sábado, 30 de abril de 2011

Melhor

Se para quem amor tem
O fim é sempre perdê-lo,
Melhor será ficar sem,
Melhor sonhá-lo que tê-lo.

Conforto derradeiro

Depois de tanto ir e vir
E de questões sem respostas,
Nos resta agora sorrir
E estando já de mãos postas
Um bom caixão usufruir
Que não nos machuque as costas.

Lamúria

Na tarde em que deste adeus
Levaste (e tu bem sabias)
Todo o calor dos meus dias
E todos os sonhos meus.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Lana ou Liz

Saudade daquelas putas alegres e beberronas que não haviam sido molestadas quando meninas, não contavam histórias tristes, não tinham psiquiatra, davam-se naturalmente, como se estivessem dançando ou pulando corda, e, se alguma pergunta faziam, era se as achávamos parecidas com Lana Turner ou Liz Taylor.

Os homens

O menino, cinco anos, bate na porta do quarto no qual a mãe geme profissionalmente sob o corpo de um dos quatro ou cinco homens que toda noite ela recebe na cama de estrado lamuriento e colchão manchado. Quando o homem sair, o menino perguntará, tímido e esperançoso, como pergunta sempre: "Pai?"

O mendigo

Estava morto, encostado no muro, e assim ficou quase dois dias, porque, ocupando o lugar onde por muitos anos o tinham visto, com o chapéu entre as pernas esperando esmolas, parecia tão desgraçadamente vivo quanto sempre. Continuaram a jogar-lhe moedas e ele talvez estivesse ainda ali agora, se um enorme cão não o tivesse regado inteiro com sua urina, sem que ele mexesse um nervo.

Encalhe

Na prateleira de R$1,99, o amor há uma semana espera que alguém o veja e o leve. Nesses sete dias, teve como vizinhos caixas de grampos para cabelo, pacotes de prendedores de roupa, cofrinhos para moedas e cinzeiros em forma de vaso sanitário. Todos já se foram.

Sem adeus

Como eram comoventes aquelas longas cartas em que as mulheres renunciavam ao homem amado e apresentavam dezenas de argumentos, ditados pela razão e pelo coração, em folhas e folhas manuscritas e molhadas pelas lágrimas. Não existe mais adeus na linguagem atual, nem lágrimas. Por e-mail ou pelo msn, sem preâmbulo e sem argumentação, vêm as quatro incisivas palavras: "Fulano, olha, já deu." Ou, quando há um pouquinho mais de consideração, estas oito: "Fulano, é pena, mas não vai mais rolar."

Destino

Formosa como um navio
Flutuando sob o luar,
Navegas pelo meu rio,
Mas o que buscas é o mar.

Juventude

Esplêndida juventude,
Pudesse um dia eu reaver-te
Tão fácil quanto perder-te
Desgraçadamente eu pude.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Páginas

Na página 31 do romance, o protagonista, um rapazola de dezesseis anos, entraria no quarto da convidada de sua mãe - uma lânguida mulher de quarenta divorciada três vezes por suas tendências à libertinagem - e diria que estava ali pronto para se desincumbir do que ela, em linguagem arrebatada, insinuara no bilhete deixado no bolso de sua camisa, no jantar: fazê-la subir pelas paredes ao céu. Com a mão na porta entreaberta, o personagem sentia-se suficientemente capaz de entreter ardorosamente a mulher até pelo menos a página 34. Mas nesse instante o autor, julgando prematuro o encontro, resolveu deixá-lo para algumas páginas adiante. O protagonista, então, inseguro, voltou para seu quarto e mal conseguiu dormir, apesar da frustração e do fogo na virilha. No dia seguinte, ao retomar a redação do livro, o autor compensou o protagonista: a mãe e sua convidada saíram para compras no shopping e ele teve o prazer de tomar o café da manhã no quarto da empregada, não tão fogosa quanto a visitante se revelaria na página 90, mas duas décadas mais jovem.

A flor

Não aspirar a mais nada. Nem à riqueza, nem à glória, nem ao amor, nem à posteridade. Nem mesmo à paz, pela qual tantos covardes e hipócritas renunciam à riqueza, à glória, ao amor e à posteridade. Reconhecer que a única aspiração legítima, para quem vive, é a morte, e cultivá-la todos os dias, como quem cultiva, dentre todas, a mais preciosa das flores, aquela que só no último dia e ao derradeiro olhar se revelará.

A gata

Viúvo, mima sua melancolia como se fosse uma gata velha e doente. Toca Débussy, Chopin e Ravel para ela, lê trechos elegíacos de Rilke, leva-a até a janela para ver as tardes sombrias e chuvosas e, à noite, depois de acomodá-la na cama, ao lado dele, conta-lhe histórias sempre tristes, para que ela não se desvirtue.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Ao léu

Embaixo da lua enorme,
Deitado no frio chão,
Sonhando um poema vão
O amor enjeitado dorme.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Açúcar

Tão doce me olha e arrebata,
Tão doce, tão fortemente,
Tão suave me beija e mata,
Tão suave, tão cruelmente.

O nome

Na primavera florida,
Amor, teu nome chamei.
Hoje, no inverno da vida,
Amor, teu nome não sei.

O chamado

Uma cadela mijou no alto da ladeira. Um minuto depois, na rua de baixo, um cachorrinho que havia acabado de escapar de casa cheirou a urina e começou a subir o riacho dourado, sentindo pela primeira vez o chamado da vida em seu pelo, eriçado pela brisa da primavera.

Teias

Que suaves são tuas tramas,
Os fios de tuas teias,
A seda com a qual enleias,
Amor, aqueles que tu amas.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Libertinagem

Um vento áspero e salgado passou de madrugada pelo parque e ensinou às folhas verdes e à relva jovem obscenidades que aprendeu com os marujos e que agora elas repetem, contorcendo-se e ofertando-se ao vigoroso sol da manhã e aos ansiosos passarinhos.

Beleza

Por seres assim como és,
Por teres essa realeza,
É que te louvo, Beleza,
E me ajoelho aos teus pés.

domingo, 24 de abril de 2011

Colagem

No início são estilhaços,
Fragmentos o que se vê.
Depois se unem os pedaços:
É o mundo em teu ateliê.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Sonhar, verbo intransitivo

Conseguir realizar um sonho é a mais triste prova de que o sonho não merecia ser sonhado. O sonho verdadeiro há de ser como certos verbos: intransigentemente intransitivo. Sonhar é sonhar, só, e indigno do sonho será sempre quem sonhar coisas possíveis. Quem o faz é tão culpado e desprezível quanto aqueles que praticam a simonia.

Elegância

Já separei o meu terno,
O escuro, o mais adequado,
Meu terno de ocasião,
E vou para o sono eterno
Com meu sapato lustrado
E meu mais sóbrio plastrão.

Coroa

Incumbida de comprar e encaminhar ao velório de um escritor uma coroa de flores, a eficaz secretária, que estava completando quinze anos na editora, pegou seus apontamentos. Havia morrido três meses antes um escritor com média mensal de vendas de dois mil exemplares, para o qual ela mandara uma coroa de 600 reais. O escritor recém-finado tinha uma média de venda de quinhentos exemplares. Ela dividiu 600 por 4, anotou 150 e, por um impulso de generosidade, encomendou uma coroa de 200 reais. A editora estava passando por uma boa fase.

Aquele

Aquele homem que fui eu
E que no início tu amaste
E que depois desprezaste
E em tuas mãos padeceu,
Aquele homem, pobre traste,
Aquele homem já morreu.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Vossa voz

Solene voz majestosa,
Igual a nenhuma voz,
Profunda voz preciosa,
Augusta como sois vós.

Wertheriano

Dorme o dia todo. Quando
Contra o seu desejo acorda,
Só chora e fica pensando
Em tiro, em veneno, em corda.

Nossa Stratford

Nos bares da Vila Madalena, será difícil encontrar algum escritor igual a Shakespeare. Mas superior a ele certamente haverá pelo menos meia dúzia, nas noites de quinta-feira.

Revólver e afins

Um escritor disse, como conselho literário, que, se aparecer um revólver num texto, em algum momento da trama ele deverá disparar. A norma deveria ser válida para aqueles imensos quadros das paredes aristocráticas, aqueles candelabros, aqueles lustres, aqueles castiçais cuja descrição em certos romances consome às vezes três páginas. Que desabem todos sobre os personagens, já que não podem espatifar o crânio daqueles maçantes autores que insistem em nos instruir sobre a diferença entre a decoração do século XIX e a do século XVIII, assim como se preocupam em dizer com exatidão se a roupa de tal ou qual protagonista é de linho, algodão ou casimira.

Editores

Há uma frase, difundida pelas más-línguas, segundo a qual os editores, assim como acontece com os críticos, exercem essa atividade porque não conseguiram ser escritores. Outra maldade é aquela segundo a qual eles são editores porque não conseguiram ser leitores. Deve-se mencionar, em favor deles e por justiça, seu estoicismo diário. A qualquer hora do expediente, basta telefonar-lhes para saber que estão empenhados em longuíssimas reuniões nas quais certamente discutem a literatura e o futuro dos livros.

Autoplágio

Dizem que Dalton Trevisan, desde a década de 60, escreve todo ano o mesmo livro. É verdade, e a cada ano ele o escreve melhor.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Sinopse

Saiu do amor triste, desiludido e vegetariano.

Perfeição

Escreve tão bem, suas frases são tão delicadas, parecem-se tanto com porcelanas e cristais, que os leitores, temendo quebrá-las, nem abrem seus livros.

Camisa de força

Fui resistente ao álcool, só a ele. Por vinte anos mamei na garrafa como um mujique de Tolstoi. Para a loucura não tive a mesma resistência. Uma mulher, uma só, com duas doses semestrais me trancou no manicômio.

Literatura

Que os jovens não se iludam. A literatura pode trazer-nos tristes e fatais desencontros. Por exemplo: eu conheço Luciana Villas Boas, mas ela nem imagina quem sou.

Blog

Há sempre, para o escritor sem sucesso, a possibilidade de montar um blog.

Antes dos magos

Decidi ser escritor na época errada e nunca aprendi. Era a década de 60, ainda não existia Paulo Coelho e escrever parecia tão difícil...

Comparação

Li muito Tchekhov quando, adolescente, imaginei ser escritor. Serei franco. É decepcionante para mim, quase cruel, reler Tchekhov quarenta anos depois e ver que, assim como eu, ele não mudou nada.

Engraxate

Nem nos sonhos tem sorte. Ontem, sonhou que era criado de Dostoiévski e, emocionado com a glória de poder lustrar as botas do patrão, descobriu que ele não só havia perdido as botas num jogo de cartas como tinha sido deportado para a Sibéria.

A descoberta

Triste é viver sem amor. Mais triste é descobrir que se pode viver sem ele.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Sob o lençol

O trigo já foi colhido
E a mão descansa afinal,
Mas se ouve um som, um zumbido,
Farfalha ainda o trigal.

Charlie Harper

Amor? Olhe, eu passo sem.
Incrível quanta folia
Se pode ter hoje em dia
Por uma nota de cem.

Msn

Nas horas em que por ti
No msn hoje esperei
Só três mensagens eu li:
Mobile, busy e away.

Rima

E agora, depois de tanto
Amor e tanta alegria,
Restou-nos a rima em pranto,
Como na pior poesia.

Trovinha à toa

Não sei, não sabes, não sabe,
Nenhum de nós saberá
Quantas ondas no mar há,
Quanta dor num amor cabe.

Café

Ela soube de sua morte
em Nova York
lendo um jornal brasileiro

Não havia dúvida
era aquele o nome
se bem que no sobrenome
ela achasse que faltava um "c"
talvez também um "h"
ou que sobrava um "k"

Ao amigo que a acompanhava
disse que o morto era um bom sujeito
só que um pouco sabe?
e girou o indicador

Era aquele que
te mandava versinhos
perguntou o amigo
e ela sem jeito
deu um sorrisinho
e confirmou que era sim
aquele que mandava
uns versinhos assim
e a mão completou a frase
meio assim sabe?

Coitado disse o amigo
e ela concordou pois é
dando-lhe o braço
a caminho do café

Tão

Tão docemente me tratas,
Tão mel são tuas vogais,
Tão docemente me matas,
Tão lírios são teus punhais.

Vivissecção

Na minha carne, tão fraca,
No coração, no meu peito,
Agoniza o amor desfeito
E o ciúme enterra sua faca.

Bênção

Tão tola tu és, tão menina,
Tão doce, que eu agradeço
A bênção, que não mereço,
De seres tu minha sina.

Inócuo

Pensa que voltou o cio
E sonha com marafonas,
Com o cheiro ácido das zonas
E apalpa o sexo vazio.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Luxúria

À noite vêm-lhe os trigais.
Neles se enfia e os percorre,
Esgota-se neles, morre,
E acorda querendo mais.

Natureza

Sonhou que terno apalpara
A polpa de uma romã.
Desperto, viu que a manhã
Seu lençol frio orvalhara.

Mel

Não sabes, porém eu sim,
Que esses teus cabelos flavos,
Que guardam teus doces favos,
Os guardam só para mim.

Caminho

Que buscam em ti teus dedos,
Descendo tão maciamente?
Que querem eles? Segredos
Ou teu calor simplesmente?

Gotinha

Parou no umbigo. Ficou
Um pouco ali e, afinal,
Deslizou para um trigal
Que a acolheu e ocultou.

O amor que deveras não sentem

Odeiam-se amavelmente,
Mas não irão confessar.
Um negaceia, o outro mente,
E juram sempre se amar.

Riscos do amor

Se for fazer uma declaração amorosa, leve pelo menos três testemunhas, de preferência juramentadas, e um gravador. Tudo que você disser poderá ser usado depois contra você. Tratando-se de amor, qualquer frase, mesmo a mais curta, é arriscada. Um exemplo? Eu te amo.

Pingentes

Chegou à conclusão de que jamais conseguirá escrever algo importante e resolveu contentar-se com certas quinquilharias, com esses berloques literários que a internet divulga como se fossem ouro. Montou um blog e há um mês escreve diariamente pelo menos cinco pequenas frases, graciosas como brincos. Está aturdido. Todo dia lhe chegam centenas de mensagens que o comparam a Tchekhov e a Maupassant, e o que lhe parecia fácil se transformou em um tormento. Cada uma dessas peças de artesanato, dessas joias de falso brilho compostas por no máximo vinte palavras, lhe toma duas horas, em média.

Essa tolice

Espantoso não é que os homens continuem se matando por amor. Inacreditável é que insistam em viver por ele.

Ciúme viajante

O amor malogrado, morto e enterrado limitou sua geografia. Não fica mais com o dedo no mapa-múndi, imaginando se ela estará hoje em Tóquio, em Nova York ou em Kuala Lumpur. Livre da confusão de fusos horários, ele já consegue até dormir, embora em certas noites o ciúme e a saudade ainda o atormentem, sussurrando nomes exóticos que mais parecem de serpentes que de cidades. Já decidiu que só se relacionará com mulheres que não fiquem mudando de meridiano como se estivessem no jogo da amarelinha. Hoje conheceu uma balconista de olhos castanhos que mora em Mairiporã.

Parcimônia

Manhãs felizes aquelas
Que o tempo cruel desfez.
Jamais houve outras mais belas
Que aquelas duas, ou três.

Autorretrato

Depois de várias décadas nas quais viveu para a literatura, ele sente ainda que chegará a fazer algo semelhante ao que tornou Shakespeare célebre. Enquanto isso, vai escrevendo uma série de livros infantis. O último, sobre uma tartaruga viajante, está uma gracinha, na opinião dos seus fiéis leitores da faixa dos oito aos dez anos.

O sorriso

Certa segunda-feira, ao abrir a janela, não recuou para evitar o pegajoso hálito do sol e, sentindo-se afinal confortavelmente morto, depois de dois anos de agudo sofrimento, empurrou para o fundo da estante os livros de poesia, eliminou da agenda a palavra amor e saiu para os braços da manhã com um sorriso que, por falta de hábito, precisou ir adaptando a cada esquina, para que ele não parecesse falso demais.

domingo, 17 de abril de 2011

... ainda que tardia

Livre afinal dos abraços
Que tanto quis e não dei,
Dos beijos e dos cansaços
Que não bebi nem terei.

Aspiração

Daqueles versos que um dia
Um homem te ofereceu
Que sobreviva a poesia
Porque o homem já morreu.

Anemia

Morreste. E o que tu esperavas,
Amor, tu, que te nutrias
Das tolices que inventavas
E de palavras vazias?

Manual

É fácil, simples assim:
Subir ao último andar,
Abrir os braços, saltar,
Fechar os olhos e fim.

Paraíso

Se tudo nada me diz
E nada mais me socorre,
Eu fecho os olhos feliz
E durmo como quem morre.

Coincidência

No sábado em que morri,
Minutos antes alguém
(Ninguém jamais soube quem)
Telefonou para ti.

Maga

Cabelos claros,
Tesouros raros,
Dourados fios
Com os quais tu fias
Tuas magias,
Teus amavios.

Sina

Para ele tudo gorou.
Só lhe ofertou o caminho
O fel, o fruto daninho,
O pão que o diabo amassou.

sábado, 16 de abril de 2011

Tapete

Amor que triste é ver-te agora
amor que uivavas lá fora
amor que as portas arranhavas
amor que gemias
amor que te sangravas
amor que te dilaceravas
amor que te comias
amor que te matavas

Amor que triste é ver-te agora
acomodado aqui dentro
amor que as garras e os lamentos
deixaste lá fora
amor domesticado
no tapete escarrapachado
amor cochilando e babando
como um cachorro castrado

Tigresa

És doce sempre, até quando
Com lentidão langorosa,
Em mim os dentes cravando,
Meu sangue bebes gulosa.

Desconstrutores

Fizemos o quê, de nossos
Sonhos, fizemos o quê,
De nossa vida? Destroços
E mais nada, eu e você.

Desforra

Depois de tudo que viu,
De nosso tédio e torpor,
De nosso desdém, o amor
Pediu licença e saiu.

Enigma

Foi amor ou amizade,
Foi verdade ou ilusão,
Foi sim, foi talvez, foi não?
Foi belo e deixou saudade.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Na biblioteca

(Para o Iano, amigo da vida inteira.)


Amigo, quanta saudade
Daquilo tudo que líamos,
Do mundo que descobríamos
Na nossa Mário de Andrade.

Tédio

Andamos pouco
quase nada
e logo nos entediou
o caminho
e logo nos cansou
a jornada

Juntos não somaram nada
os passos meus e os teus
e no entanto
logo nos olhamos
um bocejo abafamos
e nos dissemos adeus

Adeus por quê,
adeus a quê,
adeus a nada?,
o amor pergunta
e olha para mim
e olha para você
e se culpa e se ressente
por ter lançado
sua semente em solo errado

Vocação

(Para o meu querido Iano, que pelo tamanho de sua amizade poderia ter sido todos os meus amigos, se eu não tivesse mais nenhum.)


Nascemos para a morte
A brisa na cortina do quarto
na nossa primeira manhã
é a mesma que amanhã
no nosso último dia
um pouco mais fria
fará alguém no velório
se arrepiar
e pelas nossas pálpebras passará
para ver se estamos mesmo prontos
como estávamos
no nosso primeiro dia
na nossa primeira manhã

Tardia

Chegaste tarde demais.
Foste meu último alento,
Meu derradeiro tormento,
Meu nunca mais, meu jamais.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Recaída

Um dia você me disse
Amar-me sinceramente.
Pedi-lhe que não mentisse,
E hoje, outra vez, você mente.

Trecho de carta

Mando-te um abraço abatido, frouxo, triste, um abraço cheio de uma saudade que eu só poderia mandar assim, numa carta, um abraço ressentido contra as simplificações da internet. Um abraço decadentista, ultrapassado, um abraço de quem não aceitou nem foi aceito pela modernidade e que, voltando à caneta bic, ao papel e ao envelope, sabe que se expõe à chacota, como se fosse um troglodita urrando na esquina da Paulista com a Consolação ou um dinossauro pondo a correr os caminhantes no Parque do Ibirapuera.. Um abraço de quem não tem jeito para ficar dizendo que curtiu isso ou aquilo, um abraço de um ser que abomina as redes sociais e não precisa nem quer ter senão dois ou três amigos, de preferência um. Um abraço de quem sorri pouco mas quer saber para quem sorri, um abraço de quem quer olhar para quem sorri. Um abraço de quem, tendo procurado a vida inteira uma linguagem, não consegue aceitar essa que anda por aí, feita de coraçõezinhos desenhados, de rs, bjs e abçs. Um abraço de quem, se depender dos meios modernos, prefere morrer sozinho, com a barba enrolada nos pés. Um abraço de um cara triste, muito triste, que pretende contar essa tristeza para a pessoa certa, não para 380 ou para 420 desconhecidos virtuais. Alguém aí?

Saudade

Passam as horas, os dias.
Nenhuma, nenhum jamais
Trarão venturas iguais
Àquelas que me trazias.

A praga

Três meses depois que o amor morreu, as flores começaram a murchar no quintal, e os galhos das árvores, atacadas por uma praga, nem o mais forte vento conseguia balançar. Era falta de água, disse alguém, e o homem, cujas palavras já não eram ditadas pela poesia, alegrou-se com a chegada da estação chuvosa. Mas ela veio, passou, e continuaram mortas tanto as árvores quanto as flores. Tinha sido excesso de água, opinou alguém, recomendando o volume certo. Então o homem notou que todas as torneiras, quando ele as abria, deixavam escapar não mais que meia dúzia de gotas e emitiam um lamento que, parecendo o de alguma alma penada, o fez pôr a casa à venda.

Agenda

Atarefados, os dois
Vão sempre o amor adiando.
O amor pergunta até quando,
E os dois só dizem depois.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Trevo

Não sabem mais o que querem,
Se o amor, se a separação,
E, assim, se amam e se ferem,
E bem se querem e não.

Por um pouco de antipatia

Mais fácil que gerar empatia ou simpatia é provocar antipatia - propósito declarado deste texto, que tem como alvo as redes sociais. Receio estar velho demais para entendê-las e também ranzinza demais para fazer qualquer esforço nesse sentido. Espanta-me, dinossauro que sou, a apatia que se revela nas correspondências trocadas entre os participantes desse notável instrumento atual. Se um deles conta um drama familiar ou uma desventura amorosa, dez minutos depois será possível ler o comentário: Fulano curtiu isso, Beltrano curtiu isso, Sicrano curtiu isso, e o rápido e vitorioso resumo estatístico do gestor do sistema: três pessoas curtiram isso. Chegamos a isso: uma comovente unanimidade de sentimentos, expressa pela palavra curtir. Curtir, como degustar - outro "progresso" que os novos tempos nos trouxeram - é a palavra-símbolo da modernidade. Curtimos tudo: fotos, textos tristes, crônicas alegres. O importante é cada um de nós se mostrar vivo diariamente. O essencial é todos saberem que podem continuar contando com nossa presença diária, naquele engodo que nos aplicamos: temos tantos amigos, e logo teremos o triplo, no mínimo. Dói-me a mim, dinossauro, tanto estudo, tantos aperfeiçoamentos de linguagem, tantas normas gramaticais, tantas leituras (presumivelmente feitas por todos nós) para afinal voltarmos a nos comunicar como no tempo em que o fazíamos com nossos tambores e nossa fumaça. Que seja tudo em nome da tecnologia. Eu, por mim, não curto porra nenhuma (expressão certamente do agrado dos que navegam pelas teias da rede) dessa merda toda (novos aplausos, por favor).

terça-feira, 12 de abril de 2011

Drama

Beijaram-se e - os olhos úmidos dele postos nos olhos dela, que choravam - provaram lentamente o sal do adeus.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A grande viagem

Tanto cansaço e afinal,
Quando você chega ao porto,
Você percebe estar morto
E o porto é o porto final.

Volúvel

Depois de meses calado
Ligava a qualquer pretexto
Dizendo-se apaixonado:
Coisas de amante bissexto.

O castigo

Se eu fosse um gato, te arranharia toda vez que deixasses de olhar para mim. Te arranharia muito, sempre, até o dia em que percebesse que não olhar para mim tivesse passado a ser um pretexto teu para merecer meus arranhões. Desse dia em diante, seria necessário que eu, para não tornar monótono nosso jogo amoroso, encontrasse outra forma de te castigar - talvez me aninhando em tua axila mais sensível e, com a língua de aspereza imune a qualquer leite matinal, começando a fazer cócegas até que me jogasses longe, para que, enquanto eu não voltasse, recuperasses o fôlego para nova sessão de cócegas.

domingo, 10 de abril de 2011

Gangorra

Ser feliz é tão maçante,
Viver é tão complicado,
Sofrer é tão excitante,
Morrer é tão adequado.

Musa

Mulher teimosa e arredia,
Mulher difícil, me diz
Se tu me darás um dia
O que deste a Jorge Luis.

Resumo

De mim a vida está farta,
Com a morte eu estarei bem.
De ninguém sentirei falta,
Não farei falta a ninguém.

O sonho

Sonhou que mergulhava no mar e voltava com um peixe na mão. Em casa, antes de tomar banho, colocou o peixe, agora misteriosamente transformado em flor, no jarro da grande mesa da sala. Ao sair do chuveiro, foi olhar a flor e ela, que havia voltado a ser peixe, estava morta no jarro sem água. Lembrou-se do sonho assim que acordou e correu para a sala, onde na mesa, para sua felicidade ou decepção, não havia nem peixe nem flor nem jarro.

Ambição

Tivemos tudo e não vimos.
Julgávamos ter direito
A algo maior, mais perfeito,
E tolos nos iludimos.

A sorte subestimamos
E hoje nos pune a memória
Com a lastimável história
Dos frutos que não provamos.

Estufa

Foi bom: jamais nos tivemos.
O amor soubemos poupá-lo
E nunca ensejo nos demos
De diminuí-lo ou magoá-lo.

sábado, 9 de abril de 2011

Uma mulher

Ele morreu num dia 3
ou quem sabe num 18
ou num 25 talvez
de um longínquo mês
de um ano ímpar ou par
que já não consegue recordar

Foi há muito
muito tempo isso
e de tudo ele só guardou
que foi morto por alguém
mas não sabe como
e nem mesmo quem
por escárnio ou desdém
nesse dia o matou

Confuso agora porque
a idade tudo embaralhou
ele imagina
que tenha sido
uma dora uma aurora
uma dalva uma regina
uma mulher qualquer
de tantas que ele conhecia
e que por uma convicção descabida
jamais confirmada ou retribuída
ou por um tributo à poesia
com imutável fervor
ele chamava sempre de amor

Os telefonemas

Para a mulher que o esperava num dos bancos da praça ele colheu uma flor vermelha da árvore que, sete dias antes, tinha escolhido para ser aquela em que se penduraria pelo pescoço com uma corda. Como havia feito na semana anterior, olhou o mais grosso dos galhos, dessa vez sem a preocupação de calcular se ele resistiria ao seu peso e o livraria do fardo que agora não o oprimia mais. Caminhando com a flor na mão para o centro do parque, disse baixinho e com reverência o nome da mulher que, em sete dias, com um telefonema o tinha feito ficar a um salto da morte e, com outro, o deixava agora a alguns passos da vida.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Calar

Dizer-lhe o quê? Poderia
Dizer-lhe o que sinto, tudo,
O afeto, o amor, e contudo
Algo sempre faltaria.

Melhor então ficar mudo,
Deixar calada a alegria,
Manter silente a poesia,
Não dar forma ao conteúdo.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Cativo

O amor não se faz de rogado

Basta-lhe um sorriso
um pequeno agrado
ou um meio agrado
três palavrinhas simples
que podem ser
eu te amo
ou talvez uma a mais
eu te amo demais
isso bastará

Por estar em sua natureza
ser sempre uma amável presa
o amor de bom grado
se renderá

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Ponto final

O que fizeste é passado,
Mais nada agora farás,
Teu rumo já está traçado,
És pó, e ao pó voltarás.

Flores

Ontem ou anteontem
para a brisa seus segredos abriam
guardavam o sol nas pétalas
e em torno delas
abelhas zonzas zumbiam

Hoje como um crachá
ou uma tardia condecoração
adornam peitos mortos
frios como elas
e o zumbido
em torno delas
não é mais o das abelhas
nem o da brisa bisbilhoteira
mas o hipnótico ruído
urdido pelas luminárias
das câmaras mortuárias

Porto

Depois de tantas viagens
de tantas tormentas
e de tantas voragens
chego com minhas velas
com o que restou delas
às tuas margens

Venho destroçado
mas não derrotado
destruído
mas não vencido

Cheguei afinal
aonde devia ter chegado
e a quem chegou ao seu porto
ninguém dirá
ainda que chegue morto
que não cumpriu o seu fado

terça-feira, 5 de abril de 2011

Maniqueísmo

Bendito seja o que dizes,
Bendito seja o que fazes,
Maldito o que tu desdizes,
Maldito o que tu desfazes.

Tato

Tocá-la, só, aceitar
Que pretender algo mais
Seria querer demais.
Tocá-la, só, devagar.

Indiferença

Num alto galho esquecido,
Não avistado ou tocado,
O fruto ao chão foi lançado
E pelo vento varrido.

Embuste

Que doces foram os dias
Nos quais o amor me enganava
E pérfido preparava
Minhas atuais agonias.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Lápis

A mão dela pegou o lápis e começou a desenhar no guardanapo de papel. Ele sentiu que toda a história do homem, suas guerras, seus impérios erguidos e destroçados, suas conquistas e seus fracassos não valiam nada diante daquilo, e calou os gritos dos heroicos guerreiros gregos, romanos, cartagineses, o clangor das armaduras, o retinir das espadas e o aterrador troar dos canhões, para ouvir o quase inaudível som do lápis no papel, sabendo que a vida estava ali, naquela mesa de restaurante, apesar do bulício com que o verão se alardeava lá fora, com sua berrante roupa de palhaço.

domingo, 3 de abril de 2011

Teimosia

Não plantes mais esperanças.
As que plantaste ou morreram
Ou mãos alheias colheram.
Que esperas? Nunca te cansas?

Agenda

Não ser, não ter, não fazer,
Em vez de sim dizer não,
Deixar, largar, esquecer,
Viver em doce omissão.

O rumo

Uma tarde, imprevistamente, conheceu a ventura do amor. Até esse dia, não tinha noção do que era a vida, do que significavam a tristeza e a alegria. Depois dele, até morrer, só viveu dias infelizes.

Berceuse

Espreguiçar-se, dormir,
Sentir o corpo afundar,
Bem devagar submergir,
Chagar ao fundo, ficar.

Nunca mais

Não mais terão no futuro
Aquilo que desdenharam.
O fruto esteve maduro
E os dois nem sequer o olharam.

sábado, 2 de abril de 2011

Lembranças

Lembranças fortes ou fracas,
De grande ou pequeno apreço,
Nos ferem todas qual facas,
Nos cobram todas seu preço.

Sem problema

Jurou amor, não cumpriu,
Mas vive bem. Não sofreu,
Não se matou, não morreu.
Jurando amor prosseguiu.

O momento

Quando ela passou a língua nos lábios e olhou sonhadoramente para cima, doces palavras foram se juntando, inquietas, na sua garganta. E quando, alguns segundos depois, ela suspirou longamente e olhou de novo para cima, o amor adiantou-se a todas as outras palavras, pressentindo que havia chegado seu momento.

Extemporâneo

Amor, por onde tu andaste?
Amor, fugiste demais.
Tão tarde, amor, tu chegaste,
Tão cedo, amor, tu te vais.

Caderno

Existe ainda o caderno
E em suas folhas estão
As juras de amor eterno,
Fugazes como o verão.

Chuva

Morto, ainda assim o amor se mostra em sua beleza. No rosto dela, por exemplo, quando certas lembranças a afligem e os olhos verdes aos poucos vão ganhando um tom azulado, escuro, nublado, e se põem a chover mansamente.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Rugas

Eu te olharei docemente,
Não sei se tu me olharás.
Eu te olharei novamente,
Não sei se me notarás.

Olhando ou não, certamente
(Pois tudo o tempo desfaz
Com sua borracha inclemente)
Não me reconhecerás.

Suplício

Só para nos tripudiar,
Nos traz a memória agora
Somente os frutos que outrora
Nós não pudemos provar.

Restituição

Tardou, mas o amor morreu.
No outono foi sepultado,
No inverno foi olvidado,
Meu dono outra vez sou eu.