terça-feira, 1 de julho de 2025

Degeneração

Por saber que é indigno delas, ele se delicia com as palavras de conforto que lhe dizem, como um sentenciado que, a caminho da execução, vai mordiscando um docinho que furtou do companheiro de cela. 

Paz

 Uma metáfora tem insistido em procurá-lo, nos sonhos: ele se tornou tão prodigiosamente leve que flutua para o alto, cada vez mais para o alto, soprado por uma voz tão suave que só pode ser a de uma brisa matutina.

domingo, 29 de junho de 2025

Ponto de vista

 Que bela pode ser a velhice quando vista nos outros, com nossos olhos tolos e míopes.

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 Podemos dizer, em nossa hora derradeira, que não salvamos o mundo, mas a recíproca é verdadeira.

sábado, 28 de junho de 2025

Lástima

 O que sempre me doeu

E ainda hoje muito me dói

É que após aquilo tudo

Que por ele fez Tolstói

O Ivan Ilitch morreu.

Ocaso

 As horas fingem ser surdas

Quando ouvem a nossa voz.

Temendo morrer conosco,

Os dias fogem de nós.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Honra ao mérito

No sonho desta noite, ele foi um ator que, tendo lutado pela verdade no primeiro ato e pela justiça no segundo, recebe como prêmio no terceiro um pacote de biscoitos de polvilho.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Cota

 Se ainda algum sentimento merece ter, o velho poeta sabe: é o da autopiedade.

Quarta-feira

O velho poeta acordou mais cansado hoje, e mais tarde. Quando abriu os olhos, a manhã tinha ido embora e levado os passarinhos e seus gorjeios. Ele pensou que nisso devia haver um significado, mas logo se aquietou e se levantou da cama, com o sorriso decepcionado dos dias comuns.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Fernandeando

 Por volta de mil novecentos e nada

eu também quis ser Pessoa

e me dividi

e me fragmentei

e tentei ser dez

e busquei ser cem

cada qual melhor poeta

do que ninguém

e do que qualquer nenhum

e falhei e permaneci

com esta obra estropiada

esta pífia versalhada

e esta cara comum

de ninguém mais nenhum

em dois mil e lá vai cacetada.