quinta-feira, 31 de março de 2011

Um coelho

Te darei um dia
um coelho tão branco
tão unicamente
inacreditavelmente
e inatingivelmente branco
que ninguém
nem eu
incorrerá na aberração
de compará-lo à neve
ou cometerá a heresia
de dizê-lo igual
a um floco de algodão

Te darei um coelho
um dia
misericordiosamente
imune a qualquer metáfora
ou mau gosto
de minha poesia

terça-feira, 29 de março de 2011

Quanto

Amou, já nem sabe quanto.
Qual há de ser a medida
Capaz de aferir o encanto,
A força, a razão da vida?

segunda-feira, 28 de março de 2011

Logro

Sementes tantas, plantadas,
Projetos tantos, perfeitos,
Só deram sonhos desfeitos,
Deram só flores fanadas.

Teste

Fechar os olhos, deixá-los
Como se o sono lhes viesse
Ou como se a morte houvesse
Chegado para fechá-los.

Etapa

Percorre de novo o mapa,
Mais do que nunca aturdido.
Não sabe: venceu a etapa
Ou foi por ela vencido?

Pauta

Que docemente vivamos,
Como se diz que convém,
E mansamente morramos
Sem dar trabalho a ninguém.

domingo, 27 de março de 2011

Maturidade

Não tem mais idade
para bancar o tolo

Não olha mais para o céu

De lá só vêm
ele sabe muito bem
as piscadas obscenas do sol
o câncer de pele
e o desprezo pastoso dos pombos

Olha para baixo
jamais para as pessoas

Sabe que ninguém
nada além lhe daria
que um sorriso casual
ou um educado bom-dia

Olha para o chão
onde crescem as ervas vadias
para as calçadas escorregadias
para o poste usual
onde os cachorros exprimem
sua gratidão
pelo passeio matinal

Olhar para baixo
tem sido o seu destino
e ele o aceita
desde menino
quando descobriu
que as esperanças são vãs
e que o açúcar da vida
não dura senão
quatro ou cinco lambidas
e meia centena de manhãs

A definição

Veludo ou seda. Nenhuma
Palavra mais nomearia
Tão bem a tua mão macia,
Ou, quem sabe, só mais uma
Ainda melhor haveria
Que seda e veludo: espuma.

De cada dia

Em tudo, nas alegrias,
Nas horas boas e más,
Estavas sempre, e ainda estás,
Poesia, pão dos meus dias.

O vento

No início da manhã, as despenteadas árvores do parque falavam alvoroçadas do vento diferente, juvenil, desajeitado, de mãos nervosas, que as visitara naquela madrugada. Algumas o definiam como morno, outras como quente, umas o chamaram de tímido, outras de um pouco ousado. Quando perguntaram à mais jovem delas o que achara do visitante noturno, viram que ela ostentava uma flor rubra, nascida dela ou ali deixada como presente pelo travesso vento da madrugada.

sábado, 26 de março de 2011

O amor morto

No peito puseram-lhe flores
e se nele houvesse ainda um sopro
um leve alento
elas poderiam imaginar-se
flutuando como sargaços
num dia de mar calmo
sem vento

enfiaram-no num terno
e de alguma gaveta
não a dele decerto
saiu uma gravata
e arranjaram-lhe também
um par de sóbrios sapatos
adequados à ocasião

Ele preferiria
uma calça jeans
uma camiseta
e um par de tênis
mas não lhe deram opção

Empertigado como um manequim
o amor ouve
todas as coisas boas
que todo defunto
tem o direito
e a sina
de ouvir

Há de ter feito
algumas vezes
algo não muito nobre
talvez até algo escuso
mas quem o recriminará agora
tão pálido à luz das velas
tão inofensivo
tão desprovido de segredos
tão incapaz
de armar seus enredos?

Falam bem do amor
chegam a lhe colocar
uma aura de quase santidade
e ele ouve ouve
ele ouve
e não pode retrucar

sexta-feira, 25 de março de 2011

O som

Sussurrar-lhe um som macio,
Como o que faz uma pluma
Ou como faz coisa alguma
Tocando a pele de um rio.

No parque

Desentenderam-se, brigaram, romperam. Um ano depois, supondo que talvez o amor pudesse ainda ser salvo, encontraram-se num parque ao qual às vezes iam outrora. Era uma tarde amena de primavera e cada passo que davam abria neles um sorriso de reconhecimento: olhe isto, olhe isso, olhe aquilo. Tudo estava ali, até o menino que um ano antes derrapava com sua bicicleta enquanto a mãe, sentada num banco, lhe suplicava que tivesse cuidado. Depois de uma volta pela pista de cooper, viram que tudo estava igual, mas algo lhes oprimia o peito. Não iniciaram a segunda volta. Saíram do parque e nesse instante as árvores, tocadas por um súbito vento, como se quisessem ilustrar a cena e expressar um vaticínio, começaram a balançar seus galhos e a dizer não.

Árido

Amor inútil, gorado,
Semente fraca e tardia
Lançada sobre a apatia
De um solo seco e cansado.

Peça

Deixar que a trama transcorra
Do jeito que transcorrer:
Que viva o amor ou que morra,
Mas que nos deixe viver.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Cobiça

Quis tudo e, até quando a mão
Do padre a dele apertava,
Ele ainda nela buscava
Algo além da extrema-unção.

quarta-feira, 23 de março de 2011

O encontro

Nem lembram mais se era dia,
Se noite, num restaurante,
Ou se entre uma e outra estante
De alguma (e qual?) livraria.

terça-feira, 22 de março de 2011

Álbum

As traças terão rasgado
A página de caderno
E as bordas dilacerado,
Mas não o poema terno
Com mão de amor copiado.
Quem há de apagar o eterno?

Fora de forma

Velho demais
para a cocaína
para o crack
para overdoses
e para doses
ainda que
ocasionais e mofinas
de morfina

Frágil demais
para qualquer surto
mesmo o mais curto
despreparado
para qualquer viagem
até para as amenas
de cabotagem
já não bebe
nem cerveja
nem conhaque

Viciou-se em sono
e dorme catorze horas
dezesseis
dezessete
às vezes mais

Quando sai da cama
desce para a cozinha
come alguma coisinha
bebe um suco
ou um guaraná
depois vai para a sala
senta-se no sofá
ainda de pijama
e quando outra vez
começa a bocejar
volta para a cama
ou dorme lá

Sente-se bem assim
ou pelo menos
diz que sim

Mas ainda às vezes
lhe ferve no sangue
o vírus da madrugada
o álcool nas veias
as ébrias gargalhadas
e o gosto áspero
das sarjetas
e das calçadas

E sua memória
entre saudosa
e envergonhada
vê de novo
o sol apontar
para o seu rosto
o dedo incriminador
enquanto as vozes
da saudável manhã
com uma abominação
disfarçada de comiseração
dizem ai coitado
assim largado
tão moço tão moço

Ainda ontem

Beleza tanta, jorravas,
Beleza tanta, escorrias,
Beleza fosca, brilhavas,
Beleza morta, vivias.

Encruzilhada

E toda conversa, agora,
Parece sempre a de alguém
Que já está indo embora
E alguém que se vai também.

A cena

Perdido no meio do diálogo, suando frio, ouvindo o zum-zum dos espectadores que o impedia de apanhar a deixa do contrarregra, ele primeiro teve o impulso de pedir ao público que, se alguém fosse ator e soubesse o texto, viesse ao palco para substituí-lo. Depois, desejou que algum outro maldito ator ou atriz do elenco o puxasse, o atirasse ao chão e tivesse a presença de espírito de berrar: "Há algum médico na plateia?" Quando enfim estava disposto a jogar-se ele mesmo no tablado e simular um enfarte, lembrou-se da fala e começou a dizê-la. Mas era de outra peça.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Anti-herói

Depois do triunfo o cansaço,
E logo à luta voltar,
Sem trégua. Quando triunfar
Será inverter o passo
E enfim o corpo deixar
Gozar um longo fracasso?

Os avisos

Vinham se descuidando do amor. O amor falava, falava, mas os dois já não lhe davam atenção. Para o homem, e também para a mulher, o amor estava entrando já na lista das coisas corriqueiras, junto com o lembrete de comprar tomate ou chamar alguém para consertar o fogão. Ontem, enquanto pegavam um cachorro-quente num carrinho do parque, os dois olhando mais para a mostarda do que um para o outro, o amor se cansou e, quando os dois se lembraram dele, ele já havia saltado para a garupa de uma moto em que iam um garoto e uma garota, agarradinhos, e começou a acenar, com seu sorriso de desforra: eu não avisei?

domingo, 20 de março de 2011

Do fogo

Do fogo que crepitou
das suas chamas
das labaredas
onde ardiam
os jubilosos mártires
do teu culto
amor sagrado amor
existem agora
só memórias
só essas cinzas
que o vento
por desmazelo
ou menosprezo
não levou

Num canto do jardim
elas repousam
numa paz vergonhosa
como se fossem
os restos mortais
de uma bruxa leprosa
de um estuprador
de meninos órfãos
ou de um conspurcador
de vestes sacerdotais

Deposto

Amor, ficou no passado
Tua majestade, tua voz.
Mudaste, mudamos nós.
Amor, findou teu reinado

Esquecimento

Agora, que o peito chora
E doem as cicatrizes,
Amor, por que já não dizes
O que dizias outrora?

Possivelmente amor

Acreditaram que fosse amor e o trataram como se fosse. Além de água deram-lhe leite, para que mais forte crescesse, preocuparam-se com ele nas noites geladas de junho. E no calor de dezembro, se acaso brisa não havia, sopravam sobre ele mansamente e aproveitavam para sussurrar-lhe palavras de afeto. Apesar de tudo que fizeram, um dia ele apareceu morto e, porque acreditavam que um legítimo amor ele fosse, enterraram-no com todas as honras e todas as lágrimas que tinham.

Agora

Contemplava, agora olha. Aspirava fragrâncias, agora lhes sente o cheiro. Não se extasia mais com o parque. Não sabe se perdeu o encanto pelas coisas ou se foram elas que desistiram de encantá-lo. Poeta sem poesia, ele agora anda por onde antes caminhava.

O último passarinho

Às vezes ainda, quando ouve cantar um passarinho, vai ao quintal. Olha, olha, e o que vê é sempre nada. Sua única árvore há muito morreu seca, como se atingida por uma maldição bíblica, e se ele quiser ver um passarinho precisará olhar para o alto ou para as casas vizinhas. O último que viu no próprio quintal foi um que o gato apanhou na rua e trouxe. Há quanto tempo isso? O gato morreu já faz mais de dois anos.

sábado, 19 de março de 2011

Sei lá

Eu já não sei
Se de amor falo,
Se de amor calo.
Se falo, dói,
Se calo, rói.
O que farei?

Amanhã

Não vê mais
árvores
flores
nem pássaros

O garotinho
dando voltas
com a bicicleta
pelo parque
ele também
não vê mais

Está com
os olhos fechados
ensaiando
para o dia
em que não
estiver mais

Não será difícil
ele acha
ou pelo menos
não será difícil demais

Fecha os olhos
de novo
e de novo
os abre
para confirmar

Não
não sentirá falta
das árvores
das flores
dos pássaros
do garotinho alegre
quando não puder
vê-los mais

Talvez sinta falta
não da mulher
do banco vizinho
mas do olhar
que ela lhe dá
enquanto acena
para seu filho
o garotinho

Um olhar bom
um olhar ingênuo
de quem não vê
que não está mais lá
quem está
um olhar que o mundo
outrora lhe deu
e há muito tempo
já não lhe dá

Manhãs

Com esperanças bobas
e palavras vãs
começam as manhãs

Bom dia
diz um
bom dia
outro deseja
e bom dia
todos se dizem
e se desejam
e olham para o sol
e sorriem

À tarde
(vá vê-los)
já não se desejam
boa tarde
com a energia
com que se disseram
bom dia

O sol os enganou
e na franzida boca
de cada um se vê
onde um sorriso havia
que mais uma vez gorou
o desejo de um bom dia

Quando se dizem
boa noite
há nesse dizer
o pedido
de que sobre
a vã expectativa
da manhã
desçam pesados
o sono e o olvido

Prometem que amanhã
será diferente

Mas basta acordarem
e verem o sol
com seu charme indecente
que se dirão novamente
e se desejarão bom dia

E como há vinte séculos
acreditarão na balela
de que a vida é bela
e com todos os seus
trinta e tantos tolos dentes
para o sol sorrirão
e cantarão a alegria

Solução

Morrer de morte morrida,
Morrer de morte matada,
Morrer, safar-se da vida,
Ir para onde tudo é nada.

Bom-senso

Matar as rosas, comê-las,
Pegar os sonhos, matá-los,
As juras vãs esquecê-las,
E o amor e o afeto olvidá-los.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Japão

Nojo de mim
dos poeminhas
que esta semana escrevi
com os cotovelos
de falso poeta
fincados na escrivaninha

O Japão
esteve aqui no portão
tocou a campainha
e atrás da cortina fechada
eu fingi não ver
eu não fui atender
como se o Japão fosse
uma menina drogada
ou um bebum
pedindo algum
para beber

Que nojo dos poemas
que nojo de mim

O Japão ali fora
e eu aqui dentro
com a alma cheia de vento
e de pretensão
rimando outrora
com agora
cantando
um amor malogrado
um jardim perfumado
um gatinho perdido
um cachorrinho encontrado

Nojo de mim
tanto nojo tanto
Japão

de meu poético prantinho
no lencinho guardado
dos meus aizinhos
de minha presunção
de minhas riminhas
escrotamente acabadas
em inho e em ão

Nojo de mim
tanto tanto
Japão

Simples

Não saber nada, não ter
Da vida mais que a noção
De que, tu gostes ou não,
O fim de tudo é morrer.

Ensaio

Mantenha os olhos fechados.
Não há melhor garantia
De que estarão preparados
Quando vier o último dia.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Futuro

As flores contemplarás.
Contempla-as bem, como se
Eternas fossem, porque
Os frutos não comerás.

O dia

Acolher o dia
como se acolhe
um cão bobinho
e esfomeado
dar-lhe de comer
dar-lhe de beber
fazer-lhe um agrado

tentar adivinhar-lhe
o nome ou então
dar-lhe um
bem adequado
terminado em inho
se for um cãozinho
terminado em ão
se for um canzarrão

deixá-lo espreguiçar-se
e estender-se
com seu sol na sala
e ir brincar no quintal
e espantar as sombras
com seus latidos
de cão valente
e com sua língua quente
fazer correr
as lagartixas
para os seus
frios escuros

e à tarde permitir
que descanse
do seu cansaço
de ser dia
embaixo do tanque
ou num canto de muro
e quando chegar a noite
e ele se sentir inseguro
botá-lo para dentro
perto do calor
do fogão
e apaziguá-lo
e niná-lo
dizendo-lhe baixinho
aquele nome em inho
ou aquele nome em ão

e amanhã bem cedo
abrir a porta
e acolher outro cão

Banho-maria

Coloque o amor para ferver em fogo brando na panela. Sente-se na sala, o mais perto possível da cozinha, de preferência numa penumbra amistosa que não impeça a leitura de um poema de Emily Dickinson. Virá aos poucos até você uma névoa aromática feita de tênues fios dourados, como os do algodão-doce. No centro dela estará algo que nenhum retrato falado feito pela alma precisará identificar como um anjo. Se não vierem nem a névoa nem o anjo, não culpe nem o amor nem Emily Dickinson.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Pêndulo

Se a ti eu digo não, sim
Me dizes, e dizes não
Se sim te digo. Ah, paixão,
Por que és insegura assim?
Que rumo terás, que fim,
Minha ave de arribação?

Números

Tantas tu és
Que nem tu sabes,
És duas, dez,
És trinta, cem.
Eu sou ninguém
E em mim não cabes.

A causa

Se os atestados de óbito não mentissem tanto, quantas síncopes, quantas insuficiências respiratórias, quantas falências múltiplas de órgãos não seriam absolvidas em nome do amor e por ele substituídas?

Toninho Estadão

No início dos anos 60, o mundo girava em torno do número 28 da Major Quedinho, edifício do Estadão. Revoluções, regimes derrubados, governos empossados, catástrofes, tudo vinha pedir espaço no jornal, e as Olivettis, lançando fogo pelo teclado, eram massacradas pelos redatores que tentavam acompanhar o frenético giro do planeta, palco da aventura humana, de seus triunfos e abominações. Ali morreram Picassos, Kennedys, ali foram coroados reis e rainhas, ali se lançaram foguetes, ali se transplantou o primeiro coração e se ganharam e perderam Copas. O mundo girou ali até que o jornal, nos anos 70, o levou para girar no bairro do Limão. Algumas coisas mudaram nesse tempo. Antonio Carvalho Mendes, um daqueles rapazes que se atiravam sobre as Olivettis, passou a escrever no micro. No mais, continuou o mesmo. Ele era Estadão, sempre. Foi Estadão por 50 anos. Toninho morreu ontem e, se teve uma frustração, foi a de não poder ter sido Estadão desde 1875, ano em que o jornal foi fundado.

Tantas horas

Ele gostaria que esta fosse aquela tarde em que esperou por ela no topo da escada rolante do metrô, meia hora, uma hora, duas, mais, com uma esperança heroica e disparatada. Gostaria de, como naquela tarde, vê-la subir tantas vezes, e tantas vezes, todas, ver que não era afinal ela, mas só um engano dos seus olhos molhados pela chuva e pelas lágrimas. Ah, como gostaria de ficar, como naquela tarde, esperando, esperando por ela. Mesmo que hoje também, quatro horas depois, começasse a ter a desconfiança de que ela jamais viria.

Ciclo

Escolhas certas, escolhas
Erradas, que importa? O fim
De todas é sempre assim:
Flores, frutos, morte, folhas.

Jamais

Olhando o barco ficamos.
Passou tão perto de nós...
Escuto ainda aquela voz:
"Pulem, pulem!" Não pulamos.

Atitude

Por mais que digam que não,
Ser triste não é frescura,
Nem charme nem impostura,
Ser triste é uma convicção.

Cavalheiro

É delicado o amor. Quando me estrangula, estrangula-me com luvas de seda, e morde-me com dentes de carinho. São na alma as marcas que deixa.

terça-feira, 15 de março de 2011

Viajante ilustre

Todas as noites sentava-se na areia, acompanhava com o indicador os navios que deixavam o porto, até que sumissem no horizonte, e, houvesse alguém com ele ou não, dizia: "Ói lá, ói lá." A esse dedo viajante concedia a honra de jamais ser introduzido nas narinas ou nas orelhas, tarefas de que passou a incumbir-se, não sem ressentimento, o dedo mínimo.

Marafona

Estava sempre, das tantas da noite às tantas da madrugada, embaixo do mesmo poste de luz fosca, ideal para sugerir o que tinha de bom seu corpo e para ocultar o que não tinha. Ficou ali, constante paisagem de extravagantes roupas, por duas décadas. Mas, quando o quarteirão foi tombado pelo patrimônio histórico, algum burocrata descuidado esqueceu-se de arrolar seu nome - Zélia, ou Ruivinha - na lista do que seria preservado.

Adolescente

Na concha da mão, nos dedos,
Na palma escorregadia
É que ele guarda os segredos
E sua culpada alegria.

Catamênio

O vento levantou a saia da garota no ponto de ônibus e ali, onde não havia terra nem jardim, por um segundo o sol dourou o esplêndido e envergonhado rubor de uma rosa.

Ocasião

Foi pena. Ousados não fomos,
Faltou-nos força, coragem,
Gorada foi nossa viagem
E somos hoje o que somos.

No final de um bilhete

Tu foste cores, matizes,
Pétalas tênues, olores,
Tu foste seiva e raízes,
Tu foste a alma das flores.

O corvo

Fez planos, planos demais.
O tempo não esperou
E, como o corvo de Poe,
Lhe disse um dia: jamais.

Cinzas

Nem quadra
nem alameda
nenhuma indicação
nada que exija
marcar o caminho
num caderninho
nenhuma menção
nada de virar à direita
no jazigo tal
ou dobrar à esquerda
no jazigo qual
nenhuma anotação

Nada de flores
em novembro
nem a exasperação
de ver os defuntos
e também os viventes
maltratados
pela administração

Sossego total
mais nenhuma obrigação
familiar ou social

Pela cabeça
de ninguém passa
entrar num cemitério
e no ar procurar
um antigo sinal
de fumaça

Direito

Nunca mais há de ficar
Nem triste nem contrafeito.
Já sabe: a morte é um direito
E só precisa esperar.

Economia

Continuar grato à vida, mesmo no seu crepúsculo, mas não gastar toda a gratidão, para que não nos falte quando vier a morte com suas bênçãos.

Coup de grâce

Tristeza minha, fatal,
Por que me tens compaixão?
O que esperas, por que não
Me dás o golpe mortal?

segunda-feira, 14 de março de 2011

Balança

Às vezes pouco é demais,
Às vezes tudo é bem pouco.
Não há dois pesos iguais
E semelhantes tampouco.

A palavra

Ele está pensando em materializar uma palavra e colocá-la numa caixinha que envolverá no mais fino papel, fazendo um pacote com superposições e nós que obrigarão a amada a abri-lo aos poucos, o que haverá de valorizar a surpresa. Ele já pensou em algumas palavras: lua, estrela, sol. Mas acabará mandando um gato bem branco e bem pequeno, se ele lhe prometer sair da caixa graciosamente, sem causar susto ou medo.

O tímido

Distraída, ela nunca vê, mas toda manhã, nas cinco voltas que dá pelo parque, há um bem-te-vi que faz o mesmo percurso, repetindo a curtíssima frase que o tornou famoso. Ela nunca vê também, mas com o bem-te-vi voa sempre outro passarinho, que a acompanha com a mesma devoção mas, triste, não canta, por julgar inexpressivo seu canto.

Maçãs

O sol juntou as rosas e estava recolhendo também as maduras maçãs do poente, antes de ir para o outro lado do mundo. O menino viu as maçãs e imaginou que com três delas poderia matar sua fome. Mas, quando foi apanhar a escada, era tarde. A noite havia engolido o sol, as rosas e as maçãs. Com a fome aguçada, o menino olhou ressentido para as estrelas.

A última folha verde

Da derradeira catástrofe talvez não sobre uma flor, nem sequer uma folha. Flutuará em algum lugar do mundo destruído só uma nota, provavelmente um dólar, se bem que nenhum ser humano vá estar vivo para atestar.

Memórias

Que reste pouco
no fim
quase nada
como se
todo o amor vivido
não tivesse sido
mais que uma ilusão
ou um malsucedido
experimento da imaginação

Nada de nada
nenhum vestígio
de flor num livro
denunciando a página
como uma borboleta crucificada
nenhuma estrofe
nenhum poema
nenhuma frase
num guardanapo
rabiscada

Não reste nada
no fim
nada que roa a alma
nada que nela doa
como agora rói
como agora dói
fundo
agudo
profundo
assim

Recuerdo

O tempo flui, mas que importa?
Por um ardil da memória
Aquela manhã de glória
Morreu, mas não está morta.

domingo, 13 de março de 2011

Simbiose

Preciso e quero dizer-te
Que estás a mim tão ligada,
Em mim tão presa e entranhada,
Que morrer será morrer-te.

Nos muros

Os perjuros
encheram de
corações os muros
crivaram de setas
e de declarações
as esquinas
e os quarteirões

Juraram
e abjuraram
proclamaram
e renegaram

O tempo
vai desfazendo
os corações
as setas
e as frases amorosas
lavradas
com letras espalhafatosas

Os nomes
se apagam nos muros
os nomes louvados
tão cedo olvidados
fulanos e beltranos
adrianas e adrianos
chamas que queimaram
e se transformaram
em cinzas apenas
em meros enganos

Alguns morreres

Morrer na guerra é coragem,
Morrer bebê é tolice,
Morrer aos cem é vantagem,
Morrer de amor é sandice.

Domingo

Quer que chova o dia inteiro
E a chuva tudo arrebente,
Que o amor se atole na enchente
E que se afogue num bueiro.

Praga

Amor, maldito tu sejas,
Malditos teus atavios,
Malditos teus amavios
E as ilusões que tu ensejas.

Discípulo

Alguma coisa aprendi
De tudo que me ensinaste:
Não vou matar-me por ti,
Porque tu já me mataste.

In pace

As lágrimas sempre trazem,
Além do alívio, água pura
E regam a sepultura
Onde os restos do amor jazem.

Nem sempre

Assim como faz o rio,
O amor corre para a foz.
Mesmo se houver um desvio,
O rio chega. Mas nós?

Calamidades

Das pragas que atingem o homem,
E das desgraças, aquelas
Que mais sua alma consomem
São o amor e suas sequelas.

Alma

Um dia ela se embrenhou
Num sonho, entrou num navio,
Seguiu por um longo rio
E ao corpo jamais voltou.

Amor bissexto

Ele se vai, depois volve,
E irá de novo, e virá,
Hesita, não se resolve,
É assim, e sempre será.

Sábado

Esperava o sol
mas em vez dele
veio uma chuva furiosa
que desdizia
qualquer definição
decente
de um sábado
de manhã

Da janela
tentou ver o mar
em busca de um
bom sinal meteorológico
mas a chuva
com a ajuda
de uma repentina névoa
tinha tragado o mar
com todas as suas ondas

Pôs o calção
e a camisa de futebol
como se fossem
amuletos propiciatórios
mas a chuva ignorou o calção
e desdenhou a bola
que nas mãos dele
olhava também para
onde deveria estar o mar
e ansiava pela areia
pelo sol pela correria
pelos gritos viris de gol

Choveu
com uma crueldade
desatada de dilúvio
enquanto ele e a bola
esperavam ainda
a aparição do sol
mesmo que viesse
com desculpas deslavadas

Esperar cansou
e com a bola
ao pé do sofá
como um cão vigilante
o homem se deitou
confiando que aquela
fosse só uma chuva de verão

Veio a tarde
e a chuva continuava
e com ela veio
do mar um vento
conspurcado de imprecações
de piratas enforcados
e começou a
sacudir o edifício
como se o tivesse
confundido com um navio
e quisesse afundá-lo
com todos os seus tripulantes
e tesouros

Choveu a tarde inteira
e o homem
e a bola
sonhavam no sofá
com chutes
matematicamente
certeiros
e com um sol
cegando
os dois goleiros

Quando o homem acordou
a chuva persistia
em negar o sábado
em humilhá-lo
com cusparadas
atiradas contra as janelas
e o mar continuava oculto
por ela e pela
noite que chegara
reivindicando também
seus direitos de ocultação

Ele trocou então
por uma calça
o calção
e a camisa de time
por uma social
e com pena da bola
que já não poderia levar
desceu para um bar.

Ia reconciliado
com o sábado porque
assim como os outros dias
à noite
todos os sábados
são pardos

sábado, 12 de março de 2011

Demais

Me dás tão grande alegria
Que, se ela um dia crescer,
Não sei, não ouso dizer,
Se ela em meu peito entraria.

Outono

Há tardes em que ele se sente como se fosse uma árvore velha - a única sobrevivente de todas as plantadas trinta anos antes na inauguração do parque - que olha para as árvores jovens e se envergonha de estar ali roubando delas alguns raios de sol e por oferecer, tocada pelo vento, uma música fora de moda, que não agrada à nova geração de pássaros do parque.

Hortelã

Foi um menino gentil. Sempre era ele quem levava ao cinema a bala de hortelã que ficava escorregando dos seus lábios para os lábios das garotas durante o filme. E, quando este acabava, se algo da bala restasse, ele sempre a deixava ficar na boca da garota.

Matinê

Avançando milímetro a milímetro, ele chegou a sentir na mão a seda da saia, ou talvez fosse até a pele da coxa da mulher, mas foi uma dúvida que ele jamais resolveria, porque na tela o último gângster, encurralado pela polícia, havia resistido frouxamente, o poltrão, e com os braços erguidos dava não mais do que cinco passos, antes que começassem a aparecer as legendas e as luzes se acendessem.

Aparelho

Os dentes da garota faiscavam e no sorriso dela havia menos um convite do que um desafio, mas o garoto, que esperava por aquilo fazia um mês, ajustou os lábios aos lábios dela, fechou os olhos e se entregou jubilosamente às agulhas do sacrifício.

As palavrinhas

Tão fácil é
dizer que te amo
que digo sempre
te amo
te amo

Só tomo uma cautela
que é dizer
te amo
sempre baixinho
e de madrugada
quando cochilam o amor
e a alma fatigada

Se os dois me ouvissem
dizer te amo
se suspeitassem
que disse te amo
me obrigariam
não a dizer te amo
mas berrar
berrar te amo
na sacada
e a sacudir a noite
como se uma árvore fosse
e fazer cair
como frutas
uma a uma
cada uma
de suas estrelas
adocicadas

Presente

Te dou
esta manhã
com o que ela tem
de sol e de pássaros

Não é minha
a manhã
tu sabes
eu a roubei para ti

Fica com ela
aproveita-a hoje
porque bem pode o dono
vir tomá-la amanhã

Medida

Amou tanto que não soube,
E também ninguém lhe disse,
Que amar demais é sandice,
E o amor no peito não coube.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Sacerdotisa

Há algumas tardes em que os cabelos dela fervilham como ouro abrasado pelo sol. Nessas tardes, só ela, suma sacerdotisa, se atreve a tocá-los para aplacar o incêndio que se ateia em cada fio.

Destino

Pegou a mão da mulher como se fosse um gesto simples, casual, e virou a palma para cima. "O que é?", perguntou ela, "você vai me fazer cócegas?" Ele disse que não, que ia ler a sorte dela, mas naquelas linhas o que ele pretendia, mesmo, era encontrar algo que o tranquilizasse. Receava ver ali a previsão de uma viagem longa que o destino houvesse programado para ela num navio branco, muito branco, que deslizasse pelo mar como um cisne e cujo capitão fosse um empertigado espanhol de olhos azuis e cabelos de derramado ouro, que nem o boné conseguisse disfarçar.

Definição

De amor, de beleza e de arte,
De coisas suaves e doces
Seria justo chamar-te,
Ou vida, se só isso fosses.

Carma

Se estou andando contigo,
Jamais sei a quantas ando,
Só sei que sigo, e prossigo,
E ando, e continuo andando.

O motivo

O menino deixou escapar seu boneco de Batman pela janela do carro e, ajoelhando-se no banco de trás, viu um ônibus passar por cima dele. Pediu ao pai que parasse, mas o pai não parou. No entanto, trinta anos depois, ao receber um prêmio por um livro de poesia, não soube responder por que havia se tornado poeta e por que eram tão tristes seus poemas.

Desenho

Ele olhava para a mão com que ela fazia rabiscos num guardanapo de papel e imaginava que prodígio veria surgir daquela vez: se uma árvore, se um barco, se um menino corado como aqueles das antigas embalagens de chocolate, se um rosto de mulher. Se fosse um rosto de mulher, ele gostaria que fosse como o daquela que à sua frente desenhava no guardanapo.

Amoras

Amorosas amoras, que ingrato eu tenho sido com vocês, encanto de minha infância. Escrevi tanto, sobre tantas coisas, e jamais me lembrei de falar de vocês, que se sacrificavam por mim e sangravam sua doçura em minha boca, para deleitá-la.

Receita

Não saberia definir a beleza, mas, se fosse arriscar uma receita, colocaria como ingredientes um pouco de rosa, uma pitada de arco-íris, um tantinho de mar, outro tanto de céu com nuvens claras, meia colher de brisa perfumada e uma porção de mulher a gosto.

Rotação

A Terra gira em torno do Sol, e o Sol gira em torno da mulher toda vez que ela sai da sombra dos edifícios e, com seus passos displicentes, atravessa a avenida.

Lance

Ele pousou a mão na blusa xadrez dela e avançou um peão esperançoso.

Emily

Gostaria de morrer fulminado por um ataque de beleza na Cultura da Paulista, tendo na mão um livro de Emily Dickinson que, por suprema gentileza, deixariam ficar comigo quando me levassem.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Tus recuerdos

Um livro oculto na estante,
Dez cartas numa caixinha,
Um poema, uma foto minha,
Tudo tão velho, distante.

Umbigo

Pegou a laranja e apalpou-a, sentindo como era compacta embaixo da maciez de sua pele, e adivinhou dentro um sumo especial. Subiu com a mão até o seu umbigo, apoiou ali o dedo e, sob uma agradável lembrança, começou a abri-la delicadamente, expondo pouco a pouco sua nudez agora aberta à fruição dos lábios.

Causa e efeito

Deu-se que uma tarde, encolhida embaixo do guarda-chuva, ela desembrulhou um bombom e atirou o papel dourado para cima. Imediatamente se abriu um arco-íris que ela, com a visão vedada pelo guarda-chuva, não chegou a notar.

À moda de 1900 e nada

O galo conclama o sol
A expulsar a lua cheia
E lento vem o arrebol
Enquanto a treva escasseia.

Colmeia

Sobre a calcinha vermelha
Da jovem mulher deitada
Zumbe insistente uma abelha
Ébria, feliz, fascinada.

Arrepio

Ela lhe contou de um medo que lhe havia feito descer um arrepio pela espinha, e ele pensou como gostaria de ter sido esse arrepio.

Gentileza

Havendo esquecido a espada com a qual sacrificaria a donzela, o cavaleiro se desculpou muito, como deve fazer sempre um carrasco que comparece à execução sem seu instrumento, e perguntou à jovem, gentilmente, se ela aceitaria ser morta apenas com beijos.

Sangue azul

No quadro, um azul espesso escorre do céu tempestuoso, como se uma nuvem tivesse sido apunhalada por um relâmpago.

Paisagem

Enquanto preparas as tintas diante da tela vazia, há no ateliê uma expectativa de árvores, de pássaros, de grama, e ao longe parece vir chegando o bulício de duas, talvez três meninas, chamadas ao parque a convite do sol.

Bestinha

A boca que dá a senha
Abrindo o "p" de paixão
Às vezes também desenha
O temível til do não.

Xícara

Quando levantas a xícara, tudo - pessoas, objetos e até o tempo - se detém. Os homens com encanto, as mulheres fingindo desdém, olham para tua mão que parece também de porcelana como a xícara, que os objetos contemplam com inveja - ressentidos com sua mera condição de cadeiras, lustres, bibelôs, quadros.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Nomenclatura

Se amor tu dizes não ser
A febre que me consome,
À morte darás qual nome
Quando eu, por amor, morrer?

A queixa

De madrugada, às vezes, um rumor,
Um tênue som, murmúrios abafados
Me acordam. Penso que é de novo o amor,
Mas é a queixa dos sonhos malogrados.

Hem?

Que esperas então que eu faça
Se, quando falo de amor,
Por convicção ou pirraça
Me acusas de fingidor?

Protocolo

Se eu fosse rei te nomearia rosa e, no dia de tua posse, todos te olhariam e comentariam, encantados: "Como ninguém pensou nisso antes?" Depois da cerimônia, sairias caminhando pela frente do palácio, e o sol, que sempre te havia saudado, pela primeira vez te reverenciaria oficialmente. E, ao se curvar, um pouco mais que nas outras vezes, colocaria - por descuido ou premeditação - em tua cabeça, rosa real, uma coroa de finíssimas gotas de ouro.

Pintura

Cabelo que o vento alisa,
E a brisa beija e desfaz,
E o vento volta e refaz,
Pudesse eu ser vento, brisa...

Ceticismo

De quanto eu te amo e te amei,
Da dor dos sonhos decíduos,
Dos malogrados suicídios,
Jamais te convencerei.

Fera

Vem, meu amor, minha fera,
Afia as garras, os dentes,
Acende os olhos dementes
E vem, e me dilacera.

O nome disso

Se amor não é, que aflição
Então me mata, que praga
Me põe no peito esta chaga
E me rasga o coração?

Mimos

Te mando um beijo e um gato. Hás de perguntar: "Um gato! Mas pra que foi que ele me mandou um gato?" Espero que não perguntes por que te mandei o beijo.

Doenças

Alguns são acometidos por gripes, dessas corriqueiras, e morrem. Outros são acometidos por sarampo, coisa de criança, e morrem. Ele foi acometido pelo amor, a pior de todas as pestes, e, embora queira e até suplique, não morre.

terça-feira, 8 de março de 2011

Confissão de um ex-notívago

Houve um tempo
em que como vocês
eu vagabundeava por aí
um tempo em que
andava reto de dia
ou assim fingia
e à noite de gim embriagado
sem rumo e sem nexo
com o nariz
como um falo empinado
farejava a maresia do sexo

Não fui infeliz
se querem saber
Conheci os mais asquerosos hotéis
os mais safados bordéis
e as putas mais dissolutas
nas coxas das quais
como agonizantes animais
estrebuchavam saciados
magistrados deputados
rábulas e bacharéis

Vi o sol nascer
nas ruas de mijo regadas
nas auroras nas andradas
nas líberos nas quintinos
nas vitórias nas quirinos
na esquiva direita
e no largo das arcadas
de onde um dia
minha mãe esperava
porque nas cartas leu
que um grande homem sairia
o maior de todos
o menino que dela nasceu

Não terminei o curso
não me formei
fui possuído pela noite
e à noite
inteiro me entreguei

Embora digam que sim
não foi a noite
a minha perdição

Ela foi sempre
muito justa comigo
copos joguei
copos me atiraram
putos me espancaram
putos eu espanquei
putas me lesaram
putas eu lesei

Assim vivi
e me agradaria
se este texto dissesse
que assim morri

Sobrevivi porém
para dizer a vocês
que sou agora isto
este paletó
esta gravata
este homem
normal entre os normais
que enfim
pelo bem de todos
e de alguns mais
me obrigaram a ser
e que quando morrer
terá suas virtudes
de bom cidadão
celebradas nos jornais

Mas tenho saudade sim
daquele tempo
de loucura e dissipação
em que sem rumo e sem nexo
implorei por álcool e por sexo
na rego freitas
na bento freitas
na joão mendes
e na consolação

Esquife

Todo o amor
suas alegrias
seus cantos
seus encantos
seus desencantos
e agonias

Toda sua dor
suas aflições
suas mortes
e ressurreições
suas esperanças replantadas
e suas alegrias

Todas as lágrimas
toda a desvairada poesia
todas as juras
todas as loucuras
e aquilo tudo
que jamais morreria

Morreu tudo
e só falta agora o sino
para acompanhar o amor
à grandeza destinado
tão folgadamente acomodado
em seu caixão de menino

A planta

Não sai mais de casa. Cultiva melhor, agora, sua melancolia. Modesta, ela não pede mais que um ambiente sombrio e úmido e que ele lhe repita o doce veneno de um poema de Sylvia Plath. Está bem ele, assim, sozinho com seus fracassos, liberto da obrigação diária de sorrir para o sol, como aqueles bocós na rua.

Lá atrás

É de ontem todo o meu mérito.
O que eu plantei já murchou,
E é só memória o que sou,
Só cinzas, tempo pretérito.

Página cem

Fede agora na estante
na página cem
da coletânea de poesia
a flor que outrora
só para beijá-la
o homem o livro abria

Ele escancara as janelas
chama a brisa e o vento
porém é inútil.
Fede continua fedendo
a flor que outrora
a perfume recendia

Presente de amor
ela flor
quando o homem
o livro outrora abria
pela casa espalhava
um aroma alegre e doce
como se ela a rosa fosse
enaltecida na página cem
da coletânea de poesia

O homem se descuidou
do amor e descuidado
o amor murchou

Murchou também a flor
e ela que outrora
emprestava seu olor
à rosa da página cem
fede agora como se também
a rosa palavra
a rosa de quatro letras
do livro de poesia
morta estivesse
ou em agonia.

Natural

Envelheceu tão bem, com tanta naturalidade e sabedoria, que hoje quem o vê, com seus oitenta e oito anos, logo diz o que ele é: um velho de oitenta e oito anos.

Aqueles dois

A melancolia se afeiçoou a ele
e ele à melancolia

Fazem-se mais do que companhia
são unha e carne
e unidos se defendem
das tentações torpes
da confraternização
e da alegria

Nunca chegam
sempre partem

Dormem ao relento
à chuva e ao vento
e quando despertam repartem
a fatia que sobrou
do pão bolorento ou do pão
que o Diabo amassou

Ele é o cachorrinho dela
ou ela é o cachorrinho dele
nenhum deles sabe
pois a ele e à melancolia
abomina qualquer hierarquia

Vão seguindo
e sua única rota
é sempre aquela que leva
para o silêncio e a derrota
aquela que se desvia
do bulício febril
dos brados de júbilo
da exaltação juvenil
das aglomerações e da vozearia

Contra os preceitos da felicidade
vão indo vão seguindo
fiéis ambos à sua verdade

Se lhes perguntassem por ironia
se são felizes
diriam talvez que sim
como podem ser felizes
um melancólico
e sua melancolia

segunda-feira, 7 de março de 2011

Mortes

Chorarei então
todos os dias
a mesma morte?

Derramarei as lágrimas
sempre sobre a mesma terra
e direi sempre
que jamais suportarei
morte igual?

Amor
valeste cada flor
que te pus no peito
cada flor
que toda manhã
continuo pondo

Mas me diz amor
quando deixarás de morrer?

Amor me diz
quando enfim morrerás?

Suspeita memória

Estranhe se alguém lhe disser, falando de um antigo encontro, que se lembra ainda do sol daquela manhã, das floreiras na galeria, ou então do tamborilar da chuva logo depois, na banca de jornais, e do súbito despontar do arco-íris em cima dos edifícios. Quem, vendo seus olhos, cabelos e boca, e ouvindo sua voz, iria observar alguma coisa mais?

Enredo

Dormia assim que deitava,
Sonhava assim que dormia,
Sofria assim que sonhava,
Chorava até que morria.

Sáfaro

Amor, inútil semente
Pela esperança plantada,
Sêmen vão, vida gorada,
Fruto bichado e doente.

Galeria

Como pássaros
as mãos se acenaram
Não sabiam ainda
mas era o último aceno

Os passos também ignoravam
e soando exatamente como
haviam soado no primeiro dia
levaram a mulher
para um lado
e o homem para o outro
lado da galeria

Pobres mãos
pobres pés
tão distantes das bocas
e dos seus segredos
tão longe dos lábios
que tinham se dito
tantas palavras amáveis
tantos e tantos dias
e agora tinham só
aquele sorriso frouxo
talvez de ressentimento
talvez de mágoa
de alívio talvez
um sorriso de tudo
menos de amor

Como um botão

Como um botão ou uma agulha, o amor estava na travessa de vidro, na mesa da sala. Alguém o deixara ali, imaginando que viesse a ter utilidade, e ali ele ficou por meses, quem sabe anos. Várias mãos se aproximavam dele diariamente e às vezes uma o erguia e o examinava, hesitando entre jogá-lo fora e mantê-lo. Ele foi ficando. Um dia, quem lá o pusera o apanhou, olhou-o e abanou a cabeça: "Quem será que pôs isto aqui? Para que serve isto?" E foi lançá-lo ao lixo.

Almoço

Num instante
a gaivota
como um anzol
lança-se rasante ao mar
fisga o peixe
e deixa-o brilhar
como prata ao sol
último brilho
última glória
antes do sacrifício

Aquele sol

Não, não foste o sol daquela manhã, embora calhasse bem dizer aqui que foste. Eram quase dez horas, já, e o sol, assim como eu, fazia muito te esperava - ele com seus decantados raios fúlgidos, eu com meu coração alvoroçado.

domingo, 6 de março de 2011

Hora final

Quando eu estiver morrendo,
Não penses me visitar.
Meus tristes olhos, te vendo,
Não vão querer se fechar.

Primaveras

Parece tolo, mas eu,
Se amasse alguém, lhe daria
O livro de poesia
De Casimiro de Abreu.

Ginasiana

Te lembrarei com ternura
E até no fim do caminho
Na curva final e escura
Te lembrarei com carinho.

Espelho

Quando no espelho te olhares,
Se não te olhares distraída,
Verás, se te concentrares,
A face de minha vida.

Sazões

O que foi, foi. Quem se importa
Com a floração de setembro
Ou com os frutos de dezembro,
Se tudo hoje é folha morta?

Às vezes

Às vezes acha
que deveria ser como os outros
enfiar-se naqueles bailes
em que colam grau
risonhas costureirinhas
trajadas como rainhas
saudáveis cabeleireiras
com aqueles cabelos
que jorram como cachoeiras
e rodopiar
e dançar dançar
todas aquelas músicas tolas
até que alguém
viesse lhe tocar o ombro
ô meu amigo ô
e mostrar que a luz
está apagada e há muito
o baile acabou

Às vezes acha
que deveria fazer isso
mas fica sempre
do lado de fora
debaixo de uma chuva exclusiva
espreitando como um assassino
e ouvindo sempre
em vez do pistom
e das maracas
as lamentações fracas
daquele tuberculoso violino
que no seu peito
só para ele toca

Às vezes acha
que deveria ser como os outros
ir para o fundo de um bar
e beber ali
e ali ficar
até que sua alma
chegando à garganta
não lhe restasse
nada além de expeli-la
e expelindo-a
afinal se livrasse
do que o faz diferente
do que importuno o faz
para toda a gente

Às vezes acha
que deveria fazer isso
mas passa apenas pelo bar
não entra nunca
e se um dia entrar
pedirá uma bebida fina
como se fosse uma menina

Não tomará o cálice inteiro
e se retirará
como um cavalheiro
sem ter tido a coragem
de largar sua alma amarga
no calamitoso banheiro
e sem misericórdia puxar
a estrepitosa descarga

sábado, 5 de março de 2011

Morte

Dormir, sonhar, deslizar
Como um descuidado rio,
Entrar pelo mar bravio
E não poder mais voltar.

O de sempre

Os anos passam, e a vida.
O que se colheu colheu.
Passaste tu, passei eu,
Passamos, minha querida.

Lógica

O sol, a cor, a beleza,
Tudo que brilha e deslumbra,
E a vida e o amor e a riqueza,
Acaba tudo em penumbra.

Primeiro andar

Contaram ao homem na lanchonete o caso de um menino que, tendo visto uma onda que lhe pareceu única, não saía mais da beira do mar, esperando sua volta. No início, a família julgou que logo aquilo passaria, mas, como o menino desandasse a escapar de casa e a fugir da escola para ir ver se sua onda reaparecia, a solução foi se mudarem para uma cidade a quatrocentos quilômetros do mar. O homem ouviu a história, sorriu amargamente e disse que com ele acontecera algo semelhante. Estava com quarenta anos e, com trinta e oito, vira passar diante da lanchonete uma mulher que o seduzira a tal ponto que ele começou a se postar ali na frente todos os dias, no seu horário de almoço, esperando que a maravilhosa aparição se repetisse. Passou a chegar tarde ao trabalho e a sair dele mais cedo para se manter mais tempo em vigília. Foi despedido e, para não repetir o erro, conseguiu uma ocupação bem ali, no edifício em cima da lanchonete, onde fazia dois anos já que, quando não estava no horário do almoço, ficava olhando para baixo, olhando, olhando. Terminando a conversa, revelou, como se fosse um general, que descartara uma boa oportunidade no décimo andar e ficara com uma, de menor remuneração, no primeiro.

P.S.

Por tudo aquilo que foi,
Que fui, que foste, que fomos
E, quem sabe, ainda somos,
Te mando este abraço, este oi.

Adversativas

Da vida deseja tudo,
E tudo, mais que ninguém,
Quer. Todavia, porém,
Mas, entretanto, contudo...

sexta-feira, 4 de março de 2011

Lá fora

Jamais o amor florirá
ele sabe

Por isso não lhe importa
se chove ou não
se cairá granizo
se geará
se ontem inverno era
se hoje é primavera
se amanhã será outono
se depois virá o verão

Abre um livro
lê um poema
procura alhear-se
e se o vento
tamborila na janela
finge que não ouve
e se dedos
a porta dedilham
nem se pergunta quem será

Nada nem ninguém
notícias de flores
ou relatos de frutos
lhe trará

O que acontece lá fora
é a vida e a vida
faz tempo
muito tempo
não lhe diz nada
nem lhe dirá

Chuva

Vi o rapaz e a moça, de uniformes colegiais, fugindo da chuva. Riam, como se fossem crianças ainda, no meio de uma travessura. Havia logo adiante um toldo debaixo do qual poderiam se abrigar, mas continuaram correndo e rindo, cada vez mais forte. Na esquina, notei que estavam de mãos dadas e adivinhei que logo depois se abraçariam e, quando parassem, seria para que um bebesse pingos nos lábios do outro. Nada como a chuva para estreitar um casal e incitá-lo à camaradagem e à saudável comunhão de abraços e beijos. Rapazes, garotas, se um conselho posso dar-lhes é: deixem sempre em casa o guarda-chuva.

Tu

És vida, poema, canção,
Jardim de orvalho banhado,
Manhã de sol derramado,
O cheiro morno de pão.

Eu estarei ali aonde
Teu amor não chegará,
Onde esperança não há
E onde minha dor se esconde.

Cautela

Se em sonho eu te aparecer,
Cuidado! Um sonho é um sonho
E pode bem suceder
Que o mártir vire demônio.

Trovinha

Alguém irá te contar,
Narrando-te a dor que passo,
Que nada na vida faço
Senão tua volta esperar.

Suave cacto

Se te zangas, fico doente
E morro se me magoas,
Mas todas são dores boas,
Se as sofro, sofro contente.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Na pior

Depois de dois anos belos,
Na rua o amor me jogou,
E eu como agora farelos
E o pão que o Diabo amassou.

Senhorinhas beneméritas,
Vos peço algum biscoitinho
E, visto que in vino veritas,
Também um copo de vinho.

Vocação

Me dói este espinho, mas
Eu gosto dele, o bendigo
E o quero sempre comigo.
Nem tu o retirarás.

Amor, quando entenderás
Que sem dor tu não existes,
Que vives só entre os tristes
E alegre jamais serás?

A ferida

Me faltas como me falta
Aquilo que me dá vida
E dóis em mim, tão doída,
Estrela fria, tão alta,
Que em minha alma uma ferida
Aos olhos de todos salta
E mostra e exibe e ressalta
A tua falta sentida.

Vogal

Ah, se tivesse ao menos apanhado, sem que ela percebesse, um sopro quem sabe, uma sílaba que fosse, ou por sorte uma palavra, ainda que curta, das tantas ditas por ela naquela manhã... Foi imprevidente. Mas como poderia supor que aquela riqueza toda tão cedo iria se dissipar? Ah, se tivesse guardado uma vogal, uma só - talvez aquela com que se inicia a mais doce de todas as palavras.

Dor

Amor, tu, que eras tão lindo,
Dourada rosa de outrora,
Como me dói ver-te agora,
Tão murcho e opaco, tão findo.

Não mais

Amor jurou dia a dia
E dele todos zombaram,
De mentiroso o chamaram
E ele, jurando, sofria.

Enquanto assim insistia
Os anos vieram, passaram.
Quando enfim acreditaram,
No amor ele não mais cria.

Na real

Mas eram podres os frutos
E as flores eram fanadas
E cruéis as suas amadas
E os seus amigos uns putos.

Lobo apaixonado

Enlouqueceu por amor e, nas madrugadas de dilacerante insônia, saía pelas ruas e andava até o amanhecer. Quando passava, os guardas-noturnos se inquietavam e não se envergonhavam de rapidamente entrar na guarita. Ele ia dizendo palavras estranhas, que, reproduzidas pelas raras e iletradas testemunhas, soavam como se pertencessem a uma língua desconhecida: constelações fúlgidas, esplendores magnos, ímpares excelências. Não faltaria, entre os que de longe acompanhavam espantados seus giros noturnos, quem garantisse tê-lo ouvido uivar como se lobo fosse e estivesse chamando os companheiros. Morava sozinho e um primo que foi visitá-lo notou não só a algaravia antes observada pelos vigilantes noturnos como também uma alteração no seu rosto, que se alongava como os da espécie lupina. Alarmado, o primo reuniu alguns parentes e o candidato a lobo foi convencido a se submeter a um psiquiatra. Com dez sessões, mais meia dúzia de medicamentos, voltou a usar um vocabulário aceitável e também seu rosto já começa a se recompor. Deita-se agora às dez e dorme a noite inteira. Mas, às vezes, algo no seu sangue ainda fervilha e ele sente o impulso, logo dominado, de sair pelas ruas gritando seus versos e uivando para a lua. Quando se lembra do nome da amada, imediatamente o soterra, empregando uma técnica que o psiquiatra lhe ensinou, dizendo-lhe ser a parte essencial do tratamento. Por enquanto, vai dando certo.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Imolação

Amor por quem eu vivi,
Que bom me haveres matado,
Amor meu, abençoado,
Que bom foi morrer por ti.

Amor por quem eu morri,
Quisera, ressuscitado,
De novo ser supliciado,
Morrer de novo por ti.

Poeta

Não existe diploma de poeta. Alguns são reconhecidos pelos prêmios que ganham, outros pela emoção que provocam e uma infinidade de outros pela insistência com que se proclamam eleitos pelas musas. Nenhum, porém, teve o mérito declarado tão gloriosamente quanto aquele que certa madrugada, declamando uma ode para a lua, numa praia, morreu depois que uma estrela, cativada por seu poema e julgando-o feito para ela, se desprendeu do céu e se enfiou amorosa em sua garganta versejante.

Gracias

Eu te agradeço por teres
Me envolto em tão grande apreço
E, mais que tudo, agradeço
A dádiva de assim seres
E, sendo como és, assim,
Tudo seres para mim.

Saltimbanco

Não sabe por que o sol toda manhã insiste em voltar com suas trampolinagens para tentar engodá-lo. Abre a janela e sempre vê a mesma cena: o velho trapaceiro convocando o aroma das flores, o canto dos passarinhos e tudo mais que possa entreter a humanidade e impedi-la de pensar que no final do caminho há frio só e trevas. Deixa que o sol faça seus números de malabarismo, dê piruetas, conte suas rançosas piadas e cantarole suas musiquinhas infantis. Não ri, nem sequer sorri, receando que o astuto saltimbanco venha a ver nisso aceitação ou aplauso. Não concede ao espetáculo mais do que cinco minutos, tempo suficiente para bocejar, se espreguiçar, fechar a janela e, no simulacro de noite que consegue com todas as cortinas e frestas fechadas, esperar que a noite real venha e mande o farsante se exibir em outro palco.

Paulista despedaçada

Agora, quando acaba de subir a escada do metrô Consolação, espanta-o ver que ninguém nota a ausência de algo sem o que a Paulista não pode ser a Paulista. Ali está o sol, as calçadas são as mesmas e também continua lá a livraria onde ele apreciaria ser encarcerado. Mas ele não vai entrar no Conjunto Nacional, ele não entra mais. Falta ali aquilo que também falta no lado de fora: aquela presença radiosa percorrendo as estantes, procurando como um passarinho inquieto livros de Philip Roth, Janet Frame, Zo Heller, Salinger e saindo depois com eles na mochila, como certa vez, para o esplendor da tarde e para o eterno tormento da memória.

terça-feira, 1 de março de 2011

Ombros

Bom tempo aquele. Teus ombros
Minha cabeça aninharam.
Agora, tristes, amparam
Meus destroços, meus escombros.

Resumo

Alguns e-mails, um poema,
Nenhum abraço ou beijoca,
Nenhum teatro ou cinema
Nenhuma bala ou pipoca.

Cupido

Amores pobres, obscuros,
Quem vos cantará, se não
A seta no coração,
Desenho tosco nos muros?

Tigre

Trate o amor como um passarinho. Alimente-o com migalhas, alpiste, farelo e carinho, mas pouco, sempre pouco, para que conserve sua leveza e, no dia em que se for embora, como todos se vão, possa alçar voo graciosamente e cantar, como é de sua natureza. Sei de um homem que tratou o amor como se tigre fosse e, alimentando-o com o sangue da paixão, do ciúme e da luxúria, saiu arranhado, dilacerado, quase morto, quando ele se foi.

Método

Para morrer, não basta se deitar. Seria bom se bastasse. É preciso algo mais, ligado à sorte, ao destino ou à vontade. Como tantas outras coisas (o amor, por exemplo), às vezes é necessário merecer a morte e conquistá-la.

Precedência

Em três meses, o vizinho da direita e o vizinho da esquerda morreram. Talvez por algum obscuro sentimento de direito lesado, porque era mais velho que os dois recentes defuntos, ele andou por várias semanas com um mau humor que se agravou com a morte do dono da padaria da esquina - sessenta e nove anos, três a menos do que ele.

Não

Por mais que seja doído,
Sei, sim, receber um não.
É simples: só abrir o ouvido
E fechar o coração.

Dosagens

Deu-se bem pouco, primeiro,
E o amor não se contentou.
Então se deu por inteiro,
Porém também não bastou.

Grego

O grego que não aprendeu começa a lhe fazer falta. Será biópsia ou biopsia? Será catéter ou cateter? E por aí vai e irá. Um dia - porém aí não será uma dúvida dele, mas alheia - talvez a pergunta venha a ser: necrópsia ou necropsia, autópsia ou autopsia?

O vício

Viu que não tinha mais motivo para viver. Continuou vivendo, porém, por vício, embora todos os dias, cada vez com maior força e frequência, algo lhe lembrasse que não havia sido muito difícil livrar-se do álcool e do fumo e uma antiga coragem teimasse em se mostrar disponível.