quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Bola de cristal

Quando ele dizia que logo estaria morto, o que se lia nos seus olhos era o mais profundo, honesto e inequívoco otimismo.

Soneto dos fantasmas que me atormentam (versão final)

Enquanto durmo não sei
Nem quero saber de Dante,
De Tolstói, Cabrera Infante,
De Scott e nem de Hemingway.

Enquanto durmo, eu espaços
Não abro para Flaubert,
Para Pascal ou Voltaire,
E nem para John dos Passos.

Enquanto durmo, eu me isento
Do inenarrável tormento
Que impõe a literatura.

Mas quando acordo vêm Eça,
Machado, Agustina Bessa,
E recomeça a tortura.

Personagens, quase parentes

Tenho saudade dos anos em que escrevi novelas juvenis para a coleção Vaga-Lume, da Ática. Que experiência era criar os personagens, traçar-lhes o perfil, fazê-los agir de acordo com a trama e, como um pai, esmerar-me para que tanto meus "filhos" vilões quanto os heróis fossem os melhores vilões e os melhores heróis. Alegravam-me seus sucessos e abatiam-me seus fracassos. Temia magoá-los. A personagem que teve o mais imprevisto destino foi uma velhota cujo papel seria a princípio tão fortuito que um parágrafo ou dois lhe bastariam. Sua simpatia a levou a ganhar um espaço bem maior, um nome (estava inicialmente destinada a ser anônima) e, por um mérito que ela surpreendentemente me impôs, depois de encantar outros personagens, se tornou uma espécie de chave para a compreensão do livro. Sempre que me lembro dessa velhinha do meu livro Um inimigo em cada esquina me vem também à memória a peça Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, na qual se pode ver que, ao contrário do que se costuma imaginar, um autor está longe de ter nas mãos o controle total do que escreve.

Cotação do dia

Tantos lugares onde o amor poderia agonizar... Precisava ser na minha alma, e tão dolorosamente?

Pauta

Que não seja amor o assunto.
Já se gastou vela demais
Com tal defunto.

Soneto do bem-viver (para Celina Portocarrero, Liberato Vieira da Cunha e Mariana Ianelli)

Se houvéssemos compreendido,
Desistiríamos já
De buscar algum sentido
Onde nenhum sentido há.

De onde viemos, aonde vamos,
De que nos vale saber?
Que bem viver nós saibamos
E que deixemos viver.

Nem a brisa se preocupa
E nem a rosa se ocupa
Em conhecer de onde vêm

Ou aonde depois irão.
Se amam, se tocam, se dão,
Como lhes cabe e convém.

De Mariana Ianelli sobre Mario Quintana

"Íntimo de histórias bíblicas, da Torre de Babel, da vida de Caim, da Arca da Aliança, do Apocalipse, Quintana fez desfilar por seus poemas uma multidão de anjos: anjos da guarda, gloriosos, molhados, depenados, boêmios, dentuços, rechonchudos, anjos de pedra, anjos sonâmbulos galgando degraus, atravessando espelhos, o Anjo Rebelado, o Anjo das Tempestades, o Anjo da Encarnação, o Anjo das Últimas Queixas. Ele sabia que o que não estava na Bíblia estava em Shakespeare. Que aos olhos de Deus cada um tem o tamanho de um universo. Que não existem poetas pequenos ou grandes, que cada poeta é o único rei do país de si mesmo. Que o refinamento da simplicidade só vem com o tempo e numa poesia feita de relógios sem ponteiros. Que todos nós temos todas as nossas idades ao mesmo tempo."

(De Para aqueles a quem os dias são um sopro, edição da ardotempo.)

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Estadão (para Patricia Maria Mesquita)

Hoje não sei. Mas, por volta de 1960, o primeiro lugar onde o sol aparecia em São Paulo era a rua Major Quedinho, para saber as últimas notícias, ver a hora no relógio do topo do prédio e dar mais uma espiada no mural de Di Cavalcanti.

Reverência

Naquele tempo, tu lembras, eu sabia curvar-me gentilmente, como convinha a um cavalheiro com alguma esperança, ainda que estivesse diante de uma mulher inalcançável como uma rainha. Hoje o tempo e os infortúnios me curvaram de tal forma que me perdoarás se no gesto com que te reverencio vires semelhança com um boi que, de tanto ver adiada sua ida ao matadouro, se mantém já pronto, como se afinal tivesse chegado o dia.

Dez anos

Sempre que chega o carteiro, o Velho faz a mesma pergunta:
"Alguma carta de Estocolmo?"
Há dez anos a resposta do carteiro é:
"Não."
Há dez anos o Velho se lamenta:
"O Nobel me esqueceu."
"Quem sabe amanhã", sugere o carteiro.
"Eu já estou perdendo a esperança."

Perfil

O amor tem tronco, membros e uma cabeça completamente disparatada.

Autoria

O Velho pede à neta de dez anos que abra o google:
"Vê aí se fui eu que escrevi Romeu e Julieta."
"O quê?"
"Põe aí Romeu e Julieta. Pôs? Tem o nome do  autor?"
"Do autor? Tem aqui um William."
"William?"
"É. William Sha... Sha... Que nome estranho."
"Não sou eu. Curioso, eu tinha certeza de que..."

Persistência

Hoje, de supetão, o Velho avisou que vai ser escritor. Se não tivesse morrido, a mãe lhe diria o que disse quarenta anos atrás: vai, sim, menino. E lhe apertaria a bochecha: meu lindo.

Um poema de Lu Xun (1881-1936)

"A gente do comum sombria enterra o rosto nestes matos
E quem se atreve a cantar um lamento que à terra comova
Quando se atira o coração para o espaço todo preencher
É nesse silêncio mortal que se ouve o estrondo do trovão."

(De Uma antologia de poetas chineses, tradução Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Cotação do dia (2)

A percepção de que, por pior que sejas, haverá sempre alguém capaz de te superar. Não é um alívio, mas não deixa de ser um consolo.

Cotação do dia

Uma sensação antecipada de desforra. Apalpo os braços e sorrio: a morte não levará nada que preste.

Sentimento

O Velho anda sentimental. Chora por qualquer coisa e por coisa nenhuma. Hoje, ficou tão comovido diante de uma rosa que se urinou todo antes de chorar.

A verdade

Quando o Velho diz a palavra amor, seus lábios, sem que ele perceba, armam um sorriso que é ao mesmo tempo de ironia e compaixão.

Dura lex

Beleza não se define, felizmente. Se fosse possível resumi-la em três ou quatro parágrafos, haveria toda uma súcia de cretinos analisando poemas, horizontes e catedrais de acordo com as alíneas, os incisos e as demais minúcias do texto legal.

Mario Quintana

Mario Quintana não precisava de nenhum método. Bastava-lhe a predisposição que têm os pássaros para acolher a beleza e com modéstia reverberá-la.

Estilo

Aos leitores só peço que acreditem numa coisa: escrevo com a alma. Com esta alma que tenho, não aquela de que precisaria para ser um escritor verdadeiramente grande. Mas escrevo com toda ela, toda, toda, e com este coração que bate apaixonadamente em cada sílaba quando digo toda, toda, toda.

Cinzas

Gostaria que, com meu corpo, fosse queimada uma folha de caderno com uma frase, escrita com caneta: "Foi um homem que escreveu." Assim, só isso. Sem nenhum advérbio.

Delicadeza

Que nossa derradeira manifestação na terra seja um suspiro no qual ninguém consiga distinguir nem queixa nem alívio, um suspiro que não encubra nem o pio de um passarinho recém-nascido nem a sílaba inicial da primeira brisa da primavera.

Detalhe

Quem não conhece o doce jugo do amor não deveria se proclamar tão feliz com sua liberdade.

Requerimento

Pelo presente, os escravizados pelo amor solicitam o direito de, vivos ou mortos, serem chamados de bem-aventurados idiotas.

"Conselho para um jovem no ano 2064 D.C.", de Charles Bukowski

"permita-me falar como um amigo
ainda que os séculos se ponham
entre nós e nem você nem eu
possa ver a lua.

tenha menos cuidado com a cebola cegando o olho
ou com a cobra picando
ou com a barata dominando a casa
ou com o amante a sua esposa
ou com o governo o seu filho
ou com o vinho a sua vontade
ou com o médico o seu coração
ou com o açougueiro a sua barriga
ou com o gato a sua cadeira
ou com o advogado o seu desconhecimento da lei
ou com a lei vestida de homem fardado e te matando.

rejeite a perfeição como uma dor dos
gananciosos
mas não se renda à modéstia comum da
fácil imperfeição.

e lembre-se
que a barriga da baleia está cheia de
grandes homens."

(De Amor é tudo que nós dissemos que não era, publicação da LeYa.)


domingo, 27 de novembro de 2016

Exceção

Só a um ser muito amado, como o Corinthians, se pode dar o direito de estragar assim os nossos fins de semana.

Proporções

Sou pequeno demais para o amor. Ele me preencheu em alguns dias, em alguns meses, e passou a me olhar com o desprezo e a forçada comiseração com que uma estrela olha para uma pedra lá embaixo, ou um cachorro num jardim.

O amor, quando incomensurável

O amor às vezes se torna grande demais, incontrolável demais. É quando ele merece o nome e se distingue desses afetos tolos que tentam imitá-lo, essas flores de plástico querendo fazer-se passar por girassóis numa lojinha de periferia.

Urgência

Quando Ismália enlouqueceu, os parentes vasculharam a torre, à procura de carteirinha do convênio.

Um jovem de futuro

Num dia de 1980, 12 de maio, ele se lembra bem, seu nome apareceu numa nota de quinze linhas num suplemento literário. A última frase dizia que ele era um jovem de futuro. Ele, naturalmente, se empenhou ainda mais em escrever. Mas nunca mais, em lugar nenhum, foram publicadas sobre ele quinze linhas tão lisonjeiras quanto aquelas.

Razão de viver

Provem-me, à meia-noite e cinco, que a beleza não existe, e eu não me importarei em morrer à meia-noite e seis.

Hobby

Ao chegar à meia-idade, preferiu o amor às palavras cruzadas. Seus olhos estavam fracos, já não distinguiam bem as letras, mas suas mãos, embora não fossem mais tão hábeis, tinham em Magda uma superfície corporal cuja beleza e amplidão era impossível ignorar.

Monarcas

O amor é um desses brinquedos da infância que trazemos para a vida adulta. As rusgas entre os amantes, as separações, os reatamentos, não são nada além de extensões daqueles jogos em que, meninos e meninas, nos exercitávamos para estar prontos quando chegasse a época na qual nos caberia dominar o mundo.

As cartas na gaveta

Não tem mexido mais na gaveta onde estão as cartas que recebeu da amada há cinco anos. Na última vez em que a abriu, há uma semana, dela haviam escapado duas borboletas e, ao contar as cartas, ele notara que já não eram dezessete, mas quinze. Mantém agora a gaveta fechada como um túmulo. Quando passa perto dela, ouve sempre um bulício que não parece o de cartas, mas o de asas. São as borboletas nutrindo-se das palavras, decerto. Quando o ruído lhe avisar que elas estão prontas, ele soltará as borboletas. Que melhor destino pode haver para cartas de amor?

"A.B. do R.", de Manoel de Barros

"Arthur Bispo do Rosário se proclamava Jesus. Sua obra era ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados, objetos mumificados, fardões da Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores - coisas apropriadas ao abandono. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor. Esse Arthur Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus."

(De Poesia completa, publicação da LeYa.)

sábado, 26 de novembro de 2016

Tesouro

Um lacaio que tem como melhor recordação um garfo e uma faca de prata furtados num jantar à luz de velas que serviu a um dos 365 amantes anuais da rainha.

Mea-culpa

Não escrevo para viver. Talvez escreva para não morrer. Seja como for, sinto, com indescartável remorso, que no meu caso o ato da escrita traz mais benefícios a mim do que a eventuais leitores.

Modo de dizer

De uma poesia, assim como de uma mulher, nunca se deve dizer que é feiosa; no máximo, feiosinha.

Coincidência

Morrer é um acidente fatal justamente no fim do percurso.

Uma frase de Manoel de Barros

"Pois o que disse Joyce foi que o arame farpado quem inventou foi uma freira, para amarrar na cintura dela quando viesse a tentação."

(De Poesia completa, Editora LeYa.)

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Desgraça (para o Xico Sá)

Oh tempora! Oh mores! Quem te fez forte assim, brasileiro? Morrem as esperanças, morre tudo, só tu não morres!

Risco (para Paola Mayora Megliora)

Dizer amor é arriscar-se a ouvir a boca perguntar por que não são tão belas todas as outras palavras.

Só ele

Um homem possuído pelo amor é um louco clamando no deserto. Só ele vê as fontes, as rosas e as borboletas.

Fantasia

Que venturosa loucura é a do amor. Hoje uma recordação bem antiga da amada me fez feliz como um menino soprando bolhas de sabão. Por que não as soprei quando ela estava ao meu alcance e seus dedos receberiam as bolhas como uma dádiva?

Sonho

Ele sonha que ela mastiga rosas e vai cuspindo o sumo numa xícara. Quando ela lhe estende a xícara, ele está transformado num sedento bem-te-vi.

Covardia

Comi tanto tempo da mão do amor e nunca tive a ousadia de bicá-la. Talvez os outros tenham tido, esses que hoje sorriem para a manhã, para o sol, para o mundo. Sonho com dedos que maciamente me estrangulam.

Quando

Quando escrevia para a amada, era como se os seus dedos estivessem sendo picados pelos espinhos de uma rosa adepta de dramas que insistia em transformar em vermelho o azul dos versos.

Uns poucos

Morrer pelo amor é um desses desatinos que só os que vivem pelo amor são capazes de cometer.

Ficha

No arquivo que o amor tem no seu escritório, é sempre belo nosso rosto na foto, tirada sob o encanto dos primeiros dias, quando ele não havia nos submetido ainda ao ferro do seu rancor.

Resumo

Quando vejo no espelho este rosto devastado pelo amor lamento minha tolice, mas exalto minha honestidade.

In extremis

Insensato não é quem ama até à própria aniquilação; é quem não.

Uma rosa são três

Hoje, no portal do Estadão, conto três histórias que têm rosas como protagonistas (www.estadao.com.br).

Malévola

Para poder dizer-se minha única amada
a poesia matou
minha vida a bicadas.

Dádiva

Se é bela a rainha
é bom tudo que vem de sua mão -
até o pão murcho do vassalo.

Filosofia

Pergunte a uma lesma
que se arrasta na parede
o que ela pensa da eternidade.

Emergência (para o Gianluca e a Nicole)

Quando o gato começou a cantar
a família acordou e correu
para a gaiola do sabiá.

Pompa

Caminhamos para o pó
para a extinção
mas com tanta presunção
que é como se cada um de nós
fosse uma versão melhorada
e nunca derrotada
de Napoleão.

"Um bem-te-vi", de Manoel de Barros

"O leve e macio
raio de sol
se põe no rio.
Faz arrebol...

Da árvore evola
amarelo, do alto
bem-te-vi-cartola
e, de um salto

pousa envergado
no bebedouro
a banhar seu louro

pelo enramado...
De arrepio, na cerca
já se abriu, e seca."

(De Poesia completa, edição da LeYa.)


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Linguagem

Na tua boca
mesmo quando nada ela me diz
vejo a ondulação
do indesmentível til
da palavra não.

Pombas

Depois que a primeira pomba despertada
acordou as demais
Raimundo Correia não conseguiu dormir mais.

Prima-dona

A pata velha
embriagada de sol
grasna como um rouxinol.

"Gertrude subindo a escada, 1943", de Charles Bukowski

"penso em Gertrude subindo aquela escada
em St. Louis
há muitos anos
e eu bem atrás dela
um garoto ainda.
penso em Gertrude subindo aquela escada
em St. Louis
e nenhuma escada tão promissora quanto
aquela
com as imagens de Jesus da proprietária
recortadas de revistas baratas
pragadas aqui e ali
pelas paredes.
penso em mim mesmo subindo aquela escada
em St. Louis
atrás da Gertrude
e a caminho de seu quarto
entrando lá
a porta fechando firme atrás de nós
ela servindo o claret
em taças altas e finas
naquela pensão sombria
perto daquele parque enorme
com suas árvores desfolhadas do inverno.
parada naquele lugar
Gertrude parecia tão adorável
tão perfeita
uma jovem além da mera juventude
uma imagem envolta em um sonho
perfeito
e enquanto
estava parada lá na minha frente
finalmente ela ficou
perfeita demais:
eu virei meu claret e pedi licença pra
sair
sabendo que
seguir Gertrude até o alto daquela escada
em St. Louis
por si só
já bastava
esse foi
o nosso grande momento juntos
e tudo o que se seguiu
seria menos
menos
e eu queria me lembrar dela desse
jeito: em seu momento perfeito
antes que ela se cansasse do jogo e
nós um do
outro."

(De Amor é tudo que nós dissemos que não era, tradução de Fernando Koproski, edição da 7 Letras.)



quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Lema

Não envelheça. Na vida
Não há nenhuma virtude
Mais desejada e querida,
Nem maior que a juventude.

Licença para matar

Do que iremos nós queixar-nos
Se ao amor nos entregamos,
Carta branca lhe outorgamos
E o amor resolveu matar-nos?

Má sorte

Com que má vontade
me farão companhia
as flores no meu último dia.

Carimbo

Se a última palavra que disseres for amor, confirmarás, em alto estilo, o que pensam de ti: sempre foste um tolo.

Soneto do antigo jogo

Com o tempo já a se escoar,
Sei que nem mais alegrias
Nem recompensas tardias
Eu devo agora esperar.

Esgotam-se já os dias
E quando o último passar
Verei o tempo chegar
Das noites longas e frias.

Desse modo resumida
Em metáforas mofadas,
Parece um brinquedo a vida.

Mas a fúria já provou
Das suas garras afiadas
Quem com ela um dia brincou.

Um poema de Hilda Hilst

"As mães não querem mais filhos poetas.

A esterilidade dos poemas.
A vida velha que vivemos.
Os homens que nos esperam sem versos.
O amor que não chega.
As horas que não dormimos.
As ilusões que não temos.

As mães não querem mais filhos poetas.

Deram o grito
desesperado
das mães do mundo."

(De Baladas, Editora Globo.)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Revisão (para Marisa Lajolo)

Sim, Monteiro Lobato
foi quem me viciou assim
na alegria
e na fantasia
com o pó de pirlimpimpim.

Proclamação

Nada de falsa modéstia. Devo ter a coragem, a honra e a honestidade de dizer o que sou: tolo, inútil, perverso, invejoso e mais um sem-número de indignidades que os outros insistem em não reconhecer em si mesmos, embora elas sejam, assim como as virtudes, indesmentíveis traços de humanidade.

Patrulha

Os críticos das redes sociais não nos deixam celebrar o que temos de melhor: nossa aptidão para o fracasso. Querem que nos unamos às gargalhadas com que tentam convencer-nos de que o sol e as manhãs nunca mentem.

Honraria

No banquete final
será tua a melhor fatia
cortada pelo Amor
do teu corpo
e ofertada
bem condimentada
àquele que é agora
como tu foste outrora
o principal comensal.

Mérito

Em materiais de construção
o poeta concretista
tem vinte por cento de dedução
se o pagamento for a vista.

Lição

Ensinou-nos Drummond
que a rima num poema
pode ser mais um problema
do que uma solução.

"Pedreira", de Paul Auster

"Não mais que seu canto. Como se
o canto e só
nos tivesse trazido até aqui.

Estivemos aqui, e nunca estivemos aqui.
Estivemos a caminho de onde começamos,
e estivemos perdidos.

Não há fronteiras
na luz. E a terra
não nos deixa palavra
por contar. Pois o desmoronamento da terra
sob os pés

já é música, e andar entre essas pedras
é nada ouvir
além de nós.

Canto portanto o nada,

como se fosse o lugar
a que não volto -

e se vier a voltar, então conta minha vida
nessas pedras: esquece

que jamais estive aqui. O mundo
que caminha em mim

é um mundo além do alcance."

(De  Os melhores poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)




segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Nu e cru

Eufemismo é ver
o rei nu
e elogiar a cueca
que deveria estar
mas não está
cobrindo seu pinto
e seu cu.

Soneto do medíocre morituro

Por mais que tente ou que faça,
Eu jamais conseguirei,
Por meu destino ou desgraça,
Ser aquilo que almejei.

Sei que a paga a mim devida,
Por minha inépcia ou má sorte
É ser inútil na vida
E desprezível na morte.

Não vim pedir compaixão,
Não há para isso razão,
É fato mais que comum.

Gente assim como eu há
Que nasceu e morrerá
Sem deixar sinal algum.

Na dele

Farmacêutico, ele não
se põe em forma;
põe-se em fórmula.

Híbrido

Enquanto houver chance
que te amo direi e repetirei -
e honni soit qui mal y pense.

Carteirinha

Em materiais de construção
o poeta concretista
tem vinte por cento de dedução
se pagar a vista.

Lição

Ensinou Drummond
que a rima num poema
pode ser mais um problema
que uma solução.

Um poema de Lawrence Ferlinghetti

"Não deixe esse cavalo
comer o violino
reclamava a mãe de Chagall
Mas ele
prosseguiu
pintando
E ficou famoso
e permaneceu pintando
O Cavalo com o Violino na Boca

E quando finalmente finalizou-o
saltou sobre o cavalo
e caiu fora
acenando com o violino
E então com uma longa reverência entregou-o
ao primeiro nu despido pelo qual cruzou

Sem cordas atadas."

(Tradução de Eduardo Bueno, poema extraído de Um parque de diversões da cabeça, edição da L&PM.)

domingo, 20 de novembro de 2016

Ruth Manus

É cada vez mais difícil encontrar uma crônica isenta da pretensão de ser ensaio. A proporção é uma em trinta. A de hoje, de Ruth Manus no Estadão, é uma dessas, raríssimas, que saúdo com entusiasmo, lamentando não ter chapéu para tirá-lo.

Meu Brasil gatuneiro

Há quem diga
que não faz diferença
uma arroba, mas faz.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Se estrelas se plantam, esse deve ser o atual trabalho de Mario Quintana, lá em cima.

Confiança

Sem ter outro confidente
ela confessa tudo
ao seu criado-mudo.

Paradoxo

Por uma dessas razões não explicadas
as partes pudendas são sempre
as mais despudoradas.

Classe

Depois do banquete o vampiro
eructou vampirescamente
e limpou a boca com o papiro.

Hoje, na Revista Rubem

Hoje falo de vivências como a morte (presente em cada um de nossos dias).
www.rubem.wordpress.com.

Mais Henri-Frédéric Amiel, com reverências

"Vi quanto eu tenho mudado desde uma dezena de anos, e como a volúpia ou a curiosidade dos sentidos aumentou de influência sobre mim. Escrúpulos e repugnâncias se afastaram, e a sensualidade da imaginação substituiu a hipocrisia puritana."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações, Livraria e Distribuidora Ltda.)

sábado, 19 de novembro de 2016

Dique

No meio do caminho tinha uma vírgula. Logo depois, outra. Em seguida, mais uma. e mais outra. Vendo que o texto não fluía, o escritor irritou-se e pôs ponto-final.

Sazonal

Amor, quer seja nos junhos,
Nos julhos ou nos agostos,
Não nos negas infortúnios,
Nem pesares nem desgostos.

Resgate (para Celina Portocarrero)

Depois da chuva, ele vai ao jardim recolher as flores que, derrubadas pelos pingos, se transformaram em haicais. Precisa chegar rápido, antes que a brisa brincalhona os nomeie barcos e os faça navegar na enxurrada.

Noblesse oblige

As primeiras quatro palavras que alguém diz antes de nos desrespeitar são: "Com todo o respeito."

CLT

Um choque de realidade:
meu amigo imaginário
me cobra sem piedade
sessenta e tantos anos de salário
e de auxílio-amizade.

Mais um trecho de Henri-Frédéric Amiel

"A felicidade mais direta e mais segura para mim é o convívio com as mulheres. Nesse meio, eu me dilato imediatamente como um peixe na água, como um pássaro no ar. Em suma, é o meu elemento natural e nós nos entendemos reciprocamente às mil maravilhas. É a recompensa à minha longa timidez ante o sexo? É uma espécie de eletricidade por indução? Sempre acontece que a teoria cavalheiresca se realiza para mim e o atrativo feminino me eletriza, exalta em mim todas as faculdades desinteressadas. Não desejo absolutamente conquistar e apropriar-me, mas sinto-me desabrochar e irradiar por amor geral, por pura simpatia, e então a verve flui em mim."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

No portal do Estadão (www.estadao.com.br)

Hoje falo do sexo, dedico-lhe uma ode, para me redimir do meu risível passado romântico.

Soneto do vassalo

Eu sou aquele bufão
Que durante o teu reinado
Se teve alguma função
Foi a de fazer-te agrado.

Para livrar-te do enfado,
Rainha do meu coração,
Fui ridicularizado,
Afundei-me na abjeção.

Quanta dor, tanta agonia...
Por que não morri no dia,
Minha querida, minha ama,

Em que precisei levar
A ti e àquele teu par
Café da manhã na cama?

Inverossimilhança

Nos poetas velhos, palavras como felicidade, amor e esperança soam como obscenidades. Quem há de acreditar nelas, pronunciadas por aqueles lábios murchos de onde as vogais e as consoantes se desprendem junto com respingos de saliva e restos mal mastigados de carne?

Dores (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

O que me dói
e me entristece
é não ter sido Tolstói,
nem Tchekhov nem Dostoiévski.

Soneto de quem sonhou ser um rei

O meu destino, já sei,
Não poderei mais mudá-lo.
Sonhando tornar-me rei,
Jamais passei de vassalo.

Empenhar-me eu me empenhei,
Ninguém poderá negá-lo,
Porém falhei, e falhei
Muito mais do que vos falo.

Apesar do que sofri,
Até hoje jamais ouvi
Ninguém me chamar de alteza.

Lacaio, pego um pano,
Beijo a mão do soberano
E limpo-lhe toda a mesa.

Um trecho de Henri-Frédéric Amiel

"Como é duro envelhecer, quando se faltou à vida, quando nem a coroa viril nem a coroa paternal se tem! Como é triste sentir baixar a sua inteligência antes de execução de sua obra, e declinar o corpo antes de se ter visto a si mesmo nascer nos que devem cerrar os nossos olhos e honrar o nosso nome! - Como nos fere a trágica solenidade da existência quando ouvimos ao despertar, um dia de manhã, estas lúgubres palavras: 'Demasiado tarde!'

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, É Realizações, Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

De palavra (para o Vitão Guedes)

Cumpri a promessa de torcer pelo Corinthians até a morte. Morri ontem, em Santa Catarina.

De ontem e de agora

Houve época em que os poetas se dispunham a morrer pela literatura. Hoje, preferem viver dela e, em vez de estrelas, falam de direitos autorais e porcentagens.

Modo de ver

Para alguns, a literatura é mais importante que a vida. Para outros, não. Para estes, a literatura é a própria vida.

O certo

A questão nunca é ser mais poético; é sempre ser mais poeta.

Inferioridade

A grande queixa dos pardais
é jamais terem sido chamados
para num poema dizerem nunca mais.

Inspiração

Nove entre dez poetas concretistas dirão que a maior obra de arte de todos os tempos são as pirâmides do Egito.

Habitat

Conforme o poeta
a habitação é diversa:
o parnasiano mora
numa torre de marfim,
o concretista
num castelo de pedra.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Peço à aeromoça algumas revistas ou jornais brasileiros. Ela me traz uma Manchete. Misses, futebol, parece horrível. Então sinto medo. Por trás do cartão-postal imaginado, sol e palmeiras, há um jeito brasileiro que me aterroriza. O deboche, a grossura, o preconceito."

(De Ovelhas negras, edição da L&PM.)

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Soneto do Juízo Final

Amor, no Juízo Final,
O que dirás de tuas culpas,
Quais serão as tuas desculpas,
O que farás, afinal?

Que argumentos usarás,
Quando te forem arguir,
Para virtude atribuir
A todas tuas ações más?

Não te preocupes, não temas,
Não busques estratagemas.
Eu, que tudo teu amei,

Se for chamado a depor,
Podes ficar certo, amor:
Eu não te condenarei.

Carimbo

Escritor, em si, não é mais do que uma palavra, um substantivo sujeito à opinião de um adjetivo. Glória e fracasso, júbilo e desventura dependem desse adjetivo.

Circunstância

A mosca pousa na mão do homem e estranha que nessa vez ela não faça nenhum movimento para afastá-la. Voa e pousa na outra mão, para testá-la. Só então descobre a razão de sua sorte: as mãos estão segurando duas das flores que cercam todo o homem, como se ele fosse um jardim.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas as tentativas de aproximação. Tenho vontade de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso."

(De Ovelhas negras, edição da L&PM.)

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Memória (para Patricia Mesquita)

Na major quedinho
toda manhã
os passos do sol menino
ainda sonolento
chamado pelo cheiro
de jornal quentinho.

Empenho

Um poeta, mesmo aquele que jamais tenha dialogado com uma rosa, deve sempre conservar a esperança.

Flash

Alguns haicais são ardilosos como peixinhos que um garoto tenta apanhar com uma peneira. Parecem estar aprisionados, mas quando a mão miúda vai colhê-los encontra só o reflexo prateado de sua passagem.

Soneto da majestade

Quem conheceu bem o amor,
Como eu vim a conhecer,
Não pode senão dizer:
É um rei, um imperador.

De um imperador, de um rei,
Se alguém falar mal quiser,
Que o faça quando o fizer.
Não serei eu que o farei.

Dele o que posso dizer
Sem a verdade torcer,
É que de mim se cansou

E como com os outros fez
De mim logo se desfez
E aos seus leões me arremessou.

Um poema de Emily Brontë

"Minha alma já não teme coisa alguma,
E a escura tempestade em que sem descanso o mundo
Gira,
Não mais a abalará:
Já vejo a glória dos Céus extasiantes,
E# a fé que resplandece no fogo de sua armadura
Aniquila o mundo no meu ser.

Ó Deus que eu trago dentro de mim,
Deus todo-poderoso, Presença universal!
És a Vida - em meu seio Tu repousas,
E minha eternidade encontra em Ti o seu poder!

Vejo a vaidade em suas múltiplas nuances,
Onde o homem alimenta a força do seu coração:
E vejo esta vaidade e a sua impotência
Fanadas e mortas como a erva dos campos,
Como a espuma louca das vagas no oceano,

Tentando inutilmente reanimar a dúvida,
Quando a alma já está sã e salva,
Aprisionada para sempre a Teu Ser infinito,
Através de uma certeira âncora
Lançada ao rochedo imutável da vida eterna!

Teu sopro, com amor, abraça os espaços
E penetra com sua vida os séculos eternos,
Espalha-se como um rio e cobre o nosso mundo,
Mudando ou preservando as coisas,
Dispersando-as, criando-as, trazendo-as à vida.

E se viesse o fim deste mundo e o fim dos homens,
O fim dos universos, a ruína dos sóis,
Se apenas Tu ficasses,
Serias ao mesmo tempo todas as existências.

A Morte se esforça em vão para achar um espaço,
Mas seu poder não pode aniquilar um átomo sequer.
Tu és o Ser e o Sopro,
Nada poderia abolir as Tuas formas."

(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)



segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Soneto do impossível olvido (versão final)

É triste a noite em que o sono
No qual buscamos a paz
Só nos ilude  e não traz
O desejado abandono.

É triste quando encontramos
No sonho, que não pedimos,
Tudo com que nos destruímos,
Tudo com que nos matamos.

É triste quando, tentando
Nosso tormento esquecer,
Nós o acabamos lembrando.

E como é triste aceitar
Que precisamos morrer
Se quisermos descansar.

Rua Augusta

Seguindo o rapazinho,
o vento assobia com ele
e puxa um fuminho.

Altiva

Por que não te entregas,
por que me faltas,
por que te negas,
poesia, pão meu
gorado de cada dia?

Mario Quintana

De tempos em tempos, a poesia tende a elitizar-se para agradar aos críticos. É em momentos assim que poetas como Mario Quintana são essenciais para dizer que os afetos, as flores e os pássaros não foram proscritos e ressurgirão mais fortes depois de mais uma das tantas tentativas de limitar o que a poesia tem de melhor: o fato de ser arisca a qualquer esforço de medir cientificamente sua linguagem passional e suas metáforas.

Resumo

Eu me decidi pela literatura muito cedo - aos doze anos, se bem me lembro. Tantas décadas depois, tenho consciência de que não fui - e não serei- o extraordinário escritor que pretendi ser. Não importa. Sou o escritor que pude ser e, se me arrependo de alguma coisa, é de não ter me decidido antes e não haver me empenhado mais. Mesmo que eu tivesse sido um escritor pior, o leitor apaixonado que fui, como parte do meu aprendizado, compensaria tudo

Um poema de Emily Brontë

"Oh, a queda das folhas,
A morte lenta das flores,
A sombra sem fim das noites
E o dia esfacelado!

E no entanto cada folha
Fala-me da felicidade,
E voa alegremente
Da velha árvore de outono.

E me verão sorrir
Às coroas de neve,
Às brancas florações
Que devastam as rosas.

E me ouvirão cantar,
Quando a noite desfalecente
Anunciar tristemente
O dia escuro e deserto."

(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)

domingo, 13 de novembro de 2016

Cotação do dia

Perder nos cai bem, sob medida. Já perdemos tanto, sempre, desde o início, que estranharíamos se hoje, terminado o nosso número, fôssemos aplaudidos. Seria como se ferissem nosso direito. Somos únicos no que fazemos. Continuemos como somos. Ninguém melhor que nós sabe desfrutar aqueles momentos em que, como agora, as vaias, os xingamentos e os copos são lançados contra nós, que humildemente nos curvamos para agradecer.

Mau exemplo

Não me tomem como autoridade se eu os aconselhar a viver só enquanto viver o amor. Mereço crédito? É uma ideia antiga que eu tenho, o amor há muito tempo morreu e eu continuo aqui, vivo, lamentavelmente vivo, sordidamente vivo, indefensavelmente vivo.

Mario Quintana

O simples, em Mario Quintana, não era um detalhe ou um acessório. Não era uma modéstia, uma humildade da alma. Era a própria alma, na qual ele ia buscar as flores, os pássaros e as estrelas.

Cidadão

Conquistou o que almejou

Aos poucos se tornou respeitável
depois velho
depois venerável

Na poltrona
em que usufrui
sua merecida modorra
às vezes se descuida
e vai escorregando
para um sonho
em que juntando
a sua a outras vozes juvenis
vai cantando uma musiquinha tosca
de versos pueris
que a memória não esqueceu

Acordando envergonhado
como se além de cantar
tivesse aderido
a outro joguinho infantil
e se masturbado
diz aquele não sou eu
e repete não aquele não sou eu
com a autoridade
que a maturidade lhe deu.

Um parágrafo de Henri-Frédéric Amiel

"A primavera é boa, como o inverno. A  alma deve temperar-se e endurecer-se, deve também abrir-se e distender-se. Respeita cada necessidade nova que apareça em teu coração, é uma revelação, é a voz da natureza, que te desperta para uma nova esfera da existência; é a larva que palpita e pressente a borboleta. Não abafes os teus suspiros, não devores as tuas lágrimas: anunciam uma grandeza desconhecida, ou um tesouro olvidado, ou uma virtude que se afoga e clama por socorro. A dor é boa, porque faz conhecer o bem; o sonho é salutar, porque pressagia uma realidade mais bela; a aspiração é divina, porque profetiza o infinito, e o infinito é Maia, a forma sorridente ou sombria de Deus."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações Editora.)

sábado, 12 de novembro de 2016

Cotação do dia (2)

Que arrependimento, que dor, que tormento lhe traz sempre aquela reflexão - já quase uma convicção - de que estaria bem melhor se tivesse morrido há muito tempo.

Cotação do dia

Se um dia nos procurar a vitória, saberemos que é ela ou nela veremos os mesmos dentes com os quais as derrotas nos atraíram com seus sorrisos para o campo em que sucumbimos pelo amor e ora apodrecemos resignadamente?

Minibiografia

Que brilho há de almejar quem
Nasceu tíbio, tênue, fraco,
Fosco, obscuro, baço, opaco,
E continuou ninguém?

Ressentimento

De quem era aquela voz
E quem ela procurava
Quando tão terna chamava?
Por que não éramos nós?

Vida (para Silvana Guimarães)

Frente e verso
a mesma impressão
borrões lacunas
imagens fugidias
dores exageradamente entintadas
apagadas alegrias
tudo sinônimo de nada
nada estimulando
novas impressões
e segundas vias.

Um trecho de Henri-Frédéric Amiel

"Jamais pude pronunciar uma palavra desonesta a uma mulher, e me são precisos ainda esforços para não enrubescer quando outros a pronunciam. Corei muito mais vezes pelos outros, em lugar dos outros, do que por mim mesmo; a testemunha é que ficava embaraçada. Essa timidez tola deixa-me ainda arrependimentos: mais lastimo alguns beijos que poderia, deveria mesmo ter dado, em Estocolmo, em Cherburgo e em outros lugares, do que algumas ações condenáveis. Estas recordações de uma voluptuosidade casta me são caras; têm mais perfume para mim, do que, sem dúvida, a posse completa, para um libertino."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações Editora.)

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Os filósofos e a rosa

Se querem conhecer o valor da filosofia, coloquem-na ao lado de uma rosa. Pobre Kant, pobre Schopenhauer, pobre Espinosa! Por que vocês querem saber quem foi o Criador de tudo, Aquele de cujo molde saíram vocês e as rosas? Para condená-Lo, certamente, pela desigualdade de tratamento.

O poeta, hoje

Os sonetos agora me cansam. Catorze versos já não são para a minha idade. Só trapaceando eu consigo carregá-los. Não ponho neles a febre que punha na adolescência. A maturidade não faz bem aos poetas. Ela os conduz pelas trilhas mais curtas. Os poetas mais velhos zombam dos poetas jovens, que têm a aspiração de se dar, de morrer em cada verso. E advertem: assim vocês não chegam à nossa idade. Mas bem que gostariam, bem que gostaríamos de nos entregar como antigamente e de gastar a vida em palavras escritas com suor e sangue. Ah, como nos redimiríamos se pudéssemos, como estes novos agora tentam, oferecer a vida por uma fatia de arte. Que vida? Não certamente esta. Que vida há neste corpo em que os ossos frágeis substituíram a carne flamante? Que vida há nestes olhos, tão velhos que qualquer fagulha de esperança pode ser imediatamente denunciada como uma obscenidade?

Mario Quintana

Havia em Mario Quintana
um passarinho de alma inquieta
como a alma de um poeta.

Hoje no portal do Estadão...

... falo da felicidade e do que fazemos para alcançá-la (www.estadao.com.br)

"Coação", de Wislawa Szymborska

"Comemos a vida alheia para viver.
A falecida costeleta com o refinado repolho.
O cardápio é um necrológio.

Mesmo as melhores pessoas
precisam morder, digerir algo morto,
para que seus corações sensíveis
não parem de bater.

Mesmo os poetas mais líricos.
Mesmo os ascetas mais severos
mastigam e engolem algo
que, afinal, crescia.

Acho difícil conciliar isso com os bons deuses.
Talvez credulamente,
talvez ingenuamente
deram à natureza todo o poder sobre o mundo.
E é ela, louca, que nos impõe a fome,
e ali onde há fome,
fim da inocência.

À fome logo se juntam os sentidos:
o paladar, o olfato, o tato e a visão,
pois importam quais iguarias
e em quais pratos.

Até a audição participa
no que sucede,
pois à mesa não raro rolam conversas alegres."

(Do livro Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras.)



quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O que nos move

A esperança de um poema, talvez enfim aquele que há tanto tempo buscamos e justificará nossa vida, é que nos faz acordar toda manhã e continuar respirando: quem sabe hoje, quem sabe.

Forno & fogão

Se ainda não disseram, digo eu: o enorme número de escritores de livros de culinária e gastronomia torna quase inevitável chamá-los, em conjunto, de panelinha.

Deolinda.

Quando em sonhos o Diabo, pela terceira noite seguida, o incitou a matar Deolinda, o escritor resolveu atendê-lo. Dava-se muito bem com ele e devia-lhe expressivos favores. Só não entendeu por que o Diabo teria escolhido Deolinda. Era uma personagem secundária no romance.

Cena urbana

Dentro da caçamba
tocado pela chuva repentinamente
o gato de pilha
põe-se a miar desconsoladamente.

"A barata sonhadora", de Augusto Monterroso

"Era uma vez uma Barata chamada Gregor Samsa que sonhava que era uma Barata chamada Franz Kafka que sonhava que era um escritor que escrevia sobre um empregado chamado Gregor Samsa que sonhava que era uma Barata."

(De A ovelha negra, tradução de Millôr Fernandes, Cosac Naify.)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Na boa

Não há melhor forma de conforto
do que estar, ficar
e continuar morto.

Impressão

Soprada pelo vento, a folha corre no quintal, perseguida pelo cachorrinho brincalhão. Quem ousaria, vendo-a como vejo agora, chamá-la de morta?

O jogo

O amor é um desses objetos que criamos e sobre os quais logo perdemos - ou fingimos perder - o controle. Ele aprende conosco a fingir e nos deliciamos mutuamente com esse jogo. Às vezes, ele e nós fingimos morrer. Isso, que chamamos de pacto, é a melhor parte do jogo.

Modo de ver

Um poeta de verdade não sabe o nome de todas as estrelas, mas trata cada uma delas como se falasse com uma menina, hoje moça, conhecida desde o tempo do curso primário.

Palavras

Quando menino, encantava-se ao tomar sopa de letrinhas. Em cada colherada tentava decifrar as palavras que engoliria. Imaginava-as formando histórias dentro dele. Lembrou-se disso hoje, depois do diagnóstico do médico: câncer no estômago.

Ideal

Escrever como Machado de Assis e ganhar como Paulo Coelho.

"O Burro e a Flauta", de Augusto Monterroso

"Jogada no campo estava, faz tempo, uma Flauta que já ninguém tocava, até que um dia um Burro que passeava por ali soprou forte nela fazendo-a produzir o som mais doce de sua vida, quer dizer, da vida do Burro e da Flauta.
   Incapazes de compreender o que tinha acontecido, pois a racionalidade não era o forte deles e ambos acreditavam na racionalidade, separaram-se rapidamente, envergonhados do melhor que um e outro tinham feito durante toda a sua triste existência."

(De A ovelha negra e outras fábulas, tradução de Millôr Fernandes, Cosac Naify.)

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Gula

Desde os seis anos, tenho sido um leitor ansioso. Imaginava ser capaz de ler todos os livros que existissem no mundo. Só tenho um arrependimento: o de não ter lido pelo menos o dobro do que consegui.

Faceta

O melhor papel que desempenhei na literatura foi o de leitor.

Privilégio

Se estiver andando à noite por uma rua deserta e ouvir chamarem seu nome, o poeta não há de duvidar: ou será a lua ou será uma estrela.

O sangue do inocente

O primeiro personagem que matei, num conto do século e do milênio passados, andou me perseguindo alguns meses em pesadelos. A partir do segundo, eles e eu nos acostumamos.

Caixa

O amor é calculista.
Só deixa pagarem a prazo
O que não pode cobrar a vista.

Vergonha

Gramático, morreu de disenteria. E foi uma bênção estar morto e não passar a vergonha de ouvir os parentes dizendo que tinha morrido de desinteria.

Aristocracia (para o Gianluca e a Nicole Drewnick)

Toda vez que sobre o parque passa um avião com sua voz de tenor, o passarinho presunçoso diz ao tolinho: "Olha lá, é meu pai de novo."

Gorado, como todos

Desde a adolescência lida com a ideia de suicídio. Agora, já pleno merecedor, pela idade, da morte natural, pensa que todas as antigas cogitações sobre cordas, calibres e beberagens serão não mais que componentes de mais um de seus projetos frustrados. Amante do futebol, ele imagina que, se o ato extremo vier a acontecer, será aos 48 do segundo tempo. Que não seja um pênalti. Ele não terá coragem de bater.

Justiça

Não merece mais que a meia-idade
um meio homem como eu
sem eira e sem beira
que a vida inteira viveu
sob o signo da mediocridade.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Não quero ser a carpideira do meu tempo. Mesmo encontrando todos os dias pelas escadas os devotos de Morfeu, suas veias machucadas. Amanhã alguém nos cantará. Um rock de horror?"

(De Ovelhas negras, edição da L&PM.)

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Cotação do dia

E, no entanto, sobrevivi ao amor e a outras calamidades.

Procon

Situação vexaminosa:
ou se valida
como suicida
ou é acusado
e condenado
por propaganda enganosa.

Aflição

Quando colocou a corda no pescoço, o suicida sentiu um nó na garganta.

Instruções para um caminhante neófito (para Luiz Vita)

Não há nada mais fácil do que andar, você vai ver. É só - depois de abrir a porta, naturalmente - ir pondo um pé à frente do outro, não necessariamente nessa ordem, e continuar assim, sempre em frente, não se esquecendo em nenhum momento de respirar. Alguns agradecem a Deus, pela graça, mas não é obrigatório.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. 'De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo jovem', onde foi que li isso? Sei. Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do coração selvagem".

(De Ovelhas negras, edição da L&PM.)

domingo, 6 de novembro de 2016

Nostalgia

Como eram melhores os domingos, na época em que havia Corinthians.

Essência (para Silvana Guimarães)

No fundo mais profundo
no âmago da rosa
na palpitação visceral de uma estrela
existe algo que se decifrável fosse
seria trabalho jamais para a lógica da prosa
mas para a destrambelhada imaginação da poesia.

Mediocridade

Eu sou meio inepto, meio tolo, meio estúpido, meio bronco e completamente ignorante em relação a todas essas meias deficiências.

Opinião

Se você gosta do que escreve
e do que Shakespeare escreveu
talvez haja algum defeito
em quem um e o outro leu.

Rotina

Verá quem viver:
nem os vitalícios
escapam ao vício
de morrer.

Território

Havia um homem ali
onde agora hiberna
a sucuri.

Correção de rumo

Notando que a sua não era a criativa loucura dos gênios, conseguiu curar-se a tempo de sua poesia e se tornar um escritor cujos romances tinham começo, meio e às vezes fim.

Consciência (para Liberato Vieira da Cunha)

Às vezes penso que tudo em mim - até a tristeza sobre a qual ergui minha vida - é falsificado.

Revista Rubem

Hoje falo de amor, desamor e outras dessas coisinhas que, no fundo, são tudo (www.rubem.wordpress.com).

Um poema de Paul Auster

"Picaretas pontuam a pedreira - marcas gastas
Que não alcançaram cifrar a mensagem.
A disputa açulou suas letras,
E as pedras, cingidas de abuso,
Memorizaram a derrota."

(De Todos os poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)

sábado, 5 de novembro de 2016

Nada mais

O suicídio, visto sem exageros, é só mais uma coisa da vida.

Fácil assim

No dia em que escrever estiver te parecendo um brinquedo de criança, é melhor que te abstenhas e ofereças à tua mão uma caixa de lápis de cor, com os quais ela certamente fará melhor arte.

Metáforas

Com as aventuras já beirando o ocaso,
Sua imortal espada de guerreiro
Parece agora o espasmo derradeiro
De um lírio decompondo-se num vaso.

A imagem

A maioria dos atuais escritores místicos me traz a imagem de homens carregando, nos ombros ensaguentados, quartos de boi para dentro de um açougue.

Virtude

Há escritores que sabem como empregar vírgulas. Em alguns, essa é a principal, e em outros é a única qualidade.

Magister dixit

Se as máximas contêm, como se pensa, a sabedoria em doses mínimas, presume-se como deve ser enfadonha a verdade em sua versão integral.

Confraria

O problema das igrejinhas literárias é a dificuldade de encontrar devotos; todos querem ser o papa, se não puderem ser deus.

Economia

Desperdiçar a tristeza é o que de pior o poeta pode fazer. Espremê-la, espremê-la, até que ela deixe escorrer as últimas lágrimas,

Melhor não

A um homem não convém dar a impressão de que precisa de ajuda. Provavelmente descobrirá que ninguém está disposto a dá-la.

Reserva

Uma poesia deve dar a impressão de que terá algo mais a revelar, talvez até o essencial, se resolvermos ouvi-la mais uma vez.

"Natureza-morta", de Paul Auster

"Neve. E no mais ínfero
filão de brancura,
uma lembrança
que soma teus passos
aos perdidos.

Infindamente,
eu teria seguido contigo."

(De Todos os poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Agora vai

Decidiu ser poeta
e já tem as matérias-primas:
um coração pateta
e um dicionário de rimas.

Cotação do dia (7)

Se tivesse o endereço de Sylvia Plath, iria visitá-la e pedir-lhe que o deixasse dar uma espiadinha no forno.

Cotação do dia (6)

Se ele se atirasse do décimo andar, sabe que cairia sobre um toldo flexível que ficaria brincando de jogá-lo de volta para cima. Ou acabaria nos braços de um super-herói bem barbeado que depois de salvá-lo pediria que assinasse uma ficha de atendimento e lhe passaria o endereço de uma igreja.

Cotação do dia (5)

 A Morte pede seus documentos e ele, quando enfim os acha e volta para a sala, descobre que ela se cansou de esperar e se foi sem deixar recado.

Cotação do dia (4)

Tem sempre o mesmo pesadelo: o carro funerário empaca e, enquanto o motorista vai buscar socorro, ele fica sozinho no escuro e começa a sentir falta de ar.

Merecimento

Sequestrado, o poeta parnasiano exigiu ser trancado no cativeiro com chave de ouro.

Cotação do dia (3)

Ter um pesadelo em que, justamente quando chegou sua vez, a Morte suspendeu o atendimento.

Cotação do dia (2)

Um dos pequenos órfãos de Dickens, enfiado numa pocilga, tendo como único passatempo catar pulgas no corpo e contar as chicotadas cada vez mais punitivas do algoz.

Cotação do dia

Um zero à esquerda, murcho e enrugado, rejeitado até pela caçamba.

Portal do Estadão

Hoje falo da superioridade da arte sobre a vida (www.estadao.com.br)

Norma

Buscar o belo é só aceitar como exceção tudo que com ele não se pareça.

Gramático

O tico-tico pudico
apaga no muro com o bico
raspadinha após raspadinha
o acento no ú
da infame palavrinha.

Soneto do dizer e do desdizer

Que alegria me dás quando me dizes,
Olhando-me nos olhos ternamente,
Que sempre estive mais do que presente
Em todos teus momentos mais felizes.

E que dor tu me dás quando desdizes
O que disseste emocionadamente
E me acusas irrecorrivelmente,
Exibindo-me as tuas cicatrizes.

Imagino, desde que o amor morreu,
Que talvez estivesse vivo se eu
Naquele tempo em que os podia dar,

Motivos só te desse de prazer,
E nenhum no qual tu pudesses ver
Algo que tu quisesses renegar.

Um poema de Lawrence Ferlinghetti

"Terrível
um cavalo em plena noite
sozinho atrelado
na rua silenciosa
e relinchando
como se alguém nu e triste
o houvesse montado e cingido com pernas ardentes
e cantarolado
uma única sílaba
singela estridente faminta."

(Tradução de Eduardo Bueno, poema extraído de Um parque de diversões da cabeça, edição da L&PM.)

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Cotação do dia

Sabe quando você se sente morto e tem medo de se apalpar, porque pode descobrir que não está?

Poesia, hoje

Os poetas não conversam mais com as flores.
O pacto foi rompido,
O contrato está rasgado.
Também com a beleza
Os poetas não estão mais comprometidos.
Para tempos duros como estes
Há de se celebrar a flor da aspereza.
Sorrisos são indícios de fraqueza,
Para morder e rasgar servem os dentes -
E mais saborosa que o beijo das musas
É a relutante carne dos combatentes.

Peculiaridades

Navio abandonado
sou todo craca num
e todo guano
no outro costado.

Um poema de Bai Juyi (772-846)

"Aqui e ali, surgem ervas na planície,
Em cada ano morrem e renascem.
Fogos selvagens queimam-nas, não as matam,
Com o vento primaveril ei-las outra vez!
A fragrância longínqua perfuma a via antiga:
Um feixe de esmeraldas nas velhas ruínas.
É tempo outra vez de dizermos adeus
E do senhor que parte se despedem elas."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Mario Quintana era um daqueles poetas galantes que, para encanto das mulheres, traziam sempre no bolsinho do paletó, disfarçada de lenço, uma borboleta.

Imperdível...

... a conversa de Ubiratan Brasil com Valter Hugo Mãe hoje, no Caderno 2 do Estadão.

Da inutilidade de uma flor (para PMM)

Guarda tua flor.
Por que a trouxeste aqui?
Aqui não encontrarás
por mais que venhas a procurar
a lápide do amor.

Como os heróis de Hollywood
o amor tem aquela virtude:
mata mas não se deixa matar.

Para os nossos amados, no seu dia

Levemos hoje aos mortos
nossas mentiras
e nossas flores

Se jamais se queixaram
quando podiam,
por que agora se queixariam?

Como sempre eles nos ouvirão
e se novamente em nós não acreditarem
mais uma vez se calarão.

Se alguma coisa disserem
será para nos agradecer
pela visita e pelo lindo buquê.

Ou, ou então

Viver é tão cansativo,
Tão sonolento de ser,
Que é difícil escolher:
Não sei se durmo ou se vivo.

"De pé", de Emily Brontë

"De pé,
Perto desta água morta e triste,
Sob o inverno dos raios e os lagos da lua,
Ele sonha ainda com a obra do assassino,
Mais pesada em seu coração que a pesada noite.

Ela veio, a voz do sonho esfacelado,
Devagar no ar silencioso,
Como a mão que não tem força.
E no entanto, antes do negro grito dos corvos,
Ele estava ali, de pé, indiferente.
E no entanto, ouvia.

Assim ouviu a voz,
Doce como um perfume, chamar pelo seu nome,
Uma vez somente.
E depois o eco esmoreceu aos poucos...
Mas viam-se fugir, a cada batida do coração,
As asas do horror.

A mesma vida sempre acabava de morrer."

(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Nada a ver

Morrer cedo
não faz de ninguém
um álvares de azevedo.

Composição

Na cozinha
um ovo todo picado
dentro de uma torta:
natureza-morta.

Por que

Até hoje, quando ouve a palavra amor, ele se pergunta por que não seguiu a voz que lhe disse essa palavra anos atrás, quando qualquer desastre podia ser lançado ainda à conta de sua imaturidade. Até hoje ele se pergunta por que hesitou, porque esperou que a voz repetisse amor e por que, ouvindo-a repetir, não se dispôs a ir até o lugar de onde ela o incitava. Ah, por que ele não correu até lá, com as pernas ainda não tão desgraçadamente entrevadas como agora?

Um poema de Ma Zhiyuan (1260?-1325?)

"Trepadeiras secas, velhas árvores, corvos no crepúsculo,
Uma ponte baixa, um riacho correndo, umas casas
Uma antiga via, um cavalo magro, o vento oeste,
O sol a pôr-se - também a Oeste.
E um viandante de coração destroçado
No limite do céu."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)