domingo, 29 de junho de 2014

Desencontro

A morte não nos avisa,
Conosco faz o que quer,
Não vem quando se precisa
Nem quando mais se requer.

A cova

Agora que o amor
não é mais nada
além de uma semente gorada
e nossa fome não se sacia
com a fruta dourada
que ele nos prometia

que nós o cantemos
em nossa poesia
não com uma elegia
mas seja uma simples trova
a prova de quanto se merecesse
ele nos mereceria

e tapemos a sua cova
de onde não nos proveio tesouro
para que nunca a chuva
vindo nela se empoçar
possa sequer uma formiga
ou um besouro afogar.

Arritmia

Depois que a musa daninha
Lesou o meu coração,
Me cansa qualquer quadrinha,
Sufoco num quarteirão.

O amor nos enlouquece

O amor nos enlouquece
nos alucina
nos desatina
nas horas em que
a memória se esquece
de que não devia lembrar
e lembra um sorriso
um olhar
uma frase
um poema
depois uma dezena
uma centena de frases
e de poemas
que prometera ignorar

O amor nos enlouquece
nos exaspera
nos maltrata
nos dilacera
nos mata
nas horas vespertinas
nas horas noturnas
e nas horas matinais

Ah, que houvesse
além dessas vespertinas
dessas noturnas
dessas matinais
que nos matam
e nos enlouquecem
outras tantas
muitas horas mais.

sábado, 28 de junho de 2014

Pra Porto Alegre, tchau

Ainda há, parece, quem goste de literatura. Viajo amanhã para o Sul. Estarei durante a semana em Cruz Alta, Santo Ângelo, Três de Maio e Dois Irmãos, para bate-papos com alunos e professores. Volto quinta, à noite. Deixarei aqui no blog uma provisão, para que vocês continuem tendo contato com a literatura, ainda que, no caso de textos meus, não seja a maneira mais adequada (*).

(*) Não tenho smartphone nem tablet e, se tivesse, não saberia usá-los. Se houver algo mais simples nos hotéis pelo caminho, tentarei enviar alguma coisa. Até.

Poemas e poesia

Fazer poemas nós conseguimos. A poesia, não. Ninguém faz a poesia. Ela se faz e, por condescendência, permite às vezes que o poeta revele algo dela, aquilo que as insuficientes palavras conseguem captar. Deixar-se traduzir inteira é raro. Sabe-se de um caso, no máximo três. Rilke é um deles.

Radical

Os médicos não têm mais
paciência com tratamentos
tudo é logo cirurgia

A um poeta
que se queixava de melancolia
um deles cortou a metade
esquerda da poesia.

Da transitoriedade da poesia

Havia quem sempre me desejasse bom pastel e boa feira. Não mais. A poesia é assim, pode ir embora de um dia para outro, e é triste caminhar aos sábados entre as barracas.

Fomos perdulários

Fomos perdulários e deixamos que os dias felizes passassem diante de nós como rios caudalosos. Não guardamos uma gota sequer de nenhum deles, e nossos lábios, e nossa boca, e nossas lágrimas hoje morrem de sede.

Presente

Que belo presente me deste
uma passagem
uma viagem
por um céu azul
para o leste
para o oeste
para o norte
para o sul
para a morte

Bilhetinho

Maior que a vida,
Em mim não cabes.
Eu sei, querida,
Só tu não sabes.

Injustiça

À noite ele se deita, se acomoda, se cobre e se acha indigno por proporcionar conforto ao corpo, enquanto sua alma é como um cão largado na rua.

Preservacionismo (para Priscylla)

As mulheres dedicam-se
a questões ambientais
e à defesa de animais

enquanto os homens
com inúteis bruxarias
tentam transformar-se
em espécies vegetais
e lontras esguias.

Inútil semeadura

Se a tristeza não mata, por que insisto em cultivá-la?

Cotação do dia

Já se foram a prorrogação e os pênaltis. O estádio se esvaziou, e eu - bola reenfiada no saco - tenho saudade dos chutes que me deram.

Um dia a mais

Um dia a mais é abençoadamente um dia a menos. O último está mais próximo e, quando ele vier, nada - nem mesmo o amor - nos atormentará mais.

Ofício

Que indícios posso eu, que provas
Do meu ofício mostrar?
Quem há de poeta me achar
Lendo estas míseras trovas?

"O negativo", de Eugenio Montale

"Gemas de um mesmo ovo os jovens entram
nas arenas da vida. Vênus
os conduz, Mercúrio os divide,
Marte o resto fará. Não brilharão
muito tempo sobre a Acrópole as luzes
desta primavera ainda tímida."

(De Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)

O canto, ainda

Um fiapo do canto de um pássaro ficou na ameixeira, em um dos seus galhos. Quando o vento o balança, ele emite de novo seu som. Talvez seja minha imaginação exacerbada, minha tristeza, não sei, mas acho que essas duas ou três notas virão a ser recolhidas pelo pássaro. Fazem parte de um canto de amor - e um canto de amor há de ser completo.

Sobre apalpar e apertar

Minha poesia agora
é um setuagenário
bancando o sexagenário

Buscando uma rima para rosa
ele entra na floricultura
as flores todas toca
e pergunta o que é isto
uma hortênsia uma orquídea
uma margarida uma prímula
um lírio um narciso

Perguntando e apalpando
apertando e examinando
toca todas as flores

Quando ele sai
todas as cores
todos os olores
na loja murcham
como murchos agora estão
as coxas os seios
que ele apalpou outrora
em seu pleno verão.

Eufemismo

O suicida de boa família não se mata. Morre-se.

Questão de língua

Somente depois de consultar a próclise e a mesóclise te darei ou dar-te-ei um beijo. A única sem-vergonhice proibida ao amor é o desrespeito ao vernáculo.

O amor é um bebê no colo da mãe

O amor, para mim, é hoje como um bebê que a mãe conduz no colo por por um campo desabitado. A tempestade de neve a desorientou. A aldeia mais próxima fica a cinco quilômetros, mas a mãe caminha na direção contrária, voltando sobre os seus passos. Ela ajeita o cobertor, aconchega o bebê ao coração e finge não notar que ele está roxo.

Soneto de quem depende de mão alheia

No tempo em que eu era forte,
Ou não era fraco assim,
E pensava ter a sorte
De amar-te e amares a mim.

No tempo em que eu me movia
Sem este esforço e esta dor
E em que com fervor eu cria
Ser sincero o teu amor,

Com desprezo me trataste,
Riste de mim e zombaste
Porque eu te queria minha.

Posso hoje estranhar então
Teu asco quando com a mão
Me pões na boca a sopinha?

Desforra

O amor de nada se esquece
E nunca nos dá perdão.
Vem sempre (quando aparece)
Com quatro pedras na mão.

Veneno

Estamos mortos, porém
O amor vem com seu jeitinho
E nos aponta o vidrinho:
Quer mais um pouco? Ainda tem.

Um poema de Bruno Tolentino

"O coração, enfermo porque vive
do que morre, debruça-se à janela,
vê a luz desertando-o no declive
entre a vida e a paixão do ser por ela,
   e comovido vai compor a tela
em que a reduz para retê-la. Eu tive
essa mesma ilusão, compus a bela
equação passional da mente livre
   e pus meu coração nesse vazio.
Mas falhei. Ele nunca permitiu
o oásis ilusório na epiderme
   sensível do real. Eu tinha um verme
no coração, que foi roendo o fio
da ilusão e acabou por socorrer-me."

(De O mundo como ideia, publicado pela Editora Globo.)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Matéria-prima

Ideias boas só servem
Para teorias, teoremas.
Se o que tu queres são poemas,
São palavras que os escrevem.

Vida

Ir sumindo aos poucos, como o veleiro da tela na sala quando vai chegando a noite. Não acender a luz, deixar que se entranhe o escuro e, de manhã, não ver, onde ele havia estado, senão um minúsculo traço de vela branca que, olhado de perto, se revelará não mais que um suspiro claro de espuma.

O tamanho dos sonhos

Os sonhos devem ser grandes, descabidos, insanos, despropositados, inversamente proporcionais à nossa miséria. Eu uma noite, com uma escadinha doméstica de três degraus, julguei possível armá-la no quintal para colher uma estrela.

O risco

Não abrirá a janela, hoje, para dizer bom dia. Não quer correr o risco de contaminar a cidade com os germes do seu amor alucinado.

Gratidão

Haveremos de ser gratos àqueles que nos ensinaram a lição da amizade. Haveremos de ser ternos como fomos antes que o fogo da paixão acendesse equívocos em nosso sangue. Haveremos de ser alma, alma só, alma, alma. Devolveremos a pureza às nossas mãos e reencontraremos a paz. Nos sentiremos dignos, outra vez, daquele tipo de afeto que aquece o coração sem incendiá-lo.

O dia

Chegará o dia em que, fisgados e atirados a um balde cheio de gelo, agonizaremos ao sol. Perturbaremos com nossos espasmos a recém-conquistada paz dos outros peixes, até que tenhamos direito à nossa própria morte e à nossa própria paz. Serão belas nossas contorções de prata, até que, finalmente serenados, já não nos importe nada, nem a evisceração nem o preço que atribuírem a nós, numa quinta-feira de ofertas no supermercado.

"Vida em comum", de Alberto Martins

"no meio da
rua no meio
da noite

os dois
andam abraçados
aos pacotes de leite & pão
que transportam para a manhã seguinte

- às vezes a vida parece mesmo essa matéria escura
mistura de asfalto e
brita e
alguma coisa
dura
que atrita os pés
daqueles dois
que sobem a rua

no meio da."

(Do livro Em trânsito, publicado pela Companhia das Letras.)


Fernanda Lima

Quando Fernanda aparece
A brisa põe-se a cantar,
E o sol, quando a reconhece,
Se aproxima, para espiar.

Ofício poético

Desde o início ter dito as mesmas coisas, sempre em vão. E ter continuado a dizê-las, em vão, em vão, em vão, sempre e sempre em vão. Querer dizê-las ainda, e lamentar somente que seja pouco o tempo, agora. Mas dizê-las, dizê-las, ainda que em vão. Dizê-las.

Soneto do amor que a um cão se assemelha

Depois que o amor nos conhece,
Podemos tudo mudar,
O rosto, o jeito de andar,
Que ele jamais nos esquece.

E, achando que nos merece,
Para de nós se apossar
Seus fios põe-se a fiar
E sua teia entretece.

Nós dele nos esquivamos,
Porém por mais que façamos
Consegue nos descobrir.

E, como um cachorro triste,
Nos segue, nos lambe, insiste,
Esgoela-se de latir.

Por dois

A morte é um número inteiro
Que se divide por dois:
Os sonhos morrem primeiro,
Ela só chega depois.

Alimento

Afeto insano, fatia
Amarga da desventura,
Te provo ainda, dia a dia,
Ó pão de minha loucura.

Às moscas

Cansaram suas canções.
Já ninguém mais dá ouvidos
Aos seus pungentes gemidos,
Nem mesmo os próprios botões.

"Depois da chuva", de Eugenio Montale

"Sobe a areia molhada surgem ideogramas
de pés de galinha. Olho para trás
mas não vejo nem santuário nem asilo de aves.
Terá passado um ganso cansado, ou talvez manco.
Não saberia decifrar aquela linguagem
ainda que fosse chinês.Uma simples aragem
a apagará. Não é verdade
que a Natureza seja muda. Fala ao deus-dará
e a única esperança é que não se ocupe
muito da gente."

(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Boa-noite

Parece ter havido um tempo em que alguém ouvia com prazer nosso boa-noite, e esperava por ele.

Para quê?

Quando o amor já não nos importa tanto, a vida já não nos importa nada.

Nova fase

Depois dos setenta
quando tudo nos dói
e nada nos alivia
mudam nossos vilões
mudam nossos heróis
nossas imprecações
e nossa poesia

ahvidadura
ahneurisma
ahbscesso
ahcupuntura
ahDeus
ahdeus.

A nuca

Conhecem-se há um mês e ele desde o primeiro dia vem tentando beijar-lhe a nuca, porém sempre ela dá sinais, até ríspidos, de que não quer. Já foram duas vezes ao motel, já se exercitaram em amplo repertório, mas, quando ele aproxima os lábios de uma das orelhas dela, ensaiando fazê-los escorregar para a nuca, ela os afasta. Talvez imagine que beijar a nuca seja um pretexto dele para, dali, conquistar um pouco mais de território nas suas costas. Mas ele nem pensa nisso. Abriria mão de tudo mais. Quer só, para seu prazer máximo, levantar os cabelos dela e beijar-lhe, fio por fio, a penugem que supõe haver debaixo deles.

Axila

Às vezes, como hoje, é de água salgada sua sede. Reminiscências de praia e de mar vêm-lhe à língua e ele, como agora, olha guloso para o suor que brilha na pele dela, e para a blusa cavada, sempre que ela, levantando o braço para ajeitar os cabelos, deixa à mostra a perturbadora axila.

Escolha

Para aquele que não gosta
Da vida vivida em paz,
E do sossego desfaz,
O amor é a melhor aposta.

Manoel de Barros

Se voasse, Manoel de Barros seria todo passarinho.

Retoques

Às vezes a memória me traz lembranças tão vívidas e venturosas do amor há tanto tempo morto que eu me pergunto se ela não é como Darlene, a maquiladora de defuntos interpretada pela estupenda Marília Pêra na série Pé na cova.

Sobre os méritos do sofá

Vocês eu não sei. Para mim, as noções de conforto e bem-estar são muito bem preenchidas por um personagem desses que qualquer casa, até a mais humilde, tem: o sofá. A qualquer hora da manhã, da tarde ou da noite, sento-me na sala e sinto-me abençoado. Ao meu lado já estiveram Shakespeare, Dostoiévski, Machado, o Bruxo do Cosme Velho, as divinas Emily Dickinson e Wislawa Szymborska, entre tantos outros e tantas outras. Tenho sempre dois ou três desses amigos à mão e com eles faço diariamente as viagens com que sonhei na infância. Meu sofá é meu barco, e meus marujos conhecem todas as rotas da vida. Deixo-me conduzir para o mar por Conrad, para o mau caminho por Bataille, para o absurdo por Kafka, para o niilismo por Beckett. E, para os caminhos da morte, se eu quiser explorá-los, conto com Florbela, Virginia, Ana Cristina, Sylvia. Meu sofá é cada dia mais meu barco, minha casa. Dele só sairei para uma viagem longa e única, na qual não poderei levar meus livros.

Mariana Ianelli e a prosa poética

Alguns escritores - Mariana Ianelli é um dos exemplos máximos - conseguem consumar o quase milagre da prosa poética. A maioria - noventa e nove por cento - não vai além da prosa prosaica.

"A venda", de Bruno Tolentino

"A voz do amor vem várias vezes,
mas a alma ama uma vez só.
De estrelas há um milhão e treze
e somem quando um sol só

recobre-as todas de ouro em pó.
No céu em que eu andei às vezes,
as belas balelas dos deuses
- neoclássicas, de um rococó

ou de um barroco de encomenda
ou de ilusão - de vez em quando
iam chegando e iam passando,

até que um dia um ser de lenda
passou por lá e pôs-me a venda
da luz total nos olhos cândidos."

(Do livro O mundo como Ideia, publicado pela Editora Globo.)

Sic

As coisas assim são postas:
Novos dias nos desprezam
E os dias mortos nos pesam
Como defuntos nas costas.

Tabela Price (para o Verissimo)

Por aquele afeto puro
Que era o meu sol e o meu dia,
Mil vezes eu morreria,
Ou um milhão, mais o juro.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um desses pretextos que os bem-te-vis usam para cantar de manhã.

Disparates

Por amor, está pensando em coisas disparatadas, e no entanto cabíveis: uma greve de fome, por exemplo. Quantas greves já não tiveram como pretexto causas nem tão nobres assim? Irá encerrar-se numa gaiola bem grande, na praça da Sé, só com uma canetinha e alguns blocos de papel. Talvez, quando o público for pequeno, possa comer sorrateiramente as rosas que tiver colocado nos poemas.

Pode-se?

Pode-se mesmo amar tanto?
Tendo ou não tendo esperança,
O meu amor não se cansa,
Nem se enfraquece o seu canto.

O "x"

O problema da beleza interior é que ela não aparece nas selfies.

Fernanda Lima

Em Fernanda não há nada
Que equilibrado não seja,
Nem nada que não esteja
Na proporção adequada.

Sentimento zero

Sinto nos novos poetas quase uma vergonha de expressar sentimentos. São contidos, secos, quase ásperos. Se alguém lhes perguntar onde deixaram o coração, é provável que respondam com outra pergunta: o que é coração?

Primazia

No campo de prisioneiros,
Amor, o Exterminador,
No forno incinerador
Vai colocando os parceiros.

"Povo errante", de Alberto Martins

"na esquina do farol
o menino me empurra
duas balas por um real.
Dou a nota
mas digo para guardar as balas.
Ele insiste
- pega a bala, doutor -
quer completar a transação.
O sinal continua fechado.
Pergunto seu nome.
Moisés.
Aquele mesmo
diante de quem um dia
se abriu o mar vermelho."

(Do livro Em trânsito, publicado pela Companhia das Letras.)

quarta-feira, 25 de junho de 2014

A prodigalidade do amor

Quando nos vê na calçada,
O amor, esse vira-lata,
Levanta a terceira pata
E nos dá uma mijada.

Me dá uma morte honrada,
Nós lhe pedimos, me mata,
E ele então, com a quarta pata,
Nos dá mais uma mijada.

Mais rápido, por favor

Quisemos dizer coisas amenas, afetos, amores. Dissemos essas coisas amenas, esses afetos, esses amores. Ninguém nos deu atenção e, se dissermos que morremos cada dia um pouco, por essas coisas amenas, por esses afetos, por esses amores, certamente nos sugerirão: pois morram logo, e de uma vez.

Teste

Às vezes passo as mãos no rosto, para sentir de que asco eu poupo aqueles que nunca tocarei.

Tal qual

Posso queixar-me de como os outros me julgam, eu que dia e noite me maldigo?

Compra & venda

De tanto o amor procurar,
Já me fartei de saber:
Amor se pode vender,
Mas não se deve comprar.

Semente

Semente de amor gorada,
O sol me castiga aqui
Onde ainda espero por ti
E tua sombra abençoada.

Prece

Oremos por aqueles que, tendo mostrado seu ponto mais vulnerável ao amor, foram feridos em todos, menos nesse, e esperam que hoje seja o dia do golpe definitivo, o de misericórdia.

Aspirador

Sentado aqui no sofá
Está alguém triste e só,
Alguém que veio do pó
E que ao pó retornará.

Um poema de Emily Dickinson

"O coração tem bordas estreitas
E, feito o mar, se mensura
Por um poderoso baixo contínuo
E monotonia azul

Até que um furacão o seccione
E, enquanto descobre
Seu insuficiente espaço,
Aprende em convulsões

Que a calmaria é tão só muralha
De intocada gaze:
A pressão de um instante a destrói,
Um questionamento a esgarça."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)

Morrer?

Por que nos importamos tanto com a morte? Tentamos adivinhar-lhe a face, o modo como virá. Por quê? Todo dia morremos um pouco e não nos damos conta. A cada tarde o sol nos mostra como é morrer, quando se apaga resignado e descolore o verde das folhas e dos frutos. Todo dia nos apagamos um pouco, toda noite morremos quando fechamos os olhos. Não é tão mau assim. Perguntem aos frutos, conversem com as folhas.

Dizer bom dia

Dizer bom dia ao amigo distante, à amiga fugidia. Não nos ouvirão, mas talvez pressintam que pensamos neles ainda e, olhando para uma nuvem clara, ou um pássaro, suponham ver, escritas nela, ou ouvir, por ele cantadas, essas duas palavras que nosso sentimento dita com o que o coração ainda guarda de calor e chama.

Fernanda Lima

No dia do aniversário
Dou-te um presente mofino,
Quatro versos, nem um hino...
Merecias um hinário.

Morte feliz

Que morno mal me agonia...
Sofrer de amor é tão doce
Que se um pouquinho mais fosse
De doçura eu morreria.

Soneto que adverte sobre os riscos do amor

Já temos coisas demais
Com que nos preocupar,
Coisas sérias, essenciais,
Por que outras adicionar?

Melhor tudo assim deixar
Seguindo os rumos normais
Que um novo lance arriscar
E por menos trocar mais.

Que bela casa habitamos,
Que santa paz desfrutamos,
Que mais podemos ansiar?

Se o amor entrar, quem garante
Que não ponha, num instante,
Tudo de pernas para o ar?

Inverno

Com neve já no cabelo
E frio no coração,
Componho minha canção
Com frases feitas de gelo.

Rousseau

Se fôssemos definir Rousseau pelo que Voltaire achava da teoria exposta no Contrato social, ele seria um quadrúpede advogando em causa própria.

A hora

Sei que já não devo ter
Nem mais anseio nem ânsia.
Na hora de morrer, viver
Não tem nenhuma importância.

Receio

Teme que um médico seja chamado e, quando começar a auscultá-lo, o ar se povoe instantaneamente de trinta e três pombos brancos.

"Casa de chá, Hoshioka", poema de Liu E

"Uma rapariga, modestamente veste. Macia cútis.
Aqui em Hoshioka um cenário esplêndido, e
Nem canções inebriantes nem lascivas danças, hoje
Somente uma 'pequena dama' falando comigo das coisas da poesia."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

terça-feira, 24 de junho de 2014

Cemitério

Seria bom passear aqui
por estas alamedas
num dia ensolarado

Com que gosto eu andaria
se já não estivesse tão bem morto
e tão profundamente sepultado.

Soneca

Ainda balança, na corda.
A mosca cócegas faz
Na frente do rosto, atrás,
Porém ele não acorda.

Merecimento

Aos que morreram de amor
De ouro há de ser a medalha
E seda pura a mortalha,
Tecida em fino lavor.

Pensamento

Quando pensa se Priscylla por acaso não é só uma criação do seu cérebro viciado em poesia, ele sorri da própria estultície: admitir isso seria como crer que alguém pudesse jogar uma moeda para o alto, uma noite qualquer, e vê-la voltar à mão sob a forma de estrela.

Preço

Não me custa dizer-te boa noite. Tem-me custado não dizer-te.

Opinião

Se me permitem dizer,
Se me consentem julgar,
Viver é um modo de ser,
Morrer é um modo de estar.

Viaduto Santa Ifigênia

No meio do salto, imaginou o que os passarinhos estariam falando dele: mais um sem nenhum jeito.

Jornal

É um fato constante, diário.
O amor é como um defunto
Que por falta de outro assunto
Acaba no noticiário.

A lógica da ficção

Se na narrativa um personagem disser que matou Jesus Cristo, acredite. Se no parágrafo seguinte Jesus Cristo garantir que está vivo, não duvide.

Talião

Contra ele, qual a medida?
Nem punhalada nem tiro,
Nem corda nem formicida.
O amor não vale um suspiro.

Um poema de Alberto Martins

"UMA FOTO DE ROBERT CAPA (1913-1954)

cinco ou seis homens
mergulhados na lama
até a cintura
Não posso sentir
a água subindo
dentro das botas
nem os líquidos
que vazam nos uniformes
Mas vejo a foto e sei
que numa fração de segundo
estarão mortos
Posso também abrir os olhos
e aprender a morrer."

(Do livro Em trânsito, publicado pela Companhia das Letras.)


Soneto dos alertas que menosprezamos

De tudo fomos privados:
De nossos belos anseios,
De todos os devaneios,
De nossos sonhos dourados.

De nada fomos poupados:
Todos os nossos receios
E os pesadelos mais feios
Foram todos confirmados.

Sentados sobre os destroços
De todos os ideais nossos,
Deploramos nossa sina.

Tantos alertas ouvimos,
De todos porém nós rimos,
E o amor foi nossa ruína.

Fernanda Lima

Quer se chame de feitiço,
De dom ou taumaturgia
Esse pacto com a alegria,
Fernanda Lima tem isso.

Empenho

Cada gota do seu sangue está hoje empenhada em regar o solo dos poemas que, quando chegarem às mãos da bem-amada, se abrirão em flores.

Profissão vida (para o Xico Sá)

Bem sei que se ainda estou vivo
É por ser bom empregado.
Viver é tão cansativo
E tão mal remunerado...

O ritual

Ele repousa a mão no tufo ruivo e encaracolado. Porque esse é o ritual, espera que a mão dela pegue a dele e oriente seu dedo mais aventureiro e venturoso a explorar a fonte salina.

Piração

Meu coração é como o braço de um viciado. Não há um ponto em que o amor não tenha enfiado a agulha da amargura e, no entanto, ele continua a me mandar às esquinas, em busca de mais.

"Uma manhã", de Mariana Ianelli

"Haverá nisso pureza, sob a luz
Que ainda nos chega
De uma estrela há anos extinta:
Duas sombras que se amam
Porque foi em outra vida
A encruzilhada
De irreconciliáveis diferenças.

Desabrochada da noite
Como de um combate imenso,
Uma centelha do princípio dos tempos:
Numa cama de escombros
Nosso abraço inevitável,
Nossa nudez sem vexame
No ermo das coisas desfeitas."

(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Web

Viciar-se em internet não é uma micro, é uma macrodependência.

Evoé Baco (para o Verissimo)

No tempo em que eu entornava
Copos, tonéis e barris,
Líquido nenhum poupava,
Nem mesmo os pingos dos is.

Carimbo

Amor, quem pode falar
Que se atormentou, sofreu,
Que se afligiu e viveu,
Sem teu carimbo levar?

Batalha

Mesmo com toda a leseira,
O amor às vezes esquece
Que tudo nele fenece,
E ainda desfralda a bandeira.

Talento precoce

Bem cedo eu dominei a linguagem dos derrotados. Uma das coisas que melhor aprendi a fazer, na infância, foi bater palmas.

Um poema de Li Yi (748-827)

"Casei com um mercador das Gargantas
Um dia e outro e eu sempre à espera -
Se adivinhasse da maré a constância
Teria casado com um rapaz do Rio. Cabriolam."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução Gil de Carvalho, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

Fernanda Lima (para a Élly e o fernandalimaguria)

Fernanda, musa de tantos,
De todas nossas etnias,
De todas nossas Bahias
E dos Espíritos Santos.

A natureza dos tolos

Os tolos são como os peixinhos sem valor. Facilmente fisgados, são também facilmente jogados de volta à água. Alguns, ainda mais tolos que os outros, afeiçoam-se ao predador e mordem de novo o anzol, e de novo, e de novo.

De B(b)arros

Manoel de Barros aprendeu suas passarinhices com o irmão mais velho, o joão.

Tapa-olho

É tolo, idiota ou demente
Aquele que acreditar
Que o amor não sabe enganar,
Que o amor não finge nem mente.

"Tigres brancos", de Mariana Ianelli

"Podemos ser pródigos
(Verdadeiramente pródigos)
E não voltar às mesmas velhas histórias,
Não recontá-las tantas vezes
Até que se tornem
As fábulas do medo,
Do desejo e da revolta
Em que se gastam mais uma vez
O nosso tempo e a nossa sorte -

Podemos ser aqueles
Que nunca mais retornam,
Os que merecem desta vez
O tempo presente -
A página imaculada -
Esse halo de majestade
Dos tigres à beira da extinção,
Sem rasto de vidas pregressas
E sem um fio de esperança."

(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)

Fernanda Lima

Musa primeira entre mil,
Fernanda verde-amarela,
Joia da Copa mais bela,
Ouro puro do Brasil.

Julianne Moore

Hoje não me lembrava
do nome da atriz
que às vezes acho que tem
e às vezes acho que não
olhos como os teus
e igual nariz

Quando finalmente lembrei
me senti abençoado
como se tivesse
pecado contra ti
o pecado mais horrível
e tivesses me perdoado.


Soneto de tudo que eu poderia ter feito

Por teu amor eu faria
O mar parar de rugir,
O sol à noite surgir
E a lua brilhar de dia.

Por teu amor eu seria
Capaz de o mar instruir
A teu nome repetir
Em vagalhões de alegria.

Por teu amor eu talvez
Pudesse coisas fazer
Que mais nenhum homem fez.

Nada fiz, nada tentei,
E dói-me as flores não ver
Que pude e que não semeei.

Talvez um poema

Talvez eu possa
antes de morrer
um poema escrever
que seja aquele
que sempre mereceste

Eu o devo a ti
desde o dia
em que nasci
desde o dia
em que nasceste -
estrela querida
estrela-guia
dos meus infortúnios
e da minha alegria.

Todas as fichas

Por mais que o negue a razão,
Sempre vale mais a pena
Entregar-se a uma paixão
Do que a uma afeição amena.

Um poema da Dama Hou (séculos V-VI)

"A partir do dia em que acedi aos aposentos luminosos
Nunca pude dar mostras da minha profunda gratidão.
Durante os sete ou oito anos no palácio da Porta Longa
Jamais voltei a ver o Senhor meu soberano.
O frio primaveril penetra os ossos na sua pureza gelada
Eis-me aqui melancólica e deitada no quarto vazio
Ou então soprando o vento dar um passeio no pátio embaixo
Sombrios pensamentos lamentos vãos
Todos os dias nisto lamento e amo
Não é frequente ser chamada para o serviço pessoal
A beleza serve para ser repudiada
Lábil é o mandato da vida: Como validá-lo?
Está bem longe realmente o favor do senhor
Suspensos desejos, os da concubina
Não tem ali próximos parentes, de carne e osso?
Sobretudo a velha mãe, na sala do Norte.
Mas este é um corpo sem penas nem asas
Que inventar para poder sair dos muros altos?
A natureza e a vida são seguramente preciosas
É bem duro separarmo-nos delas.
Suspendo um pedaço de seda na trave mestra laca vermelha
O fígado e as vísceras queimam como água a ferver
Ao estender a nuca, ainda me arrependo
Como se com um fio me tirasse as entranhas.
Cheguemo-nos com firmeza ao lugar de morrer
Regressaremos daqui ao reino das trevas."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 22 de junho de 2014

Pró-forma

Se o amor nos traz na coleira
É apenas para jactar-se.
Quem cometerá a asneira
De querer dele livrar-se?

Soneto para a inigualável Tica

Querida Tica, eu te amo tanto que
Até na minha sólida gramática
Às vezes perco toda a antiga prática
E ora eu adoro te, ora amo lhe.

Querida Tica, quem me viu e vê
Tem a noção sólida, pragmática,
Comprovada até pela matemática,
De que um eu era, e dois após você.

Quando te chamo assim, querida Tica,
Tudo no mundo muito claro fica,
Tão claro quanto tudo pode ser.

E lhe agradeço, Tica, porque em ti
Ou em você o amor eu descobri
E a alegria inefável de viver.

Sadomasô

O amor então nos juntou
E chicotadas nos deu.
Alguém quer mais?, perguntou.
Nós gritamos: eu, eu, eu.

"Parte, parte, parte", poema de Alfred Tennyson

"Parte, parte, parte-te
nas tuas pedras cinzentas e frias, ó Mar!
E eu queria que a minha língua pudesse proferir
os pensamentos que se erguem em mim.

Tanto melhor para o filho do pescador
que ele grite com a sua irmã ao brincarem!
Tanto melhor para o jovem marujo
que ele cante no seu banco na baía!

E os navios imponentes lá vão
para o seu abrigo sob a colina.
Mas, oh, pelo toque de uma mão desvanecida
e o som de uma voz que está calada!

Parte, parte, parte-te
ao pé dos teus penhascos, ó Mar!
Mas a graça terna de um dia que está morto
nunca voltará para mim."

(Do livro Poemas de Alfred Tennyson, tradução de Octávio dos Santos, publicado pela Saída de Emergência, Portugal.)

www.rubem.wordpress.com

Conto hoje como, tal qual fiz com tudo que amei, sufoquei a poesia com tão despropositado afeto que ela já nem respirar conseguia. Ornei-a, adornei-a, enfeitei-a de tal modo que já não era possível ver seu rosto, e seus olhos não espelhavam mais a sua e a minha alma, pintados tão extravagantemente quanto os de uma cantora de cabaré.

Aos poucos

Aos poucos o amor volta a andar por algumas ruas próximas, a deixar-se ver, ainda que finja não ser ele e oculte o rosto, como um gato ladrão. Aos poucos ele faz ouvir seus passos perto do portão e, depois que passa, há sempre uma rosa faltando na frente da casa. Aos poucos ele vai recuperando a coragem que um dia o fará roçar a campainha, indeciso. Mesmo que ela não soe, no instante seguinte ele será sufocado pelos abraços e pelos beijos que depois de um salto, como o dos saqueadores de estrada, estaremos prontos para dar-lhe e sufocá-lo de abraços, para que quando ele diga nosso nome o diga entrecortado pela força de nossa paixão e de nossa saudade.

Domingos

Houve outros domingos, em que pulsava a esperança - e o prazer - de dizer algumas palavras, e um nome, que fizessem brilhar a manhã. Foram-se as palavras, e o nome está escondido como o maluco da família, na torre, para poupar o coração.

Mula

Às vezes a vida empaca de tal forma, que nem o chicote do amor consegue fazê-la andar.

Isadora

O destino invejoso, que de amorosos beijos privou seu pescoço de cisne, isentou-se: "Se eu fosse mesmo cruel, teria lhe quebrado as pernas."

Fernanda Lima

Se Fernanda Lima um dia for pintar uma flor, será um autorretrato.

Cartografia

Tocados pela artrite
boiam adernados os dedos
que em antigos dias
percorreram geografias
golfos umbigos
coxas baías
grutas segredos
envoltos em mornos mares
e maresias.

A verdade

A verdade é que eu gostaria de escrever um texto em que houvesse tristeza em cada uma das palavras. Que toda vogal, que cada consoante, fosse intoleravelmente pungente e melancólica e que até as vírgulas dessem vontade de chorar. Que o monitor, assim que o texto recebesse o ponto-final, ficasse úmido e que os leitores me amaldiçoassem por eu lhes estragar o dia. Que eu fosse chamado de doente, pernicioso e nocivo e que a Associação de Saúde Mental conseguisse tirar o blog do ar. Tenho algumas obsessões, mas todas no fundo podem ser resumidas numa só, que eu alimento com o que tenho de melhor na alma: escrever um texto triste, tão insuportavelmente triste, que até violinos guardados há séculos em seus estojos fizessem soar notas agudíssimas, como se de cada um deles tivesse se apossado o fantasma de Paganini. E que todos os pianos do mundo parecessem tocados por Chopin, e chorassem todas as tristezas de todos os homens e mulheres de todos os tempos, desde aquele e aquela expulsos do Paraíso.

Procon

Mesmo com suas cabriolas e suas caretas aliciadoras, o domingo, quando se esgota o seu marketing, acaba se revelando igual a todos os outros dias.

Um poema de Herman Melville

                                 "STONEWALL JACKSON

                        mortalmente ferido em Chancellorsville

                                          (MAIO DE 1863)

O Homem mais temido na batalha,
   Cujas espada e oração longas eram -
                           Stonewall!

   Até ele, que resoluto persistiu no Erro,
Como o podemos louvar? Porém, dias vindouros
   Não o esquecerão com esta canção.

Morto o Homem cuja Causa morreu,
   Em vão morreu e sua marca deixou -
                             Stonewall!
   Sincero no erro, assim sentimos;
Fiel ao que sentia ser dever seu,
   Fiel como John Brown ou o aço.

Implacável derrotou-nos;
   Mas nós compadecemo-nos, na queda -
                            Stonewall!
   Com justiça sua fama banimos; mas soltamos
Uma lágrima sobre o ataúde do corajoso Homem da Virgínia
   Pois coroa de flores não temos."

(De Poemas de Herman Melville, tradução de Mário Avelar, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 21 de junho de 2014

Pavlov

Com o tempo, viver se torna um hábito, como escarafunchar o nariz ou coçar a virilha.

Templo é dinheiro

Com as novas e prósperas seitas, o provérbio mudou: quem chegar primeiro é a mulher do padre.

Amor

Na peça há sempre um pateta
Posto para assegurar
Que o povo vai gargalhar:
Ou um palhaço ou um poeta.

O doce martírio

Sofrer por amor é a suprema delícia que um homem pode gozar. Tolos são os que têm na ponta da língua a conta dos beijos que deram e receberam. Bem-aventurados os que sabem quantas marcas de espinho têm no corpo e quantas vezes por amor morreu sua alma imortal.

Onze meses

Por mim, o ano encurtaria
E iria até só novembro.
Não mais me atormentaria
A dor de certo dezembro.

Um trecho de Lawrence Ferlinghetti

"Estou esperando que a Grande Fronteira seja cuzada
e estou ansiosamente à espera
que o segredo da vida eterna seja descoberto
por um obscuro clínico geral
e me salve da morte certa
e estou esperando
que a vida comece
e estou esperando
que cessem as tempestades
da vida
e estou esperando
por zarpar para a felicidade
e estou esperando
um Mayflower reconstruído
que chegue à América
com os direitos de sua história
já vendidos antecipadamente para os nativos
adaptarem para os quadrinhos e a TV
e estou esperando
que a melodia perdida ressoe novamente
no Continente Perdido
num novo renascimento do maravilhoso."

(Do poema "Estou esperando", tradução de Sergio Cohn, extraído da antologia Poesia beat, publicação da Azougue.)

Aviso colado no micro

"Saí por alguns instantes. Voltarei logo, espero, porque estar aqui escrevendo é minha única esperança de me salvar dos homens de avental branco. Talvez recolha na rua alguma história mais agradável do que essas que venho contando. Talvez veja um bebê esforçando-se para com seus poucos dentes abrir um sorriso para a mãe, na padaria. Talvez eu seja atendido pela caixa que me chama de moço. Talvez alguém me diga boa noite. Não estou em condição de querer mais. Basta-me pouco, qualquer coisa. É até bom que seja assim. Se alguém me disser uma frase amável, com um advérbio a mais, corro o risco de chorar. Até já."

Ainda fazer aquilo

"Vai querer um pouco daquilo hoje?", ela pergunta sempre que ele passa na frente do prédio. Foi ele quem, depois da primeira vez, pediu que ela passasse a convidá-lo com essa frase (a que ela usara na primeira noite - quer fazer nenê? - era incompatível com os cabelos brancos dele). Agora, quando ele vai, espera até que ela se aproxime e faça o convite com as novas palavras. Isso é parte do prazer que as bissextas visitas trazem a ele. Só então entram no prédio e, no quarto, ela o abraça e lhe diz palavras afetuosas, até que ele chore, aliviado e feliz. Certas noites ele pede que ela faça outra vez. Ela faz. Ele paga de novo, logo se põe a chorar outra vez e, como a pedido dele nunca tiram a roupa, a ela compensa abraçá-lo e murmurar-lhe frases ternas. Quando ele desce com ela, os rapazes que esperam embaixo o olham com respeito: o velho ainda faz aquilo.

Caso

Esta vez é a última, ela e ele se dizem, antes de cada inútil recomeço.

Um poema de Yuan Haowen (1190-1257)

"VIVENDO (OU ESTANDO) NA MONTANHA

A folhagem, imensa, cabe nas vozes de outono
E os restos de um burgo - entra devagar o crepúsculo.
O arco-íris se vai e fica chuva, esbranquiçada
As fumarolas vão, para surgir o sol. Montanhas."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Fernanda Lima

Fernanda Lima sorrir
É um ato de claro encanto,
Tão maravilhoso quanto
Ver um arco-íris se abrir.

Soneto que lastima os amores de inverno

Pobres amores tardios,
Amores inesperados,
Amores desajuizados,
Amores de inverno, frios.

Amores parcos de cios,
Amores desajeitados,
Amores desabituados,
Amores sem amavios.

São desafios a quem
Não sabendo nada bem
Como hoje são os amores,

Recorre ainda à poesia
E aos itens de cortesia:
Bombons, livros, bolsas, flores.

São Paulo

São Paulo é uma cidade muito respeitadora e religiosa. Todos os cinemas e teatros, aqueles covis de perdição, estão virando templos.

Parcimônia

Ela lhe pediu perdão:
Não lhe podia dar nada.
Com isso lhe deu a aflição
E a morte desconsolada.

O recolhedor de estrelas

Passava as noites na areia da praia, olhando para o céu. Às vezes, punha-se subitamente a correr. Não falava com ninguém, mas dizia-se que julgava ver estrelas caindo e ia recolhê-las. Nunca ninguém viu uma sequer na sua mão. Talvez tenha tido melhor sorte numa noite em que correu para dentro do mar. Nunca mais apareceu.

Os vencedores

Exaltam a mesmice
teclam sempre a mesma tecla
e escondem-se da velhice
com sua gorda presunção
e sua gabolice

Olham para mim e vão desfiando
aquela meada de histórias
aquelas paulificantes memórias
que começam sempre
com a palavra quando

Quando eu era professor
quando eu exerci o magistério
quando eu fui vereador
quando eu tive meu nome indicado
para assumir o ministério

E eu quando fui engenheiro
construí um subúrbio inteiro
e eu quando fui secretário
mudei todo o itinerário
do ônibus parque dom pedro-vergueiro

Quando quando quando quando
eles vão começando suas frases
e vão os feitos decantando
de quando fizeram o que fizeram
para ser vencedores contumazes

Enquanto assim vão se endeusando
eu me mortifico imaginando
como vão me encarar quando eu disser
que sou nada agora e nada também fui
quando alguma coisa eu poderia ser.

Um poema de Mariana Ianelli

""Emboscada no silêncio
Eu preparo a rosa inútil
Com as horas que salvei
Do desperdício.
Feito um verme
Decompondo ceticismo
Em força indômita,
Preparo e deito essa flor
No teu caminho
Para quando o teu corpo
(Tão quebrantável quanto o meu)
For sozinho pastorear
Seus demônios no vazio.
Quase dois mil anos
Guardado no deserto
Um salmo esperou
Para recobrar sua melodia -
E eu não te esperaria?"


sexta-feira, 20 de junho de 2014

Falha original

Se foi mesmo Deus quem nos fez, ele ainda não tinha muita prática na ocasião.

RIP

Ser comum ou incomum
Pouco importa, tanto faz.
No acerto de contas, um
Jaz aqui, o outro ali jaz.

Soneto de quem espera no sofá

Se em nós a chama da vida
Já não reluz, bruxuleia,
E o nosso anseio só anseia
Pela hora da despedida,

Se a trilha ontem percorrida,
De sol e de flores cheia,
Hoje nos parece alheia
E quase desconhecida,

Que então em casa fiquemos
E nada mais procuremos
Aqui, além, acolá.

A morte, se nos quiser,
Nos achará, quando vier,
Esperando-a no sofá.

Parabéns

Pelo frio que gela o corpo e a alma, pelo desespero e pela desesperança, pelas lembranças que guardamos tão avaramente no coração e das quais não conseguiremos nunca nos livrar, pelo ouro do sentimento, que apodreceu em nossas mãos e borbulha como pústulas espremidas, pelas emanações sulfúricas que saem do santuário envolto em papel de seda e amarrado com fitinha metálica, pelo livro agora embolorado de Mario Benedetti, por isso tudo e por tantas outras coisas que vão se esfacelando dia a dia, tarde a tarde, noite a noite e madrugadas adentro, parabéns para aqueles que tiveram o bom-senso, que nós não tivemos, de colocar os afetos, as amizades e o amor entre os objetos prescindíveis, dando-lhes a atenção que merecem um brinco de lata e um pechisbeque de camelô.

Um trecho de Walt Whitman

"Com estrondosa música venho, com as minhas cornetas e tambores,
Não só toco marchas para os vencedores aclamados, também as toco para os
          conquistados e abatidos.

Ouviste dizer que foi bom vencer?
Também te digo que é bom perder, as batalhas perdem-se com o mesmo espírito
          com que se ganham.

Toco e volto a tocar pelos mortos,
Sopro por eles a minha mais alta e alegre melodia.

Vivas pelos vencidos!
E por aqueles cujos vasos de guerra se afundaram no mar!
E pelos náufragos também!
E por todos os generais que perderam e por todos os vencidos heróis!
E pelos inumeráveis heróis desconhecidos iguais aos maiores heróis conhecidos!"

(Extraído de Canto de mim mesmo, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

Soneto do amor e da beleza

Talvez um dia sejamos
Vassalos dignos de ter
A bênção de merecer
O amor de dois grandes amos.

Que nesse dia possamos
Talvez também receber
O dom de os enaltecer
Como sempre desejamos.

Que exprima então nossa voz
O que há de melhor em nós
Com toda a força e clareza.

Assim será quando for
Louvado por nós o amor
E decantada a beleza.

Fernanda Lima (2ª edição)

Há mulheres que são como a síntese, o sumo da vida. Fernanda Lima é mais: é o sumo do suprassumo.

Fernanda Lima (2ª edição)

A Fernanda Lima não fazem falta os adjetivos. É uma beleza autossuficiente. Um substantivo ao mesmo tempo simples e composto, abstrato e concreto. Completo.

Por que

Por que, alma imortal, te deixaste aprisionar num corpo assim desprezível, formado por glândulas, nervos, veias, carne e ossos tão perecíveis, tão sujeitos à fermentação, à putrefação, à degradação, à decomposição? Por que precisas esperar que apodreçam baços, pâncreas, fígados? Por que, alma imortal, não te abrigaste no corpo de uma nuvem, de uma espuma, de uma bolha de ar, de um vento benfazejo? Conta-me, alma imortal, por quê, por quê? Por acaso te apetece acompanhar nosso declínio diário, nosso cheiro, nossa desgraçada trajetória para as profundas trevas da terra? Se somos teu adubo, alma, podemos mesmo crer-te imortal?

Numa boa

Se o amor chegou já ao fim,
Por que reclamo e reclamas?
Não te amo mais, tu não me amas,
Então deixemos assim.

Rio

Quando conseguiram puxar o menino, viram que no bolso de sua calça havia um peixinho, também morto.

Gula

Às vezes o amor se excede.
Lhe damos a alma sofrida,
Lhe oferecemos a vida,
E ele mais quer, e mais pede.

"Madrigais privados", de Eugenio Montale

"Deste meu nome a uma árvore? Não é pouca coisa;
embora não me resigne a ficar apenas sombra, ou tronco,
abandonado num subúrbio. Eu o teu
dei a um rio, a um longo incêndio, à minha sorte
cruel, à confiança
sobre-humana com que falaste ao sapo
que saiu do esgoto, sem horror ou pena
ou exaltação, ao alento daquele poderoso
e suave lábio teu que consegue,
nomeando, criar: sapo flores relva rocha -
carvalho pronto a desfraldar-se sobre nós
quando a chuva dispersa o pólen das carnosas
pétalas de trevo e a chama se levanta."

(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Estação Ana Rosa

Seu dedo médio guarda ainda um pouco da fragrância salina, e no metrô ele o leva disfarçadamente ao nariz e aos lábios, frustrado por não poder suspirar ali como uma hora antes, no quarto que cheirava a adultério e a mormaço.

Soneto do que ao amor hoje agrada

O amor já não se contenta
Com poemas, com ninharias,
Com aquelas quinquilharias
Que a imaginação inventa.

São diferentes os dias
E nem o amor mais aguenta
Uma canção lamurienta
Composta de ais e agonias.

São outras as atitudes
E outras também as virtudes
Que se esperam de quem ama.

Dá-se agora  preferência
A quem exibe excelência
Nas árduas artes da cama.

Fernanda Lima

Fernanda Lima, guria,
O sol quer ser o teu sócio,
Quer dividir o negócio
De fornecer luz ao dia.

Barganha

Queres dar pelo meu ouro
O teu saco de farinha?
Te pergunto, meu tesouro:
Na bundada não vai ninha?

Asilo

Um dia nos bastarão,
Como a tantos bastam já,
Um pedacinho de pão
E uma xícara de chá.

Chapéu

O nosso maior castigo
Quando se vive demais
É precisar de um amigo
E não se ter nenhum mais.

"Hospedeiros", de Mariana Ianelli

"Como saber que era em nós
Esse animal de mansuetude,
Enormidade feita de clemência e de veludo

E que podia viver por tanto tempo
Bem guardado sob a pele,
Espelho dessas criaturas
Abissais, meio fantásticas,
Que não conhecem a luz.

Que de todos os possíveis
Ficaria essa trilhada
Em que os pés vão sozinhos,
Sábios embrutecidos
De vasculhar entre despojos

Como tem as palmas calejadas
De enfeixar o trigo uma ceifeira,
Como tem o peito crestado
De se dar ao mar um pescador."

(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)

Tarefas da manhã

Conter os impulsos
de comprar a corda
de escolher a viga
de pegar a arma
de cortar os pulsos.

Lacuna

Esta verdade absoluta
Não nos ensinam na escola:
O amor é um filho da puta
Que ou nos mata ou nos esfola.

Chapéu

Depois de tudo esbanjar,
O amor colore as feridas,
Expõe as chagas fedidas
E vai à rua esmolar.

Gramática

A excitação de descobrir que havia conjunções copulativas.

O compromisso

É tão doce desistir
deixar de comparecer
cancelar
de tolo se fazer
protelar
se omitir
se ausentar

É tão agradável isso
não aparecer
não se desculpar
se esquecer
desconhecer
se fazer de omisso
não se lembrar

Só temos agora
um compromisso
o derradeiro
e quando chegar a hora
e quando o dia vier
há de nos encontrar quem
há muito nos quer

A velha dama
que desde a primeira
que desde o primeiro
espera a hora
aguarda o dia
de comparecer
e nos levar.

Homem e gato

Toda vez que olho para um homem e para um gato, custa-me acreditar que Deus tenha querido assemelhar-se ao homem.

Trapaça

O amor é aquela trapaça
Que a vida nos faz viver.
Fingimos sempre perder,
Porque vencer não tem graça.

Conversas no quintal

Faz já dois meses que toda noite vou ao quintal para conversar com as estrelas. Desde o primeiro dia, quando me despeço delas, deixo um pouco de leite numa tigela. Não tenho avançado nada nos diálogos. Nunca me responderam. Mas de alguma forma penso que já nos entendemos. Toda manhã encontro a tigela vazia.

Um poema de Mariana Ianelli

"Deste-me o segredo de teu nome
E era pouco;
Deste-me luz, completo entendimento,
Uma força maior que a tua
Para quando eu me perdesse.
Juventude e paciência,
Que vão juntas raramente,
Apegaram-se a mim
Porque estive em tua presença
E ainda hoje permaneço
Leal a teus mandamentos.
Debaixo do sol, onde por um instante
Nos olhamos sem diferença,
Eu pretendi este poema em teu louvor
E, como se não fosse por ti,
Me tornei imenso."

(Do livro Passagens, publicado pela Iluminuras.)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Messe

Em nós agora só medra
A voz oca do vazio,
O toque casto do frio
E o sono surdo da pedra.

Esquina (para o Xico Sá)

Ela ainda não calculou,
Mas foi um prejuízo e tanto.
Perdeu três michês, enquanto
Esperava por Godot.

Soneto do amor transato

Que eu, estando o amor transato,
Quando o inverno tiver vindo,
Possa lembrar-te sorrindo
E ao teu afeto ser grato.

Que possam ser olvidados
Os nossos momentos piores
E que os outros, os melhores,
Possam por mim ser cantados.

Que eu saiba reconhecer
Que minha razão de ser
Depois que te conheci

Foi nada mais desejar
Senão te recompensar
Por tudo que recebi.

Fernanda Lima

Que esplêndida é a inteireza
De um ser perfeito, total.
Fernanda Lima é a beleza
Em seu estado ideal.

O lenço do poeta Manoel

Se vai pegar o lenço, Manoel de Barros precisa puxá-lo com jeito, por causa das estrelinhas que insistem em morar no seu bolso.

Amanhã

Logo estaremos tão mortos
Que não nos importarão
Que mares nos levarão.
Inúteis serão os portos.

Um poema de Li Zhiyi

"Eu moro no topo do Grande Rio
Tu moras na cauda do Grande Rio
Todos os dias penso em ti
E embora te não veja
Bebemos ambos do Grande Rio.

Irão cessar estas águas?
Quando terminarão estas saudades
Tenho um desejo: que o teu coração e o meu
Se mantenham, fiéis ao laço do amor."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)




Soneto daquilo que um tolo merece

Negaste, amor, meus apelos
E, para minha aflição,
Convocando a multidão
Riste de mim por fazê-los.

Teus olhos, depois de eu tê-los
Cantado com devoção,
Com asco me olharam então
E como foi triste vê-los!

Sem pena me fuzilavam
Enquanto os lábios zombavam
Da minha mediocridade.

A um tolo assim como eu sou,
E tantas vezes errou,
Não se concede piedade.

Mãos

Se um dia se reencontrarem, nossas mãos hão de bastar-se. Por pudor, receio, falta de oportunidade ou de jeito, nunca nós dois as fizemos percorrer nossos corpos, e o tempo de fazê-lo se foi. Nunca elas se aventuraram em nós e, não tendo trilhado os rumos que poderiam desviá-las de sua pureza, elas, quando nos virmos de novo, se satisfarão em lembrar o que sentiram na manhã em que se conheceram, tão tolinhas que não pensavam em prazer nenhum além daquele de estarem se tocando, nos inefáveis momentos em que uma passava o açúcar à outra, ou o pratinho com os pães de queijo, na cafeteria.

O melhor dos mundos

Que bom se eu pudesse celebrar todos os dias a morte de um amor. Quantas ideias, quantas frases, quantos assuntos... E o saudável exercício de deixar correr pelo rosto as lágrimas. E bebê-las.

A prova

Encontrado em um paletó, no Instituto Médico Legal: "Agora vocês acreditam?"

Quem sabe

Ele tem a Síndrome de Arthur Miller. Acha que um dia as mulheres mais desejáveis, como foi Marilyn Monroe, descobrirão como ele coloca bem os pronomes e como pode, em dez minutos, explicar a diferença entre conjunções coordenativas e subordinativas.

"O positivo", de Eugenio Montale

"Prosternemo-nos quando se levanta o sol
e cada um encara a sua Meca.
Se algo ainda nos resta, um simples sim,
digamo-lo, mesmo de olhos fechados.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Extremos

A verdade é a tarefa fracassada
De que se incumbe a vã filosofia.
Diferente - e bastante - é a poesia.
A poesia não quer afirmar nada.

São Paulo

Há cada vez mais caçambas pela cidade, cada vez mais lugares onde pôr os maus versos e os maus poetas.

Sexo

Não mais o retinir de espadas, o fragor
Encarniçado da batalha pela nau.
Agora, só um vento leve, sem calor,
E uma bandeira esfarrapada, a meio pau.

"Os que partem para longe", de Robert Louis Stevenson

"O grande sol,
O brilhante dia,
As velas brancas
Na baía azul  -
Os que partem para longe
Já se afastam.

Acende o fogo
E fecha a porta.
Aos antigos lares,
Às amadas praias,
Os que partem para longe
Jamais regressarão."

Fernanda Lima

Fernanda, o que você tem
Que brilha tão fortemente
Com esse brilho teu, somente,
Do sol e de mais ninguém?

Latir até que

Se eu fosse um cão, latiria todos os dias, todas as noites, todas as madrugadas, até que o Amor me abrisse a porta ou viesse até o portão para me espantar com seus olhos de fogo e o chicote amado com que marcou em meu corpo sua posse.

Nunca mais

Nunca mais lamber a mão da dona, em reverência. Lamber por lamber, jamais. Que seja um ato completo. Não há meia depravação. Depravação por depravação, que seja uma e meia, que sejam duas, três, com direito a repetição. Chega de sonetar, de poetar, de buscar riminhas, enquanto abigeatários, falsos indianistas e chantagistas de extensa laia se esparramam na cama e gozam às escâncaras.

Autossuficiência

O caminho do amor é sempre circular. Em si mesmo estão os horizontes e as distâncias.

A flor

Cresce lentamente em mim a flor da ternura. Demorará para se fazer e se perfazer, mas vai crescendo em silêncio, pouco a pouco. Um dia estará pronta, simples em sua beleza, e talvez eu possa levá-la a você e dizer que é filha daquela outra ternura, exagerada e antiga, que eu confundi com outra flor, de outra espécie, e tão desajeitadamente lhe ofereci. Cresce em mim, lenta, lenta, essa flor com a qual eu um dia me apresentarei diante de você, pedindo absolvição. Cresce com delicadeza. Estará bela, espero, na tarde em que a deixar em sua mão. Não direi que foi regada com minhas lágrimas, embora seja a mais absoluta de todas as verdades.

Seda na garganta

O amor nos mata lentamente, não por pena de nós, mas para requinte do seu prazer. Cada um de nós é morto de uma forma. No meu caso, ele escolheu o estrangulamento. Todo dia aperta um pouco mais meu pescoço. Para não se contaminar com minha pele abjeta, usa luvas. Aperta-me, aperta-me e, quando imagino ter chegado meu último instante na terra, ele para. Imploro-lhe pela morte, ele não me atende. Julga não ter me castigado ainda o bastante nem gozado o suficiente. Suplicar que me mate é uma astúcia minha. Se pedir que me deixe viver, me matará. Ele não sabe, mas o único prazer que me resta é sentir suas mãos enluvadas em minha garganta.

Sésamo

É um pecado dizer a alguém, principalmente a um jovem, que sésamo nada mais é senão gergelim. Descobri isso adulto e foi uma das grandes decepções da minha vida. Nunca mais o abre-te sésamo soou para mim com a antiga magia: abre-te milho, abre-te cevada, abre-te centeio, abre-te sésamo, abre-te porta amaldiçoada.

Freud 100%

Freud tinha um método certeiro para descobrir a causa dos distúrbios psíquicos: tentava o pai, depois a mãe.

Um trecho de Friedrich Hölderlin

"Mas tu, que dantes, já nas encruzilhadas, quando
A teus pés caí, consolando-me, me apontavas para algo mais belo,
Tu que me ensinaste a ver a grandeza e a cantar os deuses mais alegremente,
Silencioso, como eles, contendo o meu entusiasmo,
Filha dos deuses! Voltarei a ver-te, voltarás a saudar-me, como dantes,
Voltarás, como dantes, a falar-me de coisas sublimes?
Olha, tenho que chorar e lamentar-me diante de ti, pelo menos,
Ao pensar em momentos mais felizes, dos quais a alma se envergonha.
Porque demorei tanto, tanto tempo a procurar-te por pálidos caminhos terrestres,
Habituado a ti, errante,
Anjo de alegria! Mas em vão e os anos escoaram-se,
Desde que, cheios de pressentimentos, à nossa volta víamos o fulgor crepuscular."

(Extraído do poema "Pranto de Ménon por Diotima", do livro Elegias de Friedrich Hölderlin, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)


segunda-feira, 16 de junho de 2014

Bloomsday

Que a polícia não tenha dispersado hoje os amantes de Joyce. Mas, se os dispersou, que cada um tenha encontrado à sua maneira o caminho dos voluptuosos braços de Molly Bloom.

Fernanda Lima

Fernanda, me diga quem
Inteiro traduzirá
O encanto que você tem
Da letra "f" à letra "a".

Cheek to cheek (para o Gianluca e a Nicole)

E lá pelas folhas tais
Uma romântica alface
Com seus volteios sensuais
Dança com outra, face a face.

Inanidade

Porque jamais conseguimos
Reproduzir sua voz,
E porque não desistimos,
O Belo dói tanto em nós.

Cabo das Tormentas

Que pena ser tão precário,
Tão deficiente meu cio.
Quem me dera ser um rio
E teu corpo meu estuário.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Os espaços se interpenetram, é de repente uma vertigem que desperta em sonho físico. Agora chega setembro, numa explosão de azaleias, eu deixo minha biblioteca e vou lá fora sentir o cheiro fêmeo da terra, o mais sedutor dos livros..."

(Da crônica "Setembro é quando rebentam o branco e o carmesim", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)

Sempre às duas da tarde

O amor é importuno como aquela garota do telemarketing que liga todo dia às duas da tarde e tenta nos vender cogumelos do sol. Por meia hora usa todos os seus argumentos, adoça a voz e, depois de nossa recusa cada vez mais fundamentada e hostil, promete ligar amanhã, à mesma hora, e liga. E nós atendemos.

Toda loucura

Toda loucura que mereça assim ser chamada nasce do amor, passa por ele e a ele se encaminha, com os olhos arregalados de êxtase.

Caçamba

Jogaram o amor na caçamba. Passando a noite assim, ao relento, ele, incorrigível em sua mania de ver coisas onde não há coisa nenhuma, sentiu de repente no peito um papel prateado, resto de uma embalagem de presente, e, julgando que se tratava de uma estrela recém-nascida, acalentou-a até os primeiros raios de sol.

O amor

O amor é aquele idiota do qual os postes se desviam quando ele passa lendo sonetos ainda quentes, acabados de fazer entre lágrimas. O amor é aquele cretino de olhar perdido, abobalhado, que as pessoas apontam, balançando a cabeça. O amor é aquele imbecil que parou no tempo, que atolou numa manhã em que o sol lhe pareceu brilhar como nunca e em que a vida teve enfim algum significado, não para o seu limitado pensamento, mas para o sangue, os nervos e a eriçada pele do seu sentimento.

Bom dia

O tolo amor ainda faz seu caminho de todas as manhãs, e vai dizendo bom dia a tudo: às pessoas, às árvores, aos cães, ao sol. Todos já se cansaram do seu pobre espetáculo. Antes riam. Agora a piada perdeu a graça. Já quase começam a suspeitar que foram cruéis com ele, que ainda são um pouco agora, quando o veem, tanto tampo depois, chamando ainda um nome e dizendo poemas dirigidos às estrelas em pleno meio-dia.

Soneto da insuportável memória

Que tristes são hoje os dias
Em que me lembro de ti
E da época em que vivi
Tão intensas alegrias.

Que triste é hoje lembrar
Como depressa morreu
O amor que me pareceu
Fadado a nunca acabar.

Melhor seria se fosse
Menos feliz, menos doce,
Aquele tempo querido.

Cruel é a minha memória,
Teclando sempre essa história -
Meu Paraíso Perdido.

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é como Frineia, aquela que num poema Olavo Bilac disse representar o triunfo imortal da Carne e da Beleza.

Recibo

Os logrados pelo amor são duas vezes tolos: primeiro, quando se deixam lograr; depois, quando assinam o recibo.

No amor

No amor, aos que infligem dores
Convém sempre celebrá-los.
Quanto mais cruéis os senhores,
Mais felizes os vassalos.

Resposta rápida

Pus o cestinho de lixo mais perto. Cada vez escrevo mais, e mais rapidamente.

Google

Dizer-se famoso para uma garota, logo no primeiro encontro, é cada dia menos recomendável. Vinte minutos depois de você se despedir, ela estará em casa abrindo o google, e o beijo que você lhe deu pode ter sido o último.

Sentença

Está com os olhos baços e o rosto lívido, como os desses garotos viciados em prolongados toques de mão. Já esteve pior. Acha que devagar vai melhorando. Já consegue segurar-se até as oito, as nove da noite. Ontem manteve o controle até as dez e meia. Só então, como um condenado à cadeira elétrica, trancou-se no banheiro, embora estivesse sozinho como sempre, e logo estava já estremecendo como se o encarregado da execução tivesse ligado a chave e houvesse programado matá-lo lentamente, cruelmente, de incomparável gozo. Foram três minutos - cento e oitenta segundos em que ele se sentiu recompensado por ter tantas culpas e pelo rigor do juiz ao analisá-las.

Última vontade

Então ele a olhou com os olhos ainda mais tristes: "Sabe? Eu já estou bem no meu tempo de morrer." Antes que ela pensasse em lhe dizer alguma coisa, ele completou: "Vontade não me falta."

A virtude

O ocioso não deixa de ser um perseverante - ao menos em sua ociosidade.

Lembranças do esquecimento

Um dia nos lembraremos
De quanto nos iludimos,
Dos pactos que não cumprimos,
Das juras de que esquecemos.

"Humanidade", de Georg Trakl

"Humanidade posta ante abismos de chama,
Um rufo de tambores, frontes de guerreiros tenebrosos,
Passos pela névoa de sangue; negro ferro exclama;
Desespero, noite em cérebros pesarosos:
Aqui a sombra de Eva, caça e rubra dinheirama.
Nuvens que a luz atravessa, vespertina refeição.
Em pão e vinho deve um doce silêncio residir.
E aqueles lá reunidos, doze são.
À noite sob ramos de oliveira gritam ao dormir;
São Tomé mergulha na ferida a mão."

(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicado pela Iluminuras.)

domingo, 15 de junho de 2014

Boa noite

Continuar dizendo boa noite, como se estivéssemos naquele tempo em que esperar resposta era a mais desatinada das loucuras. Continuar dizendo, dizendo, e tirando, como então, o máximo prazer do sofrimento. Se não fosse cruel como é, para que nos serviria o amor? O amor não é uma música alegre tocada numa sanfona.

Tua voz

Não, tua voz não é doce. É salgada, quase áspera, imperiosa - na medida certa da minha excitação masoquista. Tuas vogais são ao mesmo tempo o látego e o vinagre derramado deliciosamente sobre minhas feridas.

Teu gato

Gostaria de ser um gato que tivesses acabado de recolher da rua e a quem, carinhosamente, estivesses agora perguntando se tem sido muito triste minha vida. Eu iria inventando histórias e mais histórias, para ouvir tua voz quente me consolando e sentir tuas mãos me afagando: meu gato, meu pobre gato, nunca mais vou deixar que te aconteça nada de ruim.

Floração

O amor em mim rebentou
Como uma chaga gritante,
Como uma doença infamante,
Como um defunto que encruou.

Será quê?

Com a Copa fervendo, o cérebro passa a funcionar futebolisticamente e faz perguntas inquietantes, como esta que o meu hoje me fez: será que torcedores do Atlético cantam aquele verso do nosso Hino que diz que a imagem do cruzeiro resplandece?

Corpo e alma

Se teu nome eu pronuncio,
Mesmo no tom mais banal,
Minha alma sai do normal
E meu corpo entra no cio.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Júbilo é uma palavra difícil de viver. Algo raro, tão raro quanto um tigre. Demora para acontecer, mas, quando acontece, uma pessoa já não pode mais voltar ao que era antes de ter sentido o que sentiu. Um acontecimento assim é o que excita um poeta a meter-se no escuro, procurando. Porque se existe um lugar além de um templo na Tailândia onde ainda hoje esse tigre passeia livre, longe de armadilhas, este lugar é um poema."

(Do livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima, como as flores, a lua, o mar e os bem-te-vis, é um dos argumentos daqueles que sustentam a inefável beleza da vida.

Fernanda Lima (2ª edição)

Em respeito à natureza, esquivo-me de ver Fernanda Lima à noite, na tevê. Se a vejo, olho com outros olhos a manhã seguinte. O sol não tem mais atrativo e parece que empalideceram as cores. Ver Fernanda Lima deve ser um exercício esporádico e único, assim como se deparar com a surpresa de um arco-íris.

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é um espanto, um clarão, um fulgor aos quais eu pensava estar habituado, desde Brigitte Bardot.

Soneto do amor, nossa bandeira

Quando morrermos, será
O amor aquela bandeira
Que da mais certa maneira
Aos outros nos lembrará.

Ele amou muito, dirá
Alguém, e uma carpideira
Novamente a choradeira
Em tom agudo entoará.

Se alguma nós merecermos,
Se alguma nós recebermos,
Que seja essa a distinção:

A de quem sempre viveu
(E nunca se arrependeu)
Com o amor em seu coração.


Verão

Já veio o vento, virão
As chuvas. Tudo ruirá,
Nada de pé ficará.
Por que chamaste o verão?

Aquele

Aquele foi poeta
apontam e dizem
e eu vejo
num canto de esquina
um homem que aprendeu
as minúcias da métrica
a cadência dos versos longos
e os encantos da rima

Deitado sobre um jornal
de três dias
ou de três meses atrás
ele não parece pensar agora em rimas
em sóis ou rouxinóis
enquanto o manda embora um comerciante
e um cachorro lhe mija em cima.

Bom dia

Dizer bom dia a todos, ao mundo todo - especialmente àquela pessoa sem a qual nada teria sentido nem doeria.

A velhice

A velhice é aquela época em que o homem começa a cheirar como um cachorro sarnento no verão.

Felicidade

Felicidade é aquilo que os outros têm.

Poeta

Escrevia tão lindamente, tudo soava tão bem em suas estrofes, que exigir coerência dos seus versos seria quase um desaforo.

"Com o tempo a sabedoria", de W.B. Yeats

"Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade."

(De Uma antologia de W.B. Yeats, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 14 de junho de 2014

Perdão?

Pedir-te perdão por quê?
Pedir perdão por te amar
O mesmo seria que
Pedi-lo por respirar.

Soneto de quem pensou brilhar sempre

Bonita ao menos ela era,
Não o negará ninguém.
Inconsequente, porém,
E vã como a primavera.

Brilhava como se espera
Que possa brilhar alguém
Que brilhe assim como quem
Somente em brilhar se esmera.

Enquanto o sol perdurou,
Brilhava, ah, como brilhava,
Brilhou, ah, como brilhou.

Pensou que o brilho bastava.
Tola, nisso acreditou,
Enquanto o sol se apagava.

"Os arroios", de Mario Quintana

"Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios..."

(Do livro Poemas para ler na escola, publicado pela Objetiva.)

As três palavras

Lábios que dizem a palavra amor devem dizê-la com o calor e a reverência com que pronunciariam as palavras deus e poesia. São essas três palavras que fazem cantar os pássaros e nascer as rosas.

Pontos de vista (para Priscylla)

"Quero lhe dizer uma coisa. Eu aprendi a escrever, de verdade, depois que conheci você. Nunca vou me esquecer disso. Me desculpe. Fui injusto em tantas coisas. Chamei você de birrenta, de estraga-prazeres..."
"Você escrevia muito melhor antes de me conhecer."

Onde enterramos o amor

Depois de execrá-lo e lançar-lhe as mais terríveis pragas, enterramos o amor no centro da mais profunda mata, longe de qualquer fonte, para que não tenha como beber água e reavivar as raízes. Nosso trabalho diário agora é procurar esquecê-lo, mas às vezes nos bate a aflição de que não conseguiremos e acabaremos voltando, algum dia, àquele lugar da mata em que, contando quatrocentas árvores da esquerda para a direita, encontraremos sua cova e tentaremos ressuscitá-lo, com a fonte de nossas lágrimas e o calor de nossas palavras.

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é a dádiva de um veleiro no horizonte da tela.

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é a prova de que a crença na beleza jamais é inócua ou improfícua.

Fernanda Lima (2ª edição)

Diante de Fernanda Lima, palavras como beleza e majestade se veem como num espelho, com todo o brilho de seu significado.

As piratas

O barco que na adolescência ele comandava, gritando ordens para vinte tripulantes, foi tomado agora por vinte mulheres piratas, e ele chama em vão os marujos, dizimados por elas na abordagem. Só se salvará com a condição de se submeter como escravo sexual de todas. A primeira, a que chefia as outras, já se aproxima dele, que, deitado e nu, se concentra para atendê-la. Honrará seu passado glorioso, construído desde a adolescência. Não se desmerecerá. Para deixar clara sua disposição de cumprir o dever que lhe cabe como derrotado, faz uma bravata. Olha para a comandante pirata, que já se debruça nua sobre ele, e desafia: "Podem vir todas juntas." E deixa que ela se deite sobre ele, que o monte e cavalgue, como o montaram e cavalgaram tantas outras, desde os primeiros anos da juventude.

São Paulo

Em outros lugares eu não sei. Aqui, já houve casos de quem, sem a cautela de deixar a original em casa e andar só com a xérox, teve a alma estuprada.

Sentimento

Eu me sinto como um enforcado deixado sozinho no porão, sem sequer uma brisa para balançar o corpo. Um enforcado cujo bilhete não se achará porque um incêndio destruirá toda a casa. Um enforcado que não encontrarão sob os escombros e que julgarão ter posto fogo em tudo e fugido com dinheiro roubado para uma ilha exótica onde dançará com nativas como as de Gauguin. Um enforcado cuja tristeza ninguém conhecerá. Um enforcado de quem dirão: aquele lá nunca enganou ninguém, com aquela cara de melancolia fabricada no quintal.

"O corpo no escuro", de Paulo Nunes

       "I

o corpo no escuro
independe das formas,
existe sem a linha
que lhe retém a cor
e o separa de tudo

sem olhos, sem espelho
é corpo e assim resiste
porque, se quiser, pode
estender um braço
e acender a luz

          II

animal sem detalhes,
o corpo no escuro
não trouxe a memória:
procura o centro
e ignora por quê

solto de si, contido
em outra margem
deixa um fio de ar
que enquanto avança
lhe assegura o retorno."

(Do livro O corpo no escuro, publicado pela Companhia das Letras.)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Soneto que celebra a memória do amor

Que morram minhas vogais
Se eu do meu finado amor
Disser palavras brutais
Ou se o tratar com rancor.

Por mais insano que eu for
Eu não poderei jamais
Sê-lo a ponto de supor
Que o amor não me afete mais.

Magoou-me, sim, e deixou
Algumas lembranças más,
E até alguns dissabores.

Mas, pelo bem que plantou,
Ma apraz sempre, aonde ele jaz,
Levar-lhe graças e flores.

Vida & Estilo

Escrever textos para a editoria Vida & Estilo, nos blogs do Estadão, é um fato quase miraculoso, para mim: já não tenho muita vida, e nunca tive estilo nenhum, pelo menos no sentido corrente.

Parágrafo inicial do romance "Desonra", de J.M. Coetzee

"Para um homem de sua idade, cinquenta e dois, divorciado, ele tinha, em sua opinião, resolvido muito bem o problema de sexo. Nas tardes de quinta-feira, vai de carro até Green Point. Pontualmente às duas da tarde, toca a campainha da portaria do edifício Windsor Mansions, diz seu nome e entra. Soraya está esperando na porta do 113. Ele vai direto até o quarto, que cheira bem e tem luz suave, e tira a roupa. Soraya surge do banheiro, despe o roupão, escorrega para a cama ao lado dele. 'Sentiu saudade de mim?', ela pergunta. 'Sinto saudade o tempo todo', ele responde. Acaricia seu corpo marrom cor de mel, sem marcas de sol, deita-a, beija-lhe os seios, fazem amor."

(Tradução de José Rubens Siqueira, publicação da Companhia das Letras.)

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um argumento claro e irrefutável, como o sol sobre um lago.

Fernanda Lima (2ª edição)

Plenitude seria um bom sinônimo para Fernanda Lima. Completude, também. Se bem que, mesmo juntas, as duas deixem um pouco a desejar, na comparação com Fernanda.

Assunto meu

Me fazes mal
quando queres que eu acredite
que assim como a ciática
e a bronquite
o amor pode ser assunto meu

O amor é um fruto
que mortos não podem comer.

MB e MQ

Manoel de Barros me parece cada vez mais irmão gêmeo de Mario Quintana.

Diego Costa

"Só tem uma coisa que eu não estou entendendo na Copa."
"A regra do impedimento?"
"Para com esse machismo."
Está certo. Qual é a sua dúvida, então?"
"Eu não entendo o Diego Costa na Espanha. Não entra na minha cabeça alguém trocar o Brasil por nenhum país. Nenhum."
"Bom, aí você está certa. Brasil é Brasil."
"Se bem que..."
"Se bem que o quê?"
"Me diz uma coisa. Miami é país?"
"Eu acho que é, sim."
"Bom, nesse caso eu..."

"Noturno III", de Mario Quintana

"Um cartaz luminoso ri no ar
E mais outro... e mais!... Ó Noite, ó minha nega
Toda acesa
De letreiros,
Já pensaste como ainda serias mais linda
Muito mais
Se nós, os poetas, não soubéssemos ler?"

(Do livro Poemas para ler na escola, publicado pela Objetiva.)

Mensagens

Ao amor devem mandar-se mensagens assim que se abre a janela ao sol e a brisa ainda não foi modificada pelo vozerio. Talvez elas cheguem aos ouvidos amados com o matinal aroma da rosa, quem sabe com um pouco, ainda, de orvalho e da voz original do vento.

Soneto do sorriso permanente

Deixaste em mim um sorriso
Que de sorrir não se cansa
E que buscar na lembrança
Vou toda vez que preciso.

Morreu o amor, pois morrer
Foi desde sempre o destino
Do profano e do divino,
E sempre haverá de ser.

Morreu o amor, mas parece
Que vive ainda em mim agora
E que por milagre cresce.

Há muito não me sorris,
Mas me sorris como outrora
E, como antes, sou feliz.

Quarto 206

Quando eu estiver entubado no hospital (digamos no quarto 206, o terceiro à esquerda de quem sai do elevador), não vá me ver. Meu aspecto estará bem pior do que hoje. Mas, se você quiser ir mesmo assim, não tema de mim uma reação hostil. Provavelmente não a reconhecerei. Faz tanto tempo, já. Lembro-me só de seus cabelos loiros que, pelo vício de minhas leituras poéticas, sempre comparo a um trigal.

Biografia do mau escritor - Capítulo I

Mal rabiscou seus primeiros poemas e contos, já escrevia pessimamente. Era mesmo um talento precoce.

Megalomania

Os suicidas são presunçosos. Pensam poder fazer o que nem as guerras nem as pestes conseguiram: querem acabar com o mundo e sua opressão usando um revólver, uma corda, uma gilete ou duas dezenas de comprimidos.

Teu nome

Deves ficar quieto, no teu canto. Ou irás te prostituir, esperar à porta das editoras, dos produtores de tevê, das redações de jornais? Estás doente demais, cansado demais, e teu nome não é William Shakespeare. Ninguém deixa subir pelo elevador um velho desconhecido que irá morrer na poltrona da recepção.

"A espátula", de Eugenio Montale

"Tu crês que o pessimismo
tenha realmente existido? Se olho
em volta, dele não encontro vestígio.
Dentro de nós, ademais, nem uma voz
que se queixe. Se choro é o contraponto
para enriquecer o grande
país de cocanha que é o amanhã.
Já bem raspamos com a espátula
cada erupção do pensamento. Agora
todas as cores exaltam nossa palheta,
salvo o negro."

(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Produto licenciado

O amor anda tão teorizado, metodizado, laboratorizado, que logo será vendido em embalagens como as de xampu para bebê, com a tranquilizadora indicação de "no tears".

Maturação

Se um poema é o que você quer,
De nada adianta chamá-lo,
De nada adianta forçá-lo,
Ele só vem se quiser.

Fernanda Lima

Para a canção de um poeta,
Fernanda Lima é cabal,
Fernanda Lima é total,
Fernanda Lima é completa.

Futebol

Que longa vida
que danação
a minha

Aguentei a partida
quase numa boa
a prorrogação
os pênaltis
e agora vou para a decisão
no cara ou coroa
na moedinha.

Um poema de Emily Dickinson

"A separação por longos anos não cava
Brecha que em instantes não se preencha;
A ausência da feiticeira
Não invalida o encantamento.

As milenares cinzas
Remexidas pela mão,
Que as atiçou quando eram chama,
Haverão de acordar e compreenderão."

(De Poemas escolhidos de Emily Dickinson, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)

Samaras

Na Copa de 2010, uma amiga muito querida suspirava toda vez que, num jogo da Grécia, aparecia Giórgos Samaras. Passados quatro anos, ainda me dói não ser isso, não ser ele, não ser Giórgos Samaras. Desde 2010 meu coração tolo sangra de ciúme. Aristóteles, Platão, Sócrates? Quisera ser Giórgos Samaras vinte e quatro horas por dia, sem tempo para metafísicas nem filosofias.

Antidoping

Até o fim da Copa não abrirei minha gaveta de remédios. A única droga que correrá em minhas veias será o amor.

Fernanda Lima

Em Fernanda Lima tudo
É só beleza e alegria,
Sem lugar para contudo,
No entanto, mas, todavia.

Mais dia menos dia

Enquanto você nem morre
Nem se permite viver,
O tempo desliza, escorre,
Sem você nem perceber.

Corcel

Na alma ele tem um cavalo
Que, quando pressente uma égua,
Revoluteia sem trégua
E ameaça, até, desmontá-lo.

Net

Fazem um sexo gostoso,
Marcado, diário, pontual,
Nem mais nem menos virtuoso
Do que é o sexo normal.

Rosa dos ventos

Que porto seguro, o teu,
Imune à fúria marinha.
Que rumo inseguro, o meu,
Que nau insegura, a minha.

Palavras

Palavras
foram palavras sempre
só o que tive para ti

Eu as aprendi
nas noites em que
nos ritos amorosos os outros se iniciavam
e com seus gritos gozosos
proferiam todas
e mais algumas interjeições

Eu aprendi
a escrever
odisseias odes epopeias
a compor estrofes e hinos
a contar sílabas nos dedos
e a escandir alexandrinos meticulosamente
assim como um açougueiro
retalha profissionalmente
um carneiro

Enquanto assim eu
em aprender a linguagem do amor me empenhava
os outros tinham descoberto já
uma fórmula simples
e a diziam e a repetiam
como agora aqui
livre já de estilos e modelos
eu digo a ti eu te amo
e eu te amo repito

Te digo e te repito
eu te amo
como disseram e repetiram tantos
mas digo e repito
com a certeza
de que a minha convicção
ao dizer e repetir
é maior que as outras convicções
todas todas todas
sem dúvida
e sem exceção.

Um trecho de Eugenio Montale

"Dizem que a minha
é uma poesia de impertinência.
Mas se era tua pertencia a alguém:
a ti que não és mais forma e sim essência.
Dizem que no mais alto grau a poesia
exalta o Todo em fuga,
negam que a tartaruga
seja mais rápida que o raio.
Tu, apensas tu, sabias que o movimento
não difere da estase,
que o vazio é o pleno e o céu limpo
a mais difusa das nuvens.
Desta forma compreendo melhor tua longa viagem
prisioneira do gesso e das bandagens.
No entanto não me dá sossego
saber que sós ou juntos
somos uma só coisa."

(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Tão óbvio

Você sabe, como eu, que nisso tudo há alguma coisa cuja explicação se poderia buscar em teorias como retornos, vidas passadas, maquinações do destino. Seria charmoso isso, mas por que não acreditar simplesmente em algo óbvio como o amor?

O erro

Sei qual foi meu erro, já:
Esperei muito de ti.
Por tudo que vi e li,
A vida é só Deus quem dá.

No amor

No amor, mais vale o passado.
É bom o estarmos colhendo,
É bom o estramos vivendo,
Melhor é tê-lo sonhado.

O estigma

Os que padecem do mal do amor deveriam ter o rosto marcado por um sinal que alertasse as pessoas normais para o risco de contágio. Deveriam ser banidos, expulsos, escorraçados para o mato, juntados numa vala e queimados até a última cinza, como se queimam os ratos. E que, depois, por uma semana ao menos, orássemos e entoássemos canções de júbilo e de graças.

Fernanda Lima

Se de beleza se fala,
O mundo já se curvou.
Fernanda a Copa ganhou,
Agora é só entregá-la.

Soneto sobre a paz que não agrada ao coração

Ter pena do coração,
Quando o amor o suplicia
E lhe impõe dor e agonia,
Vai contra toda razão.

Viver ele apenas sabe
Estando muito infeliz.
Ser venturoso e feliz
É coisa que não lhe cabe.

Ao coração não apraz
Em calma ficar, e em paz
O seu amor desfrutar.

Se vive assim, em conforto,
O coração está morto
Muito antes de morto estar.

Fernanda Lima

Fernanda Lima e a Beleza
Se dizem, quando se veem:
"Querida, olá, tudo bem?"
"Tudo. Como vai, Alteza?"

Abaporu

O poeta antropofágico
da Semana de 22
pegou restos de Verlaine
pedaços de Rimbaud
e depois de tudo misturar
com banana amassada
numa panela enferrujada
tudo devorou

Vinte anos depois
quando seus poemas
ia declamar
nas vilas madalenas
não parava de eructar
banana com caviar.

Um trecho de Friedrich Hölderlin

"Os meus pêssegos amadurecem, surpreendem-me as flores,
   O arbusto carregado de rosas é quase tão magnífico como as árvores.
A minha cerejeira entretanto encheu-se de frutos maduros;
   E os próprios ramos põem-se ao alcance da mão para a colheita.
O caminho convida-me, como outrora, a sair do jardim
   E a dirigir-me para a floresta, onde a folhagem é mais livre, ou a descer ao ribeiro,
Onde me deitava, sonhando com as aventuras dos célebres
   Navegadores; impeliam-me lendas a vosso respeito,
Ó poderosos, a partir para os mares e para os desertos!
   Ai! Entretanto em vão me procuravam meus pais.
Mas onde estão eles? Hesitas, espírito protetor do lar?
   Também eu hesitei! Contei os passos,
Até me aproximar e, como os peregrinos, detive-me.
   Mas entra, anuncia o estranho, o filho,
Para que me recebam nos braços e me abençoem,
   Consagrando-me, e me seja também dado transpor o limiar!
Mas pressinto que já partiram também
   Para a sagrada distância e o vosso regresso, queridíssimos, já não é possível."

(Do poema "O caminhante", extraído do livro Elegias de Friedrich Hölderlin, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicação da Assírio & Alvim.)

Lento de raciocínio

No fim, ficaram só dois,
E o último que no amor creu
Só se achou tolo depois
Que o penúltimo morreu.

Fernanda Lima (2ª edição)

Dizer Fernanda Lima de manhã é o melhor modo de adoçar os lábios para o resto do dia.

Fernanda Lima

Fernanda Lima tem certas
Minúcias de cerejeira,
Detalhes de cachoeira
E de rosas entreabertas.

Orientação

"Mais pra cima, isso, agora um pouco pra direita, aí, acho que foi bem aí" - a garota, com o ombro nu, vai indicando o ponto em que ela e o rapaz sabem que nenhum mosquito a picou, ponto que ele suga deliciado, com o pretexto de puxar o veneno e aliviar a comichão, empenhando-se cada vez mais no joguinho e ampliando a área morna e macia na qual o mosquito gostaria de ter estado.

Bom dia

Digamos ainda e desejemos um bom dia, embora a chance continue sendo de nenhuma em mil.

Soneto de quanto dura a juventude

Quando vens a nos faltar,
Esplêndida juventude,
Não há nem dom nem virtude
Que possam te compensar.

Brilhas um momento ou dois,
Porém o teu brilho é tanto
Que avivas o desencanto
E as trevas que vêm depois.

Hoje eu só te vejo quando
Os jovens, por mim passando,
Sorriem como eu sorria.

E penso, para magoá-los,
Em ser cruel e avisá-los
De que só duras um dia.

A hora

Deixa o amor para os jovens. Eles têm todo o tempo para tolices. Não te amofines pensando no que eles estarão fazendo agora. É quase meia-noite, hora de tomares os remédios e ires dormir.

Do amor


Que o amor seja um vício se entende, e se perdoa. O que o amor não pode, nunca, é ser um hábito. Antes o manicômio que o matrimônio.

Um poema de Robert Louis Stevenson

"A sorte está lançada; e para sempre
Mestre e discípulo, amigo, amante, pais e filhos,
Caminham separados, embora juntos; cada um vê
Os que ama tão longe como as estrelas.
Nós também, meu amor, para sempre separados,
Com pranto nos aproximamos, com pranto contemplamos a baía,
As Grandes Portas: como duas grandes águias que voam
Sobre uma montanha, por gritos unidas
Até se perderem entre os cedros.

                                        Mas os anos
Aproximar-nos-ão, dia após dia,
Semana após semana; prender-nos-ão até por fim a morte
Dissolver esta longa separação. Com fé amamos,
Não com o conhecimento; e pela fé, embora separados
Vivemos em perfeita união, coração com coração.

                                        Esquecemos
O pouco que somos e as nossas almas
Alimentam-se de grandes decepções.
Como um homem que de cruel guerra regressa
Sem temor, ou o marinheiro dos abismos;
Como o caminhante que regressa da noite gélida e dos bosques
Possa alguém chegar com o orvalho ao festim
E nos seus olhos deixar a escura noite."

(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim.)

terça-feira, 10 de junho de 2014

Menos

Nem quero mais quem me entenda,
Essa época passou, já.
Basta alguém que o fone atenda
E diga alô, ou olá.

Sonhos de um escritor

Às vezes ele reconhece que lhe falta algum talento, certo preparo, talvez um pouco mais de dedicação. Mas insiste em continuar escrevendo e há momentos em que se julga com maior condescendência e pensa que talvez possa haver ainda alguma esperança, se ler mais Shakespeare, se isto acontecer, se isso ocorrer, se aquilo suceder e, principalmente, se Lucia Riff talvez, ou se Luciana Villas-Boas quem sabe...

Os pássaros

"Eu vou avisar", disse a mulher para o homem sentado nu na beirada da cama. "Você vai viciar tanto nisto aqui que depois vai querer todo dia. Vou acabar com a sua fortuna em três tempos." O homem sorriu: "Então vem me mostrar como é." Ela se aproximou, ajoelhou-se entre as pernas dele e começou a bater os longuíssimos cílios com tanta rapidez e tamanho ruído que era como se o quarto tivesse sido invadido por um bando de pássaros.

Sonhos de um letômano

Atira-se no metrô,
Pula da ponte estaiada,
E, num impulso retrô,
Afoga-se na enseada.

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é o nome que a Beleza resolveu assumir depois que se cansou do próprio.

Soneto do amor como brinquedo de cão e gato

Eu não consigo entender,
Se as afeições que me movem
São essas que te comovem,
Como pode acontecer

Estarmos sempre a brigar,
Assim como cão e gato,
Por nada e por qualquer fato,
Em todo e qualquer lugar.

Me move o amor, e também
Por ele tu és movida.
Para nós, o amor é a vida.

E tudo estaria bem
Se o amor que te dou, querida,
Não o desses a ninguém.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é o momento em que a manhã, sentindo-se no seu esplendor, espera que do quarto do estudante de música venha o som mais terno do violino.

No escuro

Toda noite ela apaga a luz, deita-se, dá liberdade aos dedos e deixa que eles a explorem, subam, desçam, entrem, saiam, resvalem. Só se sente pecadora quando começa a suspirar ai ai meu Deus e a gemer amor põe amor põe. E também, mas um pouco menos, quando recompensa a mão com um beijo.

Leitmotiv

Enquanto a voz não se cansa
E a vida não me destroça,
Cantarei, conforme possa,
Teu nome e a minha esperança.

"Composição", de Mariana Ianelli

"A lenta e refinada arte
De fazer nascer um adágio -

Extrair o peso a cada pedra
E ver mais alto o edifício
A cada coisa abandonada
A cada rosto de si mesmo perdido -

Esse edifício transparente e musical
Onde se vê um pássaro sobre ruínas."

(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)

Da abelha e das formigas

Quando ela fala, uma abelha zumbe, embriaga minha nuca, e minha espinha parece estar besuntada de mel, e sobre ela começam a se mover formigas morosas, lerdas, lentas, enquanto a abelha zumbe, zumbe, e eu espero que ela zumba mais, mais, mais, e que as formigas continuem a se mover morosas, lerdas, lentas, enquanto mel houver.

Soneto dos três anos passados

Dezembro traz ao seu peito
O sentimento doído
Daquele sonho desfeito,
Seu Paraíso Perdido.

Se do metrô ele desce,
Depois sobe a escadaria,
Tudo ainda hoje lhe parece
Como era naquele dia.

Na livraria, as estantes
Parecem as mesmas de antes,
E são; e o resto, também.

Três anos já se passaram,
E as coisas se conservaram.
Mas espere - falta alguém.

Bom dia

Bom dia, sim, por que não?
Bom dia, sim, mas por quê?
Minha alegria e aflição
Dependem só de você.

Fernanda Lima (2ª edição)

Porte altivo é uma expressão antiga que só com Fernanda Lima ganhou seu exemplo definitivo.

Fernanda Lima (2ª edição)

O rei Salomão chamaria Fernanda Lima de corça ou gazela.

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é fruto de um daqueles dias em que a natureza parece ter acertado a megassena.

Corcel

Na alma ele tem um cavalo
Que, quando pressente uma égua,
Revoluteia sem trégua
E ameaça, até, desmontá-lo.

Cavalo farejador,
Derrubador de porteiras,
Corcel que ignora barreiras
Quando o chicoteia o amor.

Continha de chegar

Os escritores são criaturas singulares. Novecentos e noventa e nove, em mil, não são escritores, na verdade, mas aquele que é pensa valer por um milhar.

Estações

Após setembros cálidos e ternos,
Recaem sobre mim os infortúnios,
A aspereza de todos os invernos,
As frias decepções de tantos junhos.

Independência

Bem vês que posso
muito bem
prescindir de ti

Passaste por mim
agora mesmo
e eu nada te pedi

Não me pediste nada também
talvez por teres notado
que há muito morri.

Vida

Depois de tanta tortura
Me resta aquilo que por
Falta total de pudor
Chamo de literatura.

Um trecho de Friedrich Hölderlin

"Mas nós, amigo, chegamos demasiado tarde. Certo é que os deuses vivem,
   Mas acima de nós, lá em cima, noutro mundo.
Aí o seu domínio é infinito e parecem não se importar
   Se estamos vivos, tanto nos querem poupar.
Pois nem sempre pode um frágil vaso contê-los,
   O homem apenas algum tempo suporta a plenitude divina.
Depois toda a nossa vida é sonhar com eles. Mas os erros,
   Tal como o sono, ajudam, e a necessidade e a noite fortalecem,
Até que haja suficientes heróis, criados em berços de bronze,
   De coração corajoso, como dantes, semelhantes aos Celestiais.
Depois eles chegam, trovejantes. Entretanto penso por vezes
   Que é melhor dormir do que estar assim sem companheiros,
Nem sei perseverar assim, nem que fazer entretanto,
   Nem que dizer, pois para que servem poetas em tempo de indigência?
Mas eles são, dizes, como sacerdotes santos do deus do vinho,
   Que em noite santa vagueavam de terra em terra."

(Fragmento de "O pão e o vinho", do livro Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Indiferença

Era frio. Dava de ombros
A tudo, e a nada ligava.
Nem o edifício exaltava
Nem lamentava os escombros.

Próxima atração

Quando a última fatia de peru é posta no prato, o espírito de Natal começa a concentrar-se na sobremesa.

Beira-mar

O dedo dele voltou com cheiro de mormaço e um instante depois a cama começou a balançar como se estivesse sobre ondas.

Soneto das grandes e das pequenas causas

Se quem sou queres saber,
Te digo: sou este traste
A quem tu deste e tiraste
A vontade de viver.

Pensaste em tudo: nos teus
Amigos, nos teus parentes,
Nos planos teus, tão coerentes.
Pensaste acaso nos meus?

Tantas baleias salvaste,
Das focas não descuraste,
De tudo cuidaste, enfim.

Fizeste tantas cruzadas,
Tão nobres, tão abençoadas.
Fizeste alguma por mim?

Fernanda Lima (2ª edição)

A única falha de Fernanda Lima é também o motivo de sua grandeza: ela é uma só, a única.

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é um desses fenômenos explicáveis somente no âmbito da taumaturgia.

Sonetinho de segunda-feira

Talvez me deixes trazer
O meu carneiro mais branco,
O meu sorriso mais franco
E eu possa te oferecer.

Talvez eu possa te dar
Estrelas recém-nascidas,
Auroras adormecidas
E, quem sabe, até o mar.

Em troca do teu amor,
Eu darei tudo que for
Possível pôr nestas rimas.

Talvez possa até, num verso,
Te propiciar o universo.
Por que não crês nem me animas?

Mulheres

Poderia ter feito como os outros
plantar-se numa esquina
na frente de um bar
e com pose fescenina
os botões da braguilha dedilhando
ver as mulheres passando
para comentar

mas que anca
que égua
olha lá que potranca
que cavalona
que mamas
que peitaria
mamãe mamãezinha
me leva de cavalinho
mamãe eu quero montar
mamãe olha aqui teu filhinho
mamãe ai mamãe
eu quero mamar

Poderia ter feito como os outros
mas chamou-as de fadas
de majestades de rainhas
e onde os outros viam zinhas
ele via princesinhas

Quando descobriu um dia
que mulheres eram só mulheres
começou a se lamentar
e a perguntar o que faria

Todas se puseram então a dançar
e ele viu finalmente
que em todas elas havia
na parte da frente
e na parte de trás
botões de ligar
e de desligar.

Um poema de Robert Louis Stevenson

"Brilhante é o anel das palavras
   Quando o homem reto as entrelaça.
Belo é o colar das canções
   Quando o cantor as canta.
Ainda são cantadas e ditas -
   E sobre asas caminham -
Depois de o cantor morrer
   E de o artífice ser sepultado.

Sepultado jaz o cantor
   Nos campos de urze,
E os apaixonados
   Vivem juntos as suas canções.
E quando o oeste é vermelho
   Com as brasas do crepúsculo,
O amante demora-se e canta
   E a donzela recorda."

(De Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Filosofia

Melhor, para nós, que a vida não tenha significado. Se tivesse, nós jamais o descobriríamos.

O melhor da festa

Errou quem isso assim fez.
Se tantas vidas vivemos,
Se tantas dores sofremos,
Por que morrer só uma vez?

Fernanda Lima

Indo de leste para oeste,
O sol, procurando rima,
Tirando Fernanda Lima
Não vê nenhuma que preste.

Te beijar antes?

Vamos fazer agora. É, em pé. Aqui mesmo. Tem problema? Pra isso não precisa luxo. Ninguém passa aqui nesta hora. Eu não tenho um puto pro motel. Vamos, vai. Você prometeu que hoje me dava. Não vai mijar pra trás agora, vai? Olha aqui a camisinha. Põe a mão aqui, vê como tá o coitadinho. Aí. Viu? Parece um caibro, não parece? O quê? Te beijar, antes? Ah, mulher tem cada uma. Não pode ser depois? Depois eu beijo. Fechado? Isso, põe ele pra fora. Ai, sem unhar.

Augúrio

Se por perverso prazer
O amor nos traz na coleira,
Que por nossa vida inteira
Possa ele assim nos manter.

Bem na foto

Teu último ato
será apertar bem o laço
para não pareceres
nem banal nem caricato
na foto do perito
do Instituto Médico-Legal.

Misericórdia

Um homem vale o que valem
Seus gestos mais generosos.
Dos outros, dos ominosos,
Os que souberem se calem.

Posse

O amor é tão prepotente
Que marca com as digitais
O gesto mais inocente
E até os atos carnais.

As botas

Diante do quarto fechado ele foi atendido por uma serviçal da amada. Pediu-lhe que o anunciasse. A mulher disse-lhe que a hora não era conveniente, mas ele insistiu tanto que ela abriu a porta, fechou-a rapidamente depois de entrar e demorou-se por alguns minutos lá dentro. Com o coração agoniado pela paixão amorosa, ele ouviu cochichos e, em seguida, o ruído alvoroçado de alguém que parecia andar pelo quarto. A mulher voltou, manteve a porta entrefechada e disse-lhe que sua senhora o receberia, mas pedia que ele tirasse os sapatos, porque o tapete que haviam colocado ali na véspera era de um tecido muito sensível e valioso. Ele obedeceu rapidamente, mas a serviçal só liberou sua passagem depois de ambos ouvirem o som que parecia ser o da grande janela se abrindo e fechando logo em seguida. Ele entrou. Deitada, a mulher de sua vida bocejava como se houvesse acabado de despertar, embora seus olhos se fixassem na janela. Ele ouviu os cachorros latindo fora, e, no tapete, duas marcas, das quais ainda se exalava um cheiro de relva, como o que costuma ficar nas botas dos camponeses.

Um soneto de Dante Alighieri

"Viram meus olhos que expressão dolente
Tínheis em vossa angélica figura,
Ao notardes os modos e a postura
Que a dor me faz tomas frequentemente.

E, ao ver que vos passavam pela mente
As condições de minha vida obscura,
Comoveu-me a patética tremura
De revelar o que minha alma sente.

E me afastei de vós, depois, notando
Que as lágrimas corriam com fervor,
Por me haver essa vista comovido.

Eu disse então, comigo, entristecido:
'Anima essa mulher o mesmo Amor
Que ora me faz andar assim chorando.'"

(De Vida nova, tradução de Paulo M. Oliveira e Blasio Demetrio, publicação da Atena Editora.)

domingo, 8 de junho de 2014

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é um desses pouquíssimos nomes que os lábios devem estar preparados para pronunciar. A súbita doçura pode enfeitiçá-los de tal forma que nunca mais queiram dizer outras palavras.

O fim

Da vida, a etapa mais amaldiçoada
É aquela em que os antigos combatentes
Nas lutas do amor viram assistentes
E choram sobre a espada embainhada.

Fernanda Lima

Em Fernanda Lima há uma dessas evidências que não precisam de adjetivos nem explicações. Fernanda Lima tem a irretocável força dos dogmas.

Expedições

De mim, no rumo do amor,
Partiram tantos navios,
Buscaram-no com vigor,
Voltaram todos vazios.

Cativeiro

O amor mandou avisar:
Se houver má educação,
Não vai mais nos aturar
E nem nos dar mais ração.

Mudança de timbre

Aos poucos fomos descrendo de tudo quanto o amor nos prometera. Fazia já três meses que estávamos em seu poder, e nunca mais ele nos falara com a voz suave dos primeiros dias, nunca mais nos lera um poema, nem sequer um verso. Levava-nos para a cama, só, todo o tempo, e nos acusava de displicentes se não gemíamos de acordo com o ritmo e o vigor de suas estocadas.