O poeta e a estrela

Um poeta deve estar preparado para viver fatos extraordinários, como erguer a mão para o céu e colher uma estrela ou erguê-la e vê-la voltar decepcionantemente vazia.

Qual faz o quê?

Questão de leveza: a borboleta transporta o haicai ou o é o haicai que transporta a borboleta? 

Influencer

 Ter milhões de seguidores é o pior pesadelo para um paranoico.

Alerta

Um dos itens do manual de sobrevivência dos haicais recomenda que, ao menor sinal de gongorismo, fujam com quantas pernas tiverem.

O pecado de Deus

 A desproporção com que Deus usou o verde em sua obra máxima, e que hoje é reconhecida pelos críticos como um dos mais gritantes erros da Criação, só começou a ser notada depois do advento do futebol, principalmente a partir de 1910.

Estatística

Das loiras de sua vida, a mais gelada e hostil foi a inconquistável Estocolmo. 

Ainda

Cantar os dias de pompa,

Lembrar as noites de febre,

Antes que o fio se rompa,

Antes que a vida se quebre.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/11/27/es-to-col-mo-raul-drewnick/

Descoberta

 Um dia talvez descubramos

por que estamos aqui

para que viemos

E será uma revelação

tão simples

tão sem afetação

e filosofia

que nos olharemos 

e diremos

ora é isso então

isso nós já sabíamos

isso nós sempre soubemos.

Apelo

Quatrocentos sonetos depois, peçam-me tudo, menos que eu fale mal deles, ainda que mereçam. 

Perfil

Se tenho alguma virtude,

Ela é meu comedimento.

Não sou gênio, nem portento,

Fiz sempre só o que pude.

Excelência

O suicida transforma

um acontecimento banal

numa obra autoral.

A tarefa

 Devemos ter ainda

alguma coisa a fazer

Provavelmente 

nada grandiloquente

mirabolante importante

Talvez só suspirar

uma vez duas três

antes de estrebuchar.

Assuntos poéticos

Digam-me que um poeta deve ter assuntos mais preciosos do que o amor, e eu lhes direi que vocês estão agudamente enganados. 

Histórico

 Já de longa data

sou para mim

persona non grata.

Memória

Nós nos permitimos ser

Tão maus e pecaminosos

Que talvez já nem morrer

Possa fazer-nos virtuosos.

Discípulo

Aplausos e homenagens não mereço

Por minha surpreendente evolução

Nas artes da prestidigitação.

Mister Parkinson manda, eu obedeço.

Projeto

Que eu possa, estando onde for,

Sempre esta ventura ter

De inflar o peito e dizer:

Vim a serviço do amor. 

Indícios

Morreu tão cedo

após uma vida tão discreta

que só muitos anos depois

um papel ou dois

achados numa gaveta

revelaram que talvez 

tivesse sido

ou talvez tivesse podido ser

um poeta.

Na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/11/13/os-crimes-perfeitos-raul-drewnickl/

Medida

A de vocês eu não sei,

Posso falar-lhes da minha.

Minha história cabe inteira

Nos versos de uma quadrinha.

Geografia

 Estocolmo é tão longe, e estes meus passos

Que não conhecem mais que o aqui e o ali,

Levaram-me, por perdas e fracassos,

À Barra Funda e ao Alto do Pari.

Modéstia

 Reduz a voz, toma tento,

Não assumas esses ares.

Se Deus te deu um talento,

Não foi para te ufanares.

Desmancha-prazeres

É um desses adultos perniciosos

que desiludem os meninos fantasiosos

explicando-lhes tim-tim por tim-tim

que na história de Ali Babá

a palavra mágica

não é tão mágica assim -

sésamo é gergelim.

Coragem

 Um escritor precisa ser sobremaneira corajoso para usar certas palavras. Sobremaneira é uma delas.

Ode à rainha

Rainha minha, onde estáveis?

Desde o dia em que partistes

Vos chamam meus versos tristes.

Rainha, não me escutáveis?

Aonde vós vos ocultáveis

O vento não vos levava

E nem o eco duplicava

Minhas palavras amáveis?

Não importa. Vós voltastes

E talvez vos deem prazer

As que hoje tenho a dizer

E as que então não escutastes.

(Vieram-me hoje estes versos estranhos, que parecem soprados por um poeta muito antigo. Vocês acreditam nesses fenômenos?) 

Patrimônio

Houve um tempo em que andei ocultando minha tristeza, não por modéstia, mas por astúcia. Receava que olhos invejosos resolvessem tomá-la de mim. Se alguém, vendo-me calado, me perguntava se eu estava triste, eu sorria. Triste? Não, estava só pensando.

Trégua final

Que alívio é confessar-se derrotado,

Não ter mais atitudes a assumir,

Que cômodo entregar-se, desistir,

Morrer sem glória ou culpa, apaziguado. 

Nemo

Estou onde não estou.

Uso a força do meu ser

Para me desconhecer.

Quando eu me nego é que eu sou. 

O parceiro improvável

Há quem agradeça a Deus cada parágrafo escrito. Eu, não. Acredito que seria presunção minha e dos meus parágrafos.

O perfil ideal

Tem saudade do tempo em que era um poeta jovem, com olhos verdes, rosto grego e cabelos tão esplendidamente dourados que seria uma indelicadeza apontar defeitos nos seus versos. 

Inspiração

Triste é chegar aos oitenta e descobrir que não se tem senão a idade para enaltecer com nossa voz pré-tumular.

Renascimento

Já na primeira vez em que se dispôs a narrar episódios de sua singular experiência com a condessa, notou que certos adjetivos, que pareciam haver esgotado o vigor nos seus escritos de adolescente, reapareciam, como se estivessem ainda naquela mais dourada de todas as épocas.

Grandeza

 Podemos ser grandes até diante de Shakespeare. Leitores, naturalmente.

A verdade

Falando bem francamente,

Um soneto nada traz

Além de dano ao ambiente

E vergonha a quem o faz.

Atitude

Tenhamos nós honra, ou não,

Devemos, por aparência,

Proclamá-la com veemência,

Defendê-la com paixão.

Ensaio

Toda vez que brincamos de espantalho,

Se, quando chega o instante de fingir

Que o vento me sacode o corpo eu falho,

Mister Parkinson faz-me repetir. 

Promoção póstuma

Era um morto bisonho, num velório comum. Mas, de repente, em algum lugar, talvez no colégio da rua vizinha, uma banda fez explodir sons triunfais pelo ar. Os netos gêmeos do velho defunto, duas crianças de seis anos, Joana e João, começaram a dançar, gritando viva, viva, enquanto os adultos sorriam reverentes, como se houvessem descoberto que dentro do caixão estava o homenageado pela música estrepitosa.

O soneto perdido

 De volta para casa, depois da caminhada matinal, o poeta notou que não estava mais em seu bolso o soneto que tinha escrito à sombra de uma árvore, no parque. Ouvindo suas queixas, a mulher consolou-o, com uma frase que ele não soube se era irônica ou poética: "Vai ver que que ele virou passarinho e voou."

Perfil

Posso tudo aparentar

posso tudo ser

menos destro.

Não tenho mão de pintar

não tenho mão de reger

não sou mestre

não sou maestro.

Sou estouvado

sou desnorteado

sou ambicanhestro.