos encaminha à treva,
És tu, amor, a medida.
Do que à ventura nos leva
Ou nos encaminha à treva,
És tu, amor, a medida.
Soneto que apela à memória
Talvez te lembres de mim
Quando outros forem os dias
E as dores e as alegrias
Tiverem chegado ao fim.
Talvez te lembres de que eu
Te confessei com ardor
Que sempre foi teu amor
A força que me moveu.
Talvez te lembres (não sei
Se por amor ou bondade)
De tudo que disse a ti
E sintas que te falei
Somente e sempre a verdade
E que jamais te menti.
Quando outros forem os dias
E as dores e as alegrias
Tiverem chegado ao fim.
Talvez te lembres de que eu
Te confessei com ardor
Que sempre foi teu amor
A força que me moveu.
Talvez te lembres (não sei
Se por amor ou bondade)
De tudo que disse a ti
E sintas que te falei
Somente e sempre a verdade
E que jamais te menti.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
De tudo
De tudo que te disse
de todas aquelas palavras
que te enalteceram
que te exaltaram
e a lua e as estrelas
te prometeram
e nas noites insones
te chamaram
De tudo que te disse
de todas aquelas palavras
de todas de todas elas
de nenhuma me arrependi
a não ser daquelas
que te enalteceram
que te exaltaram
que te prometeram
que te chamaram muito
quando deveriam
te enaltecer
te exaltar
te prometer
te chamar muito mais
Arrependo-me sim
do que não te disse
de tudo
que na hora extrema
de tudo que no fim
eu não poderei sequer
pensar em dizer
e que é mais
bem mais do que isto:
que te amo
que te amo mulher
que te amo demais
que te amo muito mais
do que um homem
pode amar
e muito menos
do que hás
de sempre merecer.
de todas aquelas palavras
que te enalteceram
que te exaltaram
e a lua e as estrelas
te prometeram
e nas noites insones
te chamaram
De tudo que te disse
de todas aquelas palavras
de todas de todas elas
de nenhuma me arrependi
a não ser daquelas
que te enalteceram
que te exaltaram
que te prometeram
que te chamaram muito
quando deveriam
te enaltecer
te exaltar
te prometer
te chamar muito mais
Arrependo-me sim
do que não te disse
de tudo
que na hora extrema
de tudo que no fim
eu não poderei sequer
pensar em dizer
e que é mais
bem mais do que isto:
que te amo
que te amo mulher
que te amo demais
que te amo muito mais
do que um homem
pode amar
e muito menos
do que hás
de sempre merecer.
Minha alma
Fechaste os olhos, dormiste. Deves ter sonhado, porque sorriste, como alguém que num navio descobre que, para onde olhe, é sempre mar. Fazia frio, e eu te cobri, minha alma, com o meu melhor cobertor. Sentei-me ao teu lado e, como se ainda precisasses, contei-te histórias em que ovelhas, muitas, pediam para ser contadas. Adormeci, foi só um instante, mas fatal. Quando fui ajeitar o cobertor sobre ti, minhas mãos ficaram geladas. E eu te beijei a testa, fria, fria, e meus lábios, frios, frios, disseram teu nome, minha alma, e as sílabas caíram como lascas de neve sobre teu rosto.
Tardio
Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda
podia ver em ti
a cor da alegria
e apalpar
tua polpa macia
quando eu tinha
ainda dentes
e as tuas sementes
podia com minhas mãos
à terra lançar
Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda podia
olhar-te e ver-te
olhar-te e ver-te apenas
sem a perda lastimar
de não poder morder-te
de não poder provar-te
de não poder ter-te
Quem te dera
ah quem te dera
fruto tardio
não tivesses frutificado
estivesses ainda florindo
pelo sereno roçado
e perolado pelo rocio.
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda
podia ver em ti
a cor da alegria
e apalpar
tua polpa macia
quando eu tinha
ainda dentes
e as tuas sementes
podia com minhas mãos
à terra lançar
Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda podia
olhar-te e ver-te
olhar-te e ver-te apenas
sem a perda lastimar
de não poder morder-te
de não poder provar-te
de não poder ter-te
Quem te dera
ah quem te dera
fruto tardio
não tivesses frutificado
estivesses ainda florindo
pelo sereno roçado
e perolado pelo rocio.
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
Todas
Gostaria de ser como aqueles fanfarrões antigos, que prometiam às amadas trazer, para elas, todas as estrelas do céu. E, numa noite de escuridão total, enquanto todos estivessem olhando intrigados para cima, notando a falta delas, gostaria de deixá-las todas no teu colo e, para que não tivesses motivo nenhum para duvidar de mim, começar a contá-las contigo.
Preservacionismo
Mirou o céu e lançou o anzol. Veio uma estrela tão miúda que ele a arremessou de volta.
Cafeteria
Só tu não percebias
que tudo em que tocavas
que tudo em que mexias
que tudo mulher tudo
a xícara e a colher
tudo melhor ficava
até o açúcar mais doce
como se mais açúcar
como se mais que açúcar fosse
Só tu não percebias
tuas magias
só tu não notaste
tudo que podias
Ah por que não percebeste
ah por que não me transformaste
ah por que não me levaste
em tua bolsa como um coelho
um objeto qualquer
um lenço um espelho um batom
por que não me mudaste
por quê, mulher?
que tudo em que tocavas
que tudo em que mexias
que tudo mulher tudo
a xícara e a colher
tudo melhor ficava
até o açúcar mais doce
como se mais açúcar
como se mais que açúcar fosse
Só tu não percebias
tuas magias
só tu não notaste
tudo que podias
Ah por que não percebeste
ah por que não me transformaste
ah por que não me levaste
em tua bolsa como um coelho
um objeto qualquer
um lenço um espelho um batom
por que não me mudaste
por quê, mulher?
domingo, 20 de novembro de 2011
Prospecção
Dizer o quê? Que palavras
Definirão o tesouro
Que no meu peito tu lavras,
Que nome dar a isto, a este ouro?
Definirão o tesouro
Que no meu peito tu lavras,
Que nome dar a isto, a este ouro?
Amiga
Permite-me que eu te diga
Que enquanto eu vivo estiver
Sempre que amor disser
De ti falarei, amiga.
Que enquanto eu vivo estiver
Sempre que amor disser
De ti falarei, amiga.
Meu vício
Viciei-me em ti, e te injeto
Em mim, te inalo, te fumo,
Te busco, imploro, consumo,
Amor, meu vício dileto.
Em mim, te inalo, te fumo,
Te busco, imploro, consumo,
Amor, meu vício dileto.
Aquela
Todas as noites ele olha para as estrelas. Já viu dezenas, centenas, dezenas de centenas, não viu ainda aquela que procura. Ele a identificará, quando a vir, porque leu num texto persa que a suprema beleza só se deixa ver uma vez, e que o prêmio para quem a contempla é a venturosa cegueira.
sábado, 19 de novembro de 2011
Tentação
Por que olhas para as estrelas
Como olhas para as maçãs?
Louco, hão de ser todas vãs
As ambições de colhê-las.
Como olhas para as maçãs?
Louco, hão de ser todas vãs
As ambições de colhê-las.
Os vinte
Beijou-lhe os dedos, os dez,
E, engendrando igual carinho,
Pôs os lábios no caminho
Que desce das mãos aos pés.
E, engendrando igual carinho,
Pôs os lábios no caminho
Que desce das mãos aos pés.
Questão de dois-pontos
Revisor - revisor de verdade, desses capazes de se separar da mulher porque um não concorda com o outro quanto ao uso da mesóclise - só se importa com fatos de um tipo: os gramaticais. Lembro-me de um desses revisores mostrando a outro a manchete de primeira página do Jornal da Tarde, décadas atrás. O título, em letras garrafais, como se dizia na época, era "Tragédia no mar; mil mortos". "Você viu que absurdo?", perguntou o primeiro revisor. O segundo concordou: "Caramba! Aí não era ponto e vírgula que deviam ter posto, o certo seriam dois-pontos." O primeiro chamou o segundo de insensível e desumano, dizendo que importante era o número de mortos, não a correção gramatical, e os dois quase se pegaram a tapa. O segundo fez carreira de revisor e redator em grandes jornais e revistas. Do primeiro não tenho notícia. Deve ter mudado de profissão e é provável que esteja, talvez com dupla personalidade, como convém aos heróis, salvando pessoas pelo mundo afora e adentro. Mas eu não o chamaria para acertar a pontuação de um texto, se precisasse.
Mários e Fernandos
Mário de Andrade
era trezentos
trezentos e cinquenta
e Fernando Pessoa
disse alguém
que quase cem
Talvez quinhentos
fossem os dois
se bem contados
e foram todos tocados
pela magia
suprema da poesia
Eu sou um só
somente um
talvez nem isso
quem sabe meio
possivelmente zero
zero vírgula nada
zero vírgula zero
alguém ninguém
algum nenhum
neres ninharia
dotado pela varinha errada
do dom do prosaico
e da antimagia.
era trezentos
trezentos e cinquenta
e Fernando Pessoa
disse alguém
que quase cem
Talvez quinhentos
fossem os dois
se bem contados
e foram todos tocados
pela magia
suprema da poesia
Eu sou um só
somente um
talvez nem isso
quem sabe meio
possivelmente zero
zero vírgula nada
zero vírgula zero
alguém ninguém
algum nenhum
neres ninharia
dotado pela varinha errada
do dom do prosaico
e da antimagia.
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
Parágrafo final
No começo, entendiam-se por monossílabos, e até sem palavras. Bicavam-se ternamente, como passarinhos, e isso lhes bastava. Hoje, desentendem-se em longas mensagens, cujo parágrafo final mais parece escrito por um escritório de contabilidade: favor acusar o recebimento desta.
Esquecerás
Esquecerás os ímpetos da juventude, as presunções, as labaredas da paixão, a volúpia do álcool, as rebeldias e, de mão dada com a velhice, farás tranquilamente o teu último caminho, e abençoarás o sol, se for ameno, e a água, se houver.
Quantas mais
É pena que eu não fosse ainda mais tolo quando te conheci. Quantas vãs esperanças mais, quantas ilusões, quantas doces mentiras eu poderia contemplar agora, quando olho para a terra onde sepultei todo o meu tesouro.
Ao vencedor as batatas
Com estas mãos matei
um dia um jovem
que tinha o meu nome
sua esperança calei
seus sonhos reneguei
seu sangue bebi
seu corpo enterrei
Ele amava
a poesia
eu a sabedoria
ele o lirismo
eu o pragmatismo
ele o incerto
e eu decerto
o certo
nada senão o certo
As estrelas
que ele idolatrava
- ele, não eu -
há muito já
não pode vê-las
porque a terra
seus olhos tolos comeu
Dele
nem os restos restaram
enquanto eu
eu e estas mãos
que o mataram
chamamos o garçom
e perguntamos
o que na cozinha
nos prepararam
Me alimento só do bom
nada de ambrosias
de etéreas iguarias
só frango
vaca leitão
E aqui onde alimento
minhas sete décadas
bem pesadas
não entram estetas
artistas ou poetas
Fora todos fora daqui
Que fiquem na rua
com seus secos intestinos
morrendo de fome
e latindo para a lua
sonetos alexandrinos.
um dia um jovem
que tinha o meu nome
sua esperança calei
seus sonhos reneguei
seu sangue bebi
seu corpo enterrei
Ele amava
a poesia
eu a sabedoria
ele o lirismo
eu o pragmatismo
ele o incerto
e eu decerto
o certo
nada senão o certo
As estrelas
que ele idolatrava
- ele, não eu -
há muito já
não pode vê-las
porque a terra
seus olhos tolos comeu
Dele
nem os restos restaram
enquanto eu
eu e estas mãos
que o mataram
chamamos o garçom
e perguntamos
o que na cozinha
nos prepararam
Me alimento só do bom
nada de ambrosias
de etéreas iguarias
só frango
vaca leitão
E aqui onde alimento
minhas sete décadas
bem pesadas
não entram estetas
artistas ou poetas
Fora todos fora daqui
Que fiquem na rua
com seus secos intestinos
morrendo de fome
e latindo para a lua
sonetos alexandrinos.
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
Ramerrão
Falo de amor. Já não sei
Muito bem do que se trata,
Se nos faz viver, se mata,
Mas falo ainda e falarei.
Muito bem do que se trata,
Se nos faz viver, se mata,
Mas falo ainda e falarei.
Voz
Aquele autor que descreve a voz como um dos caracteres sexuais meramente secundários, certamente jamais ouviu aquela que, mesmo palidamente reproduzida em minha memória, faz soar todos os violinos de minha alma.
Recompensa
Quando os dedos se queixam de que estão sendo usados em tarefas prosaicas, ela os mergulha por um instante nos cabelos, e eles voltam cheios de ouro.
Honraria
Morreram por amor
e foram condecorados
com uma flor
um lírio talvez
Não lhe sabem o nome
mas sabem que o mereceram
o lírio ou o que for
e sorriem ainda
e se orgulham ainda
porque morreram
na única trincheira
sob a única bandeira
pela qual é honroso
perder a vida.
e foram condecorados
com uma flor
um lírio talvez
Não lhe sabem o nome
mas sabem que o mereceram
o lírio ou o que for
e sorriem ainda
e se orgulham ainda
porque morreram
na única trincheira
sob a única bandeira
pela qual é honroso
perder a vida.
Catorze anos
A mão sobe e desce, sobe e desce. A imaginação divaga por lábios, altivas nádegas, sexos mornos, cálidas coxas e, quando se detém nos úberes seios, a mão, subindo e descendo, faz jorrar o ubíquo leite.
Barcos
Já tantos barcos voltaram
já todos
Falta um só
aquele onde ia o amor
e é mentiroso o ardor
com que sorridentes
vamos abraçando
os sobreviventes
E olhamos ainda para o mar
para a bruma
para as ondas que vêm
e não trazem mais
esperança nenhuma.
já todos
Falta um só
aquele onde ia o amor
e é mentiroso o ardor
com que sorridentes
vamos abraçando
os sobreviventes
E olhamos ainda para o mar
para a bruma
para as ondas que vêm
e não trazem mais
esperança nenhuma.
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
Surto
Amor eu precisei de ti
esta noite
e te procurei
como um viciado
buscando o pico abençoado
o cheiro a erva o pó
e ofereci a alma ao diabo
e o corpo ofertei
e me retorci
e me curvei
e minha língua desenhou
obscenidades
e me algemei
e me esfreguei
em tudo e em todos
por mais
por menos
por bem menos
por um pouco
por quase nada
por um punhado de pó
por um tapa
por uma tragada e tu amor
tu tu tu amor
não me deste nada
tu me deixaste só
como uma cadela sarnenta
e rejeitada
raspando o sexo sangrento
na calçada
uivando para a lua
e nas convulsões
gritando por ti
amor amor
ahmor
aimor
esta noite
e te procurei
como um viciado
buscando o pico abençoado
o cheiro a erva o pó
e ofereci a alma ao diabo
e o corpo ofertei
e me retorci
e me curvei
e minha língua desenhou
obscenidades
e me algemei
e me esfreguei
em tudo e em todos
por mais
por menos
por bem menos
por um pouco
por quase nada
por um punhado de pó
por um tapa
por uma tragada e tu amor
tu tu tu amor
não me deste nada
tu me deixaste só
como uma cadela sarnenta
e rejeitada
raspando o sexo sangrento
na calçada
uivando para a lua
e nas convulsões
gritando por ti
amor amor
ahmor
aimor
Só depois
Gaba-se de falar com os mortos. Se alguém pergunta o que eles lhe dizem, responde que quase nada. Prometeram dizer-lhe tudo quando se tornar um deles.
Ah, adjetivos, ah, advérbios
Que abominável é essa mania dos adjetivos. Não podem ver um substantivo, que logo o seguem, o perseguem, o qualificam, o desqualificam, o exaltam, o execram. É sair o sol e imediatamente um adjetivo o rotula de risonho, ou de carrancudo, de magnífico ou de presunçoso. Mas piores são os advérbios. Deixam em paz os substantivos, mas atormentam os adjetivos, os verbos e (vergonha da espécie!) os próprios advérbios. Esperam um adjetivo definir um homem como tolo, aguardam que um verbo faça esse homem voltar para casa e acrescentam "inesperadamente", para que o infeliz encontre, desavergonhadamente enfiado na cama da mulher, o melhor amigo usufruindo muito voluptuosamente suas quentes e proibidas carícias.
Cuidado
Se você se deparar com um verbo defectivo, fique atento. Eles são ardilosos como a raposa e o gato que engambelaram Pinóquio. Apresentam-se estropiados e são aparentemente inofensivos, mas muitos revisores perderam a carteirinha e muitos ainda a perderão antes que o mundo exploda, expluda ou muito pelo contrário.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
Crase
Diante de um caso difícil de crase, devemos manter o sangue-frio. Um sorriso confiante talvez seja também útil, desde que em nenhum momento a crase possa considerá-lo um escárnio. Há crases extremamente vingativas.
Suserana
De tuas mãos sou cativo,
A ti me rendo e me entrego,
Me dás a vida que vivo,
Às outras todas me nego.
A ti me rendo e me entrego,
Me dás a vida que vivo,
Às outras todas me nego.
Vinte anos
De todas as ingênuas esperanças e as patéticas burrices dos meus vinte anos, a maior foi a crença de que, trabalhando com seriedade, poderia chegar um dia a escrever como Machado de Assis.
O seguro
Na noite em que o menino pobre morreu, nenhuma nova estrela surgiu no céu suburbano e nenhum violino soou em tom de elegia. Na esquina, o bar lançava para a rua o som das bolas de bilhar se entrechocando. Na casa do morto, depois de meia hora de choro, a mãe e o pai, pensando que talvez pudessem enfim fazer um puxadinho no fundo, ouviam esperançosos um primo metido a advogado, que explicava como deveriam agir para receber do atropelador do menino a indenização do seguro.
Seis décadas
Ele olha para a garota como, há cinquenta anos, havia olhado para o balcão de doces. Se ela, como o dono da confeitaria, tantos anos atrás, se condoesse com seu olhar faminto, ele poderia dar à língua e à boca prazer idêntico ao antigo - provavelmente não muito mais que isso.
Sozinho
Houve um momento, no velório, em que, tendo chegado um visitante ilustre, a família se alvoroçou para recebê-lo, e o morto ficou sozinho, sob as velas. Tinha sido uma situação comum nos seus setenta anos de vida, mas dessa vez ele não pôde resmungar.
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
Paz
Fechar os olhos, sentir
Que tudo - o certo, o errado,
O bom, o mau - é passado,
E para sempre dormir.
Que tudo - o certo, o errado,
O bom, o mau - é passado,
E para sempre dormir.
Norte
Se em cada passo que eu desse
Tu fosses o rumo e o norte,
Talvez viver me aprouvesse
E eu não cortejasse a morte.
Tu fosses o rumo e o norte,
Talvez viver me aprouvesse
E eu não cortejasse a morte.
Que nome
Não sei que nome daria
A este sentimento louco,
A esta abençoada agonia.
Amor? Não. Amor é pouco.
A este sentimento louco,
A esta abençoada agonia.
Amor? Não. Amor é pouco.
Pergunta
Colocado na caixa, não miou. O menino olhou para ele pela última vez, pôs a tampa, envolveu toda a caixa com fita adesiva e pegou uma tesoura. Fez meia dúzia de pequenos furos. À mãe , que acompanhava tudo com os olhos úmidos, ele, também começando a chorar, perguntou: "Gato morto respira?"
domingo, 13 de novembro de 2011
Recurso
Te fecho os lábios com um beijo
Não para que prazer sintas,
Mas para não dar-te o ensejo
De que, falando, tu mintas.
Não para que prazer sintas,
Mas para não dar-te o ensejo
De que, falando, tu mintas.
Fantasma
Com o tempestuoso vento da madrugada, uma fronha desprendeu-se do varal, e a tartaruga, subitamente transformada em fantasma, assombrou as árvores, os passarinhos que nelas dormiam e os dois cachorros.
Melhor agora
Nesse tempo eu ainda andava,
Mas em cada um dos meus passos
O meu caminho levava
À dor somente, e aos fracassos.
Mas em cada um dos meus passos
O meu caminho levava
À dor somente, e aos fracassos.
Presságios
Entrei no mar
fui entrando
devagar
devagar
como um barco pequeno
num dia ameno
vogando pelo
prazer de vogar
e fui avançando
avançando
já como um grande navio
tocado pelo desafio
até ali de onde
não se pode mais voltar
onde os presságios se cumprem
e os naufrágios
não se podem evitar.
fui entrando
devagar
devagar
como um barco pequeno
num dia ameno
vogando pelo
prazer de vogar
e fui avançando
avançando
já como um grande navio
tocado pelo desafio
até ali de onde
não se pode mais voltar
onde os presságios se cumprem
e os naufrágios
não se podem evitar.
sábado, 12 de novembro de 2011
Compromisso
Pegar-te a mão, apertá-la,
Trazê-la ao meu coração,
Deixá-la assim, não soltá-la,
Nem mesmo na extrema-unção.
Trazê-la ao meu coração,
Deixá-la assim, não soltá-la,
Nem mesmo na extrema-unção.
Arena
Toda manhã, como outrora, muito outrora, a vida nos acorda, nos levanta e nos leva, trôpegos, para o centro da arena. Ali ela nos fustiga, nos reanima, reacende nos nossos ossos cansados sua fagulha. Estamos surdos já, e cegos, não vemos o toureiro nem ouvimos a multidão, porém investimos com o que nos restou de orgulho. Mas o que tínhamos de touro em nós ficou em algum outro tempo, em alguma outra arena.
Arquitetura
Estou cansado. Meus ombros
Já não me suportam, cedem,
Misericórdia me pedem,
E logo serei escombros.
Já não me suportam, cedem,
Misericórdia me pedem,
E logo serei escombros.
Labirinto
A vida se diverte conosco. Enfia-nos no seu labirinto e nos mantém ali, andando, andando. Quando paramos, porque nos parece impossível haver saída, ela nos provoca com um filete de sol que nos incita a segui-lo, como se soubesse o caminho, e voltamos a andar, a andar. E estamos sempre onde estivemos e onde estaremos, ontem, hoje, amanhã. Já nem queremos a saída, queremos o fim, queremos o minotauro, e o buscamos agora, com nossas últimas forças. Quando pressentimos que também o minotauro, assim como a saída, não existe, a vida faz soar um mugido, um grito, um chamado que nos faz voltar a andar, a andar, oferecidos em sacrifício.
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Terramarear
Às vezes, folheio livros de minha juventude - aventuras marítimas da velha coleção Terramarear - e lastimo não ouvir mais o tinido das espadas e a retumbância dos berros dos homens empenhados na luta no convés em chamas. Sentindo como envelheceram minhas mãos, as páginas me recusam as emoções de outrora. Os piratas dormem, as ondas não se enraivecem, os navios bocejam. Se meu neto as toca, para ele - e só para ele - voltam as batalhas, o sol lambendo o sangue dos feridos e o mar engolindo sem discriminação, com sua garganta imensa e generosa, vencedores e vencidos.
Tecelã
Sempre que olho para as tuas mãos, assombra-me saber que, entre tantas tarefas importantes, elas também - embora talvez nem tenham consciência disso - se ocupam da mofina atividade de fiar e desfiar meu destino.
Suicida
Seu último desafio:
Olhou para o chão, lá do alto,
Mirou no centro do asfalto
E se atirou no vazio.
Olhou para o chão, lá do alto,
Mirou no centro do asfalto
E se atirou no vazio.
O poeta
Se entre os excursionistas há alguém que revele interesses culturais, o guia - depois de mostrar o rio, que o folheto indica ser "o mais piscoso da região", e a famosa Cachoeira das Três Quedas, "inigualável por sua beleza" - passa pela Casa do Poeta, em cuja varanda, em dias de sol, pode ser visto, em sua cadeira de rodas, o homem que justifica o nome dessa atração turística à qual o folheto dedica duas linhas que exaltam o brilho da obra do ocupante da casa, "sonetista alexandrino de nomeada, cujos livros, de grande sucesso na década de 1980, se encontram na biblioteca anexa à casa". No último decênio, no registro da casa constam quinhentas e quarenta visitas, a maior parte delas forjada pelos dois funcionários municipais - o zelador e a enfermeira do poeta -, que nada sabem sobre a piscosidade de um rio nem sobre o volume de água que define uma cascata e temem o desemprego.
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
Serôdios
Mas tanto tempo correu,
Até você ofertá-los,
Que os frutos teus, amor, eu
Já não podia prová-los.
Até você ofertá-los,
Que os frutos teus, amor, eu
Já não podia prová-los.
Estas flores
Amor, te dou estas flores. Aceita-as, eu te peço, embora humildes sejam. Dá-lhes água, se puderes, porque vêm de longe e até agora só beberam minhas lágrimas. Cuida delas, eu te imploro. Amanhã pode ser que elas te ajudem a ornar o peito de um homem que morreu por amar demais.
Ré
Apontam para ela, que vela o filho no caixão. E olham indignados, rancorosos. O rapaz, morto pela polícia, foi perdoado. Ela, não. "É ela, aquela, olha, a mãe do ladrão."
Erro
Errei ao querer-te minha,
Mas eras linda, ao sol forte,
Esse que hoje para a morte,
Como eu, sem ti, se encaminha.
Mas eras linda, ao sol forte,
Esse que hoje para a morte,
Como eu, sem ti, se encaminha.
Não só
Amor, que tolo eu seria
Se com a intenção de ganhar-te
Contasse apenas com a arte,
E essa arte fosse a poesia.
Se com a intenção de ganhar-te
Contasse apenas com a arte,
E essa arte fosse a poesia.
quarta-feira, 9 de novembro de 2011
Marketing
Do netinho, convidando o renitente avô a jogar bola: "Aproveita, vô, que sábado que vem eu vou passar na casa do meu outro avô."
Que doa
O amor não precisa ser
Sempre uma sensação boa.
Se for amor, que me doa,
E doa enquanto eu viver.
Sempre uma sensação boa.
Se for amor, que me doa,
E doa enquanto eu viver.
Razões para morrer
Em outubro
ou em novembro
haverá uma bronquite
em dezembro
uma pneumonia dupla
uma pleurite
em janeiro ou fevereiro
uma queda no chuveiro
uma fratura tripla
em março uma infecção
uma embolia
uma grave infecção
uma anomalia
no baço ou no coração
em abril uma peritonite
em maio um desmaio
em junho ou julho uma convulsão
em agosto ou setembro
um rompimento do fêmur
uma complicação
um sério contratempo
e assim por diante
até o teu último momento
sem nenhuma chance
para o fim que você queria
aquela morte glorificante
provocada por um galopante
ataque de poesia.
ou em novembro
haverá uma bronquite
em dezembro
uma pneumonia dupla
uma pleurite
em janeiro ou fevereiro
uma queda no chuveiro
uma fratura tripla
em março uma infecção
uma embolia
uma grave infecção
uma anomalia
no baço ou no coração
em abril uma peritonite
em maio um desmaio
em junho ou julho uma convulsão
em agosto ou setembro
um rompimento do fêmur
uma complicação
um sério contratempo
e assim por diante
até o teu último momento
sem nenhuma chance
para o fim que você queria
aquela morte glorificante
provocada por um galopante
ataque de poesia.
Da utilidade gramatical do pescoço
Ter de lidar com a gramática como meio de ganhar a vida não é uma atividade saudável, pelos efeitos que pude observar em pelo menos duas centenas de revisores, entre os quais certamente me incluo. Não há nada mais terrível que uma maldição rogada por uma crase insatisfeita, dessas que abruptamente são cortadas só porque estão diante de um verbo ou de uma palavra masculina. É fatal. Por melhor cérebro que tenha, um revisor atingido por uma praga dessas acaba, mais cedo ou mais tarde, com os parafusos frouxos. Um deles, seriamente afetado, propôs por algum tempo, antes de ser devidamente internado, uma infalível regra de acentuação que consistia na simples aplicação de uma frase: levantou o pescoço, vai acento! Na seção de revisão do jornal O Estado de S. Paulo, ele pôs em prática esse conceito. Lia os textos em voz alta e, erguendo o pescoço, ia acentuando: Catandúva, Piracicába, melancía, paralélépípedo. Uma noite, atacado por um torcicolo, declarou-se incapaz de trabalhar e, quando um desmancha-prazeres lhe disse que ali estava, escancarado, um grave empecilho para a aplicação de sua teoria, respondeu que toda regra tem uma exceção e concluiu, quase bem-humorado: "E não é todo dia que se tem um torcicolo." Mas logo se enfureceu, quando o detrator de sua regra de acentuação, com um provocativo sorriso, sugeriu haver outro caso que impedia seu uso. "E qual seria?", o teórico perguntou. O outro, depois de uma longa pausa antes da estocada, disse: "Você já pensou se um dia você esquece o pescoço em casa ou dentro do ônibus?"
O assassino
A borboleta apareceu morta na sala. À noite, quando as luzes se apagaram, as fosforescentes garras do gato estirado no sofá apontavam o assassino.
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Empatia
Se as palavras se dão bem num texto ou numa frase, convém deixá-las assim, felizes, sem mexer numa sequer - a menos que elas estejam numa convenção de condomínio ou num tratado de filosofia.
Um pouco mais
Morrer é tão conveniente,
Tão reconfortante e tão
Bom que não sei por que não
Se morre mais comumente.
Tão reconfortante e tão
Bom que não sei por que não
Se morre mais comumente.
Ter sido
Que importa se o amor passou
E se o que houve já não há?
Só perde quem já ganhou,
Só morre o que vivo está.
E se o que houve já não há?
Só perde quem já ganhou,
Só morre o que vivo está.
Só se for
Adianta nós nos lembrarmos
Do que chamamos de amor?
Lembrar por quê? Só se for
Para outra vez nos culparmos.
Do que chamamos de amor?
Lembrar por quê? Só se for
Para outra vez nos culparmos.
De todas
Das bênçãos que nós tivemos
E que jamais merecemos,
De todas nos desfizemos,
De todas nos esquecemos.
E que jamais merecemos,
De todas nos desfizemos,
De todas nos esquecemos.
As primeiras
Como gostaria de me lembrar da primeira vírgula, da primeira crase que coloquei no primeiro texto lido no dia 14 de março de 1960, na minha primeira noite de trabalho como revisor na Rua Major Quedinho, 28.
Aqui
Aqui
onde a mão do amor tocou
ficou o sinal
de cinco pétalas
visível somente
para quem na carne o sente
e para quem
na carne o deixou
Aqui
onde o amor as unhas plantou
ficou uma chaga
que poreja ainda
que sangue ainda goteja
bendita chaga
que a memória não soterrou
e que o tempo não apaga.
onde a mão do amor tocou
ficou o sinal
de cinco pétalas
visível somente
para quem na carne o sente
e para quem
na carne o deixou
Aqui
onde o amor as unhas plantou
ficou uma chaga
que poreja ainda
que sangue ainda goteja
bendita chaga
que a memória não soterrou
e que o tempo não apaga.
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
Bilhete
O menino de sete anos pegou a pedra, olhou demoradamente para cima, ajeitou a mira e fez o lançamento. Quando a pedra caiu, ele correu e ficou dizendo: "Ele não veio!" O amiguinho de oito anos lhe perguntou se o que ele queria que viesse junto com a pedra era o sol. "O sol? Não. Eu mandei um bilhete para o astronauta que mora lá. Você viu o papel? Eu não estou vendo. Acho que ele chegou lá."
As mulheres, nas telas de Patricia
São mais sensuais do que belas,
Inspiram pugna, e não paz,
Sangue, e não mel, todas as
Mulheres de tuas telas.
Inspiram pugna, e não paz,
Sangue, e não mel, todas as
Mulheres de tuas telas.
Pudessem
Pudessem teus olhos ver um rosto menos cansado e menos triste que o meu e pudesses tu descobrir a alma que eu talvez tenha e, se tiver, vive apenas por ti, porque por mais ninguém viveria algo meu.
Parque
O menino deu um chute tão alto, tão forte, que quando a bola desceu ele já tinha se esquecido dela e estava andando de bicicleta.
Xérox
A vida não passa, corre.
O riso cedo se cansa,
Expira a breve esperança
E o eterno amor no fim morre.
O riso cedo se cansa,
Expira a breve esperança
E o eterno amor no fim morre.
Ao menos um
Enquanto a mulher afogava os dois gatinhos no tanque, a gata se levantou e saiu furtivamente pelo portão. Nunca mais foi vista, nem ela nem o terceiro filhote, oculto em sua barriga.
A esmo
Pela cidade hoje eu ando
Perdido como um zumbi.
Não sei onde te vi, quando,
Nunca, ontem, agora, aqui.
Perdido como um zumbi.
Não sei onde te vi, quando,
Nunca, ontem, agora, aqui.
Tão poucas
Foram só dias, não meses,
E tantas marcas deixaram.
Eu te vi tão poucas vezes,
Tão poucas vezes bastaram.
E tantas marcas deixaram.
Eu te vi tão poucas vezes,
Tão poucas vezes bastaram.
domingo, 6 de novembro de 2011
Borrão
Tudo bem, a internet é irreversível, como o celular. Mas que saudade do tempo em que se podia ver a sinceridade de uma carta de amor pelas lágrimas que borravam a tinta no papel.
36 seguidores
Não escrevo para mim. Se escrevesse, falaria só de lágrimas, de amores desfeitos, de juras perjuras, de sofrimento. Três dezenas de leitores me levam a de vez em quando fingir que conheço o outro lado da vida.
Cenário
Se ela lhe disser adeus, ele espera que seja num dia de chuva. Será difícil esconder as lágrimas da indiscrição do sol.
Marinha
No novo apartamento, a tela, posta numa parede que nunca recebe sol, olha para o sofá na parede oposta, no qual o gato cinzento tenta prender um raio solar, e tenta imaginar o que, nela, agora desagrada à dona da casa: se o mar, se o veleiro, se as nuvens no horizonte, anunciando chuva. Perguntaria a ela, gostaria de perguntar, mas desde a mudança, há três meses, a mulher não olha para ela. Agora mesmo passou indiferente e foi ajudar o gato a pegar o filete de sol.
Prazer
Lê, ainda, os poemas que te encantam. Haverá um dia, e ele está perto, em que teu prazer será tomares a sopa rala servida no almoço e veres que a mesma sopa te será oferecida à noite. Se falares de Borges, as freiras dirão que não há nenhum Borges ali no asilo.
Mãe, pai, filho
A mulher pega no colo o filho de um ano e meio e o exibe ao homem, que há um ano não o vê. O menino começa: "Pá-pá, pá-pá." A mulher pergunta se o homem não vai entrar. Ele continua parado diante da porta: "Não. Eu vim só trazer o dinheiro que prometi." No rosto da mulher o sorriso se encolhe, mas ela pega o dinheiro: "Obrigada. Veio em boa hora." Ele diz que já vai indo e começa a atravessar a rua. Atrás dele, a voz do menininho: "Pá-pá, pá-pá." Ele não olha para trás. Aprendeu a ser duro, não vai cair num truque assim. E bem pode ser que o menino não o esteja chamando, mas só pedindo comida.
Bruxaria
Confessa que és feiticeira.
Só mesmo uma poderia
Na minha vida tão fria
Atear tão grande fogueira.
Só mesmo uma poderia
Na minha vida tão fria
Atear tão grande fogueira.
No rio
Um som pavoroso veio do rio, um uivo agudíssimo, um guincho aflito como o de um porco apunhalado. Meu amigo e eu corremos para lá e soubemos, pelas pessoas aglomeradas, que um cachorro tinha acabado de se afogar. Mas o uivo não era do animal, era do dono que, dando a impressão de querer arrancar as próprias orelhas, ensaiava um novo grito, talvez ainda mais terrível. Meu amigo, com uma compostura que só os grandes espantos nos ensinam, disse: "É a vida." Eu, para também dizer alguma coisa, comentei: "É a morte." Nós tínhamos catorze anos.
sábado, 5 de novembro de 2011
Coro
Que triste é a voz do mar,
Com esses seus sons doloridos,
Dos que se afogaram, e dos
Que ainda vão se afogar.
Com esses seus sons doloridos,
Dos que se afogaram, e dos
Que ainda vão se afogar.
As mãos de WS
Das mãos de Wislawa Szymborska não nascem auroras, nem ela gostaria que nascessem. Das mãos de Wislawa nascem objetos cotidianos: um bule, uma xícara, uma colher, um pão, tudo simples, quase banal, e, para que saibamos do que seriam capazes essas mãos se não as encantasse a singeleza, nasce às vezes a mais extraordinária das criaturas: um gato que não se importa em compartilhar sua magia com as coisas e até com um humano ao qual se afeiçoe.
Se
Se a uma pedra eu dissesse
o que te dizia
que por ti moveria
o sol e a lua
e o mar secaria
ela talvez acreditasse
naquele tempo
naquele dia
Se eu dissesse hoje
a essa pedra
aquilo que eu te dizia
ela diria me move então
e eu não sei
se conseguiria.
o que te dizia
que por ti moveria
o sol e a lua
e o mar secaria
ela talvez acreditasse
naquele tempo
naquele dia
Se eu dissesse hoje
a essa pedra
aquilo que eu te dizia
ela diria me move então
e eu não sei
se conseguiria.
Ainda não
Na pintura, quatro gaivotas flutuam sobre as ondas. Há um peixe, desgarrado do cardume, que não se vê na tela, e que não vê nem pressente as gaivotas, mas que é visto por elas e será apanhado pela mais voraz. Mas isso o quadro não mostrará.
(In)definição
O amor, é melhor senti-lo
E plenamente vivê-lo
Do que tentar defini-lo,
Do que pensar conhecê-lo.
E plenamente vivê-lo
Do que tentar defini-lo,
Do que pensar conhecê-lo.
Só boleros
Entrando na sexta década de vida, tornou-se sentimental e toda tarde, ouvindo uma rádio que toca boleros, só boleros, senta-se com a gata no sofá e, historiando seus amores, todos malogrados, vai dizendo seus nomes e comentando: "Esse Cássio era tão bonzinho, e o Rogério tão bonito, e o Bernardo tão carinhoso, você precisava ver, Lili." Envolta pela suavidade dos boleros, a gata aos poucos cochila e sonha com um gato branco, branco, branco.
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
Sono
Nas noites tristes de outono,
Nas frígidas madrugadas,
Nas ruas surdas do sono,
Ouço, amor, tuas passadas.
Nas frígidas madrugadas,
Nas ruas surdas do sono,
Ouço, amor, tuas passadas.
Mesmo assim
Dormir é sempre bom, mesmo quando se sabe que no dia seguinte haverá a rotina de acordar.
Porcentagens
Não deves tomar o amor por suas partes. Somadas, elas sempre ultrapassam o todo. Percebes isso quando o amor te faz cantar - nesses instantes ele é sempre maior do que parecia. E percebes isso também quando o amor te dói - se nesses momentos tu o expressasses em números, em quantos por cento os cem seriam superados? E percebes tudo isso principalmente quando o amor te deixa - nessa hora, quando ele pela lógica deveria ser zero, o amor é tão grande, tão imenso, que a vida toda se apequena e se torna tão insignificante que não te importas se verás nascer o sol no dia seguinte.
Preferências
Aos oitenta anos, já sabe muito bem o que quer. O prazer de suas manhãs é, sentado no banheiro, resolver palavras cruzadas. O do almoço é a eterna salada de alface, pepino e tomate. Reserva a tarde para a leitura. Pega sempre um dos catorze livros de que gostou - os únicos que mantém na estante, ao lado das trinta e duas revistas de palavras cruzadas que, entre tantas compradas em tantos anos, ele selecionou como as melhores, e que vai fazendo e refazendo, com seu lápis predileto e a borracha da sua época escolar.
Amor
Nem sabem mais do que estão falando, mas por um resto de hábito e outro tanto de cinismo continuam dizendo que foi lindo.
Lupa
Que sórdido é o leitor que, no meio de um poema, aponta o dedo para uma palavra, a mais bela de todas, e, como um detetive, exclama: "É um sintagma."
Resumo
Tivemos tudo. Floria
O amor, e nossa canção
Cantava a eterna paixão
Que não durou mais que um dia.
O amor, e nossa canção
Cantava a eterna paixão
Que não durou mais que um dia.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
Vivissecção
Os críticos conseguem transformar flores tristonhas, navios no horizonte e estrelas pálidas em horrendas metáforas, sinédoques e metonímias.
Argila
Não somos mais o que fomos,
E o que éramos já não sei,
Tu criaste a mim, eu te criei,
E somos o que não somos.
E o que éramos já não sei,
Tu criaste a mim, eu te criei,
E somos o que não somos.
Mentira
Não, nós não tivemos nada.
Até as nossas lembranças
São uma cópia apagada
De nossas vãs esperanças.
Até as nossas lembranças
São uma cópia apagada
De nossas vãs esperanças.
Quarto 218
Que queres mais?
Tens uma boa cama
que sobe e desce
conforme te convém
e se molhas o pijama
logo surge alguém e pronto
estás de novo composto
Trazem-te café
geleia biscoitos
depois o almoço
o lanche
e sem tardar
o jantar
tudo fácil assim
sem precisares pedir
ah se ao menos
conseguisses engolir
Te dizem o tempo todo
que estás bem
e tu dizes também
e até sorris
porque não queres parecer
um doente mal-educado
ou ser amanhã
um morto mal lembrado
E obediente
tomas teu chá
enquanto lá fora
a macieira prepara uma maçã
que nunca será
mordida por teus dentes.
Tens uma boa cama
que sobe e desce
conforme te convém
e se molhas o pijama
logo surge alguém e pronto
estás de novo composto
Trazem-te café
geleia biscoitos
depois o almoço
o lanche
e sem tardar
o jantar
tudo fácil assim
sem precisares pedir
ah se ao menos
conseguisses engolir
Te dizem o tempo todo
que estás bem
e tu dizes também
e até sorris
porque não queres parecer
um doente mal-educado
ou ser amanhã
um morto mal lembrado
E obediente
tomas teu chá
enquanto lá fora
a macieira prepara uma maçã
que nunca será
mordida por teus dentes.
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Uma tela
Uma tela negra, toda negra, sem um milímetro, sem um ponto, sem um poro que visto de algum ângulo pudesse dar a alguém a impressão de que ali talvez uma fonte de luz estivesse iniciando uma rebelião. Se eu fosse pintor, gostaria de fazer um quadro assim e de poder ficar dia e noite ao pé dele, com a tinta preta à mão, para qualquer eventualidade, a fim de que minha alma jamais fosse tentada por nenhuma esperança de salvação.
Finados
Os mortos nos antecedem
E vão para a cova fria.
Se honra ou se logro nos cedem,
Talvez saibamos um dia.
E vão para a cova fria.
Se honra ou se logro nos cedem,
Talvez saibamos um dia.
A cena
A cena és tu
andando pela galeria
és tu apenas
apesar do esforço
das luzes
das lojas
do ruído
das vozes
e do maluco
que repentinamente
parou de tomar o café
e diz ao companheiro
que Platão
queiram ou não
era um grande embusteiro
A cena és tu
e quando saíres da galeria
continuará a ser
tu apenas
apesar do arco-íris
que ao te ver
abrirá sobre a avenida
como um pavão
a cauda multicolorida
tentando uma comparação.
andando pela galeria
és tu apenas
apesar do esforço
das luzes
das lojas
do ruído
das vozes
e do maluco
que repentinamente
parou de tomar o café
e diz ao companheiro
que Platão
queiram ou não
era um grande embusteiro
A cena és tu
e quando saíres da galeria
continuará a ser
tu apenas
apesar do arco-íris
que ao te ver
abrirá sobre a avenida
como um pavão
a cauda multicolorida
tentando uma comparação.
De que
De que me serve a poesia
Se surdos são teus ouvidos
A todos os meus pedidos
E à minha tola agonia?
Se surdos são teus ouvidos
A todos os meus pedidos
E à minha tola agonia?
terça-feira, 1 de novembro de 2011
O velho William
Nem os editores nem os escritores costumam ler Shakespeare: os editores, por preguiça; os escritores, para não corromperem o próprio estilo.
Ideal
Seria tão mais suportável a vida dos editores, se não precisassem lidar com originais e com escritores.
Reverso
Às vezes, cansado de rejeições, o escritor resolve tornar-se editor. Descobre então o que são os escritores: insignificantes, inúteis e importunos.
Arquivos
Quem fará o necrológio das dezenas de milhares de personagens que jazem nos arquivos dos editores, sem nenhum esperança, embora de semestre em semestre, per omnia saecula saeculorum, uma amável secretária responda aos ansiosos escritores que logo os originais serão avaliados?
A noite é dos beneméritos
Muitos editores me passam a impressão de que seu título é usado por eles como uma espécie de prerrogativa para isentá-los de ler. Mas digo, em sua defesa, que, mesmo se quisessem ler, não poderiam. A principal atividade da maior parte dos editores é participar de reuniões. Sabe muito bem disso quem telefona para qualquer um deles às oito, às nove, às dez, às onze horas e ao meio-dia, ou às duas, às três, às quatro, às cinco e às seis horas da tarde. Do meio-dia às duas, para que ninguém os julgue superiores, como de fato são, eles se dedicam ao prosaico hábito do almoço. As noites, como se sabe, são por eles reservadas para receber prêmios por seu incansável trabalho em favor da literatura.
O trigésimo terceiro
Quando um editor deleta, sem ler, um original, é um absurdo. Quando um editor, o segundo, faz o mesmo com o mesmo original, é a lógica. Do terceiro ao trigésimo terceiro, é só matemática, embora os escritores, sempre fantasiosos, chamem isso de crueldade.
Parceria
Naquela época, eu acreditava na literatura e - o mais importante - a literatura parecia acreditar em mim.