segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Saber

Talvez tenhamos sabido,
Um dia, como viver.
Foi ontem, e ontem é olvido,
Saibamos hoje morrer.

Efeito Agatha

Sendo o que é - matéria-prima e pretexto para a arte -, nem sempre a vida é generosa como deveria. O que há de fazer, por exemplo, um escritor com a rotina diária (café da manhã, almoço, jantar) dos seus personagens? O que extrairá disso? Bem faz o romancista policial quando põe veneno no café, uma faca na mão de um cozinheiro censurado por um mau almoço ou um assassino com os dedos enluvados cortando a eletricidade e provocando um oh! nos convidados para o banquete, na sala de jantar.

Wislawa

Em troca de tudo que fiz, gostaria de ter escrito um verso qualquer de Wislawa Szymborska. Não o mais simples deles. Seria querer demais. Wislawa fez da simplicidade o seu tesouro e a mais singela de suas linhas é puro ouro.

Naquela tarde

Escrevo, ainda. Se soubesse que aquilo daria nisto, em tantos anos de derrotas e tormentos, teria impedido o menino de pegar o papel e a caneta naquela tarde.

Arrependimento

Comerciante por quarenta anos, pagou a universidade para os três filhos com seu trabalho, e o adjetivo que os amigos e os parentes usam quando se referem a ele é sempre o mesmo: honrado. Fechou a loja há um mês e foi atacado por uma tristeza funda e por uma repentina ânsia de fama. Não diz a ninguém, mas arrepende-se de nunca haver tido uma falência fraudulenta, de jamais ter protagonizado um escândalo, de não ter, como tantos outros, deixado sem emprego pais de família, de não ter mostrado um sorriso cínico e desdenhoso na tevê e nos jornais. E sonha, com uma satisfação que se desfaz quando acorda, que passa entre irados manifestantes que gritam "ladrão, ladrão, ladrão".

Talião

Jamais a julgaste boa
E - é óbvio - ela revida.
A vida não te perdoa,
Tu não perdoas a vida.

Benevolência

Estes meus escritos diários, meu (im)provável leitor, não te servirão nem como pálida cópia de arte nem como entretenimento. Talvez valham apenas para, se tiveres vontade, exerceres tua benevolência, se benevolência merece um homem que, depois de tantas décadas, ainda não aprendeu seu ofício.

Gatinha branca

Às vezes imagina que é um gato muito velho e querido que um dia, sonhando ter visto fora da casa uma gatinha branca, desceu do sofá onde por treze anos havia dormido, saiu pela janela para a perfumada noite de verão e nunca mais acordou.

domingo, 30 de outubro de 2011

Who's who

Depois de toda essa lida
Quem é vítima ou algoz?
O que fizemos da vida?
E a vida, o que fez de nós?

Supino

Por mais que busques respostas,
As cartas estão marcadas.
Irás deitado de costas
E as mãos no peito cruzadas.

O pior

O pior dos seus pesadelos é aquele em que, saltando do prédio, ele cria asas um segundo antes de chegar ao asfalto e, voando de volta para cima, enfia-se de novo na gaiola e começa a cantar.

Na linha

Infeliz é o amor regido pela razão, pelos bons costumes e pelas normas sociais.

Alter

Sou outro agora. Morreu
Aquele que te incensava,
Que por ti se ajoelhava
E que eu pensava ser eu.

Tudo certo

Aquilo que houve e não houve,
Que fez sorrir ou doeu,
Aquilo que certo deu,
E o que não, tudo me aprouve.

sábado, 29 de outubro de 2011

Juntos

Teus lábios não gostam quando são chamados a falar. Precisam abrir-se para pronunciar as palavras e às vezes até parecem ásperos ao dizê-las. Mas logo voltam a sorrir, quando, já desobrigados de falar e de novo em comissura, se provam um ao outro, fruindo um sabor que quaisquer outros lábios gostariam de experimentar.

Tribunal

Dos erros que cometemos
Deixando o amor definhar
Jamais nos absolveremos,
Paase o tempo que passar.

Conduta

Não abrirei mais a porta,
Não falarei com ninguém.
Que posso dizer a alguém?
Que minha vida está morta?

Ninguém

Ninguém te dará ou deu
Amor igual ao que sinto.
Quem te garante sou eu,
E Deus me mate se eu minto.

Perda

Sem você eu bem sei que
A vida é causa perdida,
Porque só pode haver vida
Se vivida com você.

Condecoração

O último corpo encontrado, um dia depois do combate, foi o de um soldado muito moço cuja beleza a morte ainda não conseguira alterar. Quem primeiro o viu foi uma jovem camponesa que, colhendo uma flor silvestre, a colocou sobre o peito dele, condecorando-o.

Quem

Quem há de se queixar
amor
de tuas garras
quem há de lastimar
por mais que firas
a sanha com que agarras
a fúria com que te atiras
e destroças o coração?
tu? você? vós?
eu não

Vae victis

Piedade para os vencidos,
Os que por amor tombaram,
E asco para os precavidos
Que de lutar se isentaram.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Heptassílabo

Se pode um beijo matar,
E é da morte que eu preciso,
Por que hás de o beijo não dar
E negar-me o paraíso?

Final

Depois que o amor perde o viço
E não é mais que uma história
Guardada em frágil memória,
Que a morte acabe o serviço.

Dedos

Quando vou te mandar alguma coisa, sempre perco a paciência com meus dedos. Todos querem participar, e cada um acaba atrapalhando todos os outros. Preparado o pacote, quando vou levá-lo ao correio preciso ficar atento, para que nenhum deles, sorrateiramente, dê um jeito de na última hora se enfiar dentro dele.

Um minuto

Às vezes, sinto tamanha bem-aventurança que imagino estar morto. Dura um minuto, isso. Depois, ouço a gargalhada sarcástica da vida, velha megera.

Porto

És tu meu rumo e meu porto,
É por ti que eu sigo adiante,
Mas estás muito distante
E eu cada dia mais morto.

Mestre

Dizer que Dostoiévski me ensinou a escrever seria ótimo para a minha biografia, se eu tivesse aprendido.

O que dirás

E o que dirás, agora que ele voltou? Que não o esperavas, que jamais acreditaste que ele cumpriria a promessa? Contarás que, enquanto ele lutava para trazer o que te trouxe, brincavas toda noite de marido e mulher com o rapazinho do supermercado? Conseguirás ocultar teu ventre, onde já se move o fruto de tuas brincadeiras?

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Encontro

Foi em um dia como este,
Tão igual aos outros, um
Dia tão normal e comum,
Que logo tu o esqueceste.

Que...

Sejamos todos louvados,
Cantados e enaltecidos,
Rapidamente esquecidos,
E mortos e sepultados.

Ardil

Se puderes escrever no escuro, escreve. As palavras hão de nascer joviais e límpidas de tuas mãos, como se tivesses oito anos e estivesses escrevendo pela primeira vez. Que elas não se constranjam ao ver teus dedos maltratados pelo tempo e não se mostrem afáveis apenas por piedade ou misericórdia.

A fala

Espera que a Morte, na hora de levá-lo, lhe conceda um instante para ele dizer, com pompa shakespeariana, o que ultimamente vem ensaiando: "Bem-vinda, ó, bem-vinda, piedoso instrumento de minha redenção."

O vermelhinho

Na quinta tentativa, a menina teve a sorte de colher na peneira três peixinhos, uma lasca de lua e uma estrela bem pequena. Dois dos peixes eram feiosos e ela os jogou de volta ao riacho, junto com a lasca de lua e a estrela, para as quais não viu serventia. O outro peixe, de um vermelho vivo e alegre, ela levou para casa e, improvisando um aquário, colocou-o lá. Infelizmente, ele viveu só dois dias.

Tela

Há, na cerrada mata dessa tela, bem escondida no centro, uma fera ainda jovem e tão pequena que ainda não se vê, mas que daqui a seis meses, numa noite sem lua, entrará na casa do sítio, agora ensolarada pelo meio-dia, e devorará o bebê que a mulher amamenta diante da janela aberta.

Ciranda

Estamos todos sorrindo,
Estamos todos vivendo,
Estamos todos fingindo,
Estamos todos morrendo.

Milagre

Tão belo é o milagre das águas: ver como, quando teus olhos chovem, teus cílios se curvam para te beber as lágrimas.

Amanhã

Um dia essa mesma voz
Que agora amor vos declara
Vai vos dizer em voz clara
Como desdenha de vós.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Último andar

Ninguém mais rirá de ti
Quando subires bem alto
E escarnecendo do asfalto
Te arremessares dali.

Mamã

Esquecer todas as palavras, receber essa bênção, e reaprendê-las assim como faz um bebê quando começa a conhecer as coisas: apalpando-as, mordendo-as, cheirando-as, fazendo-as rolar, lambendo-as, chamando-as todas de mamã, quando sozinhas, ou de mãmãmãmã quando agrupadas.

Reflexão

Morrer talvez não seja ruim. Jamais vi um morto se queixando. Já os vivos...

Balzac

Balzac dizia que a felicidade, numa história, não merece mais do que um parágrafo, o último, aquele no qual, sem detalhes, se conta que todos viveram bem para sempre. A felicidade é monótona, cansativa, tediosa: mel escorrendo sobre mel, todo dia, toda noite, sempre, como um suplício chinês.

Para Camille Claudel

No sanatório trancado,
Morto de fome e de sede,
Como um jaguar enjaulado
O amor arranha a parede.

Rei

Os que vão morrer te saúdam, imortal e majestoso sol que nos vens saudando desde o nosso primeiro dia e nos saudarás ainda até o último deles, acompanhando o carro preto em que iremos para a definitiva treva.

No dia

Com a mão sutil com que feres
Sem um vestígio deixar,
Tu podes bem me matar.
Que pena que tu não queres.

Aquela

Faz dois minutos, já, que ela fala do tempo em que morava com a família e era feliz. Daqui a um minuto, ele sabe, ela fará uma pausa meio longa e triste, antes de perguntar como ele podia ter feito aquilo, três meses antes, bem no aniversário de casamento deles. Como ele tinha tido coragem de, no meio da festa, se esquivar e ir para o quintal escuro com aquela mulher. Então, chorando, ela gritará, como há três meses vem fazendo: "Com aquela mulher, aquela porca da minha irmã. Ela quer dormir com todo mundo. Até comigo ela tentou. Duas vezes, duas!"

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Major Quedinho, 28

Se fantasma eu for, hei de vagar ali pela Major Quedinho, como se estivesse na década de 1960, procurando o letreiro luminoso do jornal, com as notícias da AFP, UPI e Reuters, o mural de Di Cavalcanti, o relógio lá em cima, o cheiro de papel e tinta, e meu coração baterá ao ritmo selvagem das rotativas acionadas para o segundo clichê, anunciando que algo, de um minuto para outro, havia mudado no mundo.

Mesmice

Na primeira noite em que no seu quintal caiu uma chuva de estrelas, ele ficou surpreso. Na segunda, achou-se um predestinado. A partir da terceira, incomodou-se e começou a pensar em mudar-se.

Caminho

Meu rumo agora é seguro.
Não tenho mais prepotência,
Procuro a derrota, o escuro,
A doce paz da inconsciência.

Zelo

Não me percas de vista, eu te peço. Sou tolo, boboca, me engano facilmente e, se me deixares um momento sozinho, posso caminhar para o rumo errado, posso ser engolido pela noite e ir para um lugar tão deserto e longínquo que gritar por ti será tão inútil quanto querer acordar a mais distante das estrelas.

Churrasco

Vejam como todo ele come: com a mão, com a boca, com os olhos esfomeados. Baba de gozo e, entre um pedaço grande e outro maior, seus lábios salivam, como um lobo diante de um bezerro. O que ele agora tritura e engole podia ser visto há alguns dias num pasto verde, ao sol, lançando ao vento seu mugido de louvor à primavera.

História

O amor reinou seu reinado.
Depois a desgraça veio
E, com o amor arruinado,
Morrer é o único anseio.

Paisagem

Agora, quando cochila, sempre vê um veleiro pulando ondas mansas sob o olhar alegre do sol e dos banhistas. No melhor do sonho, porém, alguma enfermeira o acorda para lhe dar uma injeção e um comprimido. Ele resmunga, estende o braço e abre a boca, mas, assim que pode, volta a mergulhar na paisagem marinha. Um dia, quando vierem acordá-lo, não saberão se ele é o veleiro ou se é quem o faz flutuar sobre as ondas, se ele é as ondas ou alguma das gaivotas que voam para o horizonte e logo não poderão mais ser vistas por ninguém.

O terceiro

A menina gosta do atual padrasto, o terceiro, mais que dos anteriores. Ele diz que ela já parece uma mulher, com seus oito anos, e está fazendo desaparecer, com massagens, a pequena cicatriz que ela tem na coxa esquerda.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Números

Borges dizia ser dois: o homem e o poeta. Eu sou meio: meio homem, meio escrevinhador, meio tudo, meio meio, meio nada.

Ele

Quem te ama não sou eu. Não
Sou digno de amar-te. Quem
Te escreve poemas é alguém
Que criei com minha ficção.

Metamorfose

Em pedra todas as flores
Foram metamorfoseadas
E ásperas são, e incolores
Todas, todas empedradas.

Cofre

Os beijos que não te dei
Morreram murchos, gorados,
E na memória guardados
Perguntam por que os guardei.

Promoção

Se o subchefe de compras Dílson Borges ouvisse a sirene com que o carro funerário vai abrindo passagem no caminho para o cemitério, certamente lhe agradaria ver que lhe é prestada essa honraria, a ele que por dez anos esperou inutilmente ser promovido a chefe.

domingo, 23 de outubro de 2011

Vinte e quatro horas

Me amaste. Foi só um dia,
Um giro, uma rotação,
Tão curto, tão pouco, tão
Bem mais do que eu merecia.

Passo atrás

Ela o beijou e, enquanto durou o beijo, ele quase chegou a achar bela a vida. Depois ela disse "não se acostume, viu?", e ele voltou a vestir o pesado casaco do seu ceticismo.

Foto

Às vezes ainda beija os olhos, os cabelos, o rosto, mas já não tanto quanto antes. Dezoito anos sem notícia começam a fazê-lo suspeitar de que não era tão eterno o amor jurado no verso da foto, com a letra miúda que o tempo e o manuseio vão esgarçando.

Alguém lá fora

Todo dia o Amor toca a campainha: quem sabe hoje. Aperta o botão e compõe-se, quase se empertiga. Que lá dentro não pensem que ele está ali para uma missão prosaica, como distribuir folhetos de pizzaria ou religião, ou vender algo. O que o move são dois olhos verdíssimos que o enfeitiçaram há tanto tempo e o fazem voltar, manhã a manhã, e tocar a campainha, e esperar. Quem sabe hoje. Vê, como sempre, o movimento furtivo na fresta da persiana, o coração sobe-lhe à garganta e depois, aos poucos, se aquieta, desgostoso. Mais uma vez os olhos verdes o fitaram e não o julgaram digno. Talvez, se ele tivesse na mão algo atraente, uma cartela de agulhas e linhas coloridas, um produto de limpeza, um sabão azul...

Vingança

Ódio não é a palavra. É pouco. Não há como exprimir o que sente. A palavra precisaria ser concreta, cortante, feita de vidro moído, veneno e arame farpado. Às vezes, gostaria de não ter uma das pernas, de preferência a direita, sua melhor, para, no dia em que se vingar daquele homem, poder espancá-lo com a muleta, bastante, mas deixando-o vivo e com marcas, muitas, para que todos apontem o amaldiçoado, o asqueroso que se atreveu a bolinar sua amada e digam: "Olha lá, ó, foi aquele ali que apanhou do aleijado."

Um lugar

Hás de reservar em tua casa um lugar para a tristeza, o melhor que tiveres, de onde possas vê-la sempre e reverenciá-la. As alegrias são como as notas de uma festa distante, que o vento traz, ou a fumaça de um churrasco longínquo. Flutuam pela sala, por um instante, e se vão. A tristeza, não. Ela te é fiel, te acompanhou, te acompanha e até no último dos teus dias te acompanhará, talvez não do lugar que lhe destinares, mas nos olhos dos que te querem bem.

sábado, 22 de outubro de 2011

Mais nada

Já não te importas comigo.
Não queres saber mais nada,
Que rumo sigo ou não sigo,
Qual é a minha jornada.

She

E subitamente ecoou
Enquanto eu pensava em ti
Um som que o vento soprou:
Aznavour cantando She.

Desperdício

E quando os frutos pedidos
Jazerem todos tombados,
Tu e eu seremos punidos,
Tu e eu seremos culpados.

Duelos

Dói-me o corpo. Se tivesse se realizado um dos meus sonhos de menino, seriam dores provocadas por duelos contra piratas, em conveses varridos pelo vento tropical e pela fúria das ondas. A juventude me iludiu, e agora, com o gelo do inverno nas veias, descubro que também a senectude me engana. A sabedoria que ela me prometeu tem tardado tanto que receio fazer minha última viagem sem ela.

Sina

Terás como doce sina
Jamais mudares em mim.
Te verei sempre menina
Hoje, depois, até o fim.

Os últimos

Os prováveis herdeiros olham para o morto com simpatia, como olhavam enquanto ele estava vivo. O testamento será aberto amanhã, ninguém sabe o que está escrito nele, mas alguns sorrisos a mais, os últimos, não lhes custarão mais do que custaram os outros.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Ninando Nina

Serás princesa, terás
O teu castelo dourado,
Teu príncipe muito amado,
E, sabes?, não morrerás.

Saudade

Nas noites longas, vazias,
Nas frígidas madrugadas,
Nos lembraremos dos dias,
Do sol, de nossas mãos dadas.

Pipocas

Prefiro que não sorrias para mim. Vi uma vez um menino sentado na calçada com a mãe, os dois pedindo esmola. Passou uma mulher com uma menina que tinha na mão um saquinho de pipoca. A mulher deu uma moeda à mãe do menino, enquanto este olhava para as pipocas da menina, que percebeu o olhar mas, sorrindo, foi andando, segurando bem as pipocas, para que nenhuma escapasse. Ao virar a esquina ainda sorria, como se fosse uma pequena princesa já se exercitando para o tempo em que, rainha, precisaria castigar os súditos.

Um café

De um colégio vinha uma música cantada por um coro juvenil, um desses hinos que já com seis anos conhecemos. Não lembro qual era, que armas ou heróis suas estrofes celebravam. Estava atento aos teus lábios, esperando que respondesses se tinhas tempo para um café.

Presente

Não me perguntes como consegui. É uma dessas coisas que só o amor às vezes explica. Enfiei-me numa caixa singelamente pequena, pus-me na mão do carteiro e, com o coração batendo como só o de certos pacotes bate, espero o momento em que ele tocará tua campainha.

Intérprete

Se não foi o amor que te emprestou a voz, por que em todas as sílabas que dizes reconheço as incitações dele e meu corpo fraqueja como um veleiro tocado mansamente pelo vento do verão?

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Embriaguez

Haveria de ser um beijo que recebesses nos lábios e transmitisse instantaneamente ao teu corpo uma embriaguez daquelas que, quando acordamos, não nos permitem lembrar se andamos pelos caminhos usuais ou pelas sinuosas trilhas de Satã.

Escolha

Entre a pedra e a rosa, a escolha é óbvia. Qual delas se presta melhor a ser endereçada a ti e beijada por mim antes de ser posta no envelope?

Tão pouco

Dizer que te amo é tão pouco,
Tão essas frases banais,
Que grito então, louco, rouco,
Que te amo muito, demais.

Artista

Dizes que tua beleza é algo que criei, algo que está mais em minha imaginação do que em tua essência. Que prodigioso artista eu seria, se isso fosse verdade.

Tuas mãos

Tenho medo de tuas mãos de artista. Tantos mundos elas constroem, que nada lhes custaria apanhar-me e colocar-me numa rua qualquer de um país desconhecido, na qual eu em vão ficasse clamando por esta São Paulo e por ti, debaixo das gargalhadas dos outros homens que pusesses na tela e sob a impiedosa mira dos pombos solidariamente galhofeiros.

Olhos

Não sei e talvez nunca venha a saber se teus olhos são verdes ou azuis. Não tenho coragem de fitá-los por mais de um instante. A que mastro me atarei depois, para não me afogar na marinha beleza deles?

Ambos

Ora o direito, ora o esquerdo, teus pés empenham-se em estar à frente quando sais da galeria para o sol da Paulista. Esperam ser notados, como se pudessem rivalizar com teus cabelos, teus olhos, teu rosto, e esforçam-se para fazer soar teus sapatos na calçada, para se anunciarem e anunciar-te.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A primeira

A primeira tristeza grande que ela recorda é de um dia no qual devia ter dois ou três anos. Estava andando com o pai quando viu o gato na calçada. Soltou-se da mão do pai e abaixou-se para pegar o gato. Seus dedos ficaram molhados de urina e sangue. O pai a puxou, ríspido. "Deixa, pai, deixa, eu quero o gato." Ele torceu seu braço: "Ele está morto, você não viu?", gritou o pai e, com nojo e raiva, chutou para longe o corpo, que deu ainda um miado.

Itinerário

Não te preocupes com o norte.
Teu rumo está definido,
Teu fim está decidido,
Teu endereço é a morte.

Gatuno

Às vezes o sol, insatisfeito com o próprio brilho, desce para furtar um punhado de ouro dos teus cabelos.

Escaramuças

O amor, como um velho homem do mar, conta suas histórias na taverna. O rum é farto, a memória é enevoada e as façanhas são inacreditáveis como aventuras de piratas. Só ele, ao narrar, ouve o tumulto no convés e o clamor das espadas.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Algo

Tivemos algo tão lindo,
Tão inconcebivelmente
Precioso, tão forte e ardente,
Tão efêmero, ah, tão findo.

You must remember this

Tu te recordas, diz,
De minha indecisão,
Se te beijava ou não?
A kiss a still a kiss.

Perversão

As palavras me foram dadas puras, mas eu fui me esmerando em tocá-las com malícia, em descobrir seus orifícios, suas reentrâncias, em pervertê-las, como um domador ensinando ao leão a arte da covardia ou um dono de circo apalpando a jovem trapezista, sob o pretexto de ajeitar as lantejoulas do seu maiô.

Cartilha

Quem me dera ver de novo Ivo, a ave, a uva, o vovô, reencontrar as palavras como elas eram, frescas como água de cachoeira, antes de eu começar a deturpá-las com minha tola pretensão de escritor.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Love

Morrendo vai
Te dói me rói
Te rói me dói
As time goes by

Nota de falecimento

Morreu ontem, aos setenta e dois anos. Desde os sessenta lutava bravamente contra a vida.

Resignação

Nos últimos tempos, aprendeu a arte da resignação. Resignou-se ao que a vida lhe dá, ao que a vida lhe nega e, mais do que tudo, resignou-se a esperar a morte, sem aflição e sem ansiedade.

Tempero

"O conhecido paradoxo pornográfico: era preciso ter a inocência em alta conta para saborear a sua violação."

(Philip Roth, Lição de Anatomia, tradução de Lya Luft, publicado pela L&PM.)

Reprovado

Por que ainda vivo não sei,
É hora de partir. Vivi
Demais, mas não aprendi,
E jamais aprenderei.

Sessenta

Está sozinho, mas ainda não completamente desesperado. Usará os sessenta comprimidos apenas em último caso, mas apalpa as três cartelas quase com carinho. Podem ser a última lembrança que seus dedos levarão - talvez depois de amanhã, talvez amanhã, talvez daqui a cinco minutos.

Tanto melhor quanto pior for

Os encontros de amor hão de servir para promover desencontros. Os abraços, os beijos, os diálogos, tudo há de ser motivo para desentendimentos que hão de ser ásperos e duradouros, ensejando reconciliações memoráveis que hão de dar origem a novos encontros e a desencontros cada vez mais exacerbados e longos. Um amor digno do nome há de ser feito de pouquíssimos encontros, apenas os necessários para provocar o maior número possível de desencontros.

A última viagem

Sua matemática é simples agora: um passo, um gemido. O médico lhe recomendou que não deixe de dar a caminhada diária, e toda manhã ele geme vinte passos até a esquina, mais os vinte da volta. Consola-se ao pensar que na última viagem, a mais longa, irá de carro, anunciado por uma sirene.

domingo, 16 de outubro de 2011

Oblívio

Uma vida longa serve apenas para confirmar e consolidar nossos fracassos. Uma vida ainda mais longa só é desejável se, como a morte, nos trouxer o pleno esquecimento.

Unhappy end

Não há nada mais desalentador nem decepcionante do que um amor que dá certo. Se o amor tiver um final, que seja um final infeliz. Do grande amor não se devem esperar senão lágrimas, danação e tormento. Em qualquer outro caso, a palavra a ser usada não será amor, mas outra, prosaica, chocha, quase chula, obscena, como acordo, ajuste, conveniência ou pacto.

Opção

Além de não ser a solução, dormir tem um inconveniente: sempre acordamos. Morrer costuma funcionar um pouco melhor.

Heróis

Os que morreram
defendendo a bandeira do amor
estão estendidos
no campo
como os outros
com o corpo encharcado pela chuva
e nos olhos o estupor
mas é fácil reconhecê-los

Em torno dos outros
há só uma relva daninha
uma terra mesquinha e crestada
mais nada

Em torno deles
dos que morreram por amor
há um viço
um verdor de grama
e ao alcance das mãos
uma flor
ao menos uma
que os dedos esticados
quando não se sentem observados
tentam apanhar
(singela honraria
meritória medalha para quem
por amor combateu
e perdeu a batalha).

sábado, 15 de outubro de 2011

Alguns

Alguns acreditam em Deus, alguns acreditam no amor, alguns acreditam em Deus e no amor. Eu os invejo, com uma inveja próxima do despeito e do rancor.

Ira

Negou o amor, execrou-o,
Lançou-lhe pechas, maldisse
Tudo que de bom lhe disse
E sem remorso enterrou-o.

No banho

Quando tuas mãos, no banho, se demoram um pouco mais nos cabelos, teu corpo se enciúma, anseia por teus dedos mais macios agora e em cada centímetro teu palpita um frêmito morno, uma urgência tépida que a espuma, borbulhando, excita e exaspera.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Ou tudo

Quem sabe só um abraço
E um beijo leve, sem chama,
Ou tudo: o sexo, o cansaço,
O desvario na cama.

Heresia

Com quinze anos, eu já poderia ser apontado como responsável ao menos por uma heresia: entre Machado de Assis e José de Alencar, preferia o autor de Iracema. Até conhecer Capitu.

Estávamos

Estávamos vivos
mas não vivíamos
só nos lamentávamos
e do fruto
não queríamos usufruto
e desprezávamos a alegria
e cultivávamos o luto
e felicidade para nós
era uma forma
de patifaria

Estávamos mortos
ah já estávamos
mas não sabíamos

De ouro

Cabelos de ouro, que minhas
Mãos certo dia afagaram,
Que ardis, que tramas daninhas
Dos olhos meus vos furtaram?

Diário

De manhã, escrevo para ti. À tarde, à noite e de madrugada, faço coisas sem a menor importância.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Acróstico

No dia do julgamento, que surjam todas as provas do que fiz por amor, menos aquele acróstico que escrevi com quinze anos. Tudo, tudo menos aquele acróstico. Um acróstico não é um gênero poético, é uma atrocidade.

O assunto

Agrada-me falar dos teus cabelos, do ouro que neles se entranha. Mesmo à noite, quando dormes, ele crepita com suas fagulhas e fervilha com seu fogo, antecipador do dia. Às vezes, finjo não ter assunto, para falar outra vez deles: dos teus cabelos dourados.

Última chance

Antes que eu me vá, meu Deus, que possas me ditar cinco ou dez linhas que um filho meu um dia mostre sem constrangimento e diga: "Meu pai foi escritor, sabem?"

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Mar

Ó, mar imenso, profundo,
Ó, mar querido, me acolhe,
Em tuas ondas me colhe,
Me leva bem para o fundo.

Tratamento

Havia seis meses que se submetia ao tratamento de desintoxicação amorosa e poderia dizer-se curado se durante o dia, em voz baixa, e à noite, aos gritos, não chamasse com os lábios incendiados de febre o nome de uma mulher - Margot, Margot, Margot - que fazia oito anos tinha visto uma vez (segundo ele) e nenhuma (segundo a família).

Arrufos

Um dia não vens, estavas
Com febre, com faringite.
No outro, de gripe choravas.
E queres que eu acredite.

Essência

Não somos mais do que espuma,
Um fiapo de onda esgarçada,
Um pouco de sal, um nada,
Chegando a praia nenhuma.

És pó, Homem, e serias um pó igual a qualquer outro, frágil, efêmero e indistinguível, se não fosse a peculiaridade de às vezes te chamares Shakespeare, Dante ou Beethoven e levares à tentação, que todos os outros têm, que todos os demais temos, de fazer com que toda uma miserável espécie seja definida com base em uma dezena de exceções.

Mesmo

Mesmo com o que padeci,
A rejeição, a tortura,
Que eu tenha sempre a ventura
De recordar-me de ti.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Tresvarios

Mergulhar em ti, como se no mar fosse, afundar três vezes, três vezes voltar à superfície e olhar para o céu. Sentir, como a mais óbvia das confirmações, que capitular é sempre melhor do que resistir, e, com o cérebro já desobrigado de ordenar as palavras, afundar definilentativadocemente.

Só isso

De tanto amor, quem diria
Que fosse apenas sobrar
Um beijo dado por dar
E uma despedida fria.

Fetiche

Visualmente, o brinco não mexeu com ele. Porém quando, com as mãos nos cabelos dela, foi beijar-lhe a orelha e o teve no caminho, mordeu-o como o morderia um gatinho recém-nascido, devagar, de leve, sentindo que nascia ali um fetiche do qual jamais se livraria.

Previsão

Se um dia eu me dedicar à onfalomancia, podes estar certa de que não a praticarei com nenhum umbigo a não ser o teu.

Eu mesmo

Sou eu, sim, o velho que, obstinando-se em parecer jovem, não fala senão de amor. Querem uma foto para o álbum de aberrações? Entrem e venham até a sala. Dedilharei minha lira, para que nenhuma dúvida fique sobre a minha abençoada loucura. Nunca tinham visto uma lira? Bom, vou começar. Podem tirar a foto agora.

Recado

Quando a Morte vier me buscar, façam o favor de lhe dizer que o Amor chegou primeiro e me matou.

Sáfaro

Devias ter visto, já,
Pois tanto tempo passou,
Que o amor, se ainda não vingou,
Já nunca mais vingará.

Perene

Houve uma tarde, um parque, uma árvore, um fruto. Foi ontem, anteontem, outrora. Talvez venha a haver outra tarde, outro parque, outra árvore. Outro fruto não quero. Aquele que não foi e jamais será colhido, aquele que o tempo comeu, ou que o vento levou, aquele único e inimitável fruto vive esplêndido em minha memória, que todo dia lhe acrescenta um tom de ouro, um toque de seda, um aroma cálido de mel e uma dessas perenidades que só os frutos não colhidos podem ter.

O de sempre

O amor é assim, não sabias?
Com tua veia rasgada,
As dores e as agonias,
Ganhaste o que dele? Nada.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Bombaim

Sonhou ir a Bombaim,
Por birra agora não vai:
Quem ousou mudar assim
Seu nome para Mumbai?

Antiodisseia

Ouvindo a voz das sereias,
Eu, para me acautelar,
Sem um segundo hesitar
Ao pé do mastro amarrei-as.

Afasia

Quem ouvirá os teus ais
Se além dos dias risonhos
O amor castrou os teus sonhos
E as tuas cordas vocais?

Receita

Fechar os olhos, fechá-los
Bem fechados, isto, assim,
Bem cerrados, e deixá-los
Assim, isto, até o fim.

Em vão

Insistes, inutilmente.
Jamais tu desistirás?
Tu sabes: essa semente
Que plantas não colherás.

Abanando o rabo

O sol insistirá ainda por algum tempo. Tão tolo é o sol, tão criança. Achará que é minha antiga má vontade com ele. Depois de alguns dias, talvez uma semana, desistirá de rondar minha janela fechada e irá para o parquinho próximo. Mas bastará o novo morador da casa abrir a janela na primeira manhã, que ele voltará com suas festinhas e agrados. Parece um cachorrinho, o tonto. Quando vier, felizmente eu estarei livre dele, para sempre.

Segredos

Já deves ter percebido que às vezes sou falso. Por exemplo, quando escrevo, como agora, que teus cabelos são tão dourados quanto o sol, bem sentes que eu, se não minto, exagero. Mas, por favor, não digas nada ao sol. Que seja um segredo teu e meu, que ele jamais desconfie de nada e continue se achando digno da comparação. Não contes nada ao mar, tampouco. Que ele pense ter a cor dos teus olhos e acredite nisso por toda a eternidade.

domingo, 9 de outubro de 2011

Os que

Os que morreram de amor
não dormem nunca
vagam à noite
embuçados
e desconsolados buscam
com obstinação
os olhos pelos quais
sofreram
os lábios pelos quais
morreram

e em todos os rostos olhados
pensam ver o rosto amado
e por esse encontro
sempre adiado
até o fim dos séculos
vagarão e buscarão

Os que morreram de amor
não morrem nunca
e jamais descansarão.

Destino

O recusado e o fruído,
O oferecido e o negado,
O concluído e o gorado,
Tudo será só olvido.

Nem assim

Jamais - nem mesmo em legítima defesa - te direi adeus.

sábado, 8 de outubro de 2011

WA-NY

Se Woody Allen nunca tivesse estado em Nova York, não seria Woody Allen - e Nova York não seria o que é.

Como

Como cartas de amor
esfarelando-se na gaveta
ao lado de recortes de jornais
da década de 50 ou 60

como esses rabiscos memoráveis
agora indecifráveis
com suas carcomidas vogais
entre as notícias
do homem na Lua
e outras façanhas espaciais

como esses ás devorados
como esses emes carcomidos
como esses ós destruídos
como esses erres vilipendiados
querendo ainda juntar-se
e significar amor

também os beijos não dados
murcharam em mim
mas às vezes alvoroçam ainda
meus lábios
quando a boca pronuncia
certas palavras ou
frases de poesias

e preparam-se
como se prepararam
tantas décadas atrás
quando era ainda
uma criança o amor
e neles havia esperança
e era mel ainda seu amargor.

Épocas

Eu fui aquele adolescente tolo que só na poesia encontrava significado para o mundo. Faltava-me a técnica, mas a minha voz berrava como a de um bezerro. O tempo correu. Sou hoje um velho escrevendo versos no sofá, como poderia estar resolvendo palavras cruzadas numa colônia de férias para aposentados. Não aprendi a técnica e minha voz hoje é o zumbido de um besouro apanhado numa teia de aranha.

Morte ideal

Sou um homem simples, inculto, sujeito a emoções corriqueiras. Para me fazer chorar, não se requerem sonatas nem sinfonias. Cielito lindo e Estrellita, se tocadas em sequência, e se nelas houver um violino mal-intencionado, são capazes de me exaurir até a última lágrima. E, se depois alguém clicar no youtube Robert de Niro e Elizabeth McGovern dançando Amapola em Era uma vez na América, vejam bem quem clica e guardem seu santo nome. Seu dedo indicador me dará o mais belo de todos os fins: a morte causada pela beleza.

Fantasia

Eu precisaria tanto de ti e isso seria tão evidente, que bastaria um dos meus olhares de órfão do amor, não mais, para que me desses a mão e me levasses contigo antes que o sol, apagando-se, me tornasse apenas mais um dos objetos da noite.

Queixas de um cão

Me puxas forte pela coleira, ralhas comigo, me dizes palavras duras. Contas às pessoas, no caminho, como sou mau. Me arrastas sempre que me aproximo de um poste, me lembras que tenho um quintal enorme só para mim e me advertes de que não devo ser um cachorro rueiro. Mas há sempre um momento em que consigo parar, apesar de tudo, levantar a pata e amarelar a calçada, para receber teus tapas - leves na rua, porque não gostas de escândalo, mas plenos de ira quando chegamos em casa. Eu te amo, patroa, quando me sacodes, me bates e depois me ofereces a tigela de leite.

O presente

Gostaria de ser o mais carinhoso presente dado a ela pelo mais amado dos seus amantes, morto há dois anos numa ilha de nome estranho, no Pacífico. Gostaria que, à noite, ela o apanhasse, se deitasse com ele e o enchesse de beijos, lembrando-se de como o amado a beijava. Gostaria de ser esse presente, o gato deixado com ela pelo amado uma semana antes de seu avião ser destroçado por uma tempestade sobre a ilha cujo nome exótico soa ainda, para ela, como uma das tantas identidades do Destino. Gostaria de saber beijá-la como um homem, como aquele homem.

Reconciliação

Quando nos juntarmos a eles, contaremos aos nossos mortos que, apesar de todas as suas recomendações, avisos e advertências, fomos vitimados, assim como eles, pelas falsas esperanças e pelos infortúnios do amor. Eles nos censurarão novamente, lembrando com quanta insistência falaram sobre as falsas esperanças, porém nada nos dirão sobre os infortúnios do amor. Sorrirão para nós, talvez até pisquem um olho cúmplice, e estaremos finalmente reconciliados.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Pequenos pecados

Vive sozinho, mas certos hábitos persistem, e ele não consegue libertar-se. De dia, por exemplo, se dorme, dorme sentado, no sofá, como se alguém pudesse entrar repentinamente na casa, ir ao quarto e censurá-lo por submeter a cama de casal a uma atividade indigna como sempre é uma soneca diurna.

Dalton, e quem mais?

A literatura brasileira tem sido afetada por um curioso fenômeno: nossos escritores cansaram-se de escrever e andam tentando o sucesso em outras áreas: um, que deu as cartas na segunda metade do século passado, dedica-se há algum tempo à copromancia; outro, campeão de vendas, não parecendo satisfeito com essa, enveredou por outras magias. E os jovens, em busca do diálogo real, da fotografia perfeita do dia a dia, cultivam a coprolalia. "Vai te foder, puto" e "Escroto do cacete" pularam das ruas diretamente para os contos e romances. Alguns poetas redescobriram Casimiro de Abreu e, rimando amor com dor, vão(re)construindo um artesanato que, se não deve ser considerado superior ao tricô, já pode ao menos ser comparado a ele. Seus opositores, por seu lado, empenham-se em tornar tão obscuros seus poemas que se lamenta, a todo instante, a falta que faz Champollion. Nesse cenário, falar em Dalton Trevisan é uma covardia cometida contra todos esses batalhadores da arte literária. Podia-se citar Dalton como escritor quando havia outros: Guimarães Rosa, Drummond, Vinicius, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos. Apresentá-lo hoje como escritor leva à pergunta: e esses outros, são o quê? Para evitar o mal-estar que seu nome provoca - por ele insistir em fazer obras de arte há cinquenta anos -, bem que poderiam considerá-lo apátrida, assim como tantas vezes se disse que a Machado de Assis calharia bem melhor a cidadania francesa ou inglesa.

Rapina

Por um segundo o peixe rebrilhou - prata contra o céu azul. Depois, ali onde ele estivera, só a gaivota, soltando seu grito triunfal sobre as ondas.

Fernando

Que bagaceira tomavas, Fernando, que uísque bebias, que te tornava tão tantos, tão múltiplos, tão formidáveis, tão inumeravelmente pessoas?

A hora de dizer

Aceita-me agora, Amor, enquanto as noites de inverno são apenas um mau prenúncio, e permite que eu diga teu nome, antes que a memória perca tuas sílabas sagradas e elas se tornem só um rumor indistinguível, uma bolha de amarga saliva borbulhando nos lábios.

Cotação

Não sei se um beijo qualquer vale toda a filosofia de Kant. Mas um beijo de amor certamente vale.

O canto

Dois dias depois de o passarinho ser engolido pela água, ressoou ainda, naquele trecho do rio, um canto feito de gorjeios aflitos. Depois, os amigos do morto desistiram de chamá-lo e retomaram seu caminho rumo ao sul.

Permanência

Palavras não envelhecem,
Palavras vivem, procriam,
Quando delas não se esquecem
Aqueles que as pronunciam.

Harém

Do fogo não restaram nem faíscas.
No corpo e na alma é tudo já outono.
No entanto ainda, quando aflora o sono,
Os eunucos lhe trazem odaliscas.

Delicadeza

Não me pergunte se estou bem. O carrasco, antes de acionar a guilhotina, perguntava ao sentenciado se desejava algo para se sentir mais confortável?

Pedras

As palavras que dediquei a ti, o tempo as transformou em pedras - e elas estão ali, onde estiveste. Eram rosas, nuvens claras, pássaros e - tolas - esperam por ti. Faz tanto tempo, ah, tanto, que, sem olhar para trás, tu as deixaste lá, petrificadas e mudas, e seguiste outra trilha, que te prometia outras rosas, outras nuvens, outros pássaros...

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Razão de ser

Que seria de minha tristeza sem o amor? Quem, senão ele, para despertá-la, feri-la, supliciá-la, espicaçá-la, justificá-la?

Memória

Talvez te lembres da mão
Que naquele dia, trêmula,
Te entregou aquele poema.
Eu lembro. Tu, talvez não.

Pincelada

Se um dia te lembrares de mim, põe-me numa tela tua. Posso ser um graveto, um torrão, um milímetro de grama, um traço qualquer na paisagem. Não te peço ser nuvem, nem mesmo um fiapo dela, ou um pássaro no azul-claro do céu. Não me amas tanto assim.

Turbilhão

As horas, como ilusão,
Os dias, como fumaça,
Os meses, como ficção,
A vida, o amor, tudo passa.

Escolha

Morrer é tão venturoso,
Tão fácil de acontecer,
Por que insistir no penoso
Afâ de sobreviver?

Banhista

Ah, se eu houvesse desobedecido à minha mãe, entrado no rio e, como meu amigo, me afogado cem metros adiante, naquele domingo de sol. Teria sido belo morrer aos quinze anos, com meu rosto honesto, meus cabelos louros, minha alma pura e meus sonhos ainda não despedaçados.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Recompensa

Sofreu três dias, três noites.
No quarto, a bem-adorada
Lhe deu a paga adequada
Pelo tormento e os tresnoites.

O sofá no divã

O psiquiatra dela é bem-humorado. Na primeira sessão, ela lhe contou que depois de se separar do marido se sentia muito só, a ponto de, à noite, ficar conversando com o sofá. O psiquiatra lhe disse que aquilo, em si, não era um problema. Problema haveria se o sofá começasse a responder, ele brincou. Hoje ela vai contar a ele que a situação piorou: arranjou um gatinho, há uma semana, e o sofá agora só conversa com o gato.

Ciúme

Olho teus dedos, um por um, todos, os dez. Minhas mãos os conhecem, e meu rosto. Mas a garganta, que jamais os sentiu, anseia por eles, por seu toque de seda, e não se importaria se eles se juntassem em volta dela, mesmo que a apertassem um pouco forte, ainda que a apertassem não tão pouco forte assim.

Nódoas

No rosto amargo e abatido,
No diário escrito e rasgado,
No sentimento traído,
O amor deixou seu legado.

Exercícios

Se conhecesse o verbo esvair na época, e já houvesse despertado nele o gosto pela poesia, talvez dissesse, numa frase duvidosamente literária, que em seus exercícios juvenis, realizados às ocultas, o amor sempre acabava se esvaindo entre seus dedos.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Intrusa

A pétala que se soltou da rosa e se aninhou em teus cabelos, como se neles quisesse dar origem a uma nova estirpe, foi percebida por ti a tempo. Tua mão a atirou de volta ao vento e em teus cabelos brilhou outra vez integral o ouro, sem contraste e sem jaça.

Ranheta

Não pergunte ao amor se ele quer mais. O amor, como um menino mimado, quer tudo, sempre, e tudo é sempre um pouco menos do que ele vai exigir um momento depois.

Simonia

Tão cobiçosos nós somos, os seres humanos, e tão sacrílegos, que, se um dia a Lua estiver acessível aos nossos ônibus de excursão, nós a retalharemos toda, para vendê-la em pedaços pelas esquinas do mundo. Aos bons fregueses, aos que comprarem os mais caros fragmentos, naturalmente reservaremos, como brinde, graciosos farelos de estrelas, com certificado de origem.

Três ou quatro sílabas

A esse lugar, cujo endereço só a Morte saberá quando for preciso, ele não levará laptop e não terá rádio nem tevê. Será um exilado do mundo. Não quer saber mais das desgraças e das catástrofes, nem dos júbilos com que às vezes os deuses zombeteiros fingem compensá-las. Lerá e também escreverá, mas para ninguém. E, se ouvir alguma voz humana, que seja a de quem use a linguagem só para lhe levar algo - o mínimo - de que precisará, não para viver, mas para ir morrendo aos poucos. Que não haja nenhuma mulher por perto, nem mesmo a mais desprovida de poder e encanto. E, sobretudo, que as memórias do amor misericordiosamente se atenuem, até se apagar por completo. E que, se mesmo assim, na hora da morte, ele tiver a tentação de dizer ainda uma vez o nome que escravizou sua alma, que possam o sofrimento, a debilidade e a língua desabituada aos sons fazer soar esse nome como se fosse nada mais que o zumbido da mosca passeando pelo quarto ou como três ou quatro sílabas mais desenhadas nos lábios que ditas, inaudíveis entre as solenes palavras da extrema-unção.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Ai delas

Tuas palavras de ontem - amor, ternura, afeto - duraram o que duram as bijuterias: o tempo de se oxidarem, se tornarem opacas e reproduzirem não mais o alvoroçado canto dos bem-te-vis, mas a voz rouca das aves agourentas. Ai delas, pobres palavras que um dia se atreveram a celebrar o riso das manhãs e a primavera.

Promessa

"Não me ame mais", ela pediu, e ele prometeu que não amaria, mas já se atormentava para imaginar como daria a notícia aos seus pulmões ávidos de vida, aos seus sonhos ingênuos e ao seu coração.

Filosofia

Enquanto ele e ela se empenham em definir a essência, as características e as propriedades do Amor, este, como um menino órfão, sem ninguém para lhe dar um pedaço de pão e lhe limpar o ranho, bate os dentes de frio e descobre que Deus é uma mentira.

Nomenclatura

Poderias dar o nome de obsessão a isto que te faz pensar segundo a segundo, instante a instante, momento a momento na mesma imagem, como se não pensar pudesse apagar essa imagem. Poderias dar-lhe esse nome, talvez tenhas até pensado nele, mas sei que preferes outro: amor.

Ah, se

Ah, se Tamíris, a empregada de quarenta e três anos, quatro filhos e um neto, soubesse que o menino da patroa, desprezando as revistas do irmão, se enfia agora no banheiro para, evocando-a de avental e esponja de limpeza, aprender os ritmos sincopados do amor.

Contraste

Enquanto na tarde modorrenta de domingo o garoto se vira e revira na cama molhada de suor, algumas casas adiante o vento, mais ousado que ele, enfia a língua áspera de areia e ciscos na calcinha da garota, no varal.

domingo, 2 de outubro de 2011

Poetastros

Poesia, quanto te invocaram e te invocam, ainda, para justificar vidas medíocres. Quantos poetas de um soneto só (e ruim), quantos vates de tantos sonetos (todos ruins), quantos fazedores de versinhos bizarros, de mimosos acrósticos, quantos mutiladores de quadrinhas, quantos enganadores, quantos versejadores infames, todos julgando-se dignos de loas e de grandiloquentes epitáfios, quantos, ah, quantos, como eu.

Sete dias

Fazia uma semana já que o gato morrera, mas a menina continuava usando o eufemismo: "Faz sete dias que o Tuquinho não come ração."

Relato de avó

Havia meninos que, por demasiado amor, ficavam doentes e morriam em quatro ou cinco meses, com a mão comida pelas inapagáveis chagas do pecado.

Pausa

A brisa, cansada, aninhou-se também na árvore com os pássaros e, como eles, dorme. Logo virá o sol e a manhã explodirá em canções.

Nem tempo

Aconteceu que, depois de tanto suplicar, ele foi abençoado pela morte, e tão fulminante e satisfatório foi o enfarte que ele nem teve tempo de agradecer.

Nesse dia

Um dia terei esquecido
as noites atormentadas
as madrugadas
em que minha alma
com obstinação te buscou
e minha imaginação
te encontrou
num bar sentada
com um barbudo
contador de lorotas
que escutavas encantada
ou com um tipo narigudo
idiota entre os idiotas
que se proclamava tesudo
e com expressões vis
dizia ter
um instrumento mágico
um portento
dez vezes maior que o nariz

Um dia terei esquecido
cada segundo
cada momento sofrido
em que te supunha
na cama arfando
raspando com a unha
o peito imundo
o corpo sujo
de um marujo
de âncora no braço
ferro no abraço
e hálito nauseabundo

Um dia terei esquecido
isso tudo
não mais clamarei
não mais chamarei por ti
meu único porto

Nesse dia
eu estarei mudo
nesse dia
eu estarei morto.

Escravo

Tornou-se escravo do amor
E exibe as costas lanhadas,
As cicatrizes rasgadas,
Os ternos traços da dor.

sábado, 1 de outubro de 2011

Transgressão

Não a vê há dois anos, mas hoje a tocou. Relutou um pouco, mas a imaginação, a saudade e os dedos prestimosos prevaleceram. Sentiu-se triste depois de tocá-la e, se tivesse ainda o telefone dela, lhe pediria perdão, principalmente por se haver aventurado em uma parte do corpo que ela sempre, com obstinação, lhe recusara.

Árvore

Está numa idade em que lhe repugna exagerar no estilo. O arrebatamento vocabular, assim como tantas outras coisas, se dissipou com a juventude. A convenção diz que ele está na maturidade e deve proceder de acordo com ela. Ocorreu-lhe uma ideia que é uma espécie de resumo disso tudo: imaginando uma paisagem, um rio no qual uma jovem suicida se atirasse, ele não poderia ser a água engolindo dramaticamente o corpo. Poderia, no máximo, ser uma das margens, a menos expressiva das duas, ou nem isso: talvez apenas uma árvore não tocada pelo vento, assistindo calada ao ritual do corpo oferecido à morte, afundando e voltando, afundando e voltando, sob o olhar impassível do sol e dos pássaros emudecidos ainda pelo susto que o fragor do corpo, ao tocar na água, provocou.

Vendaval

A passagem dela na vida dele foi como um vendaval. Toda a paisagem sentimental dele foi destruída ou alterada. No início ele ficou estupefato, sem referências. Depois, aceitou a calamidade e, com o tempo, foi banindo as instigações da memória e já sente algo semelhante à satisfação. Em alguns momentos ainda é tentado a comparar os frutos que colhe agora com os antigos. Mas não é nada que o impeça de enterrar os dentes na polpa com gosto, como antes.

Sexo

Há de ser leve, como um sopro de brisa sobre as folhas, como uma sombra de nuvem sobre a relva ou como uma gota de chuva que por engano ou pudor cai sobre outra rosa, em outro jardim.

Febre

Pensar em você me dá uma doença morna, uma febre doce, um amolecimento, uma embriaguez tépida dos sentidos, uma entrega, uma rendição incondicional de vencido que, na entrega e na rendição, obtém o delicioso, o lânguido, o intoleravelmente deleitoso suplício dos que por amor se deixam derrotar.

Heterônimos

Pirandello narrou o tormento de um autor assediado por seis personagens que pensavam ter, cada um deles, uma história como jamais alguém havia tido para contar. Imaginem então Fernando Pessoa, acossado dia e noite por cento e tantos autores, quase todos tão bons quanto ele, que lhe pediam, suplicavam, exigiam: me escreve, me exprime, me mostra.