sexta-feira, 31 de maio de 2013

Espero que...

... morrer não requeira nem prática nem habilidade. Ah, e nem talento.

Se todos os paulistanos...

... que ainda não foram assaltados se dessem as mãos no marco zero, na praça da Sé, o grupo chegaria, esticando bem os braços, à rua Direita.

Um desejo forte...

... de ter nascido há muito tempo, na Polônia, na Ucrânia, na Letônia, de ter percorrido o mundo, não por turismo mas por necessidade, e também por necessidade ter mudado várias vezes de nome, e ter sofrido lavagens cerebrais e acidentes, de ter fumado ópio e ter sido escravo braçal em regiões sujeitas a um sol maligno com temperaturas médias de cinquenta graus. Ter estrebuchado cinco anos num hospital, mantido sob drogas poderosíssimas e num coma de uma brancura comparável à de uma planície siberiana no inverno. Ter morrido há muito, muito tempo, e ter sido enterrado sob uma identidade qualquer, Monsieur X ou Mister Y. Ter sido registrado como esse Monsieur X ou esse Mister Y num arquivo comido pelo fogo num incêndio numa dessas aldeias, insuspeitadas pelos mapas, que insistem em se manter anônimas enquanto um tsunami não as coloca nas redes sociais e nas provas da Fuvest.

O compromisso

É tão doce desistir
deixar de comparecer
cancelar
de tolo se fazer
protelar
se omitir
se ausentar

É tão agradável isso
não comparecer
não se desculpar
se esquecer
desconhecer
se fazer de omisso
não se lembrar

Só temos agora
um compromisso
o derradeiro
e quando chegar a hora
e quando o dia vier
há de nos encontrar quem
há muito nos quer
quem desde a primeira
quem desde o primeiro
espera a hora
espera o dia
de nos levar.

Anticlímax

Talvez tudo de que nos vangloriamos, nossas disciplinas, nossos conceitos, nossos sistemas filosóficos não sejam muito diferentes, afinal, do que aqueles entretenimentos, como as palavras cruzadas ou o sudoku, a que damos, com a autoridade que nos confere nosso monóculo, o nome de hobbies.

Um trecho de Clarice Lispector

"Mas com as rosas desembrulhadas  na mão ela esperava. Não as depunha no jarro, não chamava Maria. Ela sabia por quê. Porque devia dá-las. Oh, ela sabia por quê. E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se "ser". Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita. A uma coisa bonita faltava o gesto de dar. Nunca se deveria ficar com uma coisa bonita, assim como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração."

(Do conto "A imitação da rosa", do livro homônimo, publicado pela Editora Artenova.)

Nossa desgraça...

... é precisarmos, para tudo, ouvir a opinião que têm de nós aqueles a quem chamamos de próximos. Fiz isso várias ocasiões e recebi ou respostas lisonjeiras, que logo dei como falsas, ou desfavoráveis, que também logo considerei falsas. Numa dessas ocasiões, aquela que veio a desmantelar irremediavelmente minha vida, confessei a uma criatura de Deus um afeto que era certamente maior que todos os que eu havia sentido até então e também certamente maior que todos os que eu ainda puder vir a ter. Ela julgou falso esse afeto e, depois dessa sentença, eu nunca mais me senti nem me sentirei capaz de ter mais nenhum afeto minimamente puro.

Insistir em...

... me expressar é uma das perversões que todos os dias cometo. Quem se expressa, por palavras, por imagens ou qualquer outro meio, revela, no fundo, a pretensão de julgar que tem uma peculiar visão do mundo e das coisas. Atrevemo-nos a saber de todos os comos, porquês e para quês e nos apressamos a deixar registrada nossa originalidade, para que nossos semelhantes, tão criativos e palermas quanto nós, não se proclamem donos de nossa concepção. Não estranharia se algum de nós já tivesse consultado o tribunal universal de patentes para saber se Deus consta ali como artífice do mundo e, em caso de resposta negativa, houvesse registrado o próprio nome, para todos os devidos e indevidos fins. Sustentar a criação do mundo talvez nos seja difícil, mas tê-lo melhorado é sem dúvida uma crença de que nos gabamos.

As palavras

Às vezes, como agora, imagino que nossa desdita venha do fato de termos tantas palavras à nossa disposição. Creio que, para a nossa felicidade ou ao menos a nossa paz, nos bastariam uma dezena delas. No início era o Sorriso e o Olhar. Quando veio o Verbo, com ele veio a presunção de nomear tudo no mundo e de tudo interpretar. Depois de tantos milênios, de tantas gerações atormentadas, conseguiríamos responder com honestidade para que nos servem tantos tratados, tantas metafísicas e tantas filosofias? Para que tantas bibliotecas, tantos livros (que com nossa empáfia chamamos de compêndios), tantas concepções de vida e de morte? O Sorriso e o Olhar teriam nos servido, se não houvéssemos sido tocados desde o início pela nossa megalomania. O Sorriso, o Olhar e dez palavras - que poderiam ser mar, céu, ar, água, amor e mais cinco.

Bradar,

clamar, imprecar são manias que não perco. Há muito sei que, se há algum sentido no mundo, ele há de ser buscado no silêncio. Mas eu brado, clamo e impreco, como bradaram, clamaram e imprecaram todos os possessos. Quando tento, assim, derrubar muros, sinto em mim um furor quase bíblico, e sei que sou movido pela insanidade. Minhas palavras se atiram contra a inexpugnável dureza e, se há o que se esboroe, são elas, com suas deploráveis vogais e consoantes. Depois dos acessos que me exaurem, sinto-me como se sentem todos os tolos que se expõem indevidamente. Vem então o silêncio, mas não é aquele esperado, o da quietude e da revelação. É o silêncio da vergonha. Talvez o silêncio da revelação seja apenas o último. E, antes dele, quantos muros haverá ainda, quantos clamores, quantas disparatadas palavras? E será que aspiro mesmo à revelação ou ela é só um pretexto para que eu, vaidoso, ouça minha voz esfacelando-se contra os muros?

Poemas e poesia

Fazer poemas nós conseguimos. Já a poesia é diferente. Ninguém faz a poesia. Ela se faz e, por condescendência, permite às vezes que o poeta revele algo dela, aquilo que as insuficientes palavras conseguem captar. Deixar-se traduzir inteira é raro. Sabe-se de um caso ou dois. Rilke é um deles.

A desculpa

Se eu houvesse morrido, digamos, em novembro de 2009, não teria havido diferença nenhuma para o mundo. Para mim, seria uma antecipação que me pouparia de vir tentando, por esses anos todos, parecer jovem (ou menos velho) e poeta. Não tenho conseguido, eu sei, e imagino o que andam dizendo a meu respeito. Por que o amor há servir de desculpa a todos, menos a mim? E, se o amor não basta para me absolver, que tal a demência senil? A família é pródiga em casos, é uma espécie de marca registrada nossa. Os poloneses são todos meio pancadas. Eu me desnaturei um pouco aqui, nestes saudáveis trópicos, e às vezes ressinto-me por não ser mais ferrenhamente polonês.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Não ouso trabalhar nada mais esta noite. Aqui, eu tenho uma terrível insônia e sofro de terrores noturnos. Foi por isso que pedi um outro Dickens; se leio Dickens na cama, ele distrai o meu espírito. Meu trabalho me excita de tal forma que à noite me sinto quase insana e durante todo o dia trabalho quase sem interrupção. Uma grande parte já está copiada e endereçada a você, para o caso de me acontecer algum infortúnio. Coragem! Há um grande pássaro negro voando sobre mim, e eu tenho tanto medo de que ele pouse, fico tão aterrorizada. Não sei exatamente que espécie de pássaro é ele."

(Do livro Diário & cartas, traduzido por Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Era um homem...

... pançudo, rubicundo e vesgo que talvez não chamasse a atenção se não ficasse repetindo, enquanto eviscerava coelhos no matadouro, que o homem foi feito à semelhança de Deus. Quando os colegas açougueiros lhe diziam que ele talvez não fosse a melhor prova dessa semelhança, ele rebatia com o argumento de que a semelhança era espiritual, e continuava seu trabalho.

É inacreditável...

... que o homem tenha podido criar a arte. Nada, nele, faz supor esse milagre.

Homem e gato

Toda vez que olho para um homem e para um gato, custa-me acreditar que Deus tenha querido assemelhar-se ao homem.

Por que,

alma imortal, te deixaste aprisionar num corpo assim desprezível, formado por glândulas, nervos, veias, carne e ossos tão perecíveis, tão sujeitos à fermentação, à putrefação, à degradação, à decomposição? Por que precisas esperar que apodreçam baços, pâncreas, fígados? Por que, alma imortal, não te abrigaste no corpo de uma nuvem, de uma espuma, de uma bolha de ar, de um vento benfazejo? Conta-me, alma imortal, por quê, por quê? Por acaso te apetece acompanhar nosso declínio diário, nosso cheiro, nossa desgraçada trajetória pela Terra? Se somos teu adubo, alma, podemos mesmo crer-te imortal?

A verdade é que...

... eu gostaria de escrever um texto em que houvesse tristeza em cada uma das palavras. Que toda vogal, que cada consoante fosse intoleravelmente pungente e melancólica e que até as vírgulas dessem vontade de chorar. Que o monitor, assim que o texto recebesse o ponto final, ficasse úmido e que os leitores me processassem por eu lhes estragar o feriado. Que eu fosse chamado de doente, pernicioso e nocivo e que a Associação de Saúde Mental do Estado conseguisse tirar o blog do ar. Tenho algumas obsessões, mas todas no fundo podem ser resumidas numa só, que eu alimento com o que tenho de melhor na alma: escrever um texto tão triste, tão insuportavelmente triste, que até os violinos guardados há séculos em estojos se pusessem a soar notas agudíssimas, como se de cada um deles tivesse se apossado o fantasma de Paganini. E que todos os pianos do mundo parecessem tocados por Chopin, e chorassem todas as tristezas de todos os homens e mulheres de todos os tempos, desde aquele e aquela expulsos do Paraíso.

Últimos dias

Um dia nos bastarão,
Como a tantos basta já,
Um pedacinho de pão
E uma xícara de chá.

Negociação

"Entra."
"Não."
"Entra, vamos dar um passeio."
"Eu tenho medo. Minha mãe disse que..."
"Eu te dou dez reais."
"Dez reais? Minha mãe disse que..."

Rio

Quando conseguiram resgatar o menino, viram que no bolso de sua calça havia um peixinho, também morto.

Esquina

Ela ainda não calculou,
Mas foi um prejuízo e tanto.
Perdeu três michês, enquanto
Esperava por Godot.

Um trecho de J.M. Coetzee

"O que ela sabe com certeza sobre os deuses é que eles nos espionam o tempo todo, espiam entre nossas pernas, cheios de curiosidade, cheios de inveja; às vezes, chegam a sacudir nossa jaula terrena. Mas até que ponto, ela hoje se pergunta, vai realmente essa curiosidade? À parte nossos dotes eróticos, eles têm curiosidade a nosso respeito, seus espécimes antropológicos, na mesma medida em que nós temos curiosidade por chimpanzés, pássaros ou moscas?"

(De Elizabeth Costello, traduzido por José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

Gostaria de ir saindo...

... devagar, como um ratinho que morando no teatro se visse uma noite surpreendido com as luzes e a agitação de um ensaio. Não chamar a atenção de nenhum ator, especialmente do mal-encarado diretor, e escapar pela mesma fresta por onde entrei uns meses antes. Voltar para a rua e seu alarido. Já fora, ouvir ainda um canastrão indagando, lá dentro: "E a vida, afinal, o que é a vida?". E, antes que algum pateta do elenco se atrevesse a responder, me enfiar de novo no bueiro do qual saí.

Bom dia...

... para vocês. E - ouso desejar - para mim também. Por que não? Pode até acontecer. Até já aconteceu algumas vezes. Quem sabe hoje também.

Com o feriado...

... a rua perdeu a algazarra matutina dos alunos do Ágape. O cachorro do vizinho (entendam bem, o cachorro que pertence ao vizinho), sem ter do que reclamar, recolheu também os latidos. Eles certamente estarão mais fortes amanhã. Provavelmente não virá o vendedor de produtos de limpeza, hoje, e a tarde se arrastará com sua melancolia. Os passarinhos ouvirão melhor seus próprios cantos, embora não haja sol para estimulá-los, e talvez descubram uma nota nova, ainda não inserida em nenhuma escala. Em mim também influi o silêncio. Posso ouvir melhor as queixas de minha tristeza e as batidas desesperançadas do meu coração. Como sempre, a frase que me ocorre para resumir tudo isso é aquela, tão velha e manuseada quanto o menu de um restaurante de beira de estrada: a vida é triste, muito triste, meus caros.

Messe

Em nós agora só medra
A voz oca do vazio,
O toque casto do frio
E o sono surdo da pedra.

Numa boa

Se o amor chegou já ao fim,
Porque reclamo e reclamas?
Não te amo mais, tu não me amas,
Então deixemos assim.

Soneto do amor transato

Que eu, estando o amor transato,
Quando o inverno tiver vindo,
Possa lembrar-te sorrindo
E ao teu carinho ser grato.

Que possam ser olvidados
Os nossos momentos piores
E que os outros, os melhores,
Possam ser por mim cantados.

Que eu saiba reconhecer
Que minha razão de ser
Depois que te conheci

Foi nada mais desejar
Senão te recompensar
Por tudo que recebi.

Novidade

"O texto está bom, e a trama flui bem. Mas você não tem uma história nova, uma em que um homem case com uma mulher?"

Um poema de Emily Dickinson

"À noite como deve sentir-se solitário o vento
Quando todos apagam a luz
E quem possui um abrigo
Fecha a janela e vai dormir.

Ao meio-dia, como deve sentir-se imponente o vento
Ao pisar em incorpórea música,
Corrigindo erros do firmamento
E limpando a cena.

Pela manhã, como deve sentir-se poderoso o vento
Ao se deter em mil auroras,
Desposando cada uma, rejeitando todas
E voando para seu esguio templo, depois."

(De Poemas escolhidos de Emily Dickinson, tradução de Ivo Bender, edição da L&PM Pocket.)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Boa noite...

... para o jovem poeta que, em algum lugar do mundo, estiver compondo estrofes que um dia o levarão ao Nobel de Literatura. Daqui a trinta ou quarenta anos, em Estocolmo, ele no seu discurso talvez se lembre de hoje e do seu sonho. Alguns conseguem isso - consumar seu sonho - e é mais do que merecida a celebração do feito. Eu, provavelmente por despeito, prefiro manter a convicção de que os sonhos não existem para ser consumados. Os sonhos, principalmente os de amor, são a melhor criação do homem. Vangloriar-se deles - e da dor que nos causam - é belo. Vangloriar-se de sua consumação é quase ignóbil. Já se vê que falo de amor num sentido muito especial, num amor que talvez seja vedado ao homem, um amor fugidio como as nuvens claras.

Lacuna

Esta verdade absoluta
Não nos ensinam na escola:
O amor é um filho da puta
Que ou nos mata ou nos esfola.

Barganha

Queres trocar o meu ouro
Por teu saco de farinha?
Te pergunto, meu tesouro:
Na bundada não vai ninha?

Modorra

Envolto nesta modorra
Que ânimo nenhum socorre,
Espero que a vida morra,
Porém a vida não morre.

Assim, a morte esperando,
Porque a vida me maltrata,
Vou vivendo, vegetando,
Mas a morte não me mata.

Desse tormento sem pausa
Conheço já bem a causa
E o que alívio lhe daria:

Amor é o nome de quem
Responde pelo meu bem
E também pela agonia.

Dois trechos de Isaac Bashevis Singer

"O ciúme se tornou quase um anacronismo na literatura moderna. Contudo sempre o considerei um instinto extraordinariamente humano e até animal, a própria essência do romance. Admirava muito Strindberg e li cada palavra que ele escreveu. Tal admiração se devia ao fato de eu ter sido, e talvez no fundo ainda seja, um homem ciumentíssimo."

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"Toda paixão humana é suscetível de reversão, transformando-se no avesso do que era antes. De um ponto de vista psicológico, Hegel estava certo: toda tese avança em direção à sua antítese. Um amor desmedido pode se transformar em ódio venenoso."

(Do livro A morte de Matusalém e outros contos, tradução de Alexandre Hubner, publicado pela Companhia das Letras.)

Gostaria de...

... estar na Paulista agora. Talvez as calçadas tenham sido miraculosamente substituídas à noite por um espesso trigal e quem sabe eu, com o auxílio do sol, pudesse me embrenhar no amarelo, ser tocado pelo amarelo, tocar o amarelo, beijar o amarelo, embriagar-me de amarelo, morrer alegremente morto pelo amarelo e misturar-me a ele de tal forma que ele e eu fôssemos para sempre um só amarelo. Amém.

Má fama

Se eu não tivesse a má fama de ser um ficcionista, talvez vocês acreditassem quando eu digo aqui, todo dia, que viver é cada vez mais penoso para mim. Imagino que vocês já tenham me catalogado irreversivelmente entre os mentirosos. Sou como o garoto que, de tanto gritar em falso "socorro, estou me afogando", quando realmente cai na água e berra de novo, causa gargalhadas: "Ele cada dia está mais convincente, esse moleque." Sei que sonho às vezes ouvir, na frente de minha casa, o fragoroso ruído das águas de um rio.

Um pesadelo

Na fila do céu, quase à frente, sou mandado para trás porque caiu um avião com trinta crianças. Vou então para a fila do inferno, onde me sugerem voltar no dia seguinte. Por acaso não sei que acaba de despedaçar-se um avião com trinta pais e mães que acompanhavam seus filhos a um concurso de robustez infantil?

O último

Hoje também não parece ser o dia, tão parecido ele está com os outros, tão igual. Imagino que haverá no dia, quando ele vier, ou na véspera, um sinal que permita à nossa alma se preparar alvoroçadamente, como uma garota suburbana diante do espelho, para o único baile de quinze anos de sua vida.

O requerimento

Que nas repartições celestiais (ou infernais) não haja o caos existente nas nossas, e que nosso ingresso, há tanto tempo requerido, seja finalmente aprovado, sem que necessitemos do lóbi de santos ou capetas.

O maniqueísmo em Singer

A extensa e brilhante obra de Isaac Bashevis Singer, pela qual ele recebeu o Nobel de Literatura, narra o embate contínuo e feroz entre o bem e o mal. Praticamente não há meios-tons. O mal é o mal, o bem é o bem, e parágrafo a parágrafo eles se confrontam. Essa é a tônica de talvez 80% do que Singer escreveu: o mal e o bem em estado bruto numa luta sem trégua para possuir o homem e submetê-lo. Nos contos e romances passados em aldeias, os personagens quase não têm identidade, são manipulados pelas duas grandes forças. Nas histórias urbanas, Singer já se permite nuançar os protagonistas e os dota de livre-arbítrio. Eles já não são simples porta-vozes do bem e do mal, e alguns, os mais hábeis, conseguem servir-se de um e do outro conforme seus desígnios. Essa "modernização" se observa especialmente no notável Sombras sobre o rio Hudson, traduzido por Paulo Henriques Britto e publicado pela Companhia das Letras, em que os judeus, não mais aldeões supersticiosos, mas cidadãos de Nova York, lidam com o bem e o mal nem tanto com o auxílio de rabinos, mas de psicanalistas e psiquiatras.

Kama Sutra - CXCV

Ao chegar em casa, olhou-se no espelho e apalpou o pescoço, onde a marca rubra do batom começava a arroxear, e sentiu voltar o auspicioso ímpeto que haviam causado os lábios quando se fixaram ali, antes de deslizarem para o umbigo, que ardia agora um pouco ao ser apalpado, e continuarem descendo, traçando uma trilha de saliva, palavras cortadas por gemidos e desejo.

Kama Sutra - CXCIV

Seu dedo médio guardava ainda um pouco da fragrância salina, e no metrô ele o levou disfarçadamente ao nariz e aos lábios, frustrado por não poder suspirar ali como suspirara uma hora antes, no quarto que cheirava a mormaço.

Um trecho de Luiz Carlos Cardoso

"Uma colega de repartição pública disse certa vez aos outros que eu tinha "boa índole", que tinha "berço". Eu cedia a precedência na porta aos mais velhos, apanhava do chão o papel que alguém ou o ventilador derrubava e principalmente ouvia o que os veteranos tinham para contar de seu brilhante passado. Boa índole já não andava na moda mas havia quem a apreciasse por ter sido desse tempo, e passei meus dias e anos desde então acreditando naquilo. Fui chefe, espécie de subgerente ou subeditor em empresas privadas, e me orgulhava de pensar que a boa índole me fazia incapaz, por exemplo, de demitir colegas. Ora, um chefe que não demite, não tarda que o demitam.

(Do romance Crime improvável, publicado pela Ficções.)

terça-feira, 28 de maio de 2013

Se meu destino...

... fosse condescendente, eu teria embarcado há três anos para um lugar qualquer, Tóquio, Buenos Aires, Mumbai, e seria esquecido lá como às vezes ocorre com a bagagem de alguma turista displicente.

Os tolos...

... são como os peixinhos sem valor. Facilmente fisgados, são também facilmente jogados de volta à água. Alguns, ainda mais tolos que os outros, afeiçoam-se ao predador e mordem de novo o anzol, e de novo, e de novo.

Boa noite

Apesar de tudo, do frio que gela o corpo e a alma, do desespero e da desesperança, das lembranças que guardamos tão avaramente no coração e das quais não conseguiremos nunca nos livrar, apesar do ouro do sentimento, que apodreceu em nossas mãos e borbulha como pústulas espremidas, apesar do cheiro ruim que estrofes antigas exalam, apesar das emanações sulfúricas que saem do santuário guardado em papel de seda e amarrado com fitinha metálica, apesar disso tudo e de tantas outras coisas que vão se esfacelando dia a dia, tarde a tarde, noite a noite e pelas madrugadas adentro, boa noite para aqueles que tiveram o bom-senso de colocar os afetos, as amizades e o amor entre os objetos prescindíveis, dando-lhes a atenção que merecem um brinco de lata e um pechisbeque de camelô.

Conhecimento de causa

Ninguém tem por mim uma comiseração mais sincera que a minha.

Conforto

Escrevo não para o amor.
O amor há muito está morto.
Escrevo por minha dor
E o inatingível conforto.

Tempoema

poema definitivo

                                  vem logo

poema derradeiro

                                  vem logo

poema esquivo

                                  vem vem

poema furtivo

                                  que há tanto tempo eu vivo

                                  que tenho cada dia menos tem
                         

Soneto dos dois amos

Talvez um dia sejamos
Vassalos dignos de ter
A bênção de merecer
O amor de nossos dois amos.

Que nesse dia possamos
Talvez também receber
O dom de os enaltecer
Como sempre desejamos.

Que exprima então nossa voz
O que há de melhor em nós
Com toda a força e clareza.

Assim será quando for
Louvado por nós o amor
E decantada a beleza.

Cinismo, 150 mg

Verdade, ainda respiramos
E nenhum mal nos ocorre.
Mas esperança tenhamos,
Ela é a última que morre.

De Jorge Luis Borges, sobre a poesia japonesa

"A poesia japonesa se baseia no contraste. Não se compara uma coisa com outra, contrasta-se. Um dos mais famosos exemplos da poesia japonesa, traduzido, se expressaria assim: 'Sobre o grande sino de bronze pousou uma borboleta.' Há traduções diferentes, mas é mais ou menos assim. Aí obviamente não se compara nada com nada, se contrasta. O firme e durável sino de bronze com a efêmera borboleta. Não há metáfora."

(Do livro Dicionário de Borges, de Carlos R. Stortini, traduzido por Vera Mourão e publicado pela Bertrand Brasil.)

Tarefa desta terça

Cortar os impulsos
de comprar a corda
de escolher a viga
de pegar a arma
de cortar os pulsos

O cego, o menino e as vassouras

Há muito não vejo mais uma cena que era comum aqui no bairro: o cego com seu acompanhante, geralmente um menino, indo de casa em casa para vender vassouras. Andamos tão desencantados com os seres humanos que não acreditamos mais em cegos, nem nos meninos que os acompanham e nem nas vassouras que oferecem. Melhor comprá-las no supermercado, ainda que por um pouco mais. Se não resistirem à primeira varrida, sempre se poderá trocá-las, guardando a notinha. Quem há de encontrar nesta cidade, imensa como uma desgraça, um cego que talvez nem cego seja, ainda que tenhamos exigido ver seu crachá?

Naturalmente...

... haveria de soar, entre os ruídos da manhã, o aflito apelo de um gato. Ouço a vizinha comentar: "Coitado, deve estar com frio e fome." Alvoroçam-se as casas deste lado da rua, e também no outro lado, no colégio, alguém, como se houvesse só uma frase para essas ocasiões, diz: "Coitado, deve estar com frio e fome." Há de achar quem lhe dê comida e abrigo, esse gato tresmalhado que por um momento me faz esquecer do egoísmo de minha tristeza.

Ainda me...

... lembro dele, embora seus traços fiquem cada dia mais imprecisos e seu calor já não me aqueça as mãos como antes. Deve ser defeito meu. O amor não se desfigura, não arrefece. O amor é sempre aquele que vimos e sentimos no seu momento de maior esplendor. Nós é que não o merecemos e o deixamos morrer em nós, como um passarinho esquecido fora de casa na mais gélida noite de inverno.

Longevidade

O nosso maior castigo
Quando se vive demais
É precisar de um amigo
E não se ter nenhum mais.

A tristeza

A tristeza é a obra de minha vida e talvez minha única paixão. Desde a infância ela foi meu ideal e, se algum arrependimento tenho, é o de não haver aprendido a celebrá-la como ela merece. Eu a semeei, reguei-a com as lágrimas de praxe e a senti crescer em mim como um destino. Gostaria que ela fosse pura, sem traços de ressentimento ou rancor, o que quase sempre consegui. Gostaria também que ela fosse uma obra minha, apenas, um produto exclusivo de minha vontade, mas em muitas das lágrimas que a nutriram há um mérito alheio, que devo reconhecer. Eu a vejo hoje, minha pobre e querida árvore, exatamente como deve ser a árvore da tristeza: mirrada, débil, raquítica. Não me dará sombra jamais, nem flores, nem frutos. Será a metáfora ideal para a minha vida.

Cotação do dia

Hoje me ocorreu que a palavra mais adequada para exprimir meu principal sentimento atual é mágoa. Mágoa tem algo de antigo, antiquado até. Ela é uma espécie de ressentimento atenuado. O ressentimento fica mais perto do ódio e exige reparação. A mágoa é mais branda, mais resignada. É difícil explicar isso, mas a minha mágoa é uma espécie de doçura e eu me pergunto se não a alimento justamente para sentir esse gosto agridoce, que no fundo foi sempre o sabor de minhas alegrias. Jamais acreditei na alegria integral. Sempre desconfiei dela. Creio haver nisso algo do meu sangue polonês.

RIP

Ser comum ou incomum
Pouco importa, tanto faz.
No acerto de contas, um
Jaz aqui, o outro ali jaz.

Horror

Uma ideia bizarra e assustadora: e se, mortos, conservarmos a memória, e até o fim de todos os tempos ficarmos remoendo aquilo tudo que hoje nos faz ansiar pelo dia derradeiro e pela paz eterna?

Amores de inverno

Pobres amores tardios,
Amores inesperados,
Amores desajuizados,
Amores de inverno, frios,

Amores parcos de cios,
Amores desajeitados,
Amores desabituados,
Amores sem amavios.

São desafios a quem
Não sabendo muito bem
Como hoje são os amores,

Recorre ainda à poesia
E aos itens de cortesia:
Bombons, livros, bolsas, flores.

Morte feliz

Que morno mel me agonia...
Sofrer de amor é tão doce
Que se mais um pouco fosse
De doçura eu morreria.

Uma frase de Isaac Bashevis Singer

"Em algum lugar do universo a verdade tem de ser afirmada. De uma coisa estou convencido: aqui na Terra, a justiça e a verdade estão eterna e totalmente fora do nosso alcance."

(Do livro A morte de Matusalém e outros contos, tradução de Alexandre Hubner, publicado pela Companhia das Letras.)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Boa noite...

... para quem soube amarrar-se ao ouvir as primeiras notas da canção do Amor. Que doce é ouvi-la assim, dia após dia, sem poder lançar-se ao seu encontro. Os que se lançaram à água têm um olhar imbecilizado, de cavalo saciado com capim, e, quando alguém lhes pede para reproduzir a música que os enfeitiçou, entoam notas que parecem celebrar o supremo gozo do enfado.

Sofá

Se em nós a chama da vida
Já não reluz, bruxuleia,
E o nosso anseio só anseia
Pela hora da despedida,

Se a trilha ontem percorrida,
De sol e de flores cheia,
Hoje nos parece alheia
E quase desconhecida,

Que então em casa fiquemos
E nada mais procuremos
Aqui, além, acolá.

A morte, se nos quiser,
Nos achará, quando vier,
Esperando-a no sofá.

Falha original

"Vou te dizer. Se foi mesmo Deus que nos fez, acho que ele ainda não tinha nenhuma prática."

Prêt-à-porter

Ora estou por cima,
Ora estou por baixo.
Ou fujo da rima
Ou nela me encaixo.

Tabela Price

Por aquele afeto puro
Que era o meu sol e o meu dia,
Mil vezes eu morreria,
Ou um milhão, mais o juro.

O leito

Assim como um rio que a seca há muito tempo matou, o homem conserva só o leito. Como o do rio, nele se veem apenas destroços e, se algo se move ainda, é por obra da tosse que convulsiona seu corpo, como o vento outrora redemoinhava as águas.

Alívio

Foi bom não ter te tocado
Quando tocar-te seria
O modo mais adequado
De matar a fantasia.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"Dissolvi num copo um punhado
Para ti de cabelo queimado.
Para que não comas, não bebas,
Não cantes, não durmas.

Para que a juventude não te seja ardor,
Para que o açúcar perca seu dulçor,
Para que nas noites de amor
Da jovem esposa não sintas o calor.

Como meus cabelos de ouro
Se tornaram cinza opaca,
Assim teus anos de jovem
Se tornem inverno de prata.

Para que cegues - sintas dor,
Para que seques - feito uma flor,
Para que saias - feito um estertor."

(Do livro Indícios flutuantes, traduzido por Aurora F. Bernardoni e publicado pela Martins Fontes.)

Tão rara

Razão tu tens, minha cara.
Tão velho sou, e sem arte,
Que a ti, tão jovem e rara,
Como poderei louvar-te?

Um soneto de Shakespeare

"Em mim tu podes ver a quadra fria
Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,
Pendem do ramo trêmulo onde havia
Outrora ninhos e gorjeio e plumas.

Em mim contemplas essa luz que apaga
Quando no poente o dia se faz mudo
E pouco a pouco a negra noite o traga,
Gêmea da morte, que cancela tudo.

Em mim tu sentes resplender o fogo
Que ardia sob as cinzas do passado
E num leito de morte expira logo
Do quanto que o nutriu ora esgotado.

Sabê-lo faz o teu amor mais forte
Por quem em breve há de levar a morte."

(De Sonetos, tradução de Ivo Barroso, publicado pela Editora Abril.)

Cotação do dia

Gostaria de ter sido outro, a quem pudesse lembrar com carinho e dedicar um sorriso no espelho.

Atenuante

"Não é possível que ela seja tão cruel, com aqueles olhos tão azuis."

E agora, então?

No tempo em que  eu era forte,
Ou não era fraco assim,
E pensava ter a sorte
De amar-te e amares a mim,

No tempo em que eu me movia
Sem este esforço e esta dor
E em que com fervor eu cria
Ser sincero o teu amor,

Com desprezo me trataste,
Riste de mim e zombaste
Porque eu te queria minha.

Imagino agora então
Teu asco quando com a mão
Me pões na boca a sopinha.


Sétimo dia

Dias só passaram sete.
O tempo, com sua mão,
Semeia com lentidão
O alívio que nos promete.

domingo, 26 de maio de 2013

Um dos...

... que foram postos no cárcere do Amor andou chorando tanto, por julgar pequeno o suplício que lhe destinaram, que ontem de manhã o conduziram, devidamente amarrado e encapuzado, ao mais ermo dos lugares, deixando-o ali. À noite, quando encarcerados e carcereiros imaginavam poder desfrutar enfim uma noite de bom sono, o infeliz reapareceu e, arranhando o portão de ferro com as unhas, se pôs a gritar: "Me aceita de volta, Amor, eu te imploro. Dá-me vinagre para beber, e carne podre, mas deixa que eu volte. Dá-me cem chicotadas noturnas, em vez das duzentas a que faço jus, que juro não mais me rebelar nem me queixar. Eu juro, Amor. Cem chicotadas, só, ou cento e cinquenta."

Há de ser...

... uma boa noite. Chegarão a nós os lamentos de sempre, daqueles que ainda têm esperança no amor, mas já estamos habituados a isso. Que chorem e supliquem. Não foram devidamente advertidos? Não foram suficientemente alertados? Deixaram levar-se por um tolo sentimento e, já tímidos, já inermes, já exangues, ainda têm a desfaçatez de continuar com suas lamúrias, enquanto os homens de verdade quebram os estrados das camas com sua saudável luxúria domingueira. Lastimem-se, criaturas pusilânimes, e morram de sede, enquanto os perpetuadores da espécie, derramando vinho na cama e na amada nua, o engolirão com a honesta sofreguidão dos fortes.

Gente fina (4)

"Amizade, se eu fosse pagar, quanto seria?"

Gente fina (5)

"Olha o lordo daquela baixinha ali."

Gente fina (6)

"Garçom, tem um palito aí?"

Gente fina (7)

"Pra mim deu. Não me formei professora pra lavar cueca."

Certa sabedoria

Literatura não é aquilo que eu julgava estar fazendo. Levei sessenta anos para descobrir. Se eu fosse cínico, ou tivesse em mim um pouco de espírito oriental, diria que saber que não se aprendeu não deixa de ser um aprendizado.

Um poema de Renata Pallottini

"SEXO/AMOR

Na tua mão direita
a possibilidade do prazer

nem delícias
nem o roçar dos dedos na carne mais íntima

na tua mão direita
a possibilidade das palavras
de uma carta."

(Do livro Um calafrio diário, publicado pela Editora Perspectiva.)

Alegria dos domingos

Agora que o amor não quer mais papo conosco, redescobrimos a beleza do futebol, com suas linhas burras, suas linhas de quatro e seus impedimentos. Até mais. Bons jogos, belos gols.

O amor é um bebê no colo da mãe

O amor, para mim, hoje é como um bebê que a mãe leva no colo por um campo desabitado. A tempestade de neve a desorientou. A aldeia mais próxima fica a cinco quilômetros, mas a mãe caminha na direção contrária, voltando sobre seus passos. Ela ajeita o cobertor, aconchega o bebê ao coração e finge não notar que ele está roxo.

Lição

Do meu professor de português no antigo ginásio: "Atenção vocês, que vivem escrevendo coisas no muro: cu assenta-se, mas não se acentua."

Templo é dinheiro

Hoje, com as novas e prósperas seitas, o provérbio mudou: quem chegar primeiro é a mulher do padre.

Música

Dupla sertaneja boa é aquela em que um é mudo e o outro não canta.

Pandora

Aos dez anos, a pecaminosamente excitante descoberta de que o dicionário registrava a palavra boceta.

Gente fina (1)

"Vou querer uma lasanha. Mas vê se capricha. Na última vez não deu nem pra encher a cova do meu dente."

Gente fina (2)

"E aí, Marcita? Pode ser ou tá difícil?"

Gente fina (3)

"Se eu tivesse uma mãe gostosa assim, punha chifre no meu pai."

Questão de língua

Somente depois de consultar a próclise e a mesóclise, te darei ou dar-te-ei um beijo. A única sem-vergonhice proibida ao amor é o desrespeito ao vernáculo.

Reputação

Para gozar de bom conceito, às vezes minto um pouco sobre mim.

Eufemismo

O suicida de boa família não se mata. Morre-se.

Cartografia

Tocados pela artrite
boiam adernados os dedos
que em antigos dias
percorreram geografias
golfos umbigos
coxas baías
grutas segredos
envoltos em mornos mares
e maresias.

Solidariedade

Os pássaros que moram na mexeriqueira da escola não cantam mais. Anteontem, chegou-lhes da aula de português a leitura dos versos iniciais de Cântico do calvário, de Fagundes Varela, aqueles que falam da morte da pomba predileta que sobre um mar de angústias conduzia o ramo da esperança.

Isadora

O destino invejoso, que de amorosos beijos privou o pescoço do cisne, isentou-se: "Se eu fosse mesmo cruel, teria lhe quebrado as pernas."

Há de ser...

... uma boa tarde, se não esperarmos demais dela, se nos satisfizermos com esse sol não muito convicto, que tem porém ainda algumas horas para dar uma melhoradinha. A mídia há muito quer incluir os fenômenos naturais na lista que já abrange uma infinidade de maniqueísmos e, além dos extremos ("bom" e "mau"), introduziu um "regular" e até um pernóstico "medíocre". As moças da Globo falam de "qualidade do tempo", como se estivessem mencionando produtos da safra, morangos, caquis, chuchus, abobrinhas. Logo estaremos entrando com ações coletivas contra as chuvas em demasia ou a baixa umidade relativa do ar. Eu, por mim, vou me mantendo aqui com meu céu levemente carregado, como convém a quem apregoa sua tristeza como se estivesse se vangloriando de uma alegria gostosa como uma travessura. Não se deixem impressionar por esta visão. É a de um velho que adquiriu o direito de ser ranzinza e resmunga a propósito de tudo. Andem por essas nossas belas avenidas e alamedas e deixem que eu, por uma suposta melhor compreensão da vida, me entristeça por todos. Em matéria de tristeza, sou um esganado. Até.

Cabeça dura

Devo sofrer de alguma espécie de retardo mental. Com toda esta idade, ainda não aprendi a ser cético.

Best-sellers

Nunca as partes pudendas e a má literatura estiveram tão expostas. Quem molha o dedo para virar a página tem, como brinde, um gosto furtivo de sal.

Cotação do dia

Os pulmões continuam cumprindo sua função e o coração obstina-se em bater. Talvez durem mais do que o previsto.

Mula

Às vezes a vida empaca de tal forma, que nem o chicote do amor consegue fazê-la andar.

Procon

Mesmo com suas cabriolas e suas caretas aliciadoras, o domingo, quando se esgota o seu marketing, acaba se revelando igual a todos os outros dias.

Idade

Começam a aparecer perebas, manchas, roxidões. Se fôssemos frutos, seria a hora de nos esborracharmos no solo. Talvez as formigas nos apreciassem.

Pavlov

Com o tempo, viver se torna um hábito, como o de escarafunchar o nariz ou coçar a virilha.

Um trecho de Thomas Bernhard

"DOIS BILHETES

Na grande sala de leitura da biblioteca da Universidade de Salzburgo, o bibliotecário enforcou-se no enorme lustre porque de súbito, como deixou escrito num bilhete, depois de vinte e dois anos de serviço não aguentava mais ordenar e emprestar livros que só haviam sido escritos para causar desgraça, com o que ele se referia a todos os livros já escritos. Isso lembrou-me o irmão de meu avô, que era guarda-florestal em Altentann, perto de Henndorf, e se matou com um tiro no topo de Zifankej por não poder mais suportar a infelicidade humana. Também ele deixou essa sua constatação registrada num bilhete."

(Do livro O imitador de vozes, traduzido por Sergio Tellaroli e publicado pela Companhia das Letras.)

A hora

Sei que já não devo ter
Nem mais anseio nem ânsia.
Na hora de morrer, viver
Não tem nenhuma importância.

Sonetinho da guria

Quando eu descrente estiver
De te reencontrar, guria,
E morta em mim se fizer
Sem remissão a alegria.

Quando em mim somente houver
Tristeza e melancolia,
E quando eu já não puder
Suportar minha agonia,

Guria, eu te chamarei
E juro que te acharei
Onde estiveres metida.

E quem, diz, não faria isso,
Por ti, pelo teu feitiço,
Minha guria querida?

Opinião

Se me permitem dizer,
Se me consentem julgar,
Viver é um modo de ser,
Morrer é um modo de estar.

Um poema de Renata Pallottini

"ESTENDE SOBRE MIM...

Estende sobre mim uma peça de seda.
Estou suja de sombras.
Ensina-me a subir até o cimo das árvores
a viver sem ter fome

a partilhar a cor que há nas asas dos pombos.

Ensina-me por fim a prescindir.
A estar porque existo
a resistir a qualquer grande frio
e a dormir.
A dormir porque as noites estão aí
para isso."

(Do livro Um calafrio diário, publicado pela Editora Perspectiva.)

sábado, 25 de maio de 2013

Ofício

Que indícios posso eu, que provas
Do meu ofício mostrar?
Quem há de poeta me achar
Lendo estas míseras trovas?

Adeus

Depois de tanto dizer
Em vão aos ouvidos teus,
Que um dia possa eu fazer
Ouvires o meu adeus.

Estafa

Somos inúteis, frustrados.
E o que mais podemos ser,
Se estamos só empenhados
Em respirar e viver?

Vocação

Matamos em nosso rumo
Aquilo tudo que presta,
Secamos do fruto o sumo
E amarga é a polpa que resta.

In extremis

Morrer deveria ser
Como desligar a luz,
Dormir, e no sonho ter
Na mão a mão de Jesus.

Inverno

Com neve já no cabelo
E frio no coração,
Componho minha oração
Com frases feitas de gelo.

Ir às alfaces,

agora. A feira, com suas cores e aromas, desanuviará de vez nosso espírito. Hora de ouvir as vozes apregoando as riquezas que as barracas oferecem com repentinas e inacreditáveis baratezas, as generosas dúzias agora de quinze ou dezesseis porque o meio-dia vem chegando. Hora de  deixar que o alarido nos embriague docemente e de, indo à barraca do pastel, lembrar de quem todo sábado, afetuosamente, nos desejava que ele estivesse delicioso. Há de estar. Boa tarde.

Dizer bom dia...

... como quem vai de pijama ao portão para atender o menino que tocou a campainha. Dizer bom dia como o menino diz a quem foi atendê-lo. Redescobrir esta alegria de dizer bom dia como dizíamos algum tempo atrás. E que nosso bom dia chegue a quem deve chegar como chegava quando o dizíamos com esta voz que reencontramos, a nossa voz verdadeira, cheia de afeto, de orvalho matinal e puras intenções.

Haveremos de...

... ser gratos aos dias que nos ensinaram a lição da amizade. Haveremos de ser ternos como fomos antes que o fogo da paixão acendesse equívocos em nosso sangue. Haveremos de ser alma, alma só, alma, alma. Devolveremos a pureza às nossas mãos e reencontraremos a paz. Nos sentiremos dignos, outra vez, do afeto que aquece nosso coração sem incendiá-lo.

Será mais um...

... dia de lembranças. Cuidaremos para que elas não se inquietem e para que fiquem como devem ficar: ternas, agradecidas, felizes por serem o que são e por conservarem ainda um pouco do sol dos dias em que as guardamos na memória, ao lado dos nossos outros tão caros e raros tesouros.

Difícil é...

... a tarefa de ensinar às mãos incitadas pela ansiedade amorosa o toque da amizade. Penoso é reprimir os lábios quando eles recusam o que lhes recomendamos e insistem em dizer amada quando deveriam dizer amiga. Mas aprenderão, as mãos e os lábios, e tocarão a mão da amada agora amiga como se fosse uma flor recém-nascida, e a beijarão com cuidado, para que nenhuma pétala se desprenda.

Sim ou não

Eu quero saber somente
Se quando você me diz
Que nunca foi tão feliz
Fala a verdade ou só mente.

Frutos

Estamos já derrotados
Desde o primeiro momento.
Nascemos fracos, mirrados,
E sopra contínuo o vento.

Rousseau

Se fôssemos definir Rousseau pelo que Voltaire achava da teoria exposta no Contrato social, ele seria um quadrúpede advogando em causa própria.

Cotação do dia

Apalpado como um tomate, depois atirado de volta ao monte. Será mais vermelho o vermelho dos meus irmãos?

Um poema de Pierre Ronsard

"Querida, vamos ver se a rosa,
Que esta manhã abriu garbosa
Ao sol seu purpúreo vestido,
Não perdeu, da tarde ao calor,
De sua roupa a rubra cor,
E o aspecto ao vosso parecido.

Ah! Vede como em curto espaço,
Querida, caiu em pedaços.
Ah! ah! a beleza que tinha!
Ó mesmo madrasta Natura,
Pois que uma flor assim não dura
Senão da manhã à tardinha!

Então, se me dais fé, querida,
Enquanto a idade está florida
Em seu mais viçoso verdor,
Colhei, colhei a mocidade:
A velhice, como a esta flor,
Fará murchar vossa beldade."

(De Poetas franceses da Renascença, tradução de Mário Laranjeira, publicado pela Martins Fontes.)

Um soneto de Louise Labé

"Beija-me mais, beija-me ainda e beija;
Dá-me um daqueles teus mais saborosos;
Dá-me um daqueles teus mais amorosos,
Dou-te outros quatro em brasa que flameja.

Ah! tu te queixas? Que este mal te seja
Paz ao te dar dez outros deliciosos.
Mesclando nossos beijos mais ditosos
Gozemos um do outro, o amor sobeja.

E vida em dobro cada um terá;
Em si e no amante cada um viverá.
Permite, amor, pensar esta loucura:

Sempre estou mal, em discrição vivendo,
E não me posso dar contentamento,
Se de algo fora eu não for à procura."

(De Poetas franceses da Renascença, traduzido por Mário Laranjeira, publicado pela Martins Fontes.)

Dois poemas de Guillaume Bouchet

"HORÓSCOPO DE UM ENFORCADO

E Nostradamus e Romburo,
E os vates mais afamados,
Foram todos por ti sondados,
Para saber o teu futuro;
Predisseram que tu estarias
Mais alto que os reis um dia,
E eis que te levam para a forca:
Não disseram mesmo a verdade?
Pois vais tão mais alto ascender,
Que ninguém pode pretender."

*********************************

"DÉDALO

Dédalo gritava ao menino,
A fim de coragem lhe dar:
"Voa como eu sempre te ensino,
É só a praia acompanhar";
Mas o filho, já naufragando,
Dizia: "Não estou no ar;
Voar não está adiantando,
Ensina-me antes a nadar."

(Do livro Poetas franceses da Renascença, tradução de Mário Laranjeira, publicado pela Martins Fontes.)

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Não me custa...

... dizer-te boa noite. Tem-me custado não dizer-te.

"Poder dormir...

... sem sentir teu amor" é um verso de uma canção composta por Paulo e Marcos Sérgio Valle há cinquenta anos, por aí, e penso não ter sido à toa que ele me ocorreu agora, no fim de um dia no qual me dominaram duas emoções antônimas, ambas de índole amorosa: uma exaltada, outra serena. Toda angústia que o amor provoca nasce de nós insistirmos em arranjar-lhe sinônimos, em nomeá-lo, em chamá-lo de Lídia, Norma ou Sofia e de darmos a Lídia, ou a Norma, ou a Sofia a exclusividade de representá-lo, como se elas - ou melhor, só uma delas - pudessem fazê-lo. E aí surgem o tu, o você, o vós que aplicamos a Lídia, a Norma ou a Sofia, e as variações: teu amor, seu amor, vosso amor. Exultamos e sofremos como efeito dessa questão de nomenclatura. O amor é o amor, como quer que o chamemos: Lídia, Norma ou Sofia. O que afeta todo esse raciocínio é que, de tanto falarmos baixinho Lídia, Norma ou Sofia, parece que transferimos a esses nomes o sortilégio do amor. Digamos amor, só, e louvemos o deus, não suas sacerdotisas. Confuso esse texto? Também me pareceu.

Que o amor...

... possa nos perdoar todos os arroubos, todas as cóleras, todas as acusações, todas as maldições, todas as culpas que atiramos às suas costas - ainda que o faça só no último de nossos dias. E que até lá tenhamos a humildade e a sabedoria de não esperar dele nada além disso, se for isso apenas o que ele nos quiser dar.

O amor há de...

... cuidar para que, quando for objeto só da memória, possa ser recordado com carinho. O amor não há de interpelar, de puxar pelos ombros, de gritar nomes pela rua. Há de guardar para si a dor e, se for lamentar-se, que seja como o cicio de uma folha soprada pela mais leve brisa. O amor não há de derramar-se em odes, nem transbordar em epopeias. O amor há de ser um poema simples, uma trova, uma quadrinha, quatro versos feitos com palavras corriqueiras e metáforas infantis. O amor não há de argumentar, de debater, de persuadir. O amor há de ser espontâneo e silencioso como uma garoa vista pela janela. O amor há de ser como os lápis de cor de uma menina: prontos para a qualquer momento pintar o arco-íris, mas modestos e quietos dentro do estojo, enquanto ela não os chama.

Que a obsessão...

... do amor se amenize e sua voz possa soar terna e calma. Que o marulhar das ondas seja substituído pelo fluir tranquilo de um riacho e, depois, pela placidez de um lago esquecido pelo vento. Que os brados e os clamores deem lugar a palavras amenas e as palavras amenas se transformem em sussurros. Que a oratória desatinada seja absorvida aos poucos pela poesia, e que esta possa ser lida na cama de uma criança, para niná-la e fazê-la sonhar.

Pode-se?

Pode mesmo amar-se tanto?
Tendo ou não tendo esperança,
O meu amor não se cansa
Nem se enfraquece o seu canto.

Dois poemas de Pernette du Guillet

"Para agradar a quem só me atormenta ,
Não quero achar remédio ao meu tormento:
Por ver na minha dor o seu contento,
Contente estou com seu contentamento."

************************************

"Acuso-me bem claro nesta décima
De tuas virtudes não honrar à altura,
Fora o querer que é uma desculpa péssima:
Mas quem pudera ornar pela escritura
O que, de fé, se leva a adorar?
Não digo, se tivesse teu poder,
Que quitar-me não fosse o meu dever,
Do querer-bem que, ao menos, dizes ter.
Empresta-me esse teu saber sem par
Para como me louvas te eu louvar." (*)

(*) Curiosa (e engenhosa) a solução que o tradutor, Mário Laranjeira, encontrou para, no verso indicado, manter a estrutura do poema, toda em decassílabos. Se, ao invés de "te eu" ele recorresse à forma direta "eu te", teríamos um verso de onze sílabas, um hendecassílabo. Por essa e muitas outras peculiaridades se diz que traduzir poesia é criar poesia. Os dois textos foram extraídos de Poetas franceses da Renascença, publicado pela Martins Fontes, precioso livro do qual pretendo reproduzir outros poemas.

Talvez esteja...

insano, como suspeitam. Ou talvez tenha sido tocado finalmente por alguma poesia. Acaba de pensar num projeto: arranjar ao menos dez rouxinóis que, na noite adequada, se colocarão em certa árvore de determinada rua e em uníssono cantarão parabéns a você. Embora não seja muito bom para arquitetar planos, tem um trunfo na mão: quase três meses.

Às vezes...

... precisa parar. Cantar o amor lhe traz um cansaço que o entorpece inteiro, como tivesse se embriagado de mel.

Cada gota...

... do seu sangue está hoje empenhada em regar o solo dos poemas que, quando chegarem às mãos da bem-amada, se abrirão em ternas flores.

Quando vier a noite,

se o céu estiver claro, ele apontará a maior das estrelas, para que ela deixe em seu dedo o brilho que, de madrugada, indicará o único rumo que lhe interessa em todo o planeta: o da casa da amada.

Não dirá...

... boa tarde, hoje. Com esse tempo, não quer correr o risco de contaminar a cidade com os germes do amor.

Receia que...

... um médico seja chamado,  e, quando começar a auscultá-lo, o ar se povoe instantaneamente de trinta e três pombos brancos.

Está pensando em...

... coisas disparatadas, e no entanto cabíveis: uma greve de fome, por exemplo. Quantas já não tiveram como pretexto causas nem tão nobres assim? Irá encerrar-se numa gaiola bem grande, na praça da Sé, só com a sua canetinha e alguns blocos de papel. Talvez, quando o público for pequeno, possa comer as rosas que for colocando em cada um dos poemas.

Quando pensa se...

... Priscylla por acaso não é só uma criação do seu cérebro viciado em poesia, ele sorri da própria estultície: admitir isso seria como crer que alguém pudesse jogar uma moeda para o alto, uma noite qualquer, e vê-la voltar à mão sob a forma de estrela.

Os poetas,

às vezes por exigências de rima, usam palavras que acabam gerando desconfiança em quem lê os seus poemas. Quando dizem que uma paixão ou um coração arrefecem, dão a impressão de pertencer àquela classe de artesãos que, encarregados de disfarçar uma lasquinha invisível num objeto de porcelana, ganham do contratante um mês para escolher o melhor método e um ano para concluir o trabalho. Os poetas hão de esquivar-se desse virtuosismo e dizer desde logo que a paixão insatisfeita dói horrivelmente e o coração pode morrer de uma momento para outro. O amor é muito mais que uma lasquinha num objeto de porcelana.

Continuar lendo,

continuar escrevendo, não aspirar a nada mais. Deram-me esse conselho e me disseram que nisso estaria a minha ventura. Continuo lendo, escrevendo, mas há tardes, como esta, em que ler e escrever não têm nada de venturoso para mim. Alguma coisa me falta - e essa coisa é tudo. Enganar o coração não é uma atividade anual, semestral, quinzenal, semanal. Enganar o coração é uma indignidade diária. Ele me pergunta a todo instante por Priscylla.

Evoé Baco

No tempo em que eu entornava
Copos, tonéis e barris,
Líquido nenhum poupava,
Nem mesmo os pingos dos is.

Logo logo

Eu te cumprimentarei, e tu me perguntarás: "Você é quem, mesmo?" Eu te direi, exagerando, mas não muito, que sou aquele que prometeu dar a vida por ti. "Ah, é", tu me reconhecerás, estalando o dedo.

Web

Viciar-se em internet não é uma micro, é uma macrodependência.

Aspirador

Sentado aqui no sofá
Está alguém bisonho e só,
Alguém que veio do pó
E que ao pó retornará.

De Isaac Bashevis Singer, sobre a arte

"A arte não precisa ser apenas revolta e rancor; também pode ter um potencial construtivo e regenerativo. Também pode tentar, à sua maneira humilde, consertar os erros do construtor eterno a cuja imagem o homem foi criado."

(De A morte de Matusalém e outros contos, tradução de Alexandre Hubner, publicado pela Companhia das Letras.)

Se voltarmos...

... à tarde, ou à noite, estaremos um pouco mais pálidos, um pouco mais tristes. O amor nos exaure como uma sucuri exaure um cordeiro. Se estranharem nosso rosto e duvidarem de nossa identidade, olhem para nossas mãos. Ali estarão ainda nossas algemas. Não nos perguntem por que, estando os pulsos cada dia mais finos, não nos livramos delas. Há coisas que os cordeiros sentem, mas não explicarão nem no último balido.

Dediquemos uma prece...

... àqueles que, tendo mostrado ao amor seu ponto mais vulnerável, foram feridos em todos, menos nesse, e esperam que hoje seja o dia do golpe definitivo, aquele de misericórdia.

Um dia a mais...

... é abençoadamente um dia a menos. O último está mais próximo e, quando ele vier, nada - nem mesmo o amor - nos atormentará.

Sic

As coisas assim são postas:
Novas manhãs nos desprezam
E os dias mortos nos pesam
Como defuntos nas costas.

Semente

Semente do amor, gorada,
O sol me castiga aqui
Onde ainda espero por ti
E tua sombra abençoada.

Futuro

Desde o dia em que nascemos
Daquele sopro divino,
Nosso futuro sabemos:
Morrer é o nosso destino.

A verdade

Convém dizer de uma vez
O que entre nós realmente houve:
Amar não nos satisfez,
Porém sofrer nos aprouve.

De circo

Talvez alguém me quisesse
Se o tigre manso eu tornasse,
Se palhaçadas fizesse
E triplos mortais ousasse.

Cotação do dia

Já se foram a prorrogação e os pênaltis. O estádio se esvaziou, e eu - bola esquecida - tenho saudade dos chutes que me deram.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Compra & venda

De tanto o amor procurar,
Cansou-se já de saber:
Amor se pode vender,
Mas não se pode comprar.

Primazia

No campo de prisioneiros,
Amor, o Exterminador,
No forno incinerador
Põe todos os seus parceiros.

Um poema de Anna Akhmátova

"Tua casinha branca, teu tranquilo jardim abandonarei.
Minha vida passará a ser solitária e radiosa.
Mas a ti, a ti eu celebrarei em meus versos,
como mulher alguma jamais fez.
Tu, querido, relembrarás a tua amada
no paraíso que criaste para os olhos dela.
Enquanto isso, eu comercio estes tesouros:
teu amor, tua ternura, vou vendê-los."

(De Antologia poética, tradução de Lauro Machado Coelho, publicado pela L&PM Pocket.)

Tiveste medo...

... do ridículo, talvez, e muitas vezes ficaste escolhendo as palavras do teu amor como se elas pudessem um dia ser submetidas a julgamento por um tribunal de cínicos. Que oportunidade perdeste. Cada uma das palavras usadas em nome desse sentimento deveria ser a exata, a única, ainda que rissem delas como se ri de uma estria no ventre ou de uma espinha no nariz.

Tudo que escreveres...

... há de ter a marca da derrota. A derrota é a tua verdade e Deus talvez te dê os meios de exprimi-la como ela merece. Mas não deixes só a Deus a incumbência. Convoca tudo que tens, teu sangue, teu corpo e tua alma (se também a tiveres). Fala com orgulho de tua derrota. Há quem se vanglorie de coisas menos valiosas.

Deves esquecer todos os...

... teus ímpetos, todos os teus impulsos. Quem tu pensas que és? Teu último ímpeto e teu último impulso, os do amor, pareciam capazes de fazer com que as ondas do oceano chegassem às estrelas. Não moveram sequer o barquinho de papel que fizeste toscamente com a folha na qual estava escrito o teu mais apaixonado poema.

Posso...

... queixar-me de como as pessoas me julgam, eu que dia e noite me maldigo?

Os sonhos devem...

... ser grandes, descabidos, despropositados, insanos, para termos conhecimento de nossa miséria. Eu uma noite, com uma escadinha doméstica de três degraus, julguei possível armá-la no quintal para colher uma estrela.

Profissão vida

Bem sei que se ainda estou vivo
É por dever de empregado.
Viver é tão cansativo
E tão mal remunerado...

No dia em...

... que conheci a mim mesmo, sem retoques, soube que só poderia continuar vivendo por uma mentirosa questão de princípios ou por uma irrevogável falta de coragem.

Imagino...

... como voará feliz minha alma no dia em que se livrar de mim. Pobre alma, tanto tempo encarcerada nesta gaiola fétida, bebendo água podre e bicando este arame enferrujado.

Às vezes...

... passo as mãos pelo rosto, para sentir de que asco eu poupo aqueles cujo rosto jamais tocarei.

Olhar-me no espelho...

... e ver afinal, sem autocomiseração, como é o meu rosto para os que mudam de calçada para não me fitar.

Meu coração é...

... como o braço de um viciado. Não há um ponto em que não tenha penetrado a agulha da amargura e, no entanto, ele continua a me mandar às esquinas, em busca de mais.

Eu gostaria hoje...

... de ser desavergonhadamente piegas. Eu gostaria de usar os lugares-comuns mais execrados pelos críticos, as metáforas mais gastas e aquelas rimas às quais nem o mais novato dos poetas ousaria recorrer. Rimar amor com dor, coração com paixão, comparar o frio da tarde com o gelo da vida. Eu gostaria de ser um camponês recentemente alfabetizado compondo um poema de amor para uma inalcançável cozinheira de rosto rubicundo e braços robustos. Eu gostaria de ser um carroceiro subitamente espantado com a beleza de um céu cheio de estrelas, vendo em cada uma delas um olho da noite. Eu gostaria de ser invencivelmente banal, de definir as lágrimas como queixas do amor e recados do coração. Eu gostaria de escrever um poema estupidamente simples e copiá-lo com a minha letra mais caprichada. Eu gostaria de levá-lo a uma camareira inatingível de olhos desconfiados, a uma lavadeira de sovacos escandalosamente peludos, a uma ordenhadora de nariz verruguento. Eu gostaria de levá-lo à mais fácil das rameiras e à viúva mais seca e antiga e, sendo rejeitado por todas, afogar-me no riozinho da aldeia, se também suas águas não me desprezassem.

Kama Sutra - CXCIII

Ele repousa a mão no tufo ruivo e encaracolado. Porque esse é o ritual, espera que a mão dela pegue a dele e oriente seu dedo mais aventureiro e venturoso a explorar a fonte de água salina.

O cheiro, em Tchekhov

Os personagens de Tchekhov têm cheiro. Também os objetos. Quando algum deles descalça as botas em qualquer um dos seus contos, é possível imaginar o cachorro da casa aproximando-se delas para encostar o focinho no ponto em que, na rua, encostou o focinho outro cachorro, talvez a cachorra amada.

Um soneto de Antero de Quental

Longo tempo ignorei (mas que cegueira
Me trazia este espírito enublado!)
Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
Noite e dia, impassível companheira...

Muitas vezes, é certo, na canseira,
No tédio extremo dum viver magoado,
Para ti levantei o olhar turbado,
Invocando-te, amiga derradeira...

Mas não te amava então nem conhecia:
Meu pensamento inerte nada lia
Sobre essa muda fronte, austera e calma.

Luz íntima, afinal, alumiou-me...
Filha do mesmo pai, já sei teu nome,
Morte, irmã coeterna da minha alma!"

(Da coleção Nossos Clássicos, publicada pela Editora Agir.)

Quisemos dizer...

... coisas amenas, afetos, amores. Dissemos essas coisas amenas, esses afetos, esses amores. Ninguém nos acreditou e, se dissermos que morremos cada dia um pouco, por essas coisas amenas, por esses afetos, por esses amores, talvez nos sugiram: pois morram logo, e de uma vez.

Os meninos...

... no colégio cantam. Ouço-lhes a voz vigorosa e imagino se, quando eu cantava no colégio com meus colegas, havia também um velho que, na janela, como eu agora, se entristecia por saber que todas aquelas vozes estavam fadadas a enfraquecer, como a minha enfraqueceu, e a morrer, como a minha. Vontade de dizer aos meninos que não cantem, que não exaltem a vida, que não desafiem a morte.

Iremos nos...

... afastando e, já longe, acenaremos com o lenço branco que teremos guardado para essa ocasião, a derradeira. Uns fingirão não ver-nos, e outros, vendo-nos, não acenarão de volta, com o pretexto de não terem no bolso um lenço.

Chegará um dia...

em que, fisgados e atirados a um balde cheio de gelo, agonizaremos ao sol. Perturbaremos com nossos espasmos a recém-conquistada paz dos outros peixes, até que tenhamos direito à nossa própria morte e à nossa própria paz. Serão belas nossas contorções de prata, até que, finalmente serenados, já não nos importe nada, nem a evisceração nem o preço que atribuírem a nós, numa quinta-feira de ofertas, no supermercado.

Cotação do dia

A tristeza imensa de ter acordado. Será mais um dia inútil. Ler, escrever, respirar.

Vida

Ir sumindo aos poucos, como o veleiro da tela na sala, quando vai chegando a noite. Não acender a luz e, de manhã, não ver, onde ele havia estado, senão um minúsculo pedaço de vela que, olhado de perto, se revela não mais que um suspiro branco de espuma.

O amor na boca de um velho

O velho disse a palavra amor, e ela lhe saiu dos lábios com um fiapo de cenoura da sua sopa de dispéptico. Ele o apanhou, colocou-o de novo na boca e perguntou: "Do que é mesmo que eu estava falando?" O fiapo caiu outra vez no prato.

Um soneto de Camões

"Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos,
Pois todos vão fazer seus fundamentos
Só no mesmo em que está seu próprio dano!

Na incerta vida estribam de um humano;
Dão crédito a palavras que são ventos;
Choram depois as horas e os momentos
Que riram com mais gosto em todo o ano.

Não haja em aparências confianças;
Entendei que o viver é de emprestado;
Que o de que vive o mundo são mudanças.

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
Somente amando aquelas esperanças
Que duram para sempre com o amado."

(De Obra completa, publicado pela Companhia Aguilar Editora.)

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Por dois

A morte é um número inteiro
Que se divide por dois:
Os sonhos morrem primeiro,
Ela só chega depois.

O amor nos enlouquece

O amor nos enlouquece
nos alucina
nos desatina
nas horas em que
a memória se esquece
do que não devia lembrar
e lembra um sorriso
um olhar
uma frase
um poema
depois uma dezena
uma centena
de frases
e de poemas
que prometera ignorar

O amor nos enlouquece
nos exaspera
nos maltrata
nos dilacera
nos mata
nas horas vespertinas
nas horas noturnas
e nas horas matinais

Ah, que houvesse
além dessas
que nos matam
e nos enlouquecem
muitas horas mais.

Menos

Depois que a musa daninha
Lesou o meu coração,
Me cansa qualquer quadrinha,
Sufoco num quarteirão.

Um soneto de Carlos Drummond de Andrade

"OS PODERES INFERNAIS

O meu amor faísca na medula,
pois que na superfície ele anoitece.
Abre na escuridão sua quermesse.
É todo fome, e eis que repete a gula.

Sua escama de fel nunca se anula
e seu rangido nada tem de prece.
Uma aranha invisível é o que o tece.
O meu amor, paralisado, pula.

Pulula, ulula. Salve, lobo triste!
Quando eu secar, ele estará vivendo,
já não vive de mim, nele é que existe

o que sou, o que sobro, esmigalhado.
O meu amor é tudo que, morrendo,
não morre todo, e fica no ar, parado."

(De Obra completa, publicado pela Companhia Aguilar Editora.)

Dr. Ruy

Todos os dias são tristes. Alguns são insuportavelmente mais.

Cotação do dia

Nojo de mim, asco, repulsa. Meus irmãos trabalharam para que eu estudasse, e não aprendi sequer a expressar afeto - nem por eles, nem por ninguém.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Um trecho de Katherine Mansfield

"Se ao menos eu pudesse distinguir o amor verdadeiro do falso, como se podem distinguir cogumelos comestíveis de cogumelos venenosos... Com cogumelos é tão simples - basta salgá-los bem, deixá-los na salmoura e ter paciência. Mas, em se tratando do amor, mal a gente encontra algo que se parece com ele, logo vem a certeza de que não se trata de um exemplar genuíno, mas talvez seja o único cogumelo genuíno ainda não colhido. É necessária uma terrível quantidade de cogumelos venenosos para nos convencer de que a vida não é um duradouro cogumelo."

(Do livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

Uma frase de Montaigne

"Não posso fazer um registro de minha vida por minhas ações; o acaso colocou-as demasiado baixo: faço-o por minhas fantasias."

Hoje podemos...

... abrir o guarda-roupa e até voltar a gostar daquela camiseta que tem um furinho no braço esquerdo e que nos recomenda cautela quando o levantamos para dar um oi. O amor nos tirou de sua agenda e hoje podemos pegar qualquer par de tênis e podemos sair também com qualquer sorriso, sem precisar escolher o melhorzinho no espelho. Somos um qualquer, novamente, somos outra vez nós. Desistimos de ser apresentáveis, de ser poetas, de ser agradáveis, e estaríamos felizes se de vez em quando uma tristeza boba não nos pegasse de surpresa no sofá e se a memória não insistisse em ficar contando certas histórias.

Talvez

Talvez um dia doa menos a lembrança do fiapo de luz que certa manhã deixou em nossas pálpebras, a reminiscência das gotas de chuva que o sol de certos cabelos não bebeu inteiras, a recordação da blusa na qual era possível imaginar bispos, cavalos e reis envolvidos em lances heroicos. Talvez um dia o sopro do vento não reabra nossas chagas e o tempo convença a memória de que ela, essa doida, imaginou tudo isso. Nesse dia, se ele chegar, seremos indignos de nós.

Depois do som e da fúria

Depois do som e da fúria, do amor que de nós exigia trombetas e sons wagnerianos, é hora de voltarmos à flauta tímida e ao assobio, de retornarmos à placidez das trovas e das quadrinhas. Talvez elas nem nos recebam, depois de nossa ambição de sonetos tonitruantes e das cegantes chaves de ouro. Tão grande fizemos o amor em nosso peito e em nossas aspirações desvairadas, que já haviam morrido todos os poetas capazes de celebrá-lo. Precisaríamos de Camões, e não tínhamos sequer Casimiro de Abreu. Não há de ansiar por estrelas quem não pode lhes exaltar o brilho. Sonhamos com ouro e por nossas mãos escorre a breve areia das ampulhetas. Surpreende-nos ver, mortos que estamos, nossas mãos incapazes do lavor de que foram encarregadas. Que em nossa próxima vida, se a tivermos, Deus nos faça tão grandes quanto nossos sonhos, ou nos mate antes de sonhá-los.

Alimento

Afeto insano, fatia
Amarga de desventura,
Te provo ainda, dia a dia,
Ó pão de minha loucura.

Depois dos...

... grandes espantos, das dores profundas e das perdas incompensáveis, a alma fica como se estivesse anestesiada. É o limite do sofrimento. Um pouquinho mais e ela despencaria no abismo da loucura. Ela se guarda, ela se defende, ela quer sobreviver. E, se ela é a alma de quem sentiu a incomparável aflição de ver morto o amor, parece tão mesquinho esse cuidado, tão incompreensível esse resguardo, tão vil essa precaução...

A cova

Agora que o amor
não é mais nada
além de uma semente gorada
e nossa sede não se sacia
com a fruta dourada
que ele nos prometia

que nós o cantemos
em nossa poesia
não com uma elegia
mas seja uma simples trova
a prova de quanto mais
ele nos mereceria

e tapemos a sua cova
de onde não nos proveio tesouro
para que nunca a chuva
vindo nela se empoçar
possa sequer uma formiga
ou um besouro afogar.

Desencontro

A morte não nos avisa,
Conosco faz o que quer,
Não vem quando se precisa
Nem quando mais se requer.

Um poema de Stefan George

"Sou o Único e sou Dual
Sou o ventre e sou a semente
Sou bainha e sou o punhal
Sou a dor e sou o doente
Sou o horizonte e sou o olhar
Sou lança e sou o lançador
Sou o fiel e sou o altar
Sou o fogo e sou o calor
Sou miserável e abastado
Sou o símbolo e sou o indício
Sou sombra e sou iluminado
Sou um fim e sou um início."

(Do livro Crepúsculo, tradução de Eduardo de Campos Valadares, publicado pela Iluminuras.)

O cachorro

Depois que o amor nos conhece,
Podemos tudo mudar,
O rosto, o jeito de andar,
Que ele jamais nos esquece.

E, achando que nos merece,
Para de nós se apossar
Seus fios põe-se a fiar
E sua teia entretece.

Nós dele nos esquivamos,
Porém por mais que façamos
Consegue nos descobrir.

E, como um cachorro triste,
Nos segue, nos lambe, insiste,
Esgoela-se de latir.

Leveza

Que quando chegado for
O dia em que tu te fores,
Que não te pesem as flores
Como hoje te pesa o amor.

Um poema de Tristan Corbière

"AVENTURA GALANTE E A VENTURA

Eu faço o ponto, quando belo vai o dia,
Para a passante que, com satisfação,
À ponta da sombrinha me fisgaria
O piscar da pupila, a pele do coração.

E acho que estou feliz - um pouco - é a vida:
O mendigo distrai a fome na bebida...

Um belo dia - triste ofício! - eu, assim,
- Ofício? - velejava. Ela passou por mim.
- Ela quem? - A Passante! E a sombrinha também!
Lacaio de carrasco, toquei-a, porém,

Contendo um sorriso, Ela espiou meus botões
E... estendeu-me a mão, e...
                                          me deu uns tostões."

(Do livro Os amores amarelos, tradução de Marcos Antônio Siscar, publicado pela Iluminuras.)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A série de textos...

... sobre Priscylla Mariuszka Moskevitch - que imagino terminada - me traz um alívio imenso. É algo que eu precisava fazer, em nome da beleza do episódio que me marcou a vida nos últimos três anos e que sempre foi encarado por mim com total honestidade. Narrá-lo, como eu o fiz, imagino que atenda aos dois princípios: o de reverenciar a beleza e o de não deixar dúvidas sobre o que me moveu em toda a história. Declarar a pureza disso tudo era essencial para mim.

Há uma expressão...

... antiga que imagino me cair bem, e que, se eu tiver juízo, será meu lema a partir de agora: aquietar o facho. É bem o momento de viver na terceira pessoa, como um personagem. Não bradar, não clamar, não querer, não reivindicar. Poupar os ouvidos alheios (e os meus também) desta voz velha que, se não se poupar, não conseguirá dar sequer um gemido na hora da libertação. Amor? Atravessar a rua é já uma façanha.

Um poema de Augusto Frederico Schmidt

"NOITE DE AMOR

Esta noite de amor é uma noite única.
Não nos encontraremos nunca mais,
Não seremos nunca mais os mesmos,
Com o mesmo ritmo e as mesmas incertezas deste instante.

Mais um dia, e nascerão coisas novas em nós,
E nossos corações serão diferentes,
Habitados por outros sentimentos, mais ricos e talvez melhores.

Mas esta noite de amor é única entre todas.
As nossas ausências se saciaram, as nossas mágoas
Fizeram nascer lágrimas; e luzes perdidas
Chegaram, iluminando a nossa densa noite antiga.

Nunca mais nos encontraremos. Amanhã seremos seres novos,
E nos amaremos com força, a paciência maior talvez,
Mas não nos amaremos mais assim, com essa lúcida ternura;
Não nos amaremos nunca mais com essa tristeza,
Com essa piedade e reconhecimento das nossas fraquezas,
Com esse desejo de sofrermos os nossos sofrimentos,
Com essa humilde esperança de nos salvarmos da morte,
Com essa alegria que transparece nos nossos úmidos olhares.

Esta noite é única. É uma noite de salvação e de profunda humildade.
É uma noite que não se repetirá mais no tempo,
Porque não seremos, em breve, mais os mesmos.
Alguma coisa acontecerá em nós de novo,
E nos transformará.
Há um perfume de despedida nesta noite de entendimento e de paz."

(Do livro Poesia completa, publicado pela Topbooks.)

Sobre apalpar e apertar

Minha poesia agora
é um setuagenário
bancando o sexagenário

Buscando uma rima para rosa
ele entra na floricultura
as flores todas toca
e pergunta o que é isto
uma hortênsia uma orquídea
uma margarida uma prímula
um lírio um narciso

Perguntando e apalpando
apertando e examinando
toca todas as flores

Quando ele sai
todas as cores
todos os olores
na loja murcham
como murchos estão agora
as coxas os seios
que ele apertou outrora
em seu pleno verão.

Por mais

Por mais que o infortúnio e a desesperança recomendem e ainda que se ponham à tua disposição todas as cordas, todos os revólveres, todas as lâminas e todas as cicutas, que não te vença a tentação. A morte, assim como qualquer fruto, há de ser colhida no tempo exato. Aproveita o que te resta de vida e conta aos jovens as peripécias amorosas de que participaste. Não que possas ensinar-lhes alguma coisa, mas eles gostarão de rir um pouco.

Priscylla (9)

Começo a narrar meu terceiro encontro com Priscylla Mariuszka Moskevitch (aquele que talvez pudesse ser considerado o último) e já me envolve uma dessas nostalgias imensas, intensas, agudas, que só grandes acontecimentos são capazes de provocar. Nunca vi, e certamente nunca verei Priscylla como naquela tarde. A palavra que me ocorre para expressar o que ela me pareceu é moleca. Estava alegre, saltitava (física e mentalmente), e eu seria estupidamente presunçoso se pensasse - então ou agora - que esse seu estado de espírito pudesse advir do fato de ela estar comigo. Ela dava a impressão de ter resolvido alguma questão muito importante, de ter se livrado de um peso. Eu a veria, depois dessa, mais cinco vezes, com intervalos de até um ano, e em nenhuma ela se mostrou sequer perto da felicidade (creio poder usar esse termo) que revelou nessa ocasião. Penso como seria maravilhoso, para ela e para as pessoas próximas, se ela fosse sempre como foi naquele dia. Sorrimos muito, rimos, chegamos a correr juntos pela galeria do Conjunto Nacional quando ela me disse ter visto alguém com quem não queria falar. Era uma moleca, uma molecona, uma admirável guria. Sobre o que conversamos não me lembro, mas sei que nas quatro ou cinco horas não se falou de nada que não fosse alegre. Foi uma das maiores tréguas que a tristeza me concedeu em toda a vida. Não sei se para Priscylla a alegria, embora inegável, foi tão excepcional quanto para mim. Sei que, nas oito vezes em que a vi, foi a única em que ela me pareceu à vontade. No momento da despedida, com a noite já descendo sobre a Augusta, eu - angustiado por um desses pressentimentos que só o coração tem - a vi como uma imagem impressionista turvada por minhas lágrimas. Ela me olhou, incrédula, antes de começar a se afastar. Eu por uns instantes me dividi entre o impulso de segui-la e a vontade de ficar parado ali, para sempre. Acabei andando para o metrô. Há chavões que se usam para exprimir situações como essa. Um deles é dizer que a vida precisa sempre continuar. Não quero, não posso dizer isso. Minha vida, de certa forma, não continuou. A beleza atingira seu ponto máximo - aquele em que ela costuma coincidir com o ponto máximo da tristeza - e a partir dali qualquer repetição viria a ser uma cópia muito inferior. Passara o momento único. Alguns passos para uma direção, ou para outra, que precisariam ser dados, não foram, e todos os outros encontros posteriores, mais cinco, não representaram senão tentativas que eu já sabia destinadas ao fracasso. Tentar racionalizar isso, mais do que já racionalizei, seria tolice. Tudo, em meu convívio com Priscylla Mariuszka Moskevitch, esteve sempre na esfera de dois sentimentos - o afeto e a beleza. Tudo brilhou, não importa definir agora se como uma estrela ou um pirilampo. Brilhou e, vivendo na memória, hoje a enriquece como seu mais raro tesouro.

Um poema de Yao Feng

"PASSAGEM PELO PLANALTO CENTRAL

"O comboio passa pelo Planalto Central
onde o milho amadurecido
adota todos os raios do sol

o milho se planta há milênios
deita-se como semente
ergue-se outro:
cereal. Agora, ri para mim
com a boca aberta,
dentes amarelos
mas não de ouro."

(Do livro Um barco remenda o mar, tradução de Yao Feng e Régis Bonvicino, publicado pela Martins Fontes.)

Um poema de Lu Weiping

"SALVAÇÃO FALHADA

O filho único do velho Wang
ficou enlouquecido há dez anos.
Para curar a doença do filho
o velho Wang gastou toda a fortuna.
Ao sair do hospital
o filho disse ao pai: O sofrimento
que não senti durante dez anos
tornou a habitar-me o coração."

(Do livro Um barco remenda o mar, tradução de Yao Feng e Régis Bonvicino, publicado pela Martins Fontes.)

Devagar

E cada dia o amor, como um velho desenganado, morrerá mais um pouco. Logo a atenção de todos se desligará dele, e chegará um momento em que ninguém saberá dizer se ele está na cama há três meses ou três anos.

No asilo

Depois de dois anos, não tendo feito amizade com nenhum dos outros velhos, começou a se afeiçoar às formigas. Conversava com elas todas as manhãs, quando era levado na cadeira de rodas ao jardim.

Priscylla (8)

Quando, no segundo encontro, Priscylla fez referência ao amigo com quem iria almoçar, e o ciúme me deu uma aguilhoada, lembrei que, logo depois do primeiro encontro, ela, uma noite, estranhamente, me sugerira pelo msn que eu a proibisse de ir a uma festa. Eu lhe disse que não achava razoável proibi-la, até porque não havia em nosso recente convívio nada que me autorizasse a agir assim. Ela me deu então a autorização e insistiu para que eu a usasse. Não a usei. Não sei, até hoje, se com aquilo ela me declarava afeto ou, referindo-se à festa, me incitava ao ciúme. Não senti ciúme, nessa ocasião, mas viria, daí em diante, a ser atormentado pela suspeita de que agradava a Priscylla ver-me enciumado. Seja como for, acho que é bem hora de sair deste caminho a que fui levado pelo ciúme em sua forma juvenil e de analisar esse sentimento com os olhos de minha idade - ou aquela que eu tinha na época, e era, se posso dizer assim, basicamente a mesma de hoje. Setenta e um, ou setenta e quatro anos, ou setenta e seis, são formas quase iguais de definir a velhice, embora Priscylla na época me dissesse que idade era algo que não se deveria considerar quando se tratava de afeto. O que sei é que a referência ao amigo, que a fazia sair do café que tomava comigo e (ai, de cabelo úmido!) ir correndo para almoçar com ele, me fez pensar, com uma intensa pontada de despeito, se não havia no meu sentimento por ela algo mais físico do que eu imaginava. Logo essa suposição foi substituída por outra, que me perturbou ainda mais. Talvez o que eu não tolerasse fosse a hipótese de outro ver em Priscylla a beleza espiritual, quase mística, que me encantava. Obriguei-me a aprimorar essa imagem dela que tinha em mim, e me prometi que dali em diante não me descuidaria sequer um momento disso que, mesmo com o prazer que eu adivinhava, passei a chamar de tarefa. E vieram os poemas, inspirados nela mas incapazes de lhe fazer justiça. Por Priscylla eu me liguei outra vez à poesia, mas a poesia, que me conhecera na adolescência, fingia agora não lembrar-se de mim. Tive pesadelos horríveis, em que poetas se curvavam diante de Priscylla e declamavam sonetos de perfeito lavor - petrarquianos, camonianos, shakespearianos. Um deles rimava Priscylla com ancila, e repugnou-me não tanto a rima quanto o conceito. Ancila? Justamente Priscylla, de quem, por ver nela a perfeita representação da beleza, eu já ia me tornando feliz vassalo e ansioso serviçal?

domingo, 19 de maio de 2013

Dizer, ainda

Desde o início ter dito as mesmas coisas, sempre em vão. E ter continuado a dizê-las, em vão, em vão, em vão, sempre e sempre em vão. Querer dizê-las ainda, e lamentar somente que seja pouco o tempo, agora. Mas dizê-las, dizê-las, ainda que em vão. Dizê-las.

Primeira pessoa

Muitos pensam que a literatura, mesmo em primeira pessoa, é sempre só ficção. Como eu gostaria que tivessem razão.

Inútil semeadura

Se a tristeza não mata, por que insisto em cultivá-la?

Ele

Foi justamente o amor, o doce ser,
Que povoou o meu peito de agonias
E em meu caminho fez aparecer
Só pedras finas e escorregadias.

Para quê?

Quando o amor já não nos importa tanto, a vida já não nos importa nada.

Um poema de Juan José Ceselli

"VIOLINO MARIA

De noite
enquanto as aves constroem dentro de suas chinelas
          os ninhos da intimidade
Direi a meu escravo que relate minhas façanhas
E quando pelos cantos se amontoarem as breves
          alegrias dos arrebatamentos
E cair sobre nós o incessante moinho da borrasca
Vai reclinar-se sobre meu ombro com o cálido peso
          de suas asas em chamas
As curvas de seus tornozelos revelarão a nova
          geometria da beleza
E cravando em minha carne um a um os sombrios
          mistérios da cabala
Acariciando meus gemidos com o fio encaracolado
          da voluptuosidade (*)
Fará sentir-me tão pequenino
que só poderei amá-la aos pouquinhos."

(Do livro Poesia argentina 1940-1960, publicado pela Iluminuras.)

(*) Notável passagem de erotismo: os gemidos, o fio encaracolado, a voluptuosidade. Toda uma cena composta com tão poucas palavras, sem "apelações". Para o leitor que me perguntava sobre a diferença entre erotismo e pornografia, creio ser este um bom exemplo do que é o primeiro. O erotismo sugere, a pornografia narra.

Será um dia...

... comum. Serem comuns é da natureza dos dias. Querer que sejam diferentes é o primeiro passo para a infelicidade. Deixar isso para os loucos, para os que, tocados pela insanidade do amor e das conquistas impossíveis, procurarão ver neste domingo algo que ele não tem. Deixar que esses dementes busquem no sol, na tarde e nos pássaros aquilo que não encontrarão, mas que continuarão procurando à noite, com os olhos siderados fixos no céu.

Fiz tudo,

dei-me inteiro. Entreguei-me ao sacrifício, e achei abençoado o sacrifício pelo amor. Fiz tudo, dei-me inteiro. E foi tão pouco o que fiz, e foi tão pouco o que dei. Há grandezas, há magnitudes para as quais um homem nunca está preparado. Eu não estava. Precisaria ter várias almas e corações. Não tive, mas apesar de tudo sorrio, ainda, quando lembro que pelo menos imaginei estar perto daquela grandeza, daquela magnitude. Os sonhos hão de ser assim, sempre: um olhar de homem comum para o céu estrelado.

Um fiapo do canto...

... de um pássaro ficou na ameixeira, em um dos seus galhos. Quando o vento o balança, ele emite de novo seu som. Talvez seja minha imaginação exacerbada, minha tristeza, não sei, mas acho que essas duas ou três notas virão ainda a ser recolhidas pelo pássaro. Fazem parte de um canto de amor - e um canto de amor há de ser completo.

Tenho agora só...

... as memórias. Deveria ter estado mais atento ao que me acontecia quando era ainda um homem vivo. Por que não me fixei na vida, quando ela pedia para ser fotografada? Julguei que teria sempre sobre mim o sol que, sorrindo para mim certa manhã, insistiu: olhe para mim, olhe bem para mim. Não olhei, e se tento evocá-lo hoje ele se vinga e me aparece ora intenso, ora morno, ora apagado. Não há um instante que se repita, jamais algum se repetiu na história do mundo. E eu passei pelo sol daquela manhã como se fosse um sol qualquer. Senti-lo de novo seria meu último desejo. Eu o reconheceria, tenho certeza, entre os vinte e tantos mil sóis que seguiram meus tristes passos. Sorriria para ele. Nada mais. Não precisaria ver mais sol nenhum.

Nova fase

Depois dos setenta
quando tudo nos dói
e nada nos alivia
mudam nossos vilões
mudam nossos heróis
nossas imprecações
e nossa poesia

ah vida dura
ah neurisma
ah bscesso
ah cupuntura
ah Deus
ah deus.

Canastrão

Fecho os olhos
para ver o que acontece
prendo a respiração

Não acontece nada

Para morrer
não basta
a vontade empenhada
se não se tem vocação.

Samples

Pegar um verso de Vinicius
para o início
outro de Sá-Carneiro
para o meio
juntar uma frase boa
de Fernando Pessoa
para o fim
e fazer enfim
de sample em sample
um belo poema
com este sistema
samples assim
simples assim.

Priscylla (7)

Quando, em relato anterior, mencionei a impressão causada pelos cabelos úmidos de Priscylla Mariuszka Moskevitch em meu rosto e em meu braço, estava falando de algo físico e ao mesmo tempo mental, quase espiritual. Foi essa idealização da beleza que sempre busquei - creio até já ter dito isso - em Priscylla, embora a beleza dela, que meus olhos viam, não pudesse de forma alguma ser considerada comum. O platonismo esteve presente sempre em mim, desde o início, e em muitas ocasiões eu me perguntei se não seria essa uma posição equivocada (falar em tática seria uma grosseria que não me permiti então e não me permito agora). Poderia ter sido diferente? Poderia eu, com sete décadas de vida sobre os ombros, colocar-me na pele, nos ossos e no sangue de um jovem e imaginar-me galgando sacadas noturnas para arrebatar apaixonados beijos, ao luar? E não seria essa atitude comum demais, até vulgar, para quem já sentia não poder mais mascarar, dando-lhe o nome de afeto, aquilo que se revelava escancaradamente como amor?

Um trecho de Diogo Mainardi

"Giacomo Leopardi chamou seu tempo de "tolo" e "estólido".

Meu trabalho na imprensa consistia em repetir semanalmente que meu tempo era tolo e estólido.

Giacomo Leopardi chamou os habitantes de sua terra natal de "asnos" e "tratantes".

Meu trabalho na imprensa consistia em repetir semanalmente que os habitantes de minha terra natal eram asnos ou tratantes."

(Do livro A queda, publicado pela Editora Record.)

sábado, 18 de maio de 2013

Volto ainda

Volto ainda, depois de me despedir castelhanamente há dez minutos. Lembrei-me de uma garota americana com quem me correspondi por algum tempo e que, talvez pelo seu fuso horário favorável, relutava em interromper os bate-papos. Houve noites em que nos despedimos cem vezes e cada uma delas soava melhor que a anterior. Ah, aquela garota... Cheguei a me afeiçoar a ela, mas te digo que hoje eu gostaria de me despedir de ti pelo menos duzentas vezes, embora minha vontade fosse não despedir-me nunca. São complicadas essas coisas do coração, mexem com a lógica e até com a aritmética. Melhor ficar por aqui, nesta segunda despedida, antes que eu seja tentado a realizar a proeza. Até, então.

Hora de...

... descer, sentar-me no sofá, pegar um livro e tentar encontrar um poeta que tenha escrito algo que eu pudesse te mandar amanhã bem cedo, para compensar-te de tantos poemas estropiados que escrevi. De boas intenções e de maus poemas o caminho do amor está cheio, assim como a terra regurgita de poetas que se julgaram imortais. Hasta mañana, como dizia Jorge Luis Borges.

... apesar de tudo...

poderíamos estar nos falando agora, ainda que nos lábios tivéssemos veneno e nossas sílabas fossem facas de evisceração. Preferimos morrer de silêncio. Somos zelosos de nosso orgulho e de nossa autoestima. Ele, orgulho, e ela, autoestima, serão pó, amanhã, como tudo. Mas nós, menino e menina ranhetas, damos banana um ao outro e nos regozijamos com nossa capacidade de atacar e de revidar. E no entanto poderíamos estar nos falando agora, ainda que fosse para contar uma piada de papagaio. Quanto a você não sei, mas quanto a mim a lógica diz que poderei estar morto amanhã ou depois de amanhã - certamente antes do papagaio.

Amanhã será...

... um belo dia, tão certo quanto haver uma chance, em mil duzentas e quarenta e oito, de uma moeda atirada para o alto cair em pé e um mudo uruguaio cantar a Marselhesa. Depois do surto de alegria, conversaremos, combinado? Até.

Boa noite...

... para aqueles cujo endereço o amor desconhece. E para aqueles que jamais se envolveram em enrascadas românticas nem se enfiaram em entaladelas sentimentais. E para aqueles que têm o coração pachorrento e a alma lenta, como o coração e a alma de uma tartaruga. E para aqueles que se emocionaram pela última vez ouvindo Elis Regina cantar Fascinação. E também para os pragmáticos, para os certinhos, para os que sabem dar valor a um chá bem quente tomado em casa, já de pijama e meias de lã. Para os outros, para aqueles que sonham com amores impossíveis, com fugas espetaculares e soluções mirabolantes, para os que choram à simples menção da palavra violino, para esses todos, os deliciosos tormentos da prece inútil, das lágrimas e da desesperança.

Talvez haja...

... tempo ainda de ouvir uma frase amena, antes de dar o primeiro passo para dentro da escuridão. Talvez seja possível aumentar a nota deste mundo, ainda que sejam só dois décimos, para que ele passe conosco e sua imagem assim melhorada nos acompanhe ao lugar em que dominam as trevas e em que o vento reproduz os soluços dos mortos. Talvez alguém nos diga até logo ou, se julgar de mau agouro essas duas palavrinhas, nos sussurre uma só: adeus.

Um poema de Alejandra Pizarnik

"INFÂNCIA

Hora em que o capim cresce
na memória do cavalo.
O vento profere discursos ingênuos
em honra dos lilases,
e alguém penetra na morte
com os olhos arregalados
como Alice no país do já visto."

(Do livro Poesia argentina 1940-1960, tradução de Bella Jozef, publicado pela Iluminuras.)

Um poema de Juan Gelman

"ANCORADO EM PARIS

Do que sinto falta é do velho leão do jardim zoológico,
sempre tomávamos café no Bois de Boulogne,
contava-me suas aventuras na Rodésia do Sul
mas mentia, era evidente que nunca havia
         saído do Saara.

De qualquer maneira encantava-me sua elegância,
seu jeito de dar de ombros ante as
         mesquinharias da vida,
olhava os franceses pela janela do café
e dizia "os idiotas fazem filhos".

Os dois ou três caçadores ingleses que havia
         comido
provocavam-lhe más recordações e até melancolia,
"as coisas que se fazem para viver", refletia
olhando a juba no espelho do café.

Sim, sinto muito sua falta,
nunca pagava a despesa,
mas sugeria a gorjeta a ser dada
e os garçons saudavam-no com uma especial deferência.

Despedíamo-nos no começo do crepúsculo,
ele voltava para seu bureau, como o chamava,
não sem antes advertir-me com uma pata em meu
         ombro
"tem cuidado, meu filho, com a Paris noturna".

Sinto verdadeiramente sua falta,
seus olhos às vezes enchiam-se de deserto
mas sabia calar como um irmão
quando emocionado, emocionado,
eu lhe falava de Carlinhos Gardel."

(Do livro Poesia argentina 1940-1960, tradução de Bella Jozef, publicado pela Iluminuras.)

Um poema de Rubén Vela

"MANEIRAS DE LUTAR

Que não me digam
que escrevem simplesmente,
que dizem o poema
sem pensá-lo sequer.
Que ele nasce sem mais nem menos.

É um árduo trabalho,
um ofício de ferreiros, um fazer proletário,
um cansaço que continuará amanhã.

Que não me digam
que se fazem poemas sem suores,
sem uma longa e violenta jornada de trabalho.
Tenho as mãos como as de um lavrador,
duras, gastas, cheias de poemas."

(Do livro Poesia argentina 1940-1960, tradução de Bella Jozef, publicado pela Iluminuras.)

Priscylla (6)

Do segundo encontro com Priscylla Mariuszka Moskevitch, o que guardo de mais vívido (e importante, já que a beleza é o principal motivo deste relato) foi o toque de seus cabelos molhados em meu rosto, quando ela chegou e nos cumprimentamos. Garoava nessa manhã, mas eu - talvez porque isso me fizesse de algum modo entrar em sua intimidade - imaginei que ela tivesse trazido aquela umidade de sua casa, do seu chuveiro. Da conversa desse dia lembro-me pouco, porque o encontro foi rápido (ela ia almoçar com um amigo). A palavra amigo, naturalmente, insinuou em mim uma inquietação que logo se transformou em despeito, ciúme, dor. Eu não era nada para Priscylla, como, por sinal, jamais cheguei a ser, mas a menção ao amigo, com o sentimento de perda que provocou em mim, me deu a primeira das agulhadas que viriam a me atormentar por muito tempo. Eu percebi, sem nenhuma dúvida, ser mais um dos tolos para os quais a beleza  é algo de que alguém pode apropriar-se. Meu rosto, e meu braço, que havia sentido também o arrepio dos sedosos fios molhados, ardiam como se os cabelos de Priscylla fossem chamas. A beleza, da qual eu pretendia apossar-me, apossara-se de mim e já estava certa de que me escravizaria. Eu aprendia minha primeira lição daquilo que iria constituir uma longa e agridoce vassalagem.

Boa tarde...

... para vocês que, tendo alguma esperança, forem por ela levados pelas ruas desta cidade, por onde andei também outrora, movido pela esperança que então eu tinha. Era uma bela esperança, a minha. Pena eu não ter nenhuma foto dela. Que a de vocês seja bela também, e não os desencaminhe, como a minha me desencaminhou. Me contem, depois, o que aconteceu. Crianças e velhos gostam de ouvir histórias. Até.

Fechar o micro,

fechar a janela, fechar os ouvidos, fechar os olhos, fechar o coração. Brincar de morto, como antes brincava de ser poeta. É hora de abandonar os sonhos e preparar-me para o futuro.

Hoje...

... consegui repetir a mágica de colocar o "f" entre parênteses e fazer dele uma flor. Ficou bonita. Gostarias de tê-la visto. Ou talvez não. Não a mandei, e logo murchará, como têm murchado minhas palavras, minhas esperanças e tudo mais que é meu.

Gastamos...

... imprevidentemente as palavras naquele tempo. Desperdiçamos nosso riso. Tudo nos parecia infinito. Falávamos, ríamos, mandávamos um ao outro emotycons, he-he-hes, qui-qui-quis. De repente, eu me senti menino outra vez e a vida parecia pedir que eu a descobrisse de novo. Não desconfiei de nada. Vez por outra uma sombra descia sobre o caminho que meus pés juvenilmente descalços percorriam. Era um prenúncio da noite próxima, mas eu continuei a esbanjar tudo, palavras, risos, afeto. Não houve um centímetro de solo em que eu não deixasse um sinal de minha alegria. Quando as trevas vieram, tentei retroceder, voltar em busca das palavras, dos risos, do afeto. Tateei, apalpei o solo, mas havia pó, apenas pó onde eu tinha deixado meu tesouro. Uma gargalhada povoou a escuridão. Era a gargalhada da insanidade, a minha gargalhada.

Fomos perdulários...

... e deixamos que os dias felizes passassem diante de nós como rios caudalosos. Não guardamos uma gota sequer, de nenhum deles, e nossos lábios, e nossa boca, e nossas lágrimas hoje morrem de sede.

Da transitoriedade da poesia

Havia quem me desejasse bom pastel e boa feira. Não mais. A poesia pode ir embora assim, de um dia para outro, e é triste caminhar aos sábados entre as barracas.

Dez por uma

O filósofo filosofa
o poeta estrofa
o político apostrofa

Na Índia
no Japão
na Tailândia
no Paquistão
crianças morrem
de fome
de sede
de tsunâmi
de furacão

Me digam:
que importa?
Nascem dez crianças
para cada criança morta.

Presente

Que belo presente me deste
uma passagem
uma viagem
por um céu azul
para o leste
para o oeste
para o norte
para o sul
para a morte.

Priscylla (5)

Depois do fascinante encontro com a beleza, propiciado pelo conhecimento de Priscylla Mariuszka Moskevitch, todas as pulsações do meu sangue e todos os instantes de minha vida passaram a clamar pelo segundo encontro. Ele foi marcado, desmarcado, remarcado e de novo marcado, desmarcado, remarcado, infinitamente. Pensei então que a beleza pudesse ter como um dos seus atributos a crueldade, mas logo vi a questão por outro ângulo: a beleza há de se fazer de rogada, não há de estar permanentemente ao nosso alcance. A beleza é rara e - para o nosso próprio bem - deve resistir às nossas súplicas e aos nossos rogos. O processo de marcar, desmarcar e remarcar - que eu às vezes fui tentado, erroneamente, a chamar de joguinho - repetiu-se dolorosamente em todo o meu longo tempo de convivência com Priscylla. Se tivéssemos confirmado todos os encontros marcados, não faríamos nada além de nos encontrar. Nos desencontramos com uma obstinada assiduidade, e cada desencontro veio para mim com sua cota de aflição e lágrimas. Nunca, como nesses três anos, a minha alma teve tanta fartura de tristeza.

Preservacionismo

As mulheres dedicam-se
a questões ambientais
e à defesa de animais

enquanto os homens
com inúteis bruxarias
tentam transformar-se
em espécies vegetais
e lontras esguias.

Um poema de Yao Feng

"MARÇO

Eis mais uma primavera,
outra vez mais despi as roupas do inverno
outra vez mais abri a janela cerrada
Os raios da primavera rebentam no meu corpo
e as flores florescem nos campos úmidos.

Todas as primaveras repetem o mesmo destino:
florir e murchar... florir e murchar...
no entanto ainda ignoro o nome de muitas flores,
tal como não sei como se chamam aquelas meninas
que por mim passam como nuvens."

(Do livro Um barco remenda o mar - dez poetas chineses contemporâneos, tradução de Yao Feng e Régis Bonvicino, publicado pela Martins Fontes.)

Charada

Houve um tempo em que eu achava a palavra pastel uma das mais belas da língua portuguesa.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

De madrugada...

... ele se deita, se acomoda, se cobre e se acha indigno por proporcionar conforto ao corpo, enquanto sua alma é como um cão largado na rua.

Bilhetinho

Maior que a vida,
Em mim não cabes.
Eu sei, querida,
Só tu não sabes.

Som, fúria, vazio

O público se viciou durante séculos com a poesia declamada, retórica, bombástica, retumbante, tenorizada, a poesia fragorosa feita de efeitos especiais, de aliterações e de apoteoses wagnerianas que continuam soando mesmo depois de fechado o livro. Aceitou Drummond, engoliu-o, na verdade, e, julgando que essa concessão já bastava, com a morte dele continua esperando uma nova geração de poetas à moda antiga, que saibam descrever uma tempestade no mar ou um estouro de boiada. Quinhentos anos de ruído ensurdeceram o ouvido brasileiro e ele anseia ainda pelo martelar parnasiano.