quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Valor

Dizes não entender o que vejo em ti. Ah, como deprecias teus olhares, ah, que pouco valor tu dás aos teus sorrisos.

Reflexo

Depois que te conheci,
Tudo em mim se transformou.
Há muito não sou eu, sou
Só um reflexo de ti.

Apostila

Recusar missões
atribuições
lemas

Relegar obrigações
aporrinhações
problemas

Desdenhar comemorações
condecorações
emblemas

E cantar canções
e declamar poemas
e entre ser
muito e ser pouco
ser apenas ser
e viver apenas
na medida exata
do que exige a vida.

Joguinho

Eu te afagaria como se fosses um gato, te perdoaria e te suplicaria que jamais me arranhasses. Correriam os dias, e seriam tão monótonos, que num deles eu te provocaria, te importunaria, até que de novo me arranhasses e eu precisasse outra vez decidir se merecias meu perdão e meus afagos.

Protagonista

Estarás rodeado de parentes e amigos. Falarão de ti, e alguns, mais emocionados, falarão contigo, aos murmúrios. Serás o centro do espetáculo e, se pudesses, te levantarias, apesar de tua timidez, para fazer um agradecimento, ainda que breve. Mas como será bom não poderes, como será venturoso estares dispensado de tudo, até de fingir que rezas acompanhando o padre, como tantas vezes fingiste.

Pétalas

Às vezes me ponho a imaginar viagens para os teus dedos e, por alguns instantes, meu rosto parece a superfície de um lago tocada pelas pétalas soltas de uma rosa.

Jardim

Depois de tudo, bem sei
Que nada além de agonia
Em teu jardim colherei,
Dia após dia após dia.

Exceção

Tu deves bem entender
Que maravilhosa exceção
(Quando a regra é não te ver)
É ver-te, é tocar-te a mão.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Patti Smith

Ah, os sonhos

Ontem Patti Smith
me apareceu em um
tirou sua pele de cordeiro
ficou nua como um lobo
e disse me decifra
me decifra seu bobo
ou eu te como inteiro

Porque hesitei
ela os dentes em mim cravou
e me chamando de Rimbaud
Rimbaud meu rei
meu Arthurzinho
inteiro me devorou.

O clube

Disseram-lhe que ela era fácil e nada exigente, mas advertiram-no de que devia ficar preparado. Preparado para o quê?, ele perguntou, mas apenas sorriram e não esclareceram nada. No dia seguinte, quiseram saber como tinha sido, e ele disse que tudo bem. Ela havia sido mesmo fácil e nada exigente. E as costas?, quiseram saber. Estão em carne viva, que unhas ela tem. Isentaram-no de mostrar as marcas. Todos tinham sinais idênticos - eram como um distintivo para os que frequentavam a cama da mulher fácil.

Preferência

Das gotas que no teu banho para ele escorrem, o umbigo prefere as que passam pela tua boca.

Lagos

Não, os teus olhos não são
Lagos. Se fossem, num dia
Em que me dissesses não,
Num dos dois me afogaria.

Teu nome

Serei o mais triste dos velhinhos do asilo. Me acharão antipático, porque pouco falarei e saberão de mim só o essencial. Mas, toda vez que me surpreenderem sorrindo, me apontarão: "Olha, ele está se lembrando dela." E dirão teu nome.

Cotação

Se me perguntam como estou, não digo, mas deveria, que perguntem a você. Termômetro e cotação não são propriamente palavras poéticas, mas como elas se aplicam bem a você quando o assunto sou eu e minha alma.

Sabedoria

Conheces tão pouco a vida
e te lanças aos livros
e recorres aos sábios
e perguntas aqui e lá:
a sabedoria onde está?

E te respondem uns que é aqui
e te garantem outros que é lá
e entre lá e aqui
e entre aqui e lá
tu ficas oscilando
tu ficas hesitando
até que um dia
milhares de dias
depois daquele
em que te puseste
a buscar a sabedoria
em que saíste para procurá-la
descobres que envelheceste
que estás no mesmo lugar
e que nunca vais achá-la.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Pepitas

Escorrendo pelos teus cabelos, a chuva apanhou neles um punhado de ouro e começou a esparramar pepitas na calçada.

Tudo

Foi tanto amor, tanto, que
O pão que me alimentava
E até o ar que eu respirava,
Tudo, tudo era você.

Quando

Quando disseres adeus,
Que eu esteja muito absorto,
Ou surdo ou então já morto
E não ouça os lábios teus.

Woman

Se queres matar-me, é simples. Espera aquele momento, na noite, em que, segurando as lágrimas, não posso impedi-las porém de se mostrar à beira dos olhos. Coloca então no You Tube John Lennon cantando Woman. Terás três minutos para abandonar a cena do crime.

Amiga

Que bênção estar assim, sem nada para querer ou fazer. Se a morte viesse agora, eu me deixaria levar e talvez até pusesse a mão no seu ombro: vamos, amiga.

domingo, 27 de novembro de 2011

O plano

Um dia, vão te dizer que eu estou preparando um plano para subir à lua e lá escrever, bem grande, o teu nome. É mentira, não acredites. O plano já está pronto.

Belo quadro

Um dia, se lembrares, podes pôr-me em uma de tuas telas. Não precisa ser nada especial. Posso ser a espuma de uma onda, um fiapo de nuvem, algo que só tu saibas que sou eu, algo simples, que faça parte, embora mínima, de um desses tesouros que tuas mãos diariamente fazem. Eu ficarei ali, espuma ou fiapo, e meu coração se encherá de orgulho toda vez que alguém disser: "Belo quadro, este."

O rapaz

Depois de dar dois beijos, o rapaz tímido, que havia levado trinta encontros para ousá-los, avisou à garota que precisava dizer uma coisa. Ela se preparava para dizer-lhe que ele poderia ousar mais, ousar tudo, quando ele, pegando-lhe a mão, perguntou: "Você me desculpa? Perdi a cabeça. Eu não devia ter feito isso."

Preciosa

És preciosa. Se estou tenso,
Só tu podes acalmar-me,
Porque só tu, amor, tens o
Segredo de hipnotizar-me.

(Inspirado pelo verso "You have the power to hypnotize me", de Cole Porter, em "You do something to me".)

De nada

Não tenho vontade mais de nada. Preguiça de tudo: de me vestir, de olhar para a árvore que balança seus braços para me cumprimentar, para a flor que se abre no caminho. Preguiça até de dormir. Chegou a hora de reconhecer que minha velhice tem direitos adquiridos e consolidados.

sábado, 26 de novembro de 2011

Cenário

É quando o amor morre que notamos que todo o resto morreu também ou, se permaneceu vivo, é tão desprezível e inútil quanto o cenário de uma peça que jamais se reencenará.

Ele

Sentava-se aqui nesta poltrona, onde eu me sento agora. Sinto a rigidez do couro. Quando ele estava vivo, seus braços me enlaçavam a cintura e seus beijos me bafejavam a nuca. Fazíamos isso sempre que podíamos e seríamos felizes se não fosse o medo de sermos surpreendidos pela mulher, que tinha o passo leve. Depois que ele morreu, ela pediu que eu continuasse trabalhando aqui, disse que eu sou de confiança. Sempre que posso, eu me sento nesta poltrona e finjo sentir os braços dele em mim. Às vezes, quando a mulher vai passar o dia com a irmã, eu me deito na cama, que ele e eu usamos, infelizmente não tanto quanto queríamos.

Braguilha

A garota estava recolocando a saia quando o homem lhe estendeu o dinheiro. Ela se queixou: "Aqui só tem dez. Nós combinamos vinte, lembra?" O homem balançou a cabeça e sorriu um sorriso de dentes amarelados: "Ando com a memória fraca." Ela: "Eu tenho quatro irmãos. Com estes dez, dois vão passar fome." O homem começou a abrir a braguilha de novo: "Vão nada. Depende só de você." Ela deixou escorregar a saia para o chão. "É isso aí, você entende as coisas logo", o homem disse, tirando outra nota do bolso.

Quando eu me for, terá ido
Aquele que por ti, só,
Viveu a ventura e o dó
De só por ti ter vivido.

Moleca

Para mim nasceste ontem
és uma molecona
uma guria
que comigo brincas
como uma gata nova
com um rato velho brincaria

Me pegas na sala
me levas para o canto
me trazes para o centro
me enrolas e desenrolas
me deixas largado
e de novo me agarrras
me cravas as garras
e quando eu já
do jogo imbuído
peço que as garras
me enterres mais
e suplico
e imploro
mais mais mais
me atiras para o lado
ratinho asqueroso
contigo não brinco jamais.

Como um gato

Trago-te em mim como quem carrega um gato muito jovem e querido e que ainda nem sabe miar, mas a todo instante me demonstra seu amor, fincando as garras em minha camisa, se ameaço tirá-lo do colo e colocá-lo no chão.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Ah

Ah, como me agradaria
Dar-lhe o que você merece,
Ah, quanto amor lhe daria,
Se em mim tanto amor houvesse.

Hoje

As mulheres me davam lugar nos seus sonhos e um travesseiro em sua cama. Hoje, quando me veem, me oferecem um sorriso amistoso e assento no metrô.

Catalogação

Gostaria de colocar o amor na categoria das coisas simples. Ele ficaria entre as flores, os pássaros, as nuvens, a brisa. Mas as flores me desassossegam, os pássaros me entristecem, as nuvens me pesam, a brisa me enlouquece?

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Quintal

Na tigelinha azul, o leite amornado pelo sol se arrepia quando sente as primeiras lambidas da áspera língua do gato.

Amadora

Molecona, gostava de dar-se aos rapazes na areia, ouvindo o rugido do mar. Havia noites em que eram três. Um dia, um quarentão lhe garantiu que ela poderia ganhar muito dinheiro. Ela trocou a praia por uma cama e, como lhe dissera o homem, em dois anos comprou um apartamento, de frente para o mar. Recebe homens que marcam com ela pelo telefone e às vezes, com o carro que também comprou, vai ao encontro deles em todos os pontos da cidade. Da janela do apartamento, ou de dentro do automóvel, olha para a praia e sente no peito uma angústia, uma saudade profunda do tempo em que se dava na areia, por amor ou diversão, e depois, pegando sua bicicleta, voltava saciada para casa, como uma garota que se cansou de brincar.

O rosto

O cirurgião plástico restaurou o rosto dela, devastado na infância pela fervura de um caldeirão, e foi um trabalho tão benfeito que ela agora, quando se deita com os rapazes, não lhes diz mais obrigada.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Por onde andas

Nem imaginas
por onde andas
a horas tantas
da madrugada
quando tua ausência
me é cobrada
por minha alma
atormentada

Nem pressentes
por onde caminhas
quando em tua cama deitada
adormecida
dormem também
tuas mãos
porém não dorme
a minha

Não sabes
que me tocas a campainha
e sobes a escada
e entras no quarto
e te deitas na cama
onde te espera e chama
minha alma enfim
apaziguada.

Dom

Que possas ter a certeza
De ser um trunfo só teu,
E não galanteio meu,
O dom de tua beleza.

Cupido

No dia em que me alvejou
Com suas setas certeiras,
De ti o Amor me tornou
Teu servo, embora não queiras.

Em mim

Houve um momento
no dia
em que te senti em mim
tão toda
tão inteira
que me apalpei
e parecia
que eras tu
quem me apalpava
ou tu quem tornava
certeira a mão
com que eu te sentia.

Balanço

Do sobe e desce da vida,
Do que à ventura nos leva
Ou nos encaminha à treva,
És tu, amor, a medida.

Soneto que apela à memória

Talvez te lembres de mim
Quando outros forem os dias
E as dores e as alegrias
Tiverem chegado ao fim.

Talvez te lembres de que eu
Te confessei com ardor
Que sempre foi teu amor
A força que me moveu.

Talvez te lembres (não sei
Se por amor ou bondade)
De tudo que disse a ti

E sintas que te falei
Somente e sempre a verdade
E que jamais te menti.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

De tudo

De tudo que te disse
de todas aquelas palavras
que te enalteceram
que te exaltaram
e a lua e as estrelas
te prometeram
e nas noites insones
te chamaram

De tudo que te disse
de todas aquelas palavras
de todas de todas elas
de nenhuma me arrependi
a não ser daquelas
que te enalteceram
que te exaltaram
que te prometeram
que te chamaram muito
quando deveriam
te enaltecer
te exaltar
te prometer
te chamar muito mais

Arrependo-me sim
do que não te disse
de tudo
que na hora extrema
de tudo que no fim
eu não poderei sequer
pensar em dizer
e que é mais
bem mais do que isto:
que te amo
que te amo mulher
que te amo demais
que te amo muito mais
do que um homem
pode amar
e muito menos
do que hás
de sempre merecer.

Minha alma

Fechaste os olhos, dormiste. Deves ter sonhado, porque sorriste, como alguém que num navio descobre que, para onde olhe, é sempre mar. Fazia frio, e eu te cobri, minha alma, com o meu melhor cobertor. Sentei-me ao teu lado e, como se ainda precisasses, contei-te histórias em que ovelhas, muitas, pediam para ser contadas. Adormeci, foi só um instante, mas fatal. Quando fui ajeitar o cobertor sobre ti, minhas mãos ficaram geladas. E eu te beijei a testa, fria, fria, e meus lábios, frios, frios, disseram teu nome, minha alma, e as sílabas caíram como lascas de neve sobre teu rosto.

Tardio

Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda
podia ver em ti
a cor da alegria
e apalpar
tua polpa macia
quando eu tinha
ainda dentes
e as tuas sementes
podia com minhas mãos
à terra lançar

Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda podia
olhar-te e ver-te
olhar-te e ver-te apenas
sem a perda lastimar
de não poder morder-te
de não poder provar-te
de não poder ter-te

Quem te dera
ah quem te dera
fruto tardio
não tivesses frutificado
estivesses ainda florindo
pelo sereno banhado
e perolado pelo rocio.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Como?

O que à minha alma direi
E a todos os sonhos meus,
Me diz, como viverei
Se me disseres adeus?

Todas

Gostaria de ser como aqueles fanfarrões antigos, que prometiam às amadas trazer, para elas, todas as estrelas do céu. E, numa noite de escuridão total, enquanto todos estivessem olhando intrigados para cima, notando a falta delas, gostaria de deixá-las todas no teu colo e, para que não tivesses motivo nenhum para duvidar de mim, começar a contá-las contigo.

O dia

Teu dia chegará. Não
Te apresses. Terra haverá
E já se habilita a mão
Que nela te enterrará.

Preservacionismo

Mirou o céu e lançou o anzol. Veio uma estrela tão miúda que ele a arremessou de volta.

Cafeteria

Só tu não percebias
que tudo em que tocavas
que tudo em que mexias
que tudo mulher tudo
a xícara e a colher
tudo melhor ficava
até o açúcar mais doce
como se mais açúcar
como se mais que açúcar fosse

Só tu não percebias
tuas magias
só tu não notaste
tudo que podias

Ah por que não percebeste
ah por que não me transformaste
ah por que não me levaste
em tua bolsa como um coelho
um objeto qualquer
um lenço um espelho um batom
por que não me mudaste
por quê, mulher?

domingo, 20 de novembro de 2011

Prospecção

Dizer o quê? Que palavras
Definirão o tesouro
Que no meu peito tu lavras,
Que nome dar a isto, a este ouro?

Amiga

Permite-me que eu te diga
Que enquanto eu vivo estiver
Sempre que amor disser
De ti falarei, amiga.

Meu vício

Viciei-me em ti, e te injeto
Em mim, te inalo, te fumo,
Te busco, imploro, consumo,
Amor, meu vício dileto.

Vulcão

Vulcão extinto, leão
Pelos fuzis abatido,
Que é feito do teu rugido,
Das chamas, da ebulição?

Aquela

Todas as noites ele olha para as estrelas. Já viu dezenas, centenas, dezenas de centenas, não viu ainda aquela que procura. Ele a identificará, quando a vir, porque leu num texto persa que a suprema beleza só se deixa ver uma vez, e que o prêmio para quem a contempla é a venturosa cegueira.

Podes

Podes fazer-me morrer
Com essa mesma boca tua,
Com essa mesma pele nua
Com que me fazes viver.

sábado, 19 de novembro de 2011

Tentação

Por que olhas para as estrelas
Como olhas para as maçãs?
Louco, hão de ser todas vãs
As ambições de colhê-las.

Os vinte

Beijou-lhe os dedos, os dez,
E, engendrando igual carinho,
Pôs os lábios no caminho
Que desce das mãos aos pés.

Questão de dois-pontos

Revisor - revisor de verdade, desses capazes de se separar da mulher porque um não concorda com o outro quanto ao uso da mesóclise - só se importa com fatos de um tipo: os gramaticais. Lembro-me de um desses revisores mostrando a outro a manchete de primeira página do Jornal da Tarde, décadas atrás. O título, em letras garrafais, como se dizia na época, era "Tragédia no mar; mil mortos". "Você viu que absurdo?", perguntou o primeiro revisor. O segundo concordou: "Caramba! Aí não era ponto e vírgula que deviam ter posto, o certo seriam dois-pontos." O primeiro chamou o segundo de insensível e desumano, dizendo que importante era o número de mortos, não a correção gramatical, e os dois quase se pegaram a tapa. O segundo fez carreira de revisor e redator em grandes jornais e revistas. Do primeiro não tenho notícia. Deve ter mudado de profissão e é provável que esteja, talvez com dupla personalidade, como convém aos heróis, salvando pessoas pelo mundo afora e adentro. Mas eu não o chamaria para acertar a pontuação de um texto, se precisasse.

Mários e Fernandos

Mário de Andrade
era trezentos
trezentos e cinquenta
e Fernando Pessoa
disse alguém
que quase cem

Talvez quinhentos
fossem os dois
se bem contados
e foram todos tocados
pela magia
suprema da poesia

Eu sou um só
somente um
talvez nem isso
quem sabe meio
possivelmente zero
zero vírgula nada
zero vírgula zero
alguém ninguém
algum nenhum
neres ninharia
dotado pela varinha errada
do dom do prosaico
e da antimagia.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Parágrafo final

No começo, entendiam-se por monossílabos, e até sem palavras. Bicavam-se ternamente, como passarinhos, e isso lhes bastava. Hoje, desentendem-se em longas mensagens, cujo parágrafo final mais parece escrito por um escritório de contabilidade: favor acusar o recebimento desta.

Ingênuo

Ingênuo é o homem que ao amor se entregou um dia. Mais ingênuo é o que sempre resistiu.

Esquecerás

Esquecerás os ímpetos da juventude, as presunções, as labaredas da paixão, a volúpia do álcool, as rebeldias e, de mão dada com a velhice, farás tranquilamente o teu último caminho, e abençoarás o sol, se for ameno, e a água, se houver.

Quantas mais

É pena que eu não fosse ainda mais tolo quando te conheci. Quantas vãs esperanças mais, quantas ilusões, quantas doces mentiras eu poderia contemplar agora, quando olho para a terra onde sepultei todo o meu tesouro.

Ao vencedor as batatas

Com estas mãos matei
um dia um jovem
que tinha o meu nome
sua esperança calei
seus sonhos reneguei
seu sangue bebi
seu corpo enterrei

Ele amava
a poesia
eu a sabedoria
ele o lirismo
eu o pragmatismo
ele o incerto
e eu decerto
o certo
nada senão o certo

As estrelas
que ele idolatrava
- ele, não eu -
há muito já
não pode vê-las
porque a terra
seus olhos tolos comeu

Dele
nem os restos restaram
enquanto eu
eu e estas mãos
que o mataram
chamamos o garçom
e perguntamos
o que na cozinha
nos prepararam

Me alimento só do bom
nada de ambrosias
de etéreas iguarias
só frango
vaca leitão

E aqui onde alimento
minhas sete décadas
bem pesadas
não entram estetas
artistas ou poetas

Fora todos fora daqui

Que fiquem na rua
com seus secos intestinos
morrendo de fome
e latindo para a lua
sonetos alexandrinos.

Constância

Continuo escrevendo mal, com a mesma dedicação de cinquenta anos atrás.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Ramerrão

Falo de amor. Já não sei
Muito bem do que se trata,
Se nos faz viver, se mata,
Mas falo ainda e falarei.

Voz

Aquele autor que descreve a voz como um dos caracteres sexuais meramente secundários, certamente jamais ouviu aquela que, mesmo palidamente reproduzida em minha memória, faz soar todos os violinos de minha alma.

Recompensa

Quando os dedos se queixam de que estão sendo usados em tarefas prosaicas, ela os mergulha por um instante nos cabelos, e eles voltam cheios de ouro.

Honraria

Morreram por amor
e foram condecorados
com uma flor
um lírio talvez

Não lhe sabem o nome
mas sabem que o mereceram
o lírio ou o que for
e sorriem ainda
e se orgulham ainda
porque morreram
na única trincheira
sob a única bandeira
pela qual é honroso
perder a vida.

Catorze anos

A mão sobe e desce, sobe e desce. A imaginação divaga por lábios, altivas nádegas, sexos mornos, cálidas coxas e, quando se detém nos úberes seios, a mão, subindo e descendo, faz jorrar o ubíquo leite.

Barcos

Já tantos barcos voltaram
já todos

Falta um só
aquele onde ia o amor
e é mentiroso o ardor
com que sorridentes
vamos abraçando
os sobreviventes

E olhamos ainda para o mar
para a bruma
para as ondas que vêm
e não trazem mais
esperança nenhuma.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Surto

Amor eu precisei de ti
esta noite
e te procurei
como um viciado
buscando o pico abençoado
o cheiro a erva o pó
e ofereci a alma ao diabo
e o corpo ofertei
e me retorci
e me curvei
e minha língua desenhou
obscenidades
e me algemei
e me esfreguei
em tudo e em todos
por mais
por menos
por bem menos
por um pouco
por quase nada
por um punhado de pó
por um tapa
por uma tragada e tu amor
tu tu tu amor
não me deste nada
tu me deixaste só
como uma cadela sarnenta
e rejeitada
raspando o sexo sangrento
na calçada
uivando para a lua
e nas convulsões
gritando por ti
amor amor
ahmor
aimor

Só depois

Gaba-se de falar com os mortos. Se alguém pergunta o que eles lhe dizem, responde que quase nada. Prometeram dizer-lhe tudo quando se tornar um deles.

Ah, adjetivos, ah, advérbios

Que abominável é essa mania dos adjetivos. Não podem ver um substantivo, que logo o seguem, o perseguem, o qualificam, o desqualificam, o exaltam, o execram. É sair o sol e imediatamente um adjetivo o rotula de risonho, ou de carrancudo, de magnífico ou de presunçoso. Mas piores são os advérbios. Deixam em paz os substantivos, mas atormentam os adjetivos, os verbos e (vergonha da espécie!) os próprios advérbios. Esperam um adjetivo definir um homem como tolo, aguardam que um verbo faça esse homem voltar para casa e acrescentam "inesperadamente", para que o infeliz encontre, desavergonhadamente enfiado na cama da mulher, o melhor amigo usufruindo muito voluptuosamente suas quentes e proibidas carícias.

Cuidado

Se você se deparar com um verbo defectivo, fique atento. Eles são ardilosos como a raposa e o gato que engambelaram Pinóquio. Apresentam-se estropiados e são aparentemente inofensivos, mas muitos revisores perderam a carteirinha e muitos ainda a perderão antes que o mundo exploda, expluda ou muito pelo contrário.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Crase

Diante de um caso difícil de crase, devemos manter o sangue-frio. Um sorriso confiante talvez seja também útil, desde que em nenhum momento a crase possa considerá-lo um escárnio. Há crases extremamente vingativas.

Suserana

De tuas mãos sou cativo,
A ti me rendo e me entrego,
Me dás a vida que vivo,
Às outras todas me nego.

Vinte anos

De todas as ingênuas esperanças e as patéticas burrices dos meus vinte anos, a maior foi a crença de que, trabalhando com seriedade, poderia chegar um dia a escrever como Machado de Assis.

O seguro

Na noite em que o menino pobre morreu, nenhuma nova estrela surgiu no céu suburbano e nenhum violino soou em tom de elegia. Na esquina, o bar lançava para a rua o som das bolas de bilhar se entrechocando. Na casa do morto, depois de meia hora de choro, a mãe e o pai, pensando que talvez pudessem enfim fazer um puxadinho no fundo, ouviam esperançosos um primo metido a advogado, que explicava como deveriam agir para receber do atropelador do menino a indenização do seguro.

Seis décadas

Ele olha para a garota como, há cinquenta anos, havia olhado para o balcão de doces. Se ela, como o dono da confeitaria, tantos anos atrás, se condoesse com seu olhar faminto, ele poderia dar à língua e à boca prazer idêntico ao antigo - provavelmente não muito mais que isso.

Sozinho

Houve um momento, no velório, em que, tendo chegado um visitante ilustre, a família se alvoroçou para recebê-lo, e o morto ficou sozinho, sob as velas. Tinha sido uma situação comum nos seus setenta anos de vida, mas dessa vez ele não pôde resmungar.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Paz

Fechar os olhos, sentir
Que tudo - o certo, o errado,
O bom, o mau - é passado,
E para sempre dormir.

Norte

Se em cada passo que eu desse
Tu fosses o rumo e o norte,
Talvez viver me aprouvesse
E eu não cortejasse a morte.

Que nome

Não sei que nome daria
A este sentimento louco,
A esta abençoada agonia.
Amor? Não. Amor é pouco.

Já tanto

Amor, já tanto sofri
Por tuas mãos e poder,
E tantas vezes morri.
Amor, me faz renascer.

Pergunta

Colocado na caixa, não miou. O menino olhou para ele pela última vez, pôs a tampa, envolveu toda a caixa com fita adesiva e pegou uma tesoura. Fez meia dúzia de pequenos furos. À mãe , que acompanhava tudo com os olhos úmidos, ele, também começando a chorar, perguntou: "Gato morto respira?"

domingo, 13 de novembro de 2011

Recurso

Te fecho os lábios com um beijo
Não para que prazer sintas,
Mas para não dar-te o ensejo
De que, falando, tu mintas.

Fantasma

Com o tempestuoso vento da madrugada, uma fronha desprendeu-se do varal, e a tartaruga, subitamente transformada em fantasma, assombrou as árvores, os passarinhos que nelas dormiam e os dois cachorros.

Melhor agora

Nesse tempo eu ainda andava,
Mas em cada um dos meus passos
O meu caminho levava
À dor somente, e aos fracassos.

Presságios

Entrei no mar
fui entrando
devagar
devagar
como um barco pequeno
num dia ameno
vogando pelo
prazer de vogar

e fui avançando
avançando
já como um grande navio
tocado pelo desafio
até ali de onde
não se pode mais voltar

onde os presságios se cumprem
e os naufrágios
não se podem evitar.

sábado, 12 de novembro de 2011

Compromisso

Pegar-te a mão, apertá-la,
Trazê-la ao meu coração,
Deixá-la assim, não soltá-la,
Nem mesmo na extrema-unção.

Arena

Toda manhã, como outrora, muito outrora, a vida nos acorda, nos levanta e nos leva, trôpegos, para o centro da arena. Ali ela nos fustiga, nos reanima, reacende nos nossos ossos cansados sua fagulha. Estamos surdos já, e cegos, não vemos o toureiro nem ouvimos a multidão, porém investimos com o que nos restou de orgulho. Mas o que tínhamos de touro em nós ficou em algum outro tempo, em alguma outra arena.

Simples

Todo esse ser ou não ser
Que move a filosofia
Se expressa numa teoria:
Nascemos para morrer.

Arquitetura

Estou cansado. Meus ombros
Já não me suportam, cedem,
Misericórdia me pedem,
E logo serei escombros.

Labirinto

A vida se diverte conosco. Enfia-nos no seu labirinto e nos mantém ali, andando, andando. Quando paramos, porque nos parece impossível haver saída, ela nos provoca com um filete de sol que nos incita a segui-lo, como se soubesse o caminho, e voltamos a andar, a andar. E estamos sempre onde estivemos e onde estaremos, ontem, hoje, amanhã. Já nem queremos a saída, queremos o fim, queremos o minotauro, e o buscamos agora, com nossas últimas forças. Quando pressentimos que também o minotauro, assim como a saída, não existe, a vida faz soar um mugido, um grito, um chamado que nos faz voltar a andar, a andar, oferecidos em sacrifício.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Terramarear

Às vezes, folheio livros de minha juventude - aventuras marítimas da velha coleção Terramarear - e lastimo não ouvir mais o tinido das espadas e a retumbância dos berros dos homens empenhados na luta no convés em chamas. Sentindo como envelheceram minhas mãos, as páginas me recusam as emoções de outrora. Os piratas dormem, as ondas não se enraivecem, os navios bocejam. Se meu neto as toca, para ele - e só para ele - voltam as batalhas, o sol lambendo o sangue dos feridos e o mar engolindo sem discriminação, com sua garganta imensa e generosa, vencedores e vencidos.

Tecelã

Sempre que olho para as tuas mãos, assombra-me saber que, entre tantas tarefas importantes, elas também - embora talvez nem tenham consciência disso - se ocupam da mofina atividade de fiar e desfiar meu destino.

Suicida

Seu último desafio:
Olhou para o chão, lá do alto,
Mirou no centro do asfalto
E se atirou no vazio.

O poeta

Se entre os excursionistas há alguém que revele interesses culturais, o guia - depois de mostrar o rio, que o folheto indica ser "o mais piscoso da região", e a famosa Cachoeira das Três Quedas, "inigualável por sua beleza" - passa pela Casa do Poeta, em cuja varanda, em dias de sol, pode ser visto, em sua cadeira de rodas, o homem que justifica o nome dessa atração turística à qual o folheto dedica duas linhas que exaltam o brilho da obra do ocupante da casa, "sonetista alexandrino de nomeada, cujos livros, de grande sucesso na década de 1980, se encontram na biblioteca anexa à casa". No último decênio, no registro da casa constam quinhentas e quarenta visitas, a maior parte delas forjada pelos dois funcionários municipais - o zelador e a enfermeira do poeta -, que nada sabem sobre a piscosidade de um rio nem sobre o volume de água que define uma cascata e temem o desemprego.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Serôdios

Mas tanto tempo correu,
Até você ofertá-los,
Que os frutos teus, amor, eu
Já não podia prová-los.

Estas flores

Amor, te dou estas flores. Aceita-as, eu te peço, embora humildes sejam. Dá-lhes água, se puderes, porque vêm de longe e até agora só beberam minhas lágrimas. Cuida delas, eu te imploro. Amanhã pode ser que elas te ajudem a ornar o peito de um homem que morreu por amar demais.

Apontam para ela, que vela o filho no caixão. E olham indignados, rancorosos. O rapaz, morto pela polícia, foi perdoado. Ela, não. "É ela, aquela, olha, a mãe do ladrão."

Erro

Errei ao querer-te minha,
Mas eras linda, ao sol forte,
Esse que hoje para a morte,
Como eu, sem ti, se encaminha.

Não só

Amor, que tolo eu seria
Se com a intenção de ganhar-te
Contasse apenas com a arte,
E essa arte fosse a poesia.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Marketing

Do netinho, convidando o renitente avô a jogar bola: "Aproveita, vô, que sábado que vem eu vou passar na casa do meu outro avô."

Que doa

O amor não precisa ser
Sempre uma sensação boa.
Se for amor, que me doa,
E doa enquanto eu viver.

Razões para morrer

Em outubro
ou em novembro
haverá uma bronquite
em dezembro
uma pneumonia dupla
uma pleurite
em janeiro ou fevereiro
uma queda no chuveiro
uma fratura tripla
em março uma infecção
uma embolia
uma grave infecção
uma anomalia
no baço ou no coração
em abril uma peritonite
em maio um desmaio
em junho ou julho uma convulsão
em agosto ou setembro
um rompimento do fêmur
uma complicação
um sério contratempo
e assim por diante
até o teu último momento
sem nenhuma chance
para o fim que você queria
aquela morte glorificante
provocada por um galopante
ataque de poesia.

Da utilidade gramatical do pescoço

Ter de lidar com a gramática como meio de ganhar a vida não é uma atividade saudável, pelos efeitos que pude observar em pelo menos duas centenas de revisores, entre os quais certamente me incluo. Não há nada mais terrível que uma maldição rogada por uma crase insatisfeita, dessas que abruptamente são cortadas só porque estão diante de um verbo ou de uma palavra masculina. É fatal. Por melhor cérebro que tenha, um revisor atingido por uma praga dessas acaba, mais cedo ou mais tarde, com os parafusos frouxos. Um deles, seriamente afetado, propôs por algum tempo, antes de ser devidamente internado, uma infalível regra de acentuação que consistia na simples aplicação de uma frase: levantou o pescoço, vai acento! Na seção de revisão do jornal O Estado de S. Paulo, ele pôs em prática esse conceito. Lia os textos em voz alta e, erguendo o pescoço, ia acentuando: Catandúva, Piracicába, melancía, paralélépípedo. Uma noite, atacado por um torcicolo, declarou-se incapaz de trabalhar e, quando um desmancha-prazeres lhe disse que ali estava, escancarado, um grave empecilho para a aplicação de sua teoria, respondeu que toda regra tem uma exceção e concluiu, quase bem-humorado: "E não é todo dia que se tem um torcicolo." Mas logo se enfureceu, quando o detrator de sua regra de acentuação, com um provocativo sorriso, sugeriu haver outro caso que impedia seu uso. "E qual seria?", o teórico perguntou. O outro, depois de uma longa pausa antes da estocada, disse: "Você já pensou se um dia você esquece o pescoço em casa ou dentro do ônibus?"

O assassino

A borboleta apareceu morta na sala. À noite, quando as luzes se apagaram, as fosforescentes garras do gato estirado no sofá apontavam o assassino.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Empatia

Se as palavras se dão bem num texto ou numa frase, convém deixá-las assim, felizes, sem mexer numa sequer - a menos que elas estejam numa convenção de condomínio ou num tratado de filosofia.

Um pouco mais

Morrer é tão conveniente,
Tão reconfortante e tão
Bom que não sei por que não
Se morre mais comumente.

Ter sido

Que importa se o amor passou
E se o que houve já não há?
Só perde quem já ganhou,
Só morre o que vivo está.

Chavão

Porque detesta o lugar-comum, nunca viveu e jamais viverá um tórrido caso de amor.

Só se for

Adianta nós nos lembrarmos
Do que chamamos de amor?
Lembrar por quê? Só se for
Para outra vez nos culparmos.

De todas

Das bênçãos que nós tivemos
E que jamais merecemos,
De todas nos desfizemos,
De todas nos esquecemos.

As primeiras

Como gostaria de me lembrar da primeira vírgula, da primeira crase que coloquei no primeiro texto lido no dia 14 de março de 1960, na minha primeira noite de trabalho como revisor na Rua Major Quedinho, 28.

Aqui

Aqui
onde a mão do amor tocou
ficou o sinal
de cinco pétalas
visível somente
para quem na carne o sente
e para quem
na carne o deixou

Aqui
onde o amor as unhas plantou
ficou uma chaga
que poreja ainda
que sangue ainda goteja
bendita chaga
que a memória não soterrou
e que o tempo não apaga.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Bilhete

O menino de sete anos pegou a pedra, olhou demoradamente para cima, ajeitou a mira e fez o lançamento. Quando a pedra caiu, ele correu e ficou dizendo: "Ele não veio!" O amiguinho de oito anos lhe perguntou se o que ele queria que viesse junto com a pedra era o sol. "O sol? Não. Eu mandei um bilhete para o astronauta que mora lá. Você viu o papel? Eu não estou vendo. Acho que ele chegou lá."

As mulheres, nas telas de Patricia

São mais sensuais do que belas,
Inspiram pugna, e não paz,
Sangue, e não mel, todas as
Mulheres de tuas telas.

Pudessem

Pudessem teus olhos ver um rosto menos cansado e menos triste que o meu e pudesses tu descobrir a alma que eu talvez tenha e, se tiver, vive apenas por ti, porque por mais ninguém viveria algo meu.

Parque

O menino deu um chute tão alto, tão forte, que quando a bola desceu ele já tinha se esquecido dela e estava andando de bicicleta.

Xérox

A vida não passa, corre.
O riso cedo se cansa,
Expira a breve esperança
E o eterno amor no fim morre.

Ao menos um

Enquanto a mulher afogava os dois gatinhos no tanque, a gata se levantou e saiu furtivamente pelo portão. Nunca mais foi vista, nem ela nem o terceiro filhote, oculto em sua barriga.

A esmo

Pela cidade hoje eu ando
Perdido como um zumbi.
Não sei onde te vi, quando,
Nunca, ontem, agora, aqui.

Tão poucas

Foram só dias, não meses,
E tantas marcas deixaram.
Eu te vi tão poucas vezes,
Tão poucas vezes bastaram.

domingo, 6 de novembro de 2011

Borrão

Tudo bem, a internet é irreversível, como o celular. Mas que saudade do tempo em que se podia ver a sinceridade de uma carta de amor pelas lágrimas que borravam a tinta no papel.

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Não escrevo para mim. Se escrevesse, falaria só de lágrimas, de amores desfeitos, de juras perjuras, de sofrimento. Três dezenas de leitores me levam a de vez em quando fingir que conheço o outro lado da vida.

Cenário

Se ela lhe disser adeus, ele espera que seja num dia de chuva. Será difícil esconder as lágrimas da indiscrição do sol.

Marinha

No novo apartamento, a tela, posta numa parede que nunca recebe sol, olha para o sofá na parede oposta, no qual o gato cinzento tenta prender um raio solar, e tenta imaginar o que, nela, agora desagrada à dona da casa: se o mar, se o veleiro, se as nuvens no horizonte, anunciando chuva. Perguntaria a ela, gostaria de perguntar, mas desde a mudança, há três meses, a mulher não olha para ela. Agora mesmo passou indiferente e foi ajudar o gato a pegar o filete de sol.

Prazer

Lê, ainda, os poemas que te encantam. Haverá um dia, e ele está perto, em que teu prazer será tomares a sopa rala servida no almoço e veres que a mesma sopa te será oferecida à noite. Se falares de Borges, as freiras dirão que não há nenhum Borges ali no asilo.

Mãe, pai, filho

A mulher pega no colo o filho de um ano e meio e o exibe ao homem, que há um ano não o vê. O menino começa: "Pá-pá, pá-pá." A mulher pergunta se o homem não vai entrar. Ele continua parado diante da porta: "Não. Eu vim só trazer o dinheiro que prometi." No rosto da mulher o sorriso se encolhe, mas ela pega o dinheiro: "Obrigada. Veio em boa hora." Ele diz que já vai indo e começa a atravessar a rua. Atrás dele, a voz do menininho: "Pá-pá, pá-pá." Ele não olha para trás. Aprendeu a ser duro, não vai cair num truque assim. E bem pode ser que o menino não o esteja chamando, mas só pedindo comida.

Bruxaria

Confessa que és feiticeira.
Só mesmo uma poderia
Na minha vida tão fria
Atear tão grande fogueira.

No rio

Um som pavoroso veio do rio, um uivo agudíssimo, um guincho aflito como o de um porco apunhalado. Meu amigo e eu corremos para lá e soubemos, pelas pessoas aglomeradas, que um cachorro tinha acabado de se afogar. Mas o uivo não era do animal, era do dono que, dando a impressão de querer arrancar as próprias orelhas, ensaiava um novo grito, talvez ainda mais terrível. Meu amigo, com uma compostura que só os grandes espantos nos ensinam, disse: "É a vida." Eu, para também dizer alguma coisa, comentei: "É a morte." Nós tínhamos catorze anos.

sábado, 5 de novembro de 2011

Coro

Que triste é a voz do mar,
Com esses seus sons doloridos,
Dos que se afogaram, e dos
Que ainda vão se afogar.

As mãos de WS

Das mãos de Wislawa Szymborska não nascem auroras, nem ela gostaria que nascessem. Das mãos de Wislawa nascem objetos cotidianos: um bule, uma xícara, uma colher, um pão, tudo simples, quase banal, e, para que saibamos do que seriam capazes essas mãos se não as encantasse a singeleza, nasce às vezes a mais extraordinária das criaturas: um gato que não se importa em compartilhar sua magia com as coisas e até com um humano ao qual se afeiçoe.

Se

Se a uma pedra eu dissesse
o que te dizia
que por ti moveria
o sol e a lua
e o mar secaria
ela talvez acreditasse
naquele tempo
naquele dia

Se eu dissesse hoje
a essa pedra
aquilo que eu te dizia
ela diria me move então
e eu não sei
se conseguiria.

Ainda não

Na pintura, quatro gaivotas flutuam sobre as ondas. Há um peixe, desgarrado do cardume, que não se vê na tela, e que não vê nem pressente as gaivotas, mas que é visto por elas e será apanhado pela mais voraz. Mas isso o quadro não mostrará.

(In)definição

O amor, é melhor senti-lo
E plenamente vivê-lo
Do que tentar defini-lo,
Do que pensar conhecê-lo.

Só boleros

Entrando na sexta década de vida, tornou-se sentimental e toda tarde, ouvindo uma rádio que toca boleros, só boleros, senta-se com a gata no sofá e, historiando seus amores, todos malogrados, vai dizendo seus nomes e comentando: "Esse Cássio era tão bonzinho, e o Rogério tão bonito, e o Bernardo tão carinhoso, você precisava ver, Lili." Envolta pela suavidade dos boleros, a gata aos poucos cochila e sonha com um gato branco, branco, branco.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Sono

Nas noites tristes de outono,
Nas frígidas madrugadas,
Nas ruas surdas do sono,
Ouço, amor, tuas passadas.

Mesmo assim

Dormir é sempre bom, mesmo quando se sabe que no dia seguinte haverá a rotina de acordar.

Porcentagens

Não deves tomar o amor por suas partes. Somadas, elas sempre ultrapassam o todo. Percebes isso quando o amor te faz cantar - nesses instantes ele é sempre maior do que parecia. E percebes isso também quando o amor te dói - se nesses momentos tu o expressasses em números, em quantos por cento os cem seriam superados? E percebes tudo isso principalmente quando o amor te deixa - nessa hora, quando ele pela lógica deveria ser zero, o amor é tão grande, tão imenso, que a vida toda se apequena e se torna tão insignificante que não te importas se verás nascer o sol no dia seguinte.

Preferências

Aos oitenta anos, já sabe muito bem o que quer. O prazer de suas manhãs é, sentado no banheiro, resolver palavras cruzadas. O do almoço é a eterna salada de alface, pepino e tomate. Reserva a tarde para a leitura. Pega sempre um dos catorze livros de que gostou - os únicos que mantém na estante, ao lado das trinta e duas revistas de palavras cruzadas que, entre tantas compradas em tantos anos, ele selecionou como as melhores, e que vai fazendo e refazendo, com seu lápis predileto e a borracha da sua época escolar.

Amor

Nem sabem mais do que estão falando, mas por um resto de hábito e outro tanto de cinismo continuam dizendo que foi lindo.

Lupa

Que sórdido é o leitor que, no meio de um poema, aponta o dedo para uma palavra, a mais bela de todas, e, como um detetive, exclama: "É um sintagma."

Resumo

Tivemos tudo. Floria
O amor, e nossa canção
Cantava a eterna paixão
Que não durou mais que um dia.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Vivissecção

Os críticos conseguem transformar flores tristonhas, navios no horizonte e estrelas pálidas em horrendas metáforas, sinédoques e metonímias.

Argila

Não somos mais o que fomos,
E o que éramos já não sei,
Tu criaste a mim, eu te criei,
E somos o que não somos.

Mentira

Não, nós não tivemos nada.
Até as nossas lembranças
São uma cópia apagada
De nossas vãs esperanças.

Quarto 218

Que queres mais?
Tens uma boa cama
que sobe e desce
conforme te convém
e se molhas o pijama
logo surge alguém e pronto
estás de novo composto

Trazem-te café
geleia biscoitos
depois o almoço
o lanche
e sem tardar
o jantar
tudo fácil assim
sem precisares pedir
ah se ao menos
conseguisses engolir

Te dizem o tempo todo
que estás bem
e tu dizes também
e até sorris
porque não queres parecer
um doente mal-educado
ou ser amanhã
um morto mal lembrado

E obediente
tomas teu chá
enquanto lá fora
a macieira prepara uma maçã
que nunca será
mordida por teus dentes.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma tela

Uma tela negra, toda negra, sem um milímetro, sem um ponto, sem um poro que visto de algum ângulo pudesse dar a alguém a impressão de que ali talvez uma fonte de luz estivesse iniciando uma rebelião. Se eu fosse pintor, gostaria de fazer um quadro assim e de poder ficar dia e noite ao pé dele, com a tinta preta à mão, para qualquer eventualidade, a fim de que minha alma jamais fosse tentada por nenhuma esperança de salvação.

Finados

Os mortos nos antecedem
E vão para a cova fria.
Se honra ou se logro nos cedem,
Talvez saibamos um dia.

Sexo

Sexo não é comunhão,
Não é acordo ou entrega:
É posse do que se nega,
Ruptura e dissolução.

Nada além

Não ter nenhuma ilusão,
Da vida nada querer
Além da consolação
De desistir e morrer.

A cena

A cena és tu
andando pela galeria
és tu apenas
apesar do esforço
das luzes
das lojas
do ruído
das vozes
e do maluco
que repentinamente
parou de tomar o café
e diz ao companheiro
que Platão
queiram ou não
era um grande embusteiro

A cena és tu
e quando saíres da galeria
continuará a ser
tu apenas
apesar do arco-íris
que ao te ver
abrirá sobre a avenida
como um pavão
a cauda multicolorida
tentando uma comparação.

De que

De que me serve a poesia
Se surdos são teus ouvidos
A todos os meus pedidos
E à minha tola agonia?

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O velho William

Nem os editores nem os escritores costumam ler Shakespeare: os editores, por preguiça; os escritores, para não corromperem o próprio estilo.

Ideal

Seria tão mais suportável a vida dos editores, se não precisassem lidar com originais e com escritores.

Reverso

Às vezes, cansado de rejeições, o escritor resolve tornar-se editor. Descobre então o que são os escritores: insignificantes, inúteis e importunos.

Taco a taco

Para cada cem gênios presumidos, há pelo menos cento e um editores desinteressados.

Arquivos

Quem fará o necrológio das dezenas de milhares de personagens que jazem nos arquivos dos editores, sem nenhum esperança, embora de semestre em semestre, per omnia saecula saeculorum, uma amável secretária responda aos ansiosos escritores que logo os originais serão avaliados?

A noite é dos beneméritos

Muitos editores me passam a impressão de que seu título é usado por eles como uma espécie de prerrogativa para isentá-los de ler. Mas digo, em sua defesa, que, mesmo se quisessem ler, não poderiam. A principal atividade da maior parte dos editores é participar de reuniões. Sabe muito bem disso quem telefona para qualquer um deles às oito, às nove, às dez, às onze horas e ao meio-dia, ou às duas, às três, às quatro, às cinco e às seis horas da tarde. Do meio-dia às duas, para que ninguém os julgue superiores, como de fato são, eles se dedicam ao prosaico hábito do almoço. As noites, como se sabe, são por eles reservadas para receber prêmios por seu incansável trabalho em favor da literatura.

O trigésimo terceiro

Quando um editor deleta, sem ler, um original, é um absurdo. Quando um editor, o segundo, faz o mesmo com o mesmo original, é a lógica. Do terceiro ao trigésimo terceiro, é só matemática, embora os escritores, sempre fantasiosos, chamem isso de crueldade.

Parceria

Naquela época, eu acreditava na literatura e - o mais importante - a literatura parecia acreditar em mim.