sábado, 31 de outubro de 2015

20h24

Ao meio-dia, quando eu já ia fechando a loja sem que a tivesse visitado um freguês sequer, apareceu um. Apalpou um livro, examinou uma foto, deixou no ar uma interjeição; bah! Quinquilharias, bufou. Eu lhe disse que a intenção era precisamente essa, a de reunir objetos, ainda que banais, como um guardanapo de papel ou uma tampinha de refrigerante, desde que tenham estado no cenário de alguma recordação amorosa. Ele me chamou de doido. E o que diria se eu lhe indicasse uma visita ao Museu da Inocência, de Orhan Pamuk? Àqueles que não foram ao museu, nem leram o livro, recomendo: façam ao menos uma dessas coisas. Depois me digam se a opinião de vocês sobre o amor continua a mesma. Ah, aqueles que não têm um objeto do ser amado, um lenço apanhado sub-repticiamente, para levar aos lábios e beijar, e morder.

Sucuri

Ele se deixa enroscar pelo próprio ciúme, e se torce, e se retorce, e se contorce, e morre como um cordeiro triturado por uma sucuri.

Finados

Pobres mortos, ocultos sob o eufemismo de finados, como se morrer fosse o mais abominável dos crimes.

A dama

Ele fecha os olhos e implora: vem. Mas a Morte, essa dama cheia de compromissos, se faz sempre de rogada e vai buscar marinheiros, traficantes e proxenetas.

Razão

Quando você passa a aceitar a ideia da própria morte, é sinal de que você finalmente aprendeu a raciocinar.

Compostura

Os suicidas costumam ser pessoas sérias e bem-compostas, dessas que para as ocasiões solenes escolhem a melhor roupa.

Vocação

O ato que pratico com mais empenho e desenvoltura é o da omissão. Se eu fosse ator, me agradaria fazer o papel de morto.

Ocasião

Ele deveria ter morrido num daqueles tantos anos em que, sendo ainda jovem, haveria razão para ser chorado.

Urbanização

Ah, esses lamentáveis fantasmas que vêm tocar ainda a campainha dos quatro sobradinhos da vila, num dos quais morava a garota loira que parecia uma fada por volta de 1950, antes de ser construído ali o prédio cinza com o pomposo nome de Barão do Varzim.

Um trecho de Sergio Faraco

"Me ensaboou com espalhafato. No instante em que tocou nas minhas partes olhava para o lado, erguendo as sobrancelhas, tão espessas que pareciam dois bigodes.
- Pronto, prontinho, vem aqui que eu te seco.
Ajoelhou-se, mordendo a língua, perigosamente próxima a soberba carapinha, floresta onde habitavam leões ferozes. Um talquinho, frô? E com o tempo aprendi que na linguagem dela frô era um sinal de ataque.
- Bonitinho - disse, entre nuvens de talco. - Ui, como é durão!
Arregalava os olhos, mas o assombro era fingido. E sabia ser jeitosa, querendo, essa tal de Irene, pois fazia tudo de mansinho, como se tivesse nas mãos um bibelô de porcelana. Às vezes ria sozinha, decerto redimida naquela casa em que uma teta pendurada dava escândalo.
- Foi bom? Gostou?
Levantou-se, apertando as cadeiras doídas. De novo me cobri com a toalha e então ela me agarrou, me beijou na boca com violência.
- Tu é meu!
Espiou pela porta, escutou e saiu ligeirinho, me deixando todo branco de talco, grogue e com um porre de fumo na boca."

(Do conto "Irene", do livro Doce paraíso, publicação da L&PM.)

A voz

O amor te chamou
certa manhã

Passaste direto
fica para amanhã
(tantas coisas a fazer na vida)

O amor te chamou
outras manhãs

Tu nem olhaste
fica para amanhã
(tantas coisas a fazer ainda)

Nunca mais o amor te chamou
e ali onde te chamava
ele não está mais

Mas sabes que a vida
ficou para trás
ali onde o amor
não te acena mais.


Anti-herói

Nascido numa época em que amores desenganados bebiam soda cáustica ou se atiravam de viadutos, ele deplora sua falta de heroísmo toda vez que escreve um dos seus poemas lamurientos.

8h30

É sábado, mas abro a loja. Não aparecerá ninguém, só a brisa que de vez em quando parece querer folhear um dos livros. Talvez seja tão antiga quanto eles e venha reler alguma passagem que a encantou na juventude. Deve mesmo ser muito velha, porque o máximo que consegue é fazer-se sentir na mão com que, no bloquinho, escrevo diariamente estas notas.

Uma frase de Gore Vidal

"A descrição de um lugar ou de um estado de espírito que não esteja conectada de alguma maneira à ação não tem a menor serventia."

(Do livro De fato e de ficção, tradução de Heloisa Jahn, edição da Companhia das Letras.)

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

22h28

Acordei assustado. Dormi aqui na loja, vejam só. E estaria dormindo ainda, se não fosse o pesadelo. Nele, ratos devoravam todo o meu acervo, juntado por tantas décadas. Eles comiam com gosto cartas, fotos, mercadores de livro. Quando o maior deles puxou da estante uma coletânea de Mario Benedetti, eu gritei. Estava sentado aqui, com as luzes acesas e a porta aberta. Sozinho. Nem aos ladrões interessa uma loja de recordações amorosas.

B.O.

O rapaz a arrastou para o mato
e disse me dá
senão te mato

Apareceram mais dois
me dá me dá
senão te mato

Cinco anos depois
da cilada
ela está viva e mal-afamada.

Ele dizia

Amor
ele dizia
amor amor
ele repetia

Era primavera
aquele tempo antigo
muito antes
de o amor ser isso
esse bolor
esse mofo.

Conduta

No amor
ou você choraminga
ou morre à míngua.

De verdade

Para não se deturpar, uma brincadeira há de ser uma coisa séria.

Comparsas

Zelda e Scott sabiam a dose exata de veneno de que cada um precisava para não serem apenas mais um casal chato.

Cotação do dia

O amor dói mais às sextas ou é outra balela?

Sósias

Larry David e eu poderíamos ser considerados semelhantes, se pudessem ver-nos juntos, na Paulista ou no Central Park. Se bem que digam que eu sou extremamente mais chato que ele.

Pavões

Como são patéticos os homens quando querem fazer-se notar por uma mulher. Dão piruetas, saltos mortais, imitam colibris sem nunca terem ouvido um. Há uma infinidade de imposturas dessas, que recebem nomes diversos, menos o exato: rituais de pré-acasalamento.

Da série Conselhos Óbvios

Se o coração lhe der problemas de madrugada, corra ao posto de saúde mais próximo. Se estiver aporrinhado com a vida, vá devagar ao mais distante.

Curtas

A maioria das reputações, especialmente as literárias, não tem pernas para chegar sequer até a esquina.

Panfletos

O amor é um tolo distribuindo panfletos na esquina. Todos o conhecem. Fazem-lhe o favor de estender a mão, apanhar um panfleto e agradecer, antes de atirá-lo fora, trinta metros adiante. Depois que distribui o último, o amor vai pegar os que foram atirados ao chão, reúne-os e volta para a esquina.

Sempre ele

O amor é a desculpa dos fracos. Tiveram pouco, sempre, embora merecessem tanto. E como é asqueroso ver esses eunucos lamentando-se, queixando-se da ingratidão das mulheres, do seu caráter volúvel, e da incomparável potência dos marinheiros.

Motivo

Se um homem não conhece uma mulher a quem possa dar uma estrela, por que olhará para o céu?

Um trecho de Gore Vidal sobre Scott Fitzgerald

"Entre 1920 e 1940, Fitzgerald publicou quatro romances, 160 contos e alguns fragmentos de autobiografia. Trabalhou em uma dúzia de roteiros para cinema. Também escreveu vários milhares de cartas, guardando cópia das que tinham maiores possibilidades de expor à posteridade seu ponto de vista a respeito de diversas questões que julgava importantes. Embora muito pouco do que Fitzgerald escreveu apresente maior valor literário, sua triste existência continua fornecendo aos Departamentos de Inglês e ao cinema um Conto Exemplar de primeira grandeza. Desnecessário dizer que Scott Fitzgerald atualmente é uma indústria acadêmica de vulto."

(Do livro De fato e de ficção, tradução  de Heloisa Jahn, edição da Companhia das Letras.)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

23h48

Não posso mais continuar adiando o projeto de fechar definitivamente a loja. Digo projeto para não dizer necessidade. Mesmo para um insano, como eu, é inconcebível abrir diariamente a porta e esperar que alguém entre para ver aqueles objetos que, de uma forma ou de outra, se relacionam todos com o amor. Amor... Hoje, quando se pronuncia essa palavra, os educados sorriem, enquanto os outros gargalham: que patacoada é essa? Posso eu argumentar que essa patacoada, com suas quatro mirradas letras, matou outrora milhões de adeptos? Posso eu declarar-me ainda um seguidor de uma causa que me asseguram estar morta? Por que eu não morri com ela, com as quatro mirradas letras nos lábios? Ah, Orhan Pamuk, será que só você ainda se atreve a advogar em nome de um sentimento tão destroçado pela chacota?

Se o amor

Se o amor está mesmo ultrapassado, devolvam-me, por favor, ao passado, a um ano em que haja uma mulher, ao menos uma, que não ache desarrazoado alguém morrer de paixão por ela.

18h15

Sou tolo assim, desde a juventude. Acreditei, sempre, que o amor, sendo um dos atributos da alma, fosse, como ela, imortal. O fiscal se espantou com a minha ignorância. Com repugnância, pegou um dos amores do meu estoque e, colocando-o à altura do meu nariz, desafiou: "Cheira isto, cheira!"

18h04

O fiscal acaba de lavrar um auto de infração, depois de examinar meu estoque de amores. Estavam todos vencidos, assim como eu.

Soneto do amor, esse vício

Sempre que um homem se dá
Ao vício do amor, inteiro,
Torna-se seu prisioneiro
E jamais se livrará.

Maior suplício não há.
Atrás do pico, do cheiro,
Do desvario vezeiro,
Tresloucado viverá.

Para esse vício manter
Será capaz de vender
Ao tráfico seu irmão.

E na hora de a alma entregar
Ávido irá aspirar
O aroma da extrema-unção.

Não, não diga

Falar mal do amor é assim como dizer que um gatinho branco de um mês e meio e dois olhos azulíssimos, chamado Bolinha de Algodão por parecer uma, é feio. Quem acreditará?

Somos

Somos todos escritores
ora por que não
se desde que nos conhecemos
escrevemos

Sabemos que alguns de nós
são melhores
alguns medianos
outros piores

Sabemos também
pelo cálculo das probabilidades
que há infinitas possibilidades
de sermos impostores

Ficamos porém com a mística
e que se dane a estatística.

10h53

Passou diante da loja uma jovem dessas indescritivelmente belas, e olhou-me com tanta pena que não estranharei se daqui a alguns dias estiver afixado aqui um aviso: fechada por motivo de luto.

Quem sabe

Talvez a Morte
não seja afinal
mais difícil de lidar
que uma morena ardilosa
uma ruiva perniciosa
ou uma loira fatal.

Uma e outra

A vida é uma questão de sorte; a morte, uma questão de tempo.

No mínimo

Se souber falar do amor, o poeta nunca ficará sem trabalho.

Paradoxo

Já era muito tarde quando percebi que o amor não é um negócio para amadores.

Lacuna

No livro de tombo
um rombo:
nenhum registro
dos que sofri por amor.

Duas estrofes de Seamus Heaney

"Meus filhos lamentam a quente noite estrangeira.
Andamos pela casa, minha boca suja desabafa
Com você e ficamos rijos na cama até a alba
Atender o travesseiro, o milho e a videira

Que oferecem o fardo nutriente à luz.
Ontem rochas cantaram quando tocamos
Estalactites na velha e gotejante treva da gruta -
Nossos apelos ao amor miúdos como diapasão."

(De Poemas, tradução de José Antonio Arantes, edição da Companhia das Letras.)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Final de expediente

18h30. Hora de fechar a loja. Estender o horário para quê? Já me disseram que o amor andou por outras lojas, em busca de artigos mais modernos.

Mario Quintana

As ruas de Porto Alegre
reconheciam Mario Quintana de longe
quando ele ainda vinha vindo
seus passos leves escandindo
os versos de metros diversos
de cunho divino ou profano
com que o Guaíba ele cantava
e ninava o minuano.

Formas

Há amores que são só
modos de dizer
e amores há que são
as maneiras mais antiquadas
adequadas e abençoadas
de viver e de morrer.

Soneto que dá plenos poderes ao amor

A nós não cabe saber
De que maneira será,
Se será suave ou doerá,
Nem como quando vai ser.

Só ao amor caberá,
A ele, que nos faz viver,
O instante certo escolher
E a arma que nos matará.

Ele poderá optar
Por um gesto ou um olhar,
Por um beijo ou um sorriso.

Tudo que dele nos vem,
Ou vier, será sempre um bem,
Seja o inferno ou o paraíso.

Um trecho de Leo Cunha

"Tem coisas que a gente aprende na escola e não entende bem pra que aquilo vai servir, se é que vai servir um dia. Na minha época de sétima série, eu tinha um colega que não admitia aprender o nome dos trocentos países da África. Ele nunca iria pra lá mesmo, ora! E, além do mais, aquele povo adora trocar o nome do país, a gente aprende hoje e amanhã já erra na prova.
Eu, pelo contrário, sempre adorei geografia e sabia de cor todos os países e capitais. O que nunca me entrou na cabeça foi a importância de aprender o nome de tantos protozoários, bactérias, fungos, vírus e outros causadores de doenças. Na época eu estava curtindo meu primeiro amor platônico e só queria aprender a explicação pro meu coração acelerado e minha dor de cotovelo. A professora de ciências não passava nem perto de resolver esse problema."

(Do livro Manual de desculpas esfarrapadas, edição da FTD.)

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Soneto da era do desacerto

Quando não és tu que cais,
Sou eu, querida, que caio.
Não nos acertamos mais,
Alguém faltou ao ensaio.

E pensar que antigamente
(Lembrar me causa aflição)
Éramos uma só mente
E apenas um coração.

Lembras? Nessa era dourada,
Querida, se eu te chamasse,
Bastava que eu esperasse

Um instante para ver
Ao meu lado aparecer
A tua figura amada.

Futuro

Um dia
(o seu derradeiro)
você será
o velhinho do 204
saindo do quarto
com votos de boa sorte
e oração
para mais uma operação.

"Ele desejava que a sua amada estivesse morta", de W.B. Yeats

"Se fria e morte jazesses,
E a Oeste se fossem apagando as luzes,
Virias até mim, inclinando a cabeça,
E a minha fronte em teu peito repousaria;
Murmurarias ternas palavras,
Perdoando-me, porque estavas morta:
Não te havias de levantar e partir tão apressada,
Ainda que teu seja esse querer de ave selvagem,
Ainda que saibas o lugar dos teus cabelos
Junto às estrelas e ao sol e à lua:
Desejava, amada minha, que na terra jazesses
Sob as grandes folhas,
Enquanto uma a uma se fossem apagando as luzes."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Presunção

O homem julga
que suas deblaterações
soam como lições
e que seus intestinos
soam como violinos.

"Com o tempo a sabedoria", de W.B. Yeats

"Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 25 de outubro de 2015

Soneto das labaredas do amor

Rimos com tanto vigor
Dos homens apaixonados,
Enganados pelo amor,
E eis-nos por ele logrados.

Julgamos que o seu fulgor,
Que os seus lampejos dourados,
Que as chamas, que o seu calor
Não seriam apagados.

O amor nos atiçaria,
O amor nos incendiaria
Com flama igual à do cio.

E, no entanto, aqui estamos.
No escuro nos encontramos
E tiritamos de frio.

Se o mundo

Se o mundo girasse por nós, saberíamos como, finalmente, fazê-lo girar direito.

www.rubem.wordpress.com

Hoje, na revista Rubem, falo de verbos como amar, viver e morrer.

Soneto das formas de tratamento

Ele a chamava de alteza
Porque nela se reunia
O que de mais raro havia
Em graça pura e beleza.

E, por ser também verdade,
O costume ele mantinha
De chamá-la de rainha
Ou então de majestade.

Ela dele se cansou,
Ela o ofendeu, o expulsou,
Chamou-o de repelente.

E ele hoje saudade sente
De ouvir sua voz chamá-lo
De súdito, de vassalo.

Que vou dizer

Que vou dizer
de tantos homens
que se apaixonaram por mulheres
desgraciosas ou belas
e enlouqueceram
e morreram por elas?

Se for dizer a verdade,
direi que o amor
é uma balela
uma esparrela
uma insanidade

Mas direi baixinho
quase sem dizer
para respeitar quem já enlouqueceu
quem já morreu
e os que como eu
ainda por essa balela
ainda por essa esparrela
ainda por essa insanidade
vão enlouquecer
e morrer.

"A rosa", de Jorge Luis Borges

"A rosa,
a imarcescível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do negro jardim na alta noite,
a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que ressurge da tênue
cinza pela arte da alquimia,
a rosa dos persas e de Ariosto,
a que sempre está só,
a que sempre é a rosa das rosas,
a jovem flor platônica,
a ardente e cega rosa que não canto,
a rosa inalcançável."

(Tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz, de Obras completas, publicação da Editora Globo.)

sábado, 24 de outubro de 2015

Bate-papo

Nesta segunda, 28, às 10 h, na Biblioteca Amadeu Amaral, conversarei com leitores sobre leitura e literatura.

Mario Quintana

O nome da cidade em que Mario Quintana nasceu, Alegrete, é um adequado resumo de quem ele viria a ser: alguém alegre, mas não tanto que fechasse à tristeza os olhos de poeta.

Soneto da ação e da omissão

A nós não resta senão
Lutar com intensidade,
Com toda a tenacidade,
Com a alma e com o coração.

Se não, podemos então
Dobrar-nos à ociosidade.
Num caso e noutro, a verdade
É que tudo é sempre em vão.

Seja o que for que queiramos,
Nada jamais alcançamos,
Quem manda em nós é o destino.

E o destino, nós sabemos,
Pela experiência que temos,
É um brinquedo de menino.

"Tudo pode tentar-me", de W.B. Yeats

"Tudo pode tentar-me a que me afaste deste ofício do verso:
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior -
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor vem à minha mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo que um peixe."

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Identidades

Embora graciosa queira parecer
e luzidia
a prosa jamais passa
de verso da poesia -
a face
que falta não faria
se faltasse.

Cansaço

De tanto dizerem amor, os lábios agora, para dizê-lo, só se movem, sem um som, como a boca de alguém querendo falar num sonho ou um pequeno peixe borbulhando vogais no aquário.

"Troféu", de Jorge Luis Borges

"Como quem percorre uma costa
maravilhado com a multidão do mar,
alvissarado de luz e pródigo espaço,
eu fui o espectador de tua formosura
durante um longo dia.
Nos despedimos ao anoitecer
e em gradual solidão
ao voltar pela rua cujos rostos ainda te conhecem,
escureceu minha ventura, pensando
que de tão nobre profusão de memórias
perdurariam escassamente uma ou duas
para ser decoro da alma
na imortalidade de sua andança."

(Tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz, extraído de Obras completas, publicação da Editora Globo.)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Amor

Dos indigentes, só um não entrou na fila dos que seguravam os esperançosos pratos. Afastado do grupo, seus olhos fixavam-se na mulher de avental, e os lábios, movendo-se sem som, pediam algo que ela não lhe podia oferecer com a concha prestimosa.

"A uma criança que dança no vento", de W.B. Yeats

"Dança aí junto ao mar;
Que te importa
O rugido da água, o rugido do vento?
Sacode a tua cabeleira
Molhada de gotas de sal;
Tu que és tão jovem ignoras
O triunfo do néscio, não sabes
Que o amor mal se ganha e logo se perde,
Nem viste morrer o melhor operário
E todos os feixes por atar.
Por que hás de temer
O terrível clamor dos ventos?"

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Norte

Quando afinal nós notamos
Que a nossa era a trilha errada,
Já não nos restava nada
A não ser andar. E andamos.

Olho-grande

Com inveja da amiga
plagiou-a alegremente
e riu copiosamente.

A poesia

A poesia há de ser superlativa.
Jamais um bibelô posto na estante,
Porém a flor mais úmida e fragrante,
Escandalosamente rubra e viva.

O indício

A poesia conquistada com truques de engenharia me deixa a impressão de se aparentar com a trapaça. Nela há de haver sempre um indício de descuido ou acaso, como se um deus, carregando estrelas, deixasse escapar algumas.

Beckettiana

Tentar honestamente
e fracassar redondamente
tentar novamente
e fracassar completamente
e novamente
convictamente
tentar
e fracassar
e fracassar
e fracassar
assim sucessivamente.

"Um aviador irlandês prevê a sua morte", de W.B. Yeats

"Eu sei que o meu destino encontrarei
Algures tão alto entre as nuvens;
Não odeio a quem combato,
Não amo a quem defendo;
Eu sou de Kiltartan Cross,
A minha gente são os pobres de Kiltartan,
Nenhum fim havia de arruiná-los
Nem mais felizes os tornaria.
Nenhum dever, lei alguma, me ordenaram que lutasse,
Nenhum estadista, nenhuma clamorosa multidão;
Um solitário impulso, o prazer,
Conduziu-me a este tumulto entre as nuvens:
Tudo pesei, tudo ponderei,
Os futuros anos eram vão alento,
Vão alento os anos passados;
De acordo com esta vida está esta morte."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Mario Quintana

Mario Quintana comunicava-se com as estrelas de um modo bem peculiar. Em conluio com os vaga-lumes, enviava mensagens pelo sistema ligar-desligar. Com o tempo, precisou pedir moderação aos vaga-lumes para lhes preservar a saúde, porque eles, afeiçoando-se também às estrelas, queriam ficar permanentemente na função ligar.

Época

Quando as paixões começam a abandonar um homem e tudo que resta são memórias, talvez ele esteja enfim preparado para encontrar o escritor que tantas vezes pressentiu ter em si mesmo.

Esperança

No entanto ainda achamos, em todo início de frase, que chegou o dia de sermos abençoados pela graça que coroou Shakespeare e Dante.

Alter ego

Desde o início a ficção foi o melhor método de terceirizar culpas. Sempre haverá um escritor chamado Fiódor colocando uma machadinha nas mãos de algum Raskolnikov e torcendo pelo seu sucesso.

Lição

Precisei escrever todos os dias, durante cinquenta anos, para descobrir que não deveria ter começado nunca.

"Uma capa", de W.B. Yeats

"Uma capa fiz do meu canto
De baixo a cima
Bordada
De antigas mitologias;
Mas tomaram-na os tolos
Para exibi-la ao mundo
Como se por eles fora lavrada.
Deixa, canto, que a tomem,
Pois maior feito existe
Em andar nu."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Um poeta

Um poeta há de sonhar sempre sonhos impossíveis, mulheres inalcançáveis, estrelas inatingíveis. Suas mãos deverão ser sempre incapazes de segurar, de reter, de apreender.

Um soneto de Shakespeare

"Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata a preta têmpera assedia;

Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia a sombra franca
E em feixe atado agora o verde trigo
Seguir o carro, a barba hirsuta e branca;

Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo a dura prova,
Pois as graças do mundo em abandono
Morrem ao ver nascendo a graça nova.
 
       Contra a foice do Tempo é vão combate,
       Salvo a prole, que o enfrenta se te abate."

(De Obras de William Shakespeare, tradução de Ivo Barroso, publicação da Editora Abril.)

domingo, 18 de outubro de 2015

Mario Quintana

"Ma chère, la poésie c'est toi",
Disse Quintana em resposta
A uma pergunta proposta
Por Silvia Galant François.

Quase tanto

Ter existido um homem chamado Shakespeare, que fez o que fez, é quase tão inacreditável quanto existir Deus.

Exercício

Estar deitado não basta. Nem fechar os olhos. É preciso parar de respirar. Depois, persistir.

Personalidade

Sou um entusiasmado adepto da apatia.

O toque

Que mais pode querer um homem senão ser tocado pela beleza? Pode parecer pouco, pode parecer nada, como pode parecer pouco, como pode parecer nada o pouso de uma borboleta numa flor. Assim são as coisas da alma, leves como o sopro da brisa que conta uma história no sonho de um menino.

Um poema de Lawrence Ferlinghetti

"Terrível
um cavalo em plena noite
sozinho atrelado na rua silenciosa
e relinchando
como se alguém nu e triste
o houvesse montado e cingido com pernas ardentes
e cantarolado
uma única sílaba
singela estridente faminta."

(Tradução de Eduardo Bueno, do livro Um parque de diversões da cabeça, publicado pela L&PM.)

sábado, 17 de outubro de 2015

Glória

Uma quadrinha mirrada
e pronto - eis o poeta
impado como uma empada.

Participação

Se queres dar-me propina,
Eu acho isso até normal.
Mas não me acostumes mal,
Um beijo basta, menina.

Consolo

Que nos traiam as mulheres e os homens nos humilhem, mas que a arte nos acolha sempre com seus generosos braços de mãe.

Gangorra

Se o êxtase da carne são essas convulsões que estupidificam teus olhos e te fazem escorrer a saliva pelo queixo, é justo que te atraiam os auges do espírito.

Em causa própria

Foram os poetas de braços finos e rosto enrugado que espalharam a balela segundo a qual às mulheres agradam mais os versos primorosos do que os homens musculosos.

"No parque", de Georg Trakl

"Caminhando outra vez no velho parque,
Oh silêncio de flores amarelas e vermelhas!
Vocês também choram, bons deuses,
E o brilho outonal do olmeiro.
No lago azulado ergue-se imóvel
O junco e à noite emudece o melro.
Oh! Então inclina tu também a fronte
Ante o mármore em ruínas dos ancestrais."

(Tradução de Claudia Cavalcanti, edição da Iluminuras.)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Erros

Com sua megalomania, o homem criou Deus e o amor - e foi por ambos renegado.

O clássico

O clássico deve ser uma referência para a mudança, e não meramente um estímulo à repetição.

Arrepio

Para nos transformar, a arte há de provocar em nós uma vertigem ou ao menos uma estranheza, jamais uma sensação de identidade.

Soneto de quem conhece o amor

Quem pode com o amor contar se,
Tendo confiado em mais de um,
Não recebeu de nenhum
Nada com que compensar-se?

Quem será tolo o bastante
Para, depois de enjeitado,
Ofendido e espezinhado,
Sorrir e seguir adiante?

Só pode no amor ter fé
Quem não sabe o que ele é.
Quem sabe tapa os ouvidos

Quando o amor vai procurá-lo
Para de novo tentá-lo
Com seus intentos fingidos.

Quando ele diz

Quando ele diz "amor", espera seu violino interior ferir a nota mais aguda e, quando ele a fere, sente que a alma, que só essa palavra de quatro letras e essa nota aguda conseguem acordar, desperta em êxtase, como uma flor abrindo-se para oferecer seu orvalho ao sol.

Ordem pública

Diante da casa de uma de suas trinta e três musas, pôs-se a gritar "Adelaide, Adelaide, Adelaide". Os vizinhos entenderam "Liberdade, Liberdade, Liberdade", e a polícia o apanhou para averiguações. Enfiado na viatura, não teve tempo de se desfazer do calhamaço de poemas.

"Hoje", de Djanira Pio

"Houve
o momento ruim
quando o sentido de tudo
fugiu com o vento.
Só a morte salvaria
o grande e pegajoso nada.
Mas o momento passou
como todos os momentos.
Hoje
é o tempo presente
que existe
e é bastante."

(Do livro Olhares, publicado pela RG Editores.)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Provas

Quando o que falam os poetas
Sobre elas as musas leem,
Comentam: "Mas que patetas!"
Nem mesmo elas neles creem.

Lógica

Para um poema concreto
o melhor ponto-final
é uma pá de cal.

História

Se você nasceu em Curitiba, mora em Curitiba e nunca viu Dalton Trevisan, o que você tem para contar?

Pedra filosofal

O amor transforma em poesia
A prosa mais claudicante,
A linguagem mais maçante
E a mais pura algaravia.

Soneto do que no homem prevalece

Não, um homem não é feito
Por nenhuma conjunção,
Por nenhuma relação
Ou nexo de causa e efeito.

Nunca será desse jeito.
Muito mais do que razão,
Um homem é o coração
Que ele abriga no seu peito.

Um homem é diferente
Do que diz a sua mente
Ou as suas convicções.

Um homem real, bem-acabado,
Será sempre o resultado
De suas contradições.

Um poema de Li Zhiyi

"Eu moro no topo do Grande Rio
Tu moras na cauda do Grande Rio
Todos os dias penso em ti
E embora te não veja
Bebemos ambos do Grande Rio.

Irão cessar estas águas?
Quando terminarão estas saudades?
Tenho um desejo: que o teu coração e o meu
Se mantenham, fiéis ao laço do amor."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Campanha

A grosseria, a ignorância e a estupidez querem fazer a poesia parecer um luxo do espírito ou uma molecagem da imaginação.

Recíproca

Assim como nós
nos cansamos das coisas
as coisas se cansam de nós

Há algumas noites já
que saio para ver as estrelas
e não consigo vê-las
porque todas se escondem
quando ouvem minha voz.

Soneto da menina e do menino

Temos uma relação
Pelo amor e o ódio marcada,
Pelo remorso entremeada
E pedidos de perdão.

Tudo em nós é desrazão,
História desatinada,
Nada é tudo, tudo é nada,
Não é sim, e sim é não.

Quando tudo está perfeito,
Nós logo pomos defeito:
Ou tu és contra ou sou eu.

Menina, adianta? Menino,
Adianta? Foi o destino
Que há muito nos escolheu.

Balanço

Nosso maior acerto foi escolhermos Deus para pai. O maior erro Dele foi nos aceitar.

Como

Morrer deveria ser
Assim como bocejar,
Relaxar, espairecer,
Esquecer-se, cochilar.

"Doente mandando uma concubina embora", de Sikong Shu

"Ocasiões que ferem o coração diante estão de mim
Encharcado tenho o corpo, frente à coberta de estimação.
Gastei dinheiro bom pra te ensinar dança e canções
Agora deixo a outro gozar teu saber e tua frescura."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Rei sol

Com sua barriga imponente
e a calva lustrosa
o poeta concede o favor de sua presença
à manhã majestosa

Sabe que por ele
cantam os passarinhos
mas acena para eles
só levemente
porque é esta a
atitude que convém
à sua modéstia.

Prejuízo

Ah pobrezinha
que bicho te mordeu
para perderes tanto tempo
com um tipo como eu
de reputação tão mesquinha

um versejador de versos pífios
de indefensáveis rípios
inútil como um falso doutor
e sem graça como um cantor
de voz fanha e enfadonha
ou um pecador sem vícios.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Papa-filas

Nabucodonosor é um nome tão longo que começamos a pronunciá-lo e ali pelo meio do caminho hesitamos: é dele mesmo que nós queremos falar ou do barão da Paranapiacaba?

Morituros

Levantou-se então
dentre os mortos
e os semimortos
uma voz que acusou o amor
(ei eu avisei)
e outra voz que concordou
(é você avisou).

Etapas

Prodígios da idade

(com 74 saí
da puberdade
com 75 atingi
a maturidade)

com 76 apodreci.

Resultado

No fim de nossa jornada
Somamos o que hoje somos
E aquilo que ontem nós fomos
E o que vemos? Nada, nada.

Teodiceia

Uma tragédia matou
dezenas de pessoas no Japão
(você lamentou)

uma catástrofe dizimou
centenas de pessoas no Afeganistão
(você lastimou)

não sei quantos morreram na Turquia
e quantos no Chile outro dia
(você deplorou)

ontem um gatinho morreu
de pneumonia
(você chorou
e questionou a justiça de Deus
porque o gatinho era seu).

"Vivendo (ou estando) na montanha", de Yuan Haowen

"A folhagem, imensa, cabe nas vozes de outono
E os restos de um burgo - entra devagar o crepúsculo.
O arco-íris se vai e fica chuva, esbranquiçada
As fumarolas vão, para surgir o azul. Montanhas."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Soneto da nossa trajetória

A nós não cabe saber
Por que nascemos, por que
Nos debatemos tanto e
Por que devemos morrer.

A nós não cabe escolher.
Cada um de nós sente que
Não saberá o porquê
De ser assim nosso ser.

Já no dia em que nascemos,
Um barco vem nos buscar
E nele nós embarcamos.

Para onde vai não sabemos,
Porém nos mandam remar
E nós remamos, remamos.

Bíblia

Hoje o normal
seria adão e eva morarem
num paraíso fiscal.

Lógica

Poder morrer é o motivo
Mais lógico e consistente,
A razão mais convincente
Para alguém se manter vivo.

Alteza

Na boca dela
toda vogal era bela
toda consoante também

Na boca dela
até um cacófato
soava bem.

Inventário

Não temos nada a gabar.
Quem há de querer nos ver,
Quem vai querer nos tocar,
Quem pode querer nos ter?

Carapuça

Cada um de nós deve se perguntar honestamente, ao menos uma vez por dia, se, quando falamos dos impostores, dos farsantes e dos vendilhões da literatura, não nos sentimos de alguma forma cúmplices ou coniventes.

Modus operandi

Primeiro o escritor comete o ato. Depois chama o leitor para ser seu cúmplice.

Amém

Enquanto bombas caem sobre o mundo
E morre a humanidade, em agonia,
Nós, com nosso repeito mais profundo,
Louvamos o Senhor por mais um dia.

Um trecho de Amadeu Amaral

"Ah, Rufina, meteoro rutilante, perpassaste pelo céu caliginoso de minha vida! Estarás a estas horas olvidada de mim. Nem por um momento esvoaçará por tua cabecinha pequenina e redonda a ideia de que deixaste um farpão enroscado na carne de um pobre funcionário; de que esta pobre alma, jogada de cá para lá sobre os trilhos imutáveis, está a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmo ancião de rosto severo e pausada voz, como uma avezita ao lado de um rinoceronte. - Perdoa-me se é teu pai, ou teu avô, ou padrinho; mas não podias ter companheiro que melhor fizesse realçar a tua brevidade graciosa e arrogante de galinha garnisé. Não te verei mais, Rufina?"

(Do livro de crônicas Memorial de um passageiro de bonde, edição da Hucitec.)

domingo, 11 de outubro de 2015

Soneto do amor desmedido

Tu hás de ser abençoado
Por um amor desmedido,
Histérico, ensandecido,
Ilógico, tresloucado.

Hás de ser atormentado,
E subjugado, e possuído,
E dirás, agradecido:
"Valeu. Ah, muito obrigado."

Será isso que farás.
A sina agradecerás,
Porque tens que agradecer.

Antes desse amor insano,
Antes desse amor profano,
Tu nem sabias viver.

Soneto dos erros perdoáveis

Com os erros que cometemos
Nem sempre lidamos bem.
De muitos deles, porém,
Nós não nos arrependemos.

Nós passaríamos sem
Tantos com os quais convivemos,
Mas, sábios, reconhecemos
Aqueles que nos convêm.

O amor, por exemplo. Qual
Sentimento existe, igual
Ou ao menos semelhante,

Que na hora de nos matar
Nos mate assim, devagar,
Tão gentil e tão galante?

"Palavras", de Wistan Hugh Auden

"Nasce um mundo da frase pronunciada
Onde tudo acontece tal e qual;
Na palavra a palavra está empenhada:
À fala, não ao falante, dá-se o aval.

Clara seja a sintaxe, e mais: que nada
Mude ao tema seu fluxo natural
Nem troque os tempos por amor à toada
Pois há tristes versões de pastoral.

Para que um blá-blá-blá interminável
Se os fatos são nossa melhor ficção?
Antes o verso facilmente achável

Do que da rima a falsa encantação,
Qual dança de zagais mima o insondável
Cavaleiro a vagar na solidão?"

(Tradução de João Moura Jr., extraído de Poemas de W.H. Auden, edição da Companhia das Letras.)

Revista Rubem

Hoje falo da morte e de outras coisas aparentadas com a vida (www.rubem.wordpress.com).

Presente

Vaticinou mal Nostradamus
ou fomos nós
que erramos?

Boletim médico

Estivemos para dar ao amor tudo que tivemos, mas a voz da precaução nos alertou: não. Demos um pouco de nós, negamos o resto, e sabemos hoje, e os médicos diagnosticaram, e as chapas confirmaram, que o cheiro ruim exalado por nossos pulmões vem daquelas palavras que apodreceram enquanto esperávamos, para dizê-las, melhor ocasião.

Espaço

Que pode um homem fazer?
É tão reduzido o espaço
Para o sucesso e o fracasso
Entre o nascer e o morrer.

Blocos

Enquanto frases empilha
o poeta concreto
pensa como fácil devia ser
poesia fazer na Idade da Pedra.

E que

Ele gostaria que o amor fosse
uma garota que ele amasse
e que também o amasse
e que sempre ele para ela
e que ela para ele sempre fossem
tudo que lhes bastasse
e que amor eterno se jurassem
e que nessa jura cressem
e que viva a conservassem
pelo tempo que vivessem
- e que vivessem enquanto a conservassem.

Campeão

No auge da idade
o homem atinge o apogeu
da qualidade

Desafia os rivais
de sua idade
e até os de mais

É sua a melhor tosse
a rinite a bronquite
e a ejaculação precoce.

sábado, 10 de outubro de 2015

Soneto do melhor estado do amor

Jamais as noites sofridas,
A aflição das madrugadas,
As lágrimas desatadas,
A dor de agudas feridas.

Jamais as preces goradas,
As esperanças perdidas,
As exortações suicidas,
As falhas, as gargalhadas.

O amor, que eterno se achou,
Morto ontem se declarou.
Que alívio, Deus, que conforto!

Um dia só, e eu já sei
O que nunca imaginei:
O melhor amor é o morto.

Nem agora

Jamais soube lidar com a poesia. Na juventude porque eram afoitas e inábeis suas mãos. Agora porque, ásperas e maliciosas, são rejeitadas pela poesia assim que, tocando-lhe a penugem, lhe buscam ardilosamente a pele, como se quisessem decifrar a tatuagem de uma rameira.

Três pequenos poemas de Wystan Hugh Auden

"Receio haja muitos caixas-d'óculos filisteus
que preferem o Museu Britânico ao próprio Deus."

                                ***

"Rostos particulares em lugares públicos
É coisa mais gentil e mais sensata
Do que, em lugares particulares, rostos públicos."

                                ***

"A esperança de um poeta: ser,
Como os queijos de certos vales,
Local, mas estimado alhures."

(De Poemas de W.H.Auden, tradução de José Paulo Paes, edição da Companhia das Letras.)

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Soneto das exigências do amor

Às vezes se envergonha de ter sido
Aos apelos do amor tão prestimoso,
Tê-lo visto como o bem mais valioso
E com ele sempre ter condescendido.

Por ser assim, como ele tem sofrido,
E como o amor, esse seu bem precioso
Lhe tem sido tão caro e tão custoso
Que já nem vale o preço despendido.

Às vezes se envergonha de ter dado
Ao amor bem mais que o solicitado,
Bem mais que os sentimentos habituais.

Porém logo no amor lhe volta a fé
E então o que lhe causa vergonha é
Ao amor não ter dado muito mais.

Pretextos

A última das criadas fingiu deixar escapulir alguma coisa no quarto da rainha, enquanto as outras se afastavam. Tão graciosa era ela, com seu rosto posto em fogo pela sofrível encenação, que a rainha lhe deu um tapa, só para poder beijá-la em seguida, com um ímpeto que excedia escandalosamente o necessário a um simples pedido de desculpas.

Um trecho de Wystan Hugh Auden

"A vida escolar ensinou-me que eu era antipolítico. Eu queria ser deixado em paz para poder escrever poesia, escolher os meus próprios amigos e levar a minha vida sexual. O Inimigo era, e ainda é, o político, isto é, a pessoa que quer organizar a vida dos outros e pô-los na linha. Sou capaz de reconhecê-lo instantaneamente, qualquer que seja o seu disfarce, de funcionário público, de bispo, de mestre-escola ou de membro de um partido político, e não posso topar com ele, por mais casual que seja o encontro, sem experimentar um sentimento de medo e de ódio."

(De Poemas de W. H. Auden, tradução de José Paulo Paes e João Moura Jr., publicação da Companhia das Letras.)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

$$$$$

Além da fortuna crítica, com qual riqueza um poeta pode sonhar?

Tesouro

Falaram-lhe da prodigiosa fortuna acumulada no fundo do mar, constituída pelos milhares de estrelas que desde o início dos tempos vêm caindo dentro dele. Ele ponderou que deviam estar todas mortas, o que causou espanto. Como um homem sensível como ele, chamado de poetas por alguns, podia ter uma opinião tão disparatada?

Soneto do senhor da vida e da morte

Se fosse como dizia
(Por que nele acreditaste,
Por que, tolo, não notaste?)
O amor não te mataria.

Matou-te (e como ele ria,
E como tu imploraste,
Te viraste e reviraste
Em dor, em febre e agonia!).

Com o mesmo seco desdém
Com que ele mesmo também
Te havia feito viver,

Deu-te o veneno e saiu.
Nem sequer se despediu
E nem te esperou morrer.

Um trecho de Amadeu Amaral

"Gosto de viajar no último banco. Vai-se mais resguardado de maçantes. Pode-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Não se veem caras.
Evita-se o risco de pagar a passagem para os amigos que não o são, e pode-se fazer aos amigos que o são a surpresa de lha pagar, numa traição delicada, pelas costas - o que, como fineza, tem na sua independência um especialíssimo sabor. - Por fim, pode-se fumar sem a preocupação de ser incômodo a senhoras, porque muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se a coincidência de não haver outro depois do último.
Aliás, deixo de fumar perto de senhoras, não por uma particular deferência, mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear um cigarro é prazer tão leve e tão fino, que o simples pensamento de que alguém no-lo possa estar amaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparência azulejante das espirais."

(Da crônica "A roupa e o gesto", extraída do livro Memorial de um passageiro de bonde, publicado pela Editora Hucitec.)



quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Ontem

Eu também fiz poesia
como quem fantasia um neto
para um baile sertanejo
ou então veste uma neta
para a primeira comunhão

Não era poeta
como hoje não sou
mas quando me lembro
desse tempo vejo
que eu era um homem muito melhor
do que hoje sou.

Mesmo com

Resolveu não chamá-la de fada, embora toda vez que ela ajeitava os cabelos o ar se pusesse em alvoroço, tocado por borboletas.

Humor negro

Quando comentaram que o garoto no caixão parecia mais corado que nunca, alguém disse que talvez fosse uma timidez natural num morto ainda não totalmente cônscio de seu estado.

Arquivo

Se você não acha que a sua é a maior história de amor de todos os tempos, não importa. Continue, mas coloque o caso na pasta de entretenimento.

"Raparigas de Yue", de Li Bai

"A rapariga apanha lótus no Riacho.
Volta o barqueiro cantarolando em seus remos.
Escondeu-se entre os lótus num trejeito
Por timidez ou vergonha não sai de lá."

(Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Perdida

No campo de fugitivos
sobre os escombros
e sob olhares apavorados
a estrela cai
em cima dos corpos amontoados
e refugia-se entre os vivos.

Melhor idade

Com 76 nas costas
tanto faz o início
quanto o fim
tanto o logoff
quanto o login.

Soneto do amor que cresce em ti

Ingênuo, enquanto te dizes
À força do amor imune,
Ele em silêncio te pune
E afunda em ti as raízes.

Não sentes, mas dia a dia,
Aos poucos, devagarinho,
Ele amplia o seu domínio
E em ti mais fundo se enfia.

Como procederás quando
Estiveres caminhando
E te apontarem na rua?

Como explicarás a flor
No rosto, a rosa do amor?
Tu dirás que não é tua?

Mario Quintana

Em matéria de poesia, Mario Quintana era autodidata. Que escola poderia ensinar-lhe o que dizem as estrelas, quando sussurram, e as rosas, quando suspiram?

"Flor da alquimia", de Adonis

"Preciso viajar no bosque das cinzas
entre as árvores ocultas
na cinza estão as fábulas, o diamante, o velocino de ouro
preciso viajar na fome, na rosa, rumo às colheitas
preciso viajar, descansar
sob o arco dos lábios órfãos
nos lábios órfãos, em sua sombra ferida
está a antiga flor da
alquimia."

(De Poemas, tradução de Michel Sleiman, publicação da Companhia das Letras.)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Júbilo

Subitamente ele foi tomado por uma ternura tão aguda que sentiu o ímpeto de beijar as flores do canteiro principal do parque. Não o fez, temendo parecer insano. Curvou-se, porém, e lhes disse bom dia, com a voz que usava para falar com os pássaros.

Meta

No caminho do não ser,
Não se mexer é ousar,
Não se mover é avançar,
Ser derrotado é vencer.

"Casa de chá, Hoshioka", de Liu E

"Uma rapariga, modestamente veste. Macia cútis.
Aqui em Hoshioka um cenário esplêndido, e
Nem canções inebriantes nem lascivas danças, hoje
Somente uma 'pequena dama' falando comigo das coisas da poesia."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 4 de outubro de 2015

Manual

Morrer é saber fechar os olhos na hora certa. Um pouco de sorte é desejável, também.

Ocaso

Se incapacitado de exercer as artes do amor, o homem definha dolorosamente, como aquelas árvores sobre as quais, nos últimos dias, já nenhum pássaro pousa.

Fantasia

Na catedral haveria um órgão que, subitamente tocado, atrairia uma centena de andorinhas, abençoadas pelo padre. Tu estarias passando por ali e entrarias também, sem que notassem qualquer diferença.

Perda

Se você nunca sofreu por amor, perdeu a melhor chance de ser ridiculamente sublime e sublimemente ridículo.

Número

Quando o amor atingisse o auge, o coração deveria explodir e esparramar pelo céu mil duzentos e cinquenta balões coloridos, se não mais.

Soneto dos frutos de outrora

De nossas próprias condutas
Sofremos hoje o produto:
Frutos amargos desfruto,
Frutos amargos desfrutas.

Nos tempos bons, de fartura,
Se alguém vinha e nos dizia
Que aquilo não duraria,
Zombávamos: que loucura!

Todos os frutos provamos
E como nos vangloriamos:
Ninguém os provou mais doces!

Como iríamos saber
Que eu tanto iria sofrer
E tu sofrer tanto fosses?

Relação

A melhor posição que o poeta pode assumir diante da poesia é a de testemunha - como alguém que, uma noite, fosse inconcebivelmente convidado a assistir ao nascimento de uma estrela.

Heroísmo

No reino da autoajuda, um resfriado é uma saga, e atravessar uma rua para ir à farmácia comprar uma cartela de comprimidos transforma até o mais catarrento dos cidadãos num herói. E, se ele tomar uma injeção na briosa nádega, os poetas da corte serão convocados para escrever uma epopeia.

Etapa

Dormir é agora o que ele mais faz. Dorme com empenho, disciplina, método, como se não tivesse tantas décadas sobre os ombros e fosse um estudante preparando-se para a prova final.

Função

Por que esperar verdades de um poeta, se ele pode nos dar coisas muito mais fascinantes?

Ser

Ser Machado de Assis por um dia, por uma hora, por um parágrafo...

E o quê?

Dos leitores
os escritores
podem esperar
carinho respeito
louvores

E os leitores
dos escritores?

No entanto

Quem lê Dostoiévski, Shakespeare, Maupassant, Tchekhov e persiste em ser escritor, há de ser ou muito presunçoso ou tolo demais.

Não mais

Como mudou a esperança...
Há muito, já, que isto ocorre:
Ela depressa se cansa
E é a primeira que morre.

"O poema". de Mario Quintana

"Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já haviam passado o frêmito e o mistério da vida..."

(De Eu passarinho, publicação da Editora Ática.)

sábado, 3 de outubro de 2015

Arnaldos

Entre os dois arnaldos
uma pista
prefiro o baptista.

Alvíssaras

Certos escritores, quase todos, quando dizem que vão parar de escrever, deveriam ser levados por uma comissão de leitores a um cartório, para formalizar o compromisso, antes da queima de fogos.

Cópia

Quando fica um dia sem escrever, o escritor descobre que o mundo sente o mesmo que sente nos dias em que ele escreve: absolutamente nada.

"A rua dos cata-ventos VI", de Mario Quintana

"Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola,
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente..."

(De Eu passarinho, publicação da Editora Ática.)

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

História

Eu também fui um desses tolos que se julgam importantes a ponto de causarem inveja em alguém, como se pudesse haver uma hierarquia quando se trata de escombros e de pó.

Exercício de antiautoajuda

Partamos do princípio de que não somos nada e procuremos não nos afastar muito disso.

Mario Quintana

Só Mario Quintana tinha
A prodigiosa noção
De que uma só andorinha
Às vezes faz um verão.

Bom-senso

Comprar gato por lebre
devia ser regra
não exceção.

Ainda

Ainda às vezes
o amor vem assombrá-lo
tocá-lo com as mãos geladas
cheias ainda da terra
e das marcas da lua
da noite em que foi enterrado

Ainda às vezes
ele vem e pergunta
por quê
por quê
por quê

E dos seus lábios
não saem rosas
mas inquisidoras minhocas
foi você
foi você
foi você.

Um trecho de Anaïs Nin

"Os slogans não criam força porque toda generalização é falsa. Várias mulheres inteligentes, muitos homens potencialmente capazes de colaborar, afastam-se por causa das generalizações. Mobilizar todas as mulheres para um trabalho que só convém a algumas é pouco eficiente. Nem sempre o grupo é gerador de força, porque ele tem de agir em função do nível mais baixo de compreensão."

(Do livro Em busca de um homem sensível, tradução de Estela Senra, publicação da Editora Brasiliense.)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Soneto do adorável pirata

O amor é como um pirata.
Ele forma seu tesouro
Furtando-nos toda a prata
E despojando-nos do ouro.

Depois que tudo arrebata,
Nos leva ao matadouro
E sem hesitar nos mata
Para vender nosso couro.

Devíamos censurá-lo,
Devíamos execrá-lo,
Mas vivemos a chamar:

"Amor, por que sumiste, hem?
Nós temos ainda, amor, vem,
Nossa alma para te dar."

Caminho

Um dia tu paras para ver
aonde te levou a poesia
e vês que ainda é o mesmo o lugar
mas continuas a andar
porque já sabes que na poesia
o melhor sentido que há
é não haver nenhum sentido.

O contrário

Não ser é às vezes nossa mais expressiva (e trabalhosa) maneira de ser.

Gramatiquices

Mor é síncope de maior ou maior é epêntese de mor? Gatãozinho é diminutivo do aumentativo ou aumentativo do diminutivo?

"Da humana condição",

"Custa o rico a entrar no Céu
(Afirma o povo e não erra).
Porém muito mais difícil
É um pobre ficar na terra..."

(De Eu passarinho, publicação da Editora Ática.)