sábado, 31 de março de 2012

Invenção

O homem - esse saco de tripas - teve a ousadia de inventar para si mesmo uma alma imortal.

A alma

Ter a coragem de dizer que a alma também, como tudo no homem, fede.

Agenda

Não querer nada. Sentir
Que o melhor é não fazer.
Acordar para dormir
E dormir até morrer.

Um gato

Convém que aceites a própria insignificância, sem celebrá-la nem tentar fazê-la parecer motivo de distinção ou glória. Se queres atrair simpatia, arranja um gato.

Traça

Como uma traça, enfiar-me num livro, talvez entre as páginas 40 e 41, e ter a sorte de entrar num trecho em que um navio mansamente naufragasse, bebido pelas ondas sem deixar traço nenhum no mar ou na página 42.

Se

"Se ela não estivesse morta", pensou um dos rapazes que haviam entregado as flores no velório, mas o que disse foi: "Bonita, você viu?". O outro disse: "Se ela não estivesse morta..."

Narinas

Que bom estares morto. Se não, embora tenham colocado esse algodão em tuas narinas, como suportarias o cheiro das flores quando fecharem a tampa?

O padrinho

O menino de cinco anos perguntou por que haviam posto aquelas flores no peito do padrinho. Disseram-lhe que talvez não houvesse flores no lugar para onde ele estava indo, e ele poderia precisar. O menino tirou então dois biscoitos do pacote e os juntou às flores.

Certificado

Gostaria de ser aquele homem que, como eu, acreditou no amor, mas só até o momento no qual sentiu que continuar acreditando seria como atribuir a si próprio o certificado de tolo.

Leite com groselha

O amor há de ser sempre um imprevisto, um acaso, uma surpresa. Se dele houver um indício, um sinal, um apontamento na agenda, não será amor. O amor também não há de ter mesuras. Amor com mesuras é leite morno com groselha, é amizade. A amizade é a mais chocha de todas as formas de convivência.

Ferida

Toda vez
que fala em amor
uma ferida nele sangra
e seu rosto
parece o macilento rosto
de um mártir.

Os mortos

Como são avarentos os mortos. Cobertos de flores e de homenagens, não nos dão um sorriso, não abrem uma brecha pela qual possamos compartilhar sua bem-aventurança.

Paz

Fechar os olhos, não ter
Nunca mais que respirar,
Nunca mais que simular,
Nem a obrigação de ser.

Com esperança

Deves aguardar a morte como fizeste com o amor: com esperança e, se a morte tardar, com ansiedade e imprecações contra Deus e o destino.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Tanto faz (para Lea e André, pelo incentivo)

Saber que tudo se esfaz,
E que sorrir ou sofrer
E que viver ou morrer
Tanto fez, ou tanto faz.

Cortejo

Sentia-se tão velho, tão triste, que, quando passou o cortejo fúnebre, teve o impulso de pedir carona ao motorista do primeiro carro.

O tiro

Hoje ou amanhã
eu ligo para ele
é hoje ou amanhã
nós todos nos dizíamos

Um mês depois
ou um ano
nos encontrávamos todos
de novo
e hoje ou amanhã
nos dizíamos
eu ligo para ele
é eu também
hoje ou amanhã

Ontem nos ligaram
e soubemos
que já não podemos
ligar hoje ou amanhã
nunca mais
depois do tiro
que deste em tua boca
do tiro que cultivaste
como uma roseira
na tua solidão
enquanto nós nos dizíamos
hoje ou amanhã
eu ligo para ele
é hoje ou amanhã

quarta-feira, 28 de março de 2012

Até mesmo

(Na nota anterior, na qual me despeço do blog e dos leitores, falei da pobreza dos meus textos recentes. Agora, rasgando a cadernetinha em que estavam, encontrei mais um, que vai aqui como uma nova demonstração de como eu andava longe da literatura e de como devo desculpas ainda mais amplas àqueles que leram o blog nestes dois anos. Gostaria que esse sonetinho pudesse ser um presente de despedida, mas ele é apenas mais uma justificativa para ela. Mais uma vez, obrigado a todos. Se quiserem me desejar algo, que sejam boas leituras. Ando necessitado delas, mais do que em nenhum outro momento da vida.)

SONETINHO

Quem todo ao amor se entrega
Comete grave tolice,
Pois fazendo isso se nega
Como se não existisse.

E a quem ao amor recusa
Aquilo que o amor lhe pede
Não deve se dar escusa,
Porque também mal procede.

O amor, assim como a vida,
Tem sua própria medida,
Que deve ser respeitada.

Não lhe dê tudo, jamais,
Porque há de pedir-lhe mais,
Mas nunca o deixe sem nada.

Lembrei-me de uma frase antiga, e a uso aqui como a derradeira: desculpem a vergonha que eu passei. Abraços a todos

Até

Agradeço a todos os leitores que têm visitado o blog desde o primeiro texto, há dois anos. Hoje, estive pensando num conselho que às vezes dou a jovens que desejam tornar-se escritores: leiam, leiam muito, aprendam. Se faço essa recomendação, creio - lendo o que tenho escrito - que é o momento de adotá-la, também. Certas circunstâncias, certos terremotos espirituais me mostraram que meu vocabulário não me exprime mais. Ou rejuvenesço o vocabulário ou envelheço meus sentimentos. Obrigado

Antônimos

Se o amor for uma virtude,
Lhes digo que a cultivei
E se mais não a louvei
Foi só porque mais não pude.

E que se doença ele for
Lhes asseguro que mais
Ninguém padeceu jamais
O que sofri por amor.

Ou doente ou apaixonado,
A vida tenho levado
Entre tormento e ventura.

Que eu possa assim desfrutá-la,
Até a morte levá-la
Para a funda sepultura.

RS$ 8,90

O preço é RS$ 8,90. Está na etiqueta colada na tampa, de onde um jato, só um, acaba de matar a pequena aranha que ousou dar um passeio pela cozinha. Era graciosa e miúda, porque dois dias antes meia dúzia de jatos havia exterminado os mosquitos da casa. Os olhos que a viram não notaram nela nenhuma graça nem beleza, e a mão apertou a tampa sem hesitar. Bom produto.

Samanta Schweblin

Um dos contos que mais viva impressão me deixaram nos últimos anos é Rumo À Alegre Civilização, da argentina Samanta Schweblin. Na orelha do livro de que ele faz parte - Pássaros na Boca, publicado pela Benvirá, em tradução de Joca Reiners Terron -, diz-se que ela é a herdeira literária de Bioy Casares. Isso já seria mais do que uma recomendação. Dizer que ela faz lembrar intensamente Kafka, como no conto a que me referi, é também mais do que merecido. Ler Samanta é um presente raro para quem ama a literatura.

Fome

São onze horas, ainda, mas o cheiro de churrasco sai do restaurante e é aspirado avidamente na rua pelo menino. Ele apalpa o bolso: duas moedinhas. O que vai fazer não sabe. Talvez evitar passar pela rua em que fica o prédio onde ontem aquele porteiro velho lhe sussurrou coisas. O que foi mesmo que ele disse?

Uma rima

Enquanto você chora por amor, e faz sonetinhos graciosos, uma freira é morta na Ásia, um menino estuprado na África e duas irmãs assassinadas na Oceania. Você não sabe disso e, mesmo que soubesse, não se importaria. Só se lastimaria se soubesse que a freira, o menino ou as duas irmãs tinham uma rima para cisne - que não fosse tisne.

O assunto

Não ter nenhum assunto senão o amor é ter o melhor de todos os assuntos para escrever.

Dores de amor

Seja a época que for,
E estando ou não bem atentos,
Das duras dores do amor
Jamais seremos isentos.

O amor sempre foi assim.
Pode o doce nos negar,
Mas do mau e do ruim
Nunca irá nos isentar.

Se não podemos livrar-nos,
Que as dores possam poupar-nos
E ser mais brandas que aquelas

Que tanto nos têm doído,
Que tanto nos têm pungido
E deixem menos sequelas.

Ontem

Vivi de amor no passado.
Agora, com ele tão findo,
Morrer seria abençoado,
Morrer seria bem-vindo.

Melhor morrer que viver
Pensando constantemente
Como o hoje podia ser
Se o ontem fosse o presente.

Melhor é tudo olvidar,
Ficar assim, sem pensar
Em nada nem em ninguém

Daqueles tempos felizes
Que deixaram cicatrizes
E mais mal fazem que bem.

O amor te chamou

O amor te chamou um dia
Quando a manhã despertava,
O sol a relva dourava
E a primavera floria.

E tu foste com ele. Havia
No rumo que ele tomava,
Em cada passo que dava,
Uma alusão à alegria.

Mas veio logo a verdade.
No instante em que a tempestade
Se desatou inclemente,

Era noite, já. Estavas
Em um lugar que ignoravas,
E o amor? Ah, estava ausente.

O sorriso

Aqueles que o amor matou têm um sorriso dúbio, como se fossem cúmplices, e não vítimas.

Memória

Um dia fui atingido por uma farpa de céu tão aguda que até hoje minha alma sangra em azul.

terça-feira, 27 de março de 2012

Autodesajuda

Como é triste, como dói, já na última curva do caminho, ter a certeza de que a literatura - constante desculpa, eterno álibi para tudo que fiz de errado na vida - foi só isso: uma constante desculpa, um eterno álibi.

Consciência

Toda noite a tristeza de não ter escrito nada belo, apesar do esforço, e deitar com a convicção de que não mereço dormir nem respirar.

Exortação diante do espelho

Ler Kafka, Dostoiévski, Shakespeare. Ler Tolstói, Tchekhov, Machado. Nem tanto para aprender a escrever, o que é improvável, mas para desistir enquanto é tempo.

Mantra

Dizer a todo instante; sou um fracassado. E repetir: sou um fracassado, sou um fracassado. E insistir: sou um fracassado, sou um fracassado, sou um fracassado. E largar tudo, e tudo abandonar, e de tudo desistir. Poupar os leitores do constrangimento de lhe dizerem isso ou de - pior - silenciarem.

Estatística

Eu escrevo para quem?
Escrevo para quarenta,
Escrevo para cinquenta,
Para mim, para ninguém?

Definições

O amor é pura tolice,
Disse uma amiga querida.
Você está certa, eu disse,
O amor é tal qual a vida.

Sentir-te na alma

Sentir-te na alma talvez
Não seja muito. Só sei
Que nela te sentirei
Com mais fervor cada vez.

E cada vez mais sincera
Há de ser minha afeição
E minha insana paixão
Bem mais intensa do que era.

Sentir-te querida assim,
Amada tão forte, em mim,
É uma ventura tão grande,

Que minha alma a cada dia
Para acolher-te se amplia
E cada vez mais se expande.

As epopeias de Wislawa

As odes e as epopeias de Wislawa Szymborska não tinham como palco oceanos, regiões fustigadas pelo vento, vastos e inóspitos desertos. Uma cozinha ou uma sala com quatro cadeiras e um gato lhe bastavam.

Morto eu deveria

Talvez eu tenha morrido
Quando me disseste adeus.
Se não morri, que sentido
Têm agora os dias meus?

Ando perdido, disperso,
Poemas garatujando,
E em cada um, em todo verso,
Teu doce nome chamando.

Ah, por que não te chamei
Naquele dia? Deixei
Que fosses, sem me queixar.

Sei hoje que nesse dia,
Se morto eu não me sentia,
Morto eu deveria estar.

Como as rosas

Que as rosas te valham quando,
Já não te encantando a vida,
A alma se queixar, doída,
E a morte estiver chegando.

Que elas te inspirem no dia
Em que teus olhos fechares
E nada mais esperares
Senão o fim da agonia.

E quando a morte chegar
Que possas te consolar
Pensando, como convém,

Que, sendo tudo que são,
As rosas, sem exceção,
Um dia morrem também.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Teu caminho

Que sempre, por onde fores,
Se alegrem os passarinhos,
Se abram todos os caminhos
E nasçam todas as flores.

Que possas, onde estiveres,
Só doces frutos colher,
Ser o que quiseres ser
E ter tudo que quiseres.

Que aqui e em outros países
Só vivas dias felizes,
Carmim só, sobre carmim,

Mesmo que as trilhas trilhadas
Possam ser tão afastadas
Que jamais levem a mim.

Hemingway

Rifles, touros e leões povoavam a imaginação de Ernest Hemingway. Um deles o matou.

Desculpa

O amor é essa desculpa que sempre damos para absolver, seja qual for nossa idade, certas travessuras do coração.

Teu novo estado

Bom estares assim morto,
Com a mente desimpedida,
No teu novo estado absorto,
Sem nenhum elo com a vida.

Bom estares quieto assim,
Sem uma preocupação,
Pois quando tudo chega ao fim
Nada tem mais servidão.

Bom ouvires como rezam
Aqueles que te desprezam
(Só sabem isso: mentir).

Bom saberes que essas vozes
Indignas, falsas, atrozes,
Jamais tu irás ouvir.

Sopinha

Daqui a um mês ou dois, estará num asilo e lhe darão sopinha na boca. Ninguém mais o aguenta em casa, cuspindo versos o tempo inteiro por entre os dentes estragados. Que vá importunar as irmãs de caridade.

O jardim

Estando um dia sentado
Num canto deste jardim,
Pus-me a lembrar-me de mim,
De histórias do meu passado.

E tendo assim começado
Continuei também assim,
Do meio passei ao fim
E ao fim cheguei desolado.

Lembrei-me das tantas rosas,
Das margaridas formosas
Que tu outrora aqui viste.

Te cansaste, foste embora,
E o jardim, como eu, agora,
Está seco, morto, triste.

domingo, 25 de março de 2012

Perdão

Quando tiveres cansado
De tudo me censurar,
De nada me perdoar,
De sempre me achar culpado.

Quando tiveres notado
Que não errei por errar,
Que errei por muito te amar
E por mais não ter te amado,

Talvez enfim tu me entendas,
Talvez enfim me compreendas,
E talvez possas então

Me dar a joia preciosa,
De todas a mais valiosa,
A bênção do teu perdão.

Daquilo que me mata

Talvez nem depois de morto
Eu possa alcançar o oblívio.
Jamais eu tive conforto,
Jamais eu gozei alívio.

Depois que o amor me tornou
Sua mais dileta presa,
Nem um minuto passou
Sem que eu sentisse tristeza.

Para que não mais sofresse,
Rogaram-me que o esquecesse.
Mas pode alguém esquecer

Daquilo que o fere e mata,
Se é isso, que assim o trata,
Que também o faz viver?

Dois motivos

Se eu fosse apontar dois motivos de orgulho por minhas raízes polonesas, citaria Chopin e Wislawa Szymborska. E outros não citaria porque sempre me mantive vergonhosamente alheio a essas raízes. Isto não é uma declaração de amor, é um pedido de desculpas.

Norte

Voltou a caminhar todas as manhãs, mas agora, astuciosamente, deixa os documentos em casa. Tem esperança de um dia se esquecer de quem é e de onde mora e seguir venturosamente uma reta que o leve a um lugar de onde não possa ser devolvido como um pacote, como na outra vez.

Bolo

O amor por mim perguntou
Já faz muito tempo, um dia,
Porém era já tardia
A hora em que me procurou.

Eu lhe perguntei: "Sou eu
Que tu procuras? Vê bem,
Não quero enganar ninguém."
"És tu", ele respondeu.

Mas, vendo minha velhice,
"Espere um pouco", me disse
E se pôs a caminhar.

Sou velho mas não sou tolo,
Já sei que tomei um bolo
E não adianta esperar.

sábado, 24 de março de 2012

Cardume

Se gaivotas, como o homem, estão sujeitas a males súbitos, ele gostaria de ser uma e sofrer um desses males numa tarde plena de verão, no instante em que estivesse se lançando bem do alto ao avistar a prata de um cardume denunciado impiedosamente pelo sol.

Mas adeus sim

Dizia-lhe que a amava,
Dizia-lhe e repetia
Desde quando o sol chegava
Até o final do dia.

Dizia-lhe em verso e prosa,
Dizia-lhe pelo olhar,
Em voz calma ou ansiosa
Dizia-lhe sem parar.

Ela jamais respondeu,
E uma tarde, por tolice,
Ele então adeus lhe disse.

E ela sem hesitação
Apertou-lhe logo a mão
E também adeus lhe deu.

Fubá

Recobrou a consciência hoje, depois de duas semanas, e está recebendo a visita da equipe médica que o ressuscitou: o cardiologista cinquentão e os dois jovens residentes. Os três o cumprimentam e dizem que ele nasceu de novo. Ele não diz nada, finge que ainda tem dificuldade. Os três, acumpliciados com uma daquelas enfermeiras que sorriem mais do que respiram, prometem voltar amanhã e trazer-lhe um bolo para comemorarem. Parecem falar sério, e ele se sente o ressuscitado mais triste do planeta. Com a má sorte que vem tendo, já sabe que o bolo só poderá ser de fubá.

Oferendas da manhã

Escrever versos e mandá-los àquela que os inspirava era sua ocupação diária. Por não confiar muito em seus poemas, fazia questão de compensar essa falha enviando também, no início ou no fim das mensagens, um sol que aprendera a forjar com um estratagema qualquer no micro. Hoje se lembrou dessa época, tanto tempo já passado, e, como se fosse um desajeitado arrombador de cofres, ficou apertando a esmo as teclas e buscando combinações. Tentou, tentou e, não conseguindo, entrou em pânico: e se a amada, tocada repentinamente pela saudade, retomasse a correspondência? Como faria para lhe mandar aquele sol que era como um carimbo, um beijo, um afago? Olhou pela janela e a manhã, assim como as teclas, lhe negou o sol. Apanhou o bloco, a canetinha, e por duas horas escreveu versos cujas rimas e cuja métrica, mais do que nunca, escarneceram de sua inabilidade. Como se fosse um personagem de um mau romance, teve um presságio. Abriu a porta que dava para o quintal e, num dos degraus da lavanderia, viu um passarinho. Pegou-o. Estava frio e rígido como uma pedra. Embrulhou-o em um caderno de jornal e o colocou no lixo. A morte do amor lhe parecia abençoada agora. Melhor assim. Se fosse mandar algo, seria isso que teria: uma manhã sem sol, versos desconjuntados, um pássaro morto e algumas lágrimas.

Pauta

No dia em que teu amor
Não me afligir mais, não sei
O que aqui escreverei.
Aflige-me, por favor.

Ainda mais

Quando a história rememora,
É tão grande seu espanto
Que quase não crê agora
Poder ter amado tanto.

Jamais chegou a julgar,
Nem a pressentir sequer
Que tanto viria a amar
Quanto amou essa mulher.

Isso o espanta, mas o espanta
Mais que, havendo a ela tanta
Afeição dado, jamais

Lhe tendo nada negado,
Mais ainda não tenha dado,
Não mais só, mas muito mais.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Escorço

Se um dia me desenhares,
Que sigas a natureza:
Não me concedas beleza,
Dá-me apenas certos ares.

Nem me dotes de nobreza,
Se meu perfil esboçares.
Seria inútil tentares,
Mesmo com toda a destreza.

Pinta-me como se eu fosse
Só teu amigo, o mais doce
Ou mesmo o menos amado.

Pinta-me de qualquer jeito:
Nenhum defeito é defeito
Se for por ti desenhado.

Ainda que

Continuar falando de amor, ainda que ao coração agora, como à velhinha que voltou ontem do hospital, se receitem somente chazinhos, e mesmo assim com parcimônia. Um sachê a mais pode ser fatal.

RSVP

Coração tolo, desista,
Eu já lhe disse que não.
Jamais irei à Paulista,
Jamais à Consolação.

Jamais eu na galeria
Contemplarei as vitrines
E jamais na livraria
Folhearei os magazines.

Não, meu coração, meu tolo,
Também nem café nem bolo
Me farão entrar ali.

Mortos não comem, não bebem,
E nem convites recebem.
E eu há muito já morri.

O presente agora

Conhecer-te não foi bom,
Foi mais do que isso, bem mais.
Foi uma dádiva, um dom,
Que não mereci jamais.

Para falar desse dia
Em tom loquaz e preciso,
Compará-lo eu deveria
Ao primeiro do Paraíso.

Hoje que tua ausência choro
E a amarga perda deploro
Do presente imerecido,

Preferiria morrer
Sem nunca te ver, sem ter
Um dia te conhecido.

Trigésimo

Olhou para o alto do edifício em construção e viu o operário, lá pelo trigésimo andar, mexendo em alguma coisa. Se não fosse o capacete amarelo, não conseguiria distingui-lo. Parecia desprotegido ali, com o vento da tarde soprando mais forte agora, com a iminência da chuva. Teve inveja. Se o vento...

O treino

Já pensou em cordas, em venenos, em mergulhos no espaço. Covarde, vem tentando agora respirar menos, cada vez menos. Acredita que uma noite, habituados paulatinamente a um trabalho sempre menor, os pulmões, durante seu sono, ousem parar de uma vez.

Dominó

Acha que talvez não seja tão ruim ir se enturmando aos poucos com os velhos que se reúnem para jogar dominó na praça e falar sobre o reajuste geral da previdência. Pode ser que seja agradável passar as manhãs e as tardes com eles, disputando intermináveis torneios e revanches, e voltar para casa tão tonto de cerveja que as recordações só tenham um minuto ou dois para importuná-lo antes de ele se atirar na cama e esperar que a noite seja uma treva compacta sem espaço para sonhos - e que, se sonhos houver, que sejam sonhos como os que sua idade merece. Nada de aspirações do corpo e solicitações da carne, que o corpo e a carne já não podem cumprir. Só imagens bem amenas, como aquela de ontem, em que ele, voltando a ser menino, andava de bicicleta para dentro de uma floresta muito verde, e andava tanto que envelhecia pedalando e, quando um cansaço mortal o atingia, ele chegava a um lugar onde era amparado por gente velha como ele, que lhe dizia ter esperado muito por sua vinda e que era muito bom ele estar enfim lá.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Trecho de carta

"Dizer finalmente, definitivamente, inequivocamente, que pode ter sido louco, irracional, ridículo até, e censurável, mas que foi amor, sim, todo o tempo, e que, se um reparo merece, é não ter sido ainda mais louco, irracional, ridículo e censurável. Faltou-lhe isso, essa coragem, esse dever de se proclamar. Teria acabado já, provavelmente, porque o amor não é feito para durar, mas seria muito menos triste vê-lo ferido e estropiado do que observá-lo assim, rendendo-se com as mãos bem para o alto, sem um arranhão no corpo e ostentando, no rosto, o abjeto sorriso de quem foi readmitido no grupo social. Uma medalha para ti, outra para mim. Nós as merecemos."

Azul irado

Nem quem fez a tela sabe que ele está ali, na margem do rio, confundido com a vegetação. Enfiou-se ali enquanto a pintora, numa pausa, foi tomar um lanche. Foi no primeiro dia. Hoje a tela está pronta há uma semana e ele espera que o azul do horizonte se carregue de cólera uma noite e, esvaziando suas nuvens, o faça rolar para dentro da água. Enquanto isso não acontece, vai cuidando de sua parte. Quando não há ninguém na sala, dá um jeito de se arrastar um pouquinho, um centésimo de milímetro, na direção do rio. Se alguém quiser vê-lo, o tempo está acabando.

Paulista jamais

Para não haver dúvida, ter sempre, no bolso e em alguns outros lugares bem visíveis da casa, as duas palavras, escritas em escandalosas maiúsculas: Vila Alpina. Garantir assim que jamais, vivo ou morto, passarei pela Paulista, apesar de suas agradáveis livrarias e de seus aprazíveis cemitérios. A Paulista, com seu sol melancólico e suas galerias, é uma chaga profunda em minha alma.

Lembrete

Se tiveres outra vez o sonho em que vais entrando no mar, deves ser corajoso, não recear as ondas, não olhar para trás e ir em frente, sempre em frente. Talvez possas ir tão longe que não consigam resgatar-te de manhã, como aconteceu na primeira vez.

O poeta e o bonde

Uma noite, cinquenta anos atrás, o poeta Carlos Drummond de Andrade perdeu o bonde e a esperança. Estão aí duas palavras, já quase em desuso, que os jovens leitores talvez precisem procurar no dicionário: poeta e bonde. Já esperança acredito que saibam o que significa ou tenham ao menos uma ideia. Eu, quando jovem, julgava saber.

A voz

A criança chegou hoje, às cinco da tarde. Obediente, e também temerosa, não se mexe. Fica conforme a colocaram, com o terço nas mãos e as flores no peito. Não tem agora, embora fechada com elas, aquela alergia, aquela coceira no nariz, a vontade de espirrar. Sente, não sabe como, que é noite lá fora, talvez pelo silêncio, mas não se atreve nem a respirar. Ouve um murmúrio ao redor. São vozes. Falam de uma criança que chegou hoje à tarde. Não consegue entender o que estão falando, até que uma voz velha e doce diz que todos podem ficar tranquilos, que a criança sempre foi muito boazinha e não há de ter mudado. "Vó?", arrisca-se então a dizer.

Esperando Godot

Ser um mendigo de Beckett e ficar esperando a vida inteira por Godot, até saber um dia, cinquenta anos ou dois séculos depois, que Godot morreu. E perguntar, a quem deu a informação, se esse Godot tinha cabelos encaracolados e bigodinho espetado. E ouvir que não. E perguntar então se não seria por acaso um ruivo com nariz de pugilista. E, ao ouvir que não, respirar de alívio ou resignação e dizer que a espera há de continuar. E, quando quem deu a informação perguntar de que Godot afinal se trata, responder que, naturalmente, do Godot certo.

(In)completude

Não sei bem o que é o amor,
Mas sei que não tem, decerto,
Tenha o objetivo que for,
A obrigação de dar certo.

Não há amor realizado,
Não há amor concluído.
O amor é sempre chorado,
O amor é sempre doído.

O amor será sempre não
A meta, porém um meio,
Nunca um fim, sempre um anseio,

E, sempre em transformação,
Haverá sempre de ser
Sem jamais se perfazer.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Faina

Assim que a manhã desperta,
Saiamos a toda a brida
E, por ser a morte certa,
Nos ocupemos da vida.

Novamente

Já tantas vezes sofri
Por este amor desmedido
E tantas tenho morrido
Que até a conta perdi.

Tantas vezes padeci
De pouco e de muito amor,
E de amargura e rancor
Já tantas vezes morri

Que é um milagre eu estar
Contigo aqui a falar
Para pedir ternamente

Que mais golpes me desfiras,
Que mais uma vez me firas,
Que me mates novamente.

Ser outro

Quando você já não crê
Naquilo em que você cria
E não sente o que sentia,
Você não é mais você.

Você é outro, e quem o vê
Gozando plena alegria
Como antes ninguém o via,
Se pergunta: o que houve, o quê?

O que houve (e você não diz)
É que você, traidor,
Deu as costas ao amor
Em troca de ser feliz.

Disseste-me

Disseste-me que serias
Fiel a mim por inteiro
Nas noites quentes e frias
E de janeiro a janeiro.

Disseste-me que farias
Do meu o teu travesseiro
E que minhas alegrias
Seriam o teu roteiro.

Disseste-me que confiasse
E que de ti esperasse
Ventura somente e paz.

Disseste-me isso e partiste,
Disseste-me isso e estou triste
E já nem sei onde estás.

O que nos cabe

Concluindo agora a jornada,
Já não nos serve a virtude,
Não nos socorre a saúde
E nada nos vale nada.

E, por nada nos valer,
De nada cogitamos,
O nosso fado aceitamos
E o nosso fado é sofrer.

E tendo sido enganados
Em tantos sonhos sonhados
O que nos cabe, afinal,

É o último sacrifício:
Que seja a doença o início
E a morte seja o final.

terça-feira, 20 de março de 2012

Solidariedade

Se fosse um tigre de rara espécie, um peixe de peculiaríssimas características ou um pássaro de nome estranho, quem sabe. Mas é apenas um homem em extinção - um dos dez ou doze no mundo todo que ainda choram por amor - e sabe que ninguém na Sé, no viaduto do Chá, ou na Paulista (palco de suas desventuras) armará uma tendinha para colher assinaturas clamando por sua salvação.

Tempo de espera

Que bom aquele tempo era
Quando eu ainda sonhava,
Quando eu ainda esperava,
E valia a pena a espera.

Que bom ficar esperando
Às vezes de madrugada,
Com a alma sobressaltada
E o coração se agitando.

Que bom ansiar, que bom
Sentir o alvoroço e, com
A esperança quase morta,

Ouvir um ruído, um rumor,
E pressentir que era o amor
Lá fora, arranhando a porta.

Cinco segundos

Ter escrito tanto, tanto, e não ter escrito aquela frase, aquele parágrafo que, relido, dá ao menos por um instante a sensação de que todo o esforço de uma vida valeu a pena. Desfrutar, ainda que por cinco segundos, não uma presunção de grandeza, mas o alívio de não se sentir um farsante.

Beckettiana

Falhar outra vez, falhar
Melhor, ser assim fiel
Ao que nos quis ensinar
Nosso mestre Samuel.

Golpe de misericórdia

O amor, no início gentil,
Pode com o tempo alterar-se
E vir um dia a tornar-se
Desagradável e hostil.

E pode, assim transformado,
Fazer a conta e, mesquinho,
Cobrar carinho a carinho,
E por um preço dobrado.

E nos ferirá então,
Sem nenhuma compaixão
E toda a ferocidade.


Os golpes todos dará,
Só o último negará,
Quando pedirmos piedade.

Berceuse

Mas sempre haverá algum caminho da noite que nos leve ao mar profundo, onde as ondas nos embalarão docemente, ondas on nos la rão do ce pro men te pro fundo.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Os heróis de Beckett

Se a algum ideal aspiram os personagens de Beckett é a nada mais que a inanição.

Ainda não

Sonha que está apertando o laço e que a gravata se transforma repentinamente em corda e já é outra mão, mais forte, que a aperta. Sonha que está no triplo salto mortal, sem rede, e quem deveria apanhá-lo não está no outro trapézio. Sorri, e lhe cairia bem essa máscara mortuária. Infelizmente, sempre acorda.

Coautoria

Teres o prazer de, escrevendo um texto, puxares uma palavra, no meio de milhares, e saberes, com os sentidos mais que com a razão, que ela é a melhor, a perfeita, a única. E teres, como em algumas outras raríssimas ocasiões, a impressão de que Algo ou Alguém às vezes maneja a caneta contigo.

Avenida Paulista

Terão as águas corrido,
Terá o tempo passado,
Terá o outono partido,
Terá o inverno chegado.

Terão as flores florido
E os frutos amadurado,
Terão as folhas caído
E os ciclos se renovado.

Terá mudado a avenida
Pois nada para na vida
E tudo sempre se move

E não será como a lembro,
Tão bela como em dezembro
Do ano de dois mil e nove.

O que viver significa

Vivia uma vida mansa
Feita de fatos normais,
Sem tempo para a esperança
Nem espaço para ideais.

Vivia feliz, sorria
E nada mudava, nada
Afligia ou perturbava
A rotina do seu dia.

Conheceu o amor, então,
E viveu com ele a aflição
E a vontade de morrer.

Sabe hoje que se iludia
Quando achava que sabia
O que viver quer dizer.

O que vem do amor

Quem é pelo amor eleito
A ser na seita iniciado
Não vê no amor um defeito,
Não vê no amor nada errado.

E se entrega de tal jeito,
Estando ao amor voltado
Que muitas vezes o efeito
É diverso do esperado.

Mas ele ao amor se deixa
E dele jamais se queixa,
Ainda que crucificado.

Tudo que vem do amor quer,
Porque, vindo o que vier,
Pelo amor se sente amado.

domingo, 18 de março de 2012

Cem por cento

Tolo é quem, diante do amor,
Se mostra astuto e maneiro
E que, seja por que for,
Jamais se dá por inteiro.

Tolo é quem, tudo podendo,
Ao invés da saciedade
Acaba sempre escolhendo
O meio-termo, a metade.

Exija sempre o amor pleno
Pois querer o amor ameno
É como nada almejar.

E quando amor lhe exigirem
Dê mais do que lhe pedirem,
Dê tudo que puder dar.

Birra

Tenho certa birra - acredito que amplamente compartilhada - de escritores que fazem capítulos inteiros, e às vezes o livro todo - sem um parágrafo, como se isso tornasse mais densa a trama e mais sério o estilo. Essa particularidade me soa como mera demonstração de antipatia, como se o autor quisesse evitar logo à primeira vista qualquer tipo de aproximação ou de intimidade.

E doerão

Serão penosos os dias
Quando a amargura vier
E deste amor só houver
Lembranças fugidias.

E tristes serão as tardes
Quando a esperança se for
E eu não tiver vosso amor
Nem a ilusão de voltardes.

E fúnebres soarão
Na minha recordação
Os sons alegres das festas

E ferirão as histórias
E ferirão as memórias
Como já me ferem estas.

Ofício

Ler e escrever, ler e escrever. Nos intervalos entre ler e escrever, ler e escrever, vivi. Se me arrependo de alguma coisa, se creio ter perdido algum tempo, foi com a vida.

A ti

A ti eu devo a tristeza
De tudo aquilo que escrevo,
A ti eu devo a alegria
E a ti também a beleza
E tudo mais a ti devo
Que exista em minha poesia.

Versinhos a um real

Talvez te lembres de mim
Em uma manhã amena,
Em uma tarde serena,
Com o dia chegando ao fim.

Talvez, lembrando, sorrias,
E evoques as primaveras
Em que eu te dizia que eras
Só tu a alma dos meus dias.

E talvez lembres também
(Melhor seria se não)
Os maus versos que escrevi

Rimando "também" com "bem"
E "não" com "inaptidão"
Pensando em ti, só em ti.

sábado, 17 de março de 2012

Direito do leitor

Se houvesse um código de defesa do leitor, seria essencial que num dos artigos se considerasse válido julgar enfadonho qualquer trecho de qualquer livro de qualquer escritor - incluídos aqui James Joyce, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e Marcel Proust.

Clássicos

Clássicos são aqueles livros que nunca admitimos não ter lido, e que, embora jamais sequer tenhamos a intenção de lê-los, dizemos, para conhecimento público, que estamos relendo, com gosto redobrado. Quem disser que nunca mentiu sobre isso é mentiroso.

Vive em mim

Não sei mais, e nem me importa,
Se o amor que ainda em mim vive
Em ti não mais sobrevive
E tua fé está morta.

Já não me importa se tudo
Que o amor em mim inspirou
Em ti há muito gorou
E agora em ti está mudo.

Já não importa se em ti
Não mais vive o que vivi,
E nunca mais viverá.

Importa que vibra em mim
Cada vez mais forte, assim,
E sempre assim vibrará.

Sotheby's

Num leilão, quanto valeriam a machadinha de Raskolnikov e o papagaio de Flaubert? E o capote de Gogol?

Ir e vir

Quando tiveres passado,
Andando pela avenida,
Plena de viço e de vida,
Não estarei do outro lado.

E não estarei te olhando
Quando à Augusta chegares
E nem quando a atravessares,
Dos meus olhos se afastando.

Não haverá mais encontros,
Não haverá desencontros,
Nem risos nem agonia.

Não te verei chegar mais
E também partir jamais.
Porém como eu gostaria...

Mozart

Ouvir o Réquiem, de Mozart, é saber que certos sentimentos, estados de espírito, arrepios da alma nunca poderão se exprimir com palavras. E é, também, ter por alguns instantes a convicção de que nem sempre o homem é aquela criatura grosseira que aparenta ser. Algo do toque e do sopro divino parece ter ficado em nós. Em Mozart esse toque e esse sopro estavam presentes todo o tempo.

Nova primavera

No entanto a alma ainda espera
E em cada nova estação
Adivinha a floração
De uma nova primavera.

E sempre tem novo alento
Embora cada esperança
Lhe traga a amarga lembrança
De algum antigo tormento.

Jamais poderá mudar.
Nada sabe além de amar
E sempre em amar insiste.

Ter mais uma ilusão morta
Não a abala nem lhe importa:
Já sabe como é ser triste.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Opção

Se pudesse eu escolher,
Seria do meu agrado
Não ter nascido, não ter
Vivido, não ter amado.

Outono

Rever a moça jamais,
Andando na galeria,
Alta, loura, bela, esguia,
Ah, nunca mais, nunca mais.

Ali

Com o amor eu já ganhei
O meu diploma de tolo.
Já o recebi e enquadrei,
Só não sei ainda onde pô-lo.

Que seja adeus

Se já não te anima a chama,
Aquela que à vida dá
O sentido que nela há
E identifica quem ama,

Se a ti já não te comovem
Aquelas tardes douradas,
Aquelas juras juradas
Que a mim ainda me movem.

Se este amor que me enternece
Ao teu juízo parece
Ter já atingido o fim,

Se já não lembras de mim
Nem estou nos sonhos teus,
Que seja isto então: adeus.

Tantos num

Ainda que seja vivido
Com toda a nossa paixão,
O amor não passa senão
De um grande desconhecido,

Pois cada vez se apresenta
Tão diferente do que é
Que ao nosso juízo até
Ser outro nos aparenta.

Ele é diferente, ou somos
Nós, para o nosso prazer,
Que diferente o supomos

Para desfrutar num só
O privilégio de ter
Todo o riso e todo o dó?

Soneto da verdade nua e crua

Momentos há em que a vida
Nos mostra, sem compaixão,
Que jamais valeu e não
Vale a pena ser vivida.

Momentos em que paixão
Nenhuma, nem mesmo a glória
De ter o nome na história,
Compensa a desilusão.

De todos esses momentos,
Os que mais trazem tormentos
São os que nos causa o amor,

Esse tipo maneiroso,
Esse grande mentiroso,
Esse fatal sedutor.

Beleza é

As definições - tão caras aos filósofos - nem sempre são desejáveis para o homem comum. Pensei nisso agora há pouco, quando me perguntava sobre quais seriam os objetivos da poesia e me veio como primeira opção a beleza. Imediatamente um interlocutor imaginário exigiu: defina beleza. Tentei, mas não consegui passar de "beleza é". E acabei me desviando do caminho que trilhava, o da literatura, para me enredar na teia da filosofia. Acredito que para certas palavras, como beleza - e amor também -, haja uma compreensão intuitiva. Sabemos o que elas querem dizer, embora não saibamos dizê-lo. Fiquemos nisso, então: "Beleza é." A beleza - seja qual for o conceito que dela tenhamos - é provavelmente um dos objetos da poesia. E que venha rapidamente o ponto final, antes que o interlocutor imaginário peça: defina poesia.

Rir

Ainda que muito riso,
Como se diz comumente,
Demonstre habitualmente
Também bem pouco juízo

E quem vive a gargalhar
Esteja, mais que o calado,
Sujeito a ser apanhado
Grosseiramente a babar.

Ria sempre, enquanto der,
Ria sempre que puder,
Ria com motivo ou sem,

Ria forte, ria bem,
Alegre um pouco sua vida,
Que a morte está garantida.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Sinais

Que seja a morte a saída
Para uma vida frustrada
E nunca seja uma entrada
Para nenhuma outra vida.

Traições

Capitu, minha menina, se não traíste Bentinho, fizeste muito mal. E, se traíste Escobar, fizeste muito bem. Quem tem olhos de ressaca, Capitu, pode tudo.

Egomania

Talvez o maior problema dele consista em acreditar ser o centro do mundo. Não há um dia em que não pense nisso e, quando pensa, sempre se pergunta: e não sou?

Quem há

Amor, quem há de entender-te,
Quem há de te decifrar,
Quem dirá se ter-te é ter-te,
Quem isso pode afirmar?

Quem pode amigo dizer-te,
Quem pode em ti confiar,
Se ter-te é sempre perder-te
E se perder-te é penar?

Amor, de ti sei somente
Que nada sei realmente
E nem virei a saber.

Mas te vivo em cada instante
E vivo triste e radiante
Porque viver-te é morrer.

Muito doido

Monólogo, ou solilóquio, é aquilo que só é monólogo ou solilóquio quando quem monologa ou soliloquia é um grande personagem dramático. Quando se trata de um homem comum, diz-se apenas que ele está muito doido, tão doido que anda por aí falando sozinho.

Ingratidão

Por sorte ou merecimento
O amor nos viu e escolheu
E desde aquele momento
O melhor dele nos deu.

Que tempo aquele. Gozamos
O doce fruto dos dias,
O mel mais puro provamos
E esbanjamos alegrias.

Julgando-nos poderosos,
Tornamo-nos orgulhosos
E fomos, os dois, mesquinhos.

O amor não agradecemos
E tudo dele perdemos,
Ficaram só os espinhos.

Propriedades do amor

De tudo o amor é capaz.
De transformar em venturas
As mais pungentes agruras
E as horas boas em más.

O amor é assim, faz, desfaz,
Transforma a dor em doçuras,
Transforma o doce em torturas,
A guerra transforma em paz.

Assim o amor é, e somos
Não o que a nós nos propomos,
Porém o que ele nos quer.

Que ele nos seja clemente,
Já que seremos somente
O que ele de nós fizer.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Identidade

Não, não está mais aqui
Aquele que atormentaste,
Aquele que tu mataste.
Aquele lá já morri.

Reticências

É um sonhador. Caminha em nuvens, banha-se no leite da lua, percorre a trilha dos cometas, para beijar-lhes as reticências...

DNA

A pior desgraça que se abateu sobre os autores de folhetins foi o DNA. Ah, que bons eram os tempos nos quais as tramas se desenvolviam sempre na expectativa de que um mendigo pudesse no final ser um príncipe, quem sabe até um rei. Eu, se fosse novelista, apoiaria com todas as forças qualquer movimento que propusesse a erradicação do DNA. Até seu nome é antipático: ácido desoxirribonucleico.

A primeira vez

Intolerável saber que nunca mais haverá aquela primeira vez em que, pegando um livro de formato pequeno, da coleção Nossos Clássicos, da editora Agir, vi aquele nome desconhecido - Fernando Pessoa -, abri numa página ao acaso e li um verso: "Nunca conheci quem tivesse levado porrada." Foi um choque. Era poesia aquilo? Eu tinha sido atingido por um raio, uma revelação, e não sabia. Acho que era Dinucci o nome da livraria e eu estava na avenida São João. Ah, quem me dera perder a memória, esquecer-me de tudo para poder abrir de novo aquele livrinho pela primeira vez.

As desgraças

Não sabe ainda quais são
Porém sabe com certeza
Que não findou a tristeza
E mais desgraças virão.

Desde que ao amor cedeu
E se entregou por inteiro,
Conhece bem o roteiro:
Mais morreu do que viveu.

Amarga hoje a falsidade,
O ciúme, a frivolidade,
Calamidades cruéis,

E sabe que esse é o penhor
Que reserva o ingrato amor
Aos seus súditos fiéis.

Sandeu

Ela soube acarinhá-lo,
Ela soube enternecê-lo,
Ela soube convencê-lo,
Ela soube conquistá-lo.

Ela soube lhe mostrar
Que sem ela sua vida
Era vida não vivida
E que amar não era amar.

Ela soube o que fazer
Para persuadi-lo a ver
Nela seu bem e seu vício.

Soube depois interná-lo,
Porém não foi visitá-lo
Uma vez sequer no hospício.

terça-feira, 13 de março de 2012

Os dois

Um deles estará morto
ao anoitecer
mas não sabem ainda
e brincam no parque os dois
um a bicicleta pedalando
o outro chutando a bola

A mãe de um
e a mãe do outro
conversam num banco
e uma diz à outra
que bela manhã
que bela manhã
a outra concorda

Uma delas chorará
esta noite
e a outra por ela
procurará no parque amanhã

Mas agora
são onze horas
e uma diz à outra
vou indo
preciso ainda fazer o almoço
e mandar o meu à escola
e eu também
a outra diz
e assim
se vão as duas
e assim
se vão embora os dois
que brincavam
um com a bicicleta
um com a bola

Irão à escola
cada um à sua
com sua perua escolar
e as mães zelosas
em casa ficarão
preparando o jantar

Um gosta de feijão
o outro não
(um de arroz
o outro de macarrão)

Para nenhuma delas desconfiar
Deus que tem nos dedos
todos os enredos
e sabe com eles lidar
deixará a tarde
tão bela quanto a manhã
mas logo um telefonema
avisará a uma delas
que um deles não jantará
nem poderá
pedalar a bicicleta
ou chutar a bola
nem ir à escola amanhã.

Reinado

Pelo amor fui abençoado
E quando conta me dei
Já me chamavam de rei
E estava já coroado.

Como aconteceu eu não sei
Nem fui jamais informado.
Fui pelo amor consagrado
E ao amor me consagrei.

Mas assim como fui posto
Assim também fui deposto
E foi-se toda a ventura.

Morri de mágoa, de dor,
E hoje aquele ingrato amor
Cospe em minha sepultura.

De teu corpo

Se tu instrumento fosses
Do qual eu dominasse a arte,
Que notas, ah, que sons doces
Extrairia ao tocar-te.

E que terna melodia
Se eu dedilhar-te soubesse
De teu corpo eu tiraria
Se ao meu toque ele se desse.

Mas atingir esse enlevo
Eu jamais conseguirei,
Sei muito bem, de antemão.

Não me atrevi, não me atrevo
E nunca me atreverei
A pôr em teu corpo a mão.

O nome querido

Parece estar morto, já.
Insano, apostou a vida
Numa afeição descabida
E esperança já não há.

Os olhos que tudo olharam
Pelas pupilas do amor
Foram perdendo o fulgor
E pouco a pouco murcharam.

Porém digam-lhe ao ouvido,
Baixinho, o nome querido,
Digam-lhe, e vocês verão

Que no seu sofrido rosto
Se apagará o desgosto
E brilhará um clarão.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Semeadura

Deus, me abençoa a cultura
E põe, Deus, em minha mão
Um grão, ao menos um grão
De boa literatura.

Sementes de ira

Plantaram a ira e fruíram
As nuvens que os anuviaram,
Os ventos que os sacudiram
E as águas que os afogaram.

Ansiando pelo rancor,
Por ele, apenas, viveram
E por odiarem o amor
Dele sempre escarneceram.

Já mortos, já enterrados,
Do mundo há muito olvidados,
Estão felizes agora.

Porque no solo onde estão
Nunca, em nenhuma estação,
Jamais planta alguma aflora.

Me diz

O que tu queres de mim?
Não queres dizer-me o quê?
Por que jamais dizes, e
Sempre te calas assim?

Por que de mim tu exiges
Muito mais que de ninguém?
E, se me queres bem,
Por que é que tanto me afliges?

Por que não podes dizer-me
Se afinal tu queres ver-me
Venturoso ou infeliz?

Me diz. Se de ira se trata,
Não titubeies: me mata.
E, se de amor for, me diz.

domingo, 11 de março de 2012

Há um minuto...

... abri o micro e me pus a escrever para o blog. Nunca faço isso. Movido pelo que talvez seja uma insuportável presunção, a de me imaginar capaz de produzir algo com alguma qualidade, só passo para cá aquilo que antes rabisquei e depois corrigi com a Bic no papel. O rodapé de todos os textos do blog - Literatura - talvez seja o maior responsável por essa cautela, e hoje, passados dois anos desde a primeira inserção, bem sei que jamais deveria ter escolhido essa palavra como indicativa de algo que os leitores pudessem esperar de mim. No início eu me imaginava fazendo principalmente comentários (de leitor) sobre livros, para talvez ajudar alguém a avaliar (ou compartilhar) impressões. Mas logo me pus a ter o blog como mídia de escritos meus, pretensamente literários (ah, Deus, me perdoe), o que naturalmente transformou os leitores em vítimas. Esta nota é uma forma de pedir desculpas a todos pelo egocentrismo que passou a dominar o blog. A vida, também, contribuiu para me aturdir de repente com tantas surpresas que alguns leitores, não fosse o fato de minha foto abrir o blog, com todas as merecidas rugas, poderiam imaginar-se frequentando o diário de um adolescente apaixonado. Tudo que tenho escrito ultimamente, eu reconheço, é como se fosse escrito por quem fui há cinquenta anos ou mais. Sinto isso, vejo isso, prometo a mim mesmo não reincidir e, no entanto, dali a pouco aqui estou de volta, falando de rouxinóis e de cotovias. Deveria prometer-lhes que esta nota marca a volta ao que eu pretendia inicialmente. Não me sinto forte, ainda, para fazer essa promessa. Talvez eu consiga, além desses textos emocionalmente desregrados, ir incluindo alguns que não fujam tão descaradamente aos propósitos iniciais do blog. Assim espero. Mas é provável que por algum tempo, ainda, a nota lírica seja a predominante. Se for, desculpem-me - ou não leiam mais quem, estando nos últimos trechos de seu caminho, insiste em proceder como se o estivesse começando. Escrevi isto aqui direto, sem a participação de minha querida Bic, porque, se usasse o método usual, já teria encontrado outras tantas desculpas para o meu procedimento, e talvez até desistisse de postar estas explicações.

Conjunto Nacional

Que triste é te adivinhar
Numa manhã calorenta
Ou numa tarde cinzenta
Na Paulista a caminhar.

Que triste é te imaginar
Percorrendo a galeria
E, chegando à livraria,
Olhar a vitrine e entrar.

Que triste é te ver saindo
E pelas calçadas indo,
Rumando à Consolação,

Cingida por um abraço
Em que não está meu braço,
Tocada por outra mão.

Do amor vassalo

Para ser do amor vassalo
De mãos atadas fiquei
E à minha vida abdiquei
Para poder venerá-lo.

De enaltecê-lo e louvá-lo
Eu nunca me fatiguei
E, ainda, sempre, em cantá-lo
Até o fim cuidarei.

Por ele só, por mais nada,
Tive a vida atormentada
E só por ele morri.

Mas posso hoje desdizê-lo,
Posso hoje desmerecê-lo,
Se dele sempre vivi?

O que ao amor devemos

Dar ao amor o pedido,
Jamais fazê-lo esperar,
Pagar-lhe o justo, o devido,
Sem jamais regatear.

E, se mais for requerido,
Que mais queiramos pagar,
E, se mais for exigido,
Que nem pensemos negar.

Gentil é o amor e, enquanto
Um pouco retribuímos
De tudo que usufruímos,

Ele nos premia tanto
Que quanto mais lhe pagamos
Mais devendo lhe ficamos.

De que amor se fala

O amor, como eu o vejo, não pode nunca dar certo, e é isso que mantém, eu penso, sua mística. Há quem tenha do amor a imagem de uma família acomodando as malas, os filhos e os cachorros no carro, para uma viagem de férias. Não consigo acreditar que tudo o que os poetas vêm dizendo há séculos se refira a isso. O amor é aflição, é ciúme, é insônia, é insânia, é tormento. O amor é Werther. Tudo que fuja a esse script é acomodação, é arranjo social, é conveniência, é qualquer coisa menos amor. O amor precisa doer, machucar, ser uma dúvida e uma conquista de cada manhã, de cada tarde, de cada noite. O amor há de incomodar, jamais aliviar. No dia em que ele não atormentar mais, já não será amor. Amor em álbum de fotos, tenham paciência, pode haver maior disparate?

sábado, 10 de março de 2012

Compreensão

Chegará um dia em que concluirás, finalmente, que tu mesmo foste o mentor de todos os teus erros e de todas as tuas desgraças. Nesse dia, às tuas culpas recém-descobertas acrescentarás as outras todas que havias atribuído a tantos amigos e inimigos. Deixarás teu papel de vítima, desfarás teu belo rosto de mártir e estarás pronto para viver uma nova vida. Mas, como costuma ocorrer, será tarde demais.

O sonho

Agora que o fogo do amor não mais o suplicia, ele sonha todas as noites com um rio que flui tão lento que é como se não fluísse. O sonho é quase sempre igual. Ele está sozinho, com um livro, embaixo de uma árvore que de quando em quando deixa cair sobre seu colo um fruto de ímpar frescor e doçura. Ele inspira um aroma que o faz pensar em alguma planta que só no Éden tenha existido. Lê, saboreia os frutos, inebria-se com o aroma. Quando acorda, seu rosto é o rosto que deveriam ter todos os aspirantes à beatificação. Noites há, porém, em que de repente o vento enraivece o rio e vira rispidamente as páginas do livro, enquanto a árvore se põe a arremessar com insolência os frutos, como se quisesse feri-lo, e um grupo de jovens homens e mulheres esplendorosamente nus escarnece dele, apontando sua roupa sóbria: panaca, frouxo, babaca. Ele começa a correr, então, e enquanto não acorda berra, grita, implora: não, por favor, Deus, piedade! Quando abre os olhos, seu rosto é o que costumam ter os atormentados pelo Diabo.

As penas

Quem sofre do amor as penas
Muitas vezes é levado
Ao juízo equivocado
De que o amor é dor apenas

E ao céu clama e a todos diz
Que todo servo do amor
Só pode ser sofredor,
Jamais pode ser feliz.

Mas, se alguém lhe perguntar,
Se quer da dor se livrar,
Pode até passar por louco,

Mas certamente dirá
Que não ainda, que dá
Para aguentar mais um pouco.

A época

Estranhavam que, com os anos fazendo-o avançar para a decrepitude, o sexo tivesse passado a ser seu principal assunto e interesse. Com uma lógica que parecia irretorquível, ele argumentava que justamente quando o sexo o desertava é que lhe cabia procurá-lo.

Pequena ode ao sexo

Louvo o sexo, suas proeminências e reentrâncias, seus delírios e desmaios, suas olheiras, suas faces encovadas, suas axilas suadas, seus masoquismos e sadismos, suas algemas, seus chicotes, suas libertinagens e suas libertações. Louvo o sexo limpo, o sujo, o deslavado, o oculto, o aberto, o escancarado e o arreganhado. Louvo o sexo real e o virtual, o diurno, o noturno, o soturno, o embargado e o desbragado, o útil e o fútil, o ativo, o passivo, o interativo, o sério e o recreativo. Louvo o sexo como ele deve ser louvado, sem hipocrisia e sem mistificação. E, por ter louvado por décadas e décadas o amor sem sexo, o romântico amor que os poetas cantam, louvo agora, por justiça e por gosto, o sexo sem amor.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Ser ou não ser

Se você é honesto, escreve há cinco décadas e não é Shakespeare, nem fez jamais um verso semelhante aos dele, diga-me: por que, criatura de Deus, você continua a insistir?

De frente para a rua

Assim pode morrer um homem
atado a um sofá
de frente para a rua
vendo passar outros homens
e invejando-os por poderem
ao contrário dele
ao menos caminhar

Assim pode morrer um homem
deplorando que outros homens
embora capengando
possam por ele passar
como se na esquina
(que ele não vê)
estejam por eles esperando
um pote de ouro
ou uma tampinha
gostosa de chutar

Assim pode morrer um homem
e enfim percorrer deitado
com ar condicionado talvez
a rua mofina
onde na esquina
(que infelizmente ele não verá)
nem pote de ouro
nem tampinha haverá
mas um sinal verde avisará
que carros com mortos
podem passar.

Soneto da procura

Meus olhos e os teus olhos nesta noite escura,
Meus passos e os teus passos nesta trilha incerta,
Juntos irão chorando a mútua desventura,
Irão buscando juntos a pousada certa.

Ah, não te abata nunca o drama da procura,
Ah, nunca te amedronte continuar. Desperta,
Que em algum canto chama por nós a ventura,
E a primavera plena, em flores toda aberta,

Por nós dois ainda espera. Desperta, eu preciso
De ti. Dá-me um abraço, acende-me um sorriso,
Consola meu cansaço, e vamos pela estrada

E vamos pela noite e pela vida afora,
Que deve estar nascendo, minha triste amada,
Na distância sombria uma límpida aurora.

Do amor

Alguém do amor esperar
Alguma sabedoria
É como a noite almejar
Em pleno clamor do dia.

É como na noite fria
A luz do sol procurar
Ou numa cova vazia
Querer um tesouro achar.

Foi sempre tolo e inocente,
Sempre ingênuo e imprevidente
Aquele que no amor creu.

Nós, que nele acreditamos,
Sozinhos agora estamos,
Não sabes por quê, nem eu.

Dor menor

Cada vez me doem menos
A morte das esperanças
E as agridoces lembranças
Daqueles dias amenos.

E fere menos a dor
Que tu em mim impuseste
No dia em que me disseste
Quão tolo era o meu amor.

As farpas que me afligiam
E as mágoas que me pungiam
Já me parecem normais

E um dia, eu sei, certamente,
Que todas, infelizmente,
Já não me doerão mais.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Soneto da perdida juventude

Quando a neve chegar ao coração
E branquear a paisagem dos cabelos,
Quando os lábios que buscam a paixão
Mais nenhum beijo venha comovê-los,

Quando já fatigada de mantê-los
Queime a memória os trapos da ilusão,
E o olhar, olhando os lábios, custe a crê-los
Capazes de ao amor ter dito "não",

Quando vier o frio, e a juventude
Uma quimera te pareça ser,
Vem buscá-la em meus braços comovidos.

Verás que eu, que colhê-la jamais pude,
A tenho intacta em mim a florescer,
Na memória, nos olhos, nos sentidos.

A maçã

Iam enchendo a boca, as mãos, os bolsos, os cestos com as maçãs. Quando me aproximei, pararam a colheita, olharam para mim e riram tanto que eu peguei um fruto furtivamente e fui me afastando, enquanto continuavam a zombar: "Isso não é mais para você, velho." Auspiciosamente desceu a noite e, longe dos olhos sarcásticos, sentando-me numa pedra, enterrei os dentes na maçã. Estava podre.

O assunto

Quando, depois de dez minutos de conversa sobre o tempo, as colheitas e outras generalidades, ele deu mostras de que ia enfim revelar o motivo pelo qual a visitava, ela bateu palmas e logo entraram no aposento três rapazes de tão escancarada virilidade que ele segurou as palavras na ponta da língua. "São meus provedores sexuais", ela os apresentou. "Estou vendo", ele disse e, depois de mais dois minutos de conversa sobre o tempo e as colheitas, despediu-se. Na rua, sob a brisa morna, sentiu como nunca a humilhação de sua carne anciã. Todo ele não valia um dedo sequer de cada um daqueles rapazes de rosto incendiado como o sol de verão.

Sentimento

Quero acreditar que, em nossa malfadada história, toda vez que pensei em ti fui movido por um sentimento puro. Não quero, não consigo acreditar que tenha sido essa a minha desgraça.

Com tantas

Com tantas tentações em meu caminho - a luxúria, o álcool, a droga, a fornicação -, só pode ser castigo divino eu ter caído na exasperante e sovina esparrela do amor.

Viaduto

Olha para baixo, mais uma vez. Terá coragem um dia? Parece tão fácil, tão simples. Tantos já conseguiram. Fazem falta, por acaso? Talvez amanhã. Talvez hoje ainda, mais tarde, de madrugada, quando a treva tornar mais amistosa a altura.

Versos na garganta

Eu terei engasgado mais uma vez, e as funcionárias do asilo se empenharão em bater nas minhas costas, para que eu não morra sufocado, enquanto a chefe delas me fará mais um sermão, censurando minha insistência em, até na hora da sopinha rala, declamar aqueles poemas que fiz para você.

Sem ti

Te dei o melhor de mim,
O bom, o puro, o sagrado,
A ti vivi consagrado,
De tudo teu fui afim.

E tendo em ti não e sim,
O certo, o incerto e o errado,
Estive a ti dedicado,
E fui feliz sendo assim.

Agora que adeus me dizes,
Todos os dias felizes,
E os outros também, se irão.

Que Deus me valha. Viver
Sem ti é como morrer
Na mais aguda aflição.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A beleza não

De tudo que em ti louvei, posso talvez hoje - se ouvir o que me dizem a mágoa e o ressentimento - pôr em dúvida a sinceridade do teu afeto. Mas, ai de mim, poderei negar tua beleza, o fogo dos teus cabelos, o feiticeiro brilho dos teus olhos, o veludo rascante da tua voz?

Soneto do amor repentino

O grande amor que não se pressentia
De repente surgiu. Nenhum aviso,
Mas os passos souberam o caminho
E o instante pôde ser o instante certo.

O suave espanto redimiu os lábios
E virgens soaram as palavras gastas,
Renascidas como água de outra fonte.
A tarde não chegou a compreender

O que acolhera no seu seio, e a dúvida
Rondava ainda o coração perplexo,
Porém a noite plena, fecundada,

Sentia que algo novo acontecera
E, resguardando o ventre intumescido,
Gozou o sono da fertilidade.

Trigal

Depois da chuva, como vicejou o trigo em teus cabelos e como aprouve à brisa vespertina ir neles beber as gotas de ouro.

Os três rapazes

Respondendo à pergunta do palestrante, três jovens ergueram-se na plateia e, de cabeça baixa, declararam-se acometidos pela doença do amor. O público se voltou para eles e havia compaixão nos olhares que se fixaram nos rapazes, todos muito pálidos. Com sua experiência - ele mesmo um ex-viciado -, o palestrante soube que nenhum dos três tinha esperança de salvação e, antes que a inveja e o arrependimento o espicaçassem, desviou os olhos daqueles três rostos supliciados como os dos antigos mártires.

Decerto

Se te conheço, Alegria?
Decerto que sim, decerto.
Sei que és contrária à tristeza
E diversa da agonia
Que me têm toda a alma presa.
Mas nunca te vi de perto.

O sócio

Com três dias de fome a atormentá-lo pelo caminho em que não vira ainda sinal de vida humana, ele encontrou finalmente, embaixo de uma árvore, uma mulher que vendia pães. Perguntou-lhe o preço e mostrou-lhe a moeda que tinha. Ela lhe disse que aquilo daria para comprar apenas metade de um e ele pediu então que ela o partisse ao meio. Ela o olhou pesarosa e argumentou que, por ela, venderia metade do pão a ele, mas isso desagradaria ao seu sócio, homem muito rigoroso. Um pão reduzido grosseiramente à metade só poderia ser vendido a outro mendigo, e certamente, com a graça de Deus (foi sua expressão), era muito pouco provável que por ali, região conhecida por sua riqueza, aparecessem dois no mesmo dia.

Aquele gosto

Não lamentes as lágrimas que por amor choraste, não jures que nunca mais. Bem gostarias que te enganassem de novo, que te iludisses outra vez e que elas voltassem a correr pelo teu rosto e a deixar nos teus lábios aquele gosto agridoce sem o qual a vida não merece ser vivida.

Pouco

Se consolo te resta, é o de teres te dado inteiro ao amor. Foi pouco, viu-se no final, mas, enquanto não sabias que era, como encheste teu coração de hinos e de versos e como pensaste que com eles comoverias até a mais indiferente das almas.

Semelhança

Quando, saciado, se levantou de cima da pastora de cabras, ela se ergueu também e disse-lhe a frase mais longa que ele ouviria dela naquela manhã: "Você faz isso parecido com um bode."

A sacerdotisa

Já no primeiro dia em que foi posto a serviço da sacerdotisa, o rapaz soube, por ela, que fariam parte de sua iniciação três coitos de que ela não prescindiria de maneira nenhuma: um matutino, um vespertino e um noturno. Sendo a sacerdotisa bela, embora já não muito jovem, o rapaz se felicitou por sua sorte. Cada vez que, por força de sua agradável função, ia visitá-la em seu amplíssimo aposento, ele, depois de cumprido o rito que lhe era cobrado, recebia, ainda no leito, uma massagem revigorante dada por um ancião que, enquanto usava habilmente seus dedos nas partes pudendas e nas demais, o lembrava de que dali a algumas horas a sacerdotisa o incitaria a um esforço no mínimo igual ao que acabara de despender. A isso se limitaram as palavras do ancião, até o dia em que, completados seis meses de sua primeira prestação de serviços à sacerdotisa, o rapaz lhe perguntou se fazia muito tempo que estava ali e se a massagem pós-coito era sua única função. "Um ano", respondeu o velho. O rapaz quis saber se tinha havido outro provedor sexual antes dele. O velho sorriu e nesse sorriso o jovem notou um brilho de maligna juventude. "Antes de você era eu", ele respondeu, agora com um riso que seria o de uma serpente, se uma serpente risse. Depois disse, como se o rapaz tivesse perguntado, se ele havia guardado os detalhes da massagem que três vezes por dia lhe era aplicada, dando a entender que seria importante se ele a fosse aprendendo em todas as suas minúcias. Suando frio, o rapaz procurou em todas as partes do templo um espelho. Não havia nenhum.

Touro

Alguns, sob tortura, renegaram o amor e, envergonhados, foram viver nas montanhas próximas, nunca mais se ouvindo falar deles. A cidade foi então tomada pelo desatado riso dos que, renunciando por livre-arbítrio ao amor, praticavam toda sorte de atos sexuais, especialmente aos domingos, na arena consagrada a essas manifestações públicas. Foi nessa época que se inaugurou, na entrada da cidade, o monumento a um touro propiciatório, caracterizando-se esse animal pela extravagância de, embora enorme, ser menor que o seu próprio falo, apontado para o leste, como se destinado a fustigar o sol em sua morada nos dias em que este teimasse em se retardar.

terça-feira, 6 de março de 2012

Invenção

Inventei noite em teus cabelos, e meus dedos voltaram apavorados da treva. Mas logo os chamaste ao seio, e foi lua.

Chuva

CHUVA
PASSO
POÇA
PASSO
POÇA
PASSO
POÇA
PAS
POÇ
PAS
POÇ
PAS
POÇ
PAS

Adeus

Vai, podes ir se crês que em ti morreu
O amor que me comove e me arrebata.
Nem sequer temas que eu te chame ingrata,
Pois nada levas que não seja teu.

Levas o riso? O riso floresceu
Depois de ti, com força de cascata.
Levas também o sonho? O sonho data
Do teu primeiro olhar queimando o meu.

Vai, pois, sem um remorso na consciência,
Colher as tuas flores na existência,
Deixando embora minha estrada nua.

Vai, não me fites não assim condoída.
Levas contigo, eu sei, a minha vida,
Mas minha vida é tua, é toda tua.

Argila

Quantos já ouvi se lastimando por serem só argila, nada mais que argila. A mim me satisfaria argila ser, só argila. Teria no braço esquerdo, que olho melancolicamente agora, a marca dos teus dedos, impressa naquela tarde que bem poderia ter sido a última do mundo.

Feno

Ao se erguer do feno, onde estivera subjugada por um dos três filhos do proprietário das terras, ela apalpou algo que lhe pareceu uma moeda. Por ser aquele aparentemente o mais generoso dos três rapazes, ela forçou os olhos para ver se, com o auxílio da lua, encontrava uma inscrição ou um algarismo. Não havia nada, porém, e ela jogou de volta ao feno a pequena estrela.

Louva-me

Um dos ritos que a sacerdotisa impôs ao rapaz já no dia em que ele foi nomeado seu provedor sexual era o de, consumado o coito, ordenar-lhe: "Louva-me." Ao que naturalmente ele deveria responder: "Louvo-te." Por volta da trigésima noite, ela, depois de satisfeita sexualmente, ficou calada, mas ele disse: "Louvo-te." Ela enfiou a mão embaixo do travesseiro e, escolhendo uma correntinha entre as várias que puxou, colocou-a no pescoço dele e disse: "Louvo-te. Estás indo muito bem, melhor que o rapazinho que te antecedeu. Como prêmio, podes tomar-me outra vez, se quiseres."

Quem, em vosso leito

Jovem dama, gentil donzela, fogosa marafona, quem quereis acolher em vosso leito? Um poetastro grisalho cheio de rimas e vazio de sangue ou um magnífico rapagão, luxuriante como um corcel, ainda que vazio de ideias e mudo?

Letra escarlate

Os que foram renegados pelo amor deveriam receber no rosto um sinal infamante e ser banidos para lugares dos quais não pudessem importunar com seus lamentos aqueles que se entrecavalgam como devem se entrecavalgar saudáveis corpos no cio.

Aquele sentimento

Amor é aquele sentimento esdrúxulo que leva um homem a entregar-se atado ao verdugo e, enquanto ele ergue o machado, rogar a Deus que o faça acertar o alvo sem hesitação nem misericórdia.

Cabidela

A voz do amor gorgoleja como uma galinha decapitada. No fundo da bacia ficará o sangue, que o sol da manhã amornará ainda até que a mão que há um minuto empunhava a faca vá para a cozinha preparar amorosamente o almoço, cantando uma canção que falará das bênçãos de Deus e das alegrias da vida. "Você guarda o coração para mim?", perguntará a filha de seis anos que logo, como todas as mulheres, saberá também manejar a faca.

Fração

Se não o vives com ânsia
E a alma toda rendida,
O amor não é toda a vida,
É só uma circunstância.

Ser tolo

Ser tolo valeu-lhe o que de melhor teve. Quem, senão um tolo, acreditaria que pudesse mesmo haver um amor como aquele que sentia e uma mulher como aquela que idealizou? Quem, senão um tolo, se disporia a oferecer em troca de um amor e de uma mulher assim únicos a vida, como se a vida bastasse?

Eu, por mim

Eu, por mim, quando digo, leio ou escrevo a palavra amor, preciso sentir ao menos um arrepio, para não me considerar asquerosamente falso e indigno.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Um soneto

Há muitos anos eu, então um adolescente fustigado pela doce rudeza do Amor, escrevi meu primeiro soneto, que era já um prenúncio de como o coração seria sempre minha parte mais viva e mais fraca. Eu poderia tê-lo escrito hoje, porque nada mudou em mim. Envelheci, mas a razão que dizem vir com a maturidade não acompanhou meus anos. Fui um homem vítima de cecílias, irenes, josefas, marias ritas (e quantos nomes mais que o Amor usou como disfarce) e, se tivesse a alma verdadeira de um poeta, por certo seriam melhores estes versos e os que depois meu coração atormentado me ditou.


MARE VITAE

Há quanto tempo o mar que chamam vida,
Raivoso, sem alívio ou remissão,
Arroja minha frágil nau vencida
Às tristes praias da desolação.

Há quanto tempo este desejo vão,
De calma, de consolo, de guarida,
Ou desvia imprevisto furacão
Ou torce tempestade impressentida.

E sempre novos portos, nova gente.
Mas eu, que a sorte com ninguém reparto,
Prossigo sempre a intérmina jornada,

Em busca de algo, pois não tenho nada:
Nem peito, quando chego, que me aquente,
Nem lenço que me acene quando parto.

Cadeira de rodas

Assim como certos pintores obcecados com um tema - marinhas ou naturezas-mortas -, ele tende a ser monotemático, a falar só do seu sofá (às vezes, para disfarçar, o chama de poltrona). Sua vida se passa ali, dezesseis horas sentado e oito deitado. Ouve pela casa sussurros que o censuram pelo pecado de, podendo andar, ter desistido de fazê-lo. Se continuar sem exercitar as pernas, vai acabar numa cadeira de rodas, ouviu dizerem. E entusiasmou-se com essa ideia, a da cadeira. Acha que saberá dirigi-la bem, ao menos para ir ao jardim de manhã e ficar olhando por uns quinze minutos a inútil beleza das rosas.

Desnecessidades

Não precisam mais das flores as árvores - a quem eu as daria? Nem de frutos - de que humilhação mais necessitam meus dentes? Folhas, bastam-me elas. Apraz-me ficar à sua sombra, agora que os anos me dispensaram de procurar caminhos e de acreditar neles.

De beijos e de toques

Toda vez que precisa beijá-lo, a sensação que lhe vem é a de sacrifício. Engendra então um roçar de lábios só no rosto, tão rápido que é quase como um não roçar, acompanhado por um toque não na pele enrugada, que lhe dá arrepios, mas na camisa dele, um toque bem leve acompanhado de um suspiro, para que ele pense que a ternura, e não o asco, é que inspira essa leveza.

Tão

É fácil "amor" dizer,
Dar-nos as mãos, suspirar,
Fácil repetir, jurar,
Mais fácil ainda esquecer.

Bem no fundo

Teu amor ficou provavelmente pendurado num cabide no fundo do armário, junto com a blusa que usavas naquela manhã e que, como tantas outras coisas, queres esquecer.

Luvas

Talvez ele acredite que o médico recomendou a ela o uso de luvas para curar uma alergia. Talvez ela até o convença de que mais suaves ficarão a partir de agora os toques que ela a contragosto lhe dá no rosto enrugado.

Ursinho

Era tão grande sua carência, tão aguda que, vendo na tevê um desenho em que uma ursa embalava o filhote, gemeu baixinho, agradecido, e fechou também os olhos.

Alteza

Então você se vê numa curva do caminho, sabe que é a última e percebe que as literaturas e as filosofias não lhe serviram para nada. Tudo que você aprendeu são metáforas da Morte, conceitos. Não sabe como ela vai tratá-lo e não sabe também como tratá-la: chamá-la de Excelência, Alteza, ou simplesmente, como faria com uma amiga que viesse ajudá-lo, lhe dar um oi?

domingo, 4 de março de 2012

Um nhoque, por favor

Por que disseste aquilo tudo, então, se as palavras de amor te passavam pelos lábios como se estivesses chamando um táxi ou pedindo um nhoque à bolonhesa, sem deixar neles nenhum arrepio, nenhum traço de mel?

Nua, na cama

Ele a veria nua e, sabendo ser ela um regalo dos deuses, deixaria que seus olhos se acostumassem aos poucos com o assombro de sua aparição. Ele a olharia, sem piscar sequer, para não perder nem mesmo a palpitação mais suave do sinuoso relevo dela, provocada pela respiração. Ele a olharia, continuaria a olhá-la, como se aos olhos, e só a eles, tivesse sido ofertada a suprema bênção. Pensaria em orar para que esse fosse seu último momento, porque não teria nenhum melhor, e para que lhe fosse dado levar para a outra vida, se outra houvesse, essa imagem. Mas, se houvesse ainda mais um momento, ele precisaria resistir à voz que o incitaria a, mesmo que levemente, tocar os cabelos dela. Ele se absteria disso e deixaria também aos olhos, só a eles, a fruição do ouro esparramado sobre o trigal. E se obstinaria para que seus lábios não cedessem à tentação de buscar os dela e para que, se acaso se movessem, fosse apenas em busca de palavras para reverenciá-los.

Cansaço

Será preciso aturar
Quanto da vida ainda, para
Termos a licença rara
De enfim poder descansar?

UTI

Que bom seria se quem
Te desejou boa sorte
Pudesse agora também
Te desejar boa morte.

Animal velho

Dizem-lhe que é maçã essa coisa que põem no copo, depois de coá-la para que não engasgue. Falam daquela mesma fruta que antigamente ele ia pegar no pé e estraçalhava com seus dentes jovens?

Horizonte

Para ele, o amor é agora um navio numa tela, encoberto pelas nuvens do entardecer, acompanhado pelos olhos míopes de um homem numa sala cuja luz alguém inadvertidamente apagará.

sábado, 3 de março de 2012

Apostila

Talvez um dia eu consiga, como você, dizer palavras amorosas como quem lê em voz alta, e mastigando batatinhas entre os parágrafos, uma apostila de matemática.

Momento certo

Espera estar com a água já pelo pescoço, quando as ondas começarem a atacá-lo. Espera não se arrepender, não gritar. Se gritar, espera não ser ouvido. Será madrugada e não haverá salva-vidas na praia nem casais deitados na areia.

Saudade

Saudade dos bons momentos,
Também dos momentos maus,
Das dores e dos tormentos,
Das febres de tantos graus.

Saudade das alegrias,
Da vontade de viver,
Saudade das agonias,
Do desejo de morrer,

Saudade do que me davas
E também do que negavas,
Pois quando dizias sim

E quando dizias não,
Com razão ou sem razão,
A vida vivia em mim.

Dramalhão

Mataram-lhe o filho, e ela ainda o chama. Faz dezessete anos, mas ela, desde quando acorda até a noite, anda pelas ruas a procurá-lo: "Onde está você, meu menino, onde, meu pequeno, onde?"

Infortúnios

É um gato comum, isto é, um gato irresistível como todos os outros, desses que já na primeira página o autor de um livro descreve com aquelas qualidades de beleza e graça com que no último capítulo conquistará as lágrimas dos leitores, bastando escolher se o matará atropelado, envenenado ou num incêndio em que talvez morra também seu dono, o pequeno Thomas, um gentil menino de cinco anos, olhos azuis e cachos dourados.

Prevenido

Comprou um guarda-chuva, porque se aproxima o verão com suas tempestades, e aproveitou para adquirir um chapéu que pretende usar daqui a trinta anos, quando estiver com cinquenta, a idade apropriada para ostentar com dignidade esse ornamento. Atitudes como essa, ajuizadas, fazem seus professores prever que, dos alunos na faixa dos vinte anos, ele é o que melhor futuro terá.

A poltrona

Dele, pouca coisa ficou: na sala, a foto do casamento, trinta anos antes (porque a viúva diz nunca ter estado tão bela quanto nesse dia), e a poltrona onde ele passou os últimos meses com o gato no colo. Fotos menores estão engavetadas no quarto do casal, e outras lembranças, como uma cuia de chimarrão e um cachimbo que ele usou por um ano, entre os trinta e dois e trinta e três, foram para o lixo. Mesmo a poltrona esteve ameaçada do mesmo fim, mas, expulso o gato numa noite de tempestade, ela passou a ser vista com menor implicância, principalmente depois que a viúva providenciou a troca do seu forro.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Pessimista

Em pleno salto, a meio caminho da calçada, ocorreu-lhe uma dúvida: e se caísse em cima do toldo do restaurante, ou se de repente lhe nascessem asas?

De não viver

Há muito que não caminho,
Que não saio mais de mim,
Que fico em casa sozinho
Olhando a parede, assim.

Não quero mais nada. A vida
Já sei muito bem agora
Que pode ser bem vivida
Por outros, sem mim, lá fora.

A mim nada mais importa,
Não abrirei mais a porta,
Bata nela quem bater.

Já vivi muito. E, cansado,
Estou agora ocupado
No ofício de não viver.

O livro

Ele comprou um livro hoje no sebo, não sabe por quê. O tema não lhe diz muito, o autor não lhe diz nada. Enfiou-o na mochila e, no caminho habitual para casa, no metrô, não o abriu. Estava com os olhos cansados. Se abrisse, descobriria por que o comprou. Ou será um simples acaso estar o nome dela na página de rosto, escrito pela letra miúda mas firme? Não sabe por onde ela anda, em que hotel do mundo ela pode estar preenchendo agora a ficha de hospedagem. Nem pensa nisso, ao menos no momento. Por isso, não sofre. Será melhor que não abra o livro quando chegar em casa. Será melhor que o coloque na estante, em algum vão, e que se esqueça dele, assim como tenta esquecer que há no mundo cidades chamadas Havana, Tóquio, Nova York, Amsterdã, Mumbai.

A tecla

Ele é como a tecla de um piano que, de tanto ser tocada, não emite mais som. Mas ele não desiste. Não importa que só ele ouça. Só ele, mesmo, pode ouvir esse som que vem de sua memória e repete: amor, amor, amor. Faz tanto tempo que toca essa tecla, só essa, que não sabe mais o que as outras dizem.

Os quatro Cs

Um professor meu no curso clássico (José Nêumanne Barroso Campinhos) dizia que um texto, para ser considerado bom, deveria preencher quatro requisitos, resumidos numa fórmula, a dos quatro Cs. Ele precisaria ser claro, correto, conciso e completo. Acredito que seja um bom conselho ainda hoje e aqui ele está como homenagem a esse mestre, que, assim como Cândido de Oliveira, me fez ver que o conhecimento da gramática e da língua portuguesa é quase uma obrigação cívica. Barroso Campinhos, a quem não assustavam os mistérios da crase e das conjugações anômalas, era de uma simplicidade única. Morava em um sítio e era comum aparecer no colégio com sacolas cheias de batatas, abobrinhas e frutas, para presentear os outros professores. Com frio ou calor, estava sempre com um casaco de couro e parecia tudo, menos professor de português. Ele tinha uma tese revolucionária. Era favorável ao imperativo da primeira pessoa. "E viva eu cá na terra sempre triste", famoso verso de Camões, era, para ele, um exemplo desse caso. Quando me lembro dele, assim como de outros mestres do antigo Colégio Alfredo Pucca, agradeço-lhes em pensamento o que me ensinaram e arrependo-me de não ter aproveitado ainda mais os conhecimentos de todos. Uma perda que sempre lastimarei será não ter me aprofundado no estudo da metrificação latina, que o professor Nunes dominava. Ah, seria bom poder olhar para um verso e reconhecê-lo como iâmbico, dáctilo ou espondeu.

O ofício do escritor

Há quem queira nos fazer acreditar que se pode ser escritor por um tempo determinado - três meses ou três anos -, como se escrever fosse algo semelhante a um hobby. Ser escritor pode não ser o mais belo dos ofícios, mas tentar colar nele o selo da transitoriedade é indigno, quase infame. Drummond dizia que ser escritor era uma atitude perante a vida, um compromisso que, depois de firmado, obrigava quem o assumisse a ser escritor todo o tempo, pelo resto da vida - e ser escritor, nesse sentido amplo, significava, se não estar escrevendo sempre, ao menos estar pensando em como se traduziria, em linguagem literária, cada momento vivido. No entanto, os paraquedistas, aqueles que caem na literatura como se tivessem sido desapeados de uma miraculosa nuvem, continuam fazendo aparições espetaculares. Há algo de simpático nisso, e é útil na medida em que acaba com o mito de que o escritor é predestinado. Mas há o lado negativo, aquele de se presumir, adotando-se o indesgastável lema da autoajuda - querer é poder -, que, como se estivéssemos falando de alguma dieta mágica ou de um novo método de exercício físico, é possível ser escritor por uns tempos (digamos de março de 2012 a janeiro de 2013) e depois, conforme tenhamos julgado a experiência, partir para outra. Recentemente, uma atriz de grande sucesso ligou para um editor, às pressas, comunicando-lhe que havia escrito quarenta páginas de algo que ela não sabia definir bem o que era e perguntando-lhe o que deveria fazer com o texto. Em noventa e nove por cento dos casos, quem se atrevesse a dar a um editor um telefonema como esse teria recebido, se resposta lhe fosse dada, uma sugestão chula. No caso, porém, o editor aconselhou a atriz a enviar-lhe urgentemente o texto. Depois decidiriam em que categoria literária ele poderia inscrever-se. Se um escritor telefonasse para um diretor de novelas dizendo-lhe que acabara de fazer mímicas no espelho, decerto não seria encorajado a ir repetir as mímicas no estúdio de tevê. Mas, principalmente na época das bienais, é comum aparecerem - e logo tomarem parte substancial do noticiário - homens e mulheres de quarenta ou cinquenta anos que confessam, candidamente, ter "resolvido", depois de tantas décadas, ser escritores.

Mas assim também não

Nelson Rodrigues tinha extremo cuidado com os diálogos de suas peças e outros textos. Um magistrado falava como magistrado, um estivador como estivador e um gigolô como gigolô. Certa vez, alguém lhe disse (certamente referindo-se ao modo de falar de algum personagem de pouco estudo) que os diálogos de Nelson eram muito pobres. Nelson, sarcástico, respondeu: "Você não sabe que trabalho me dá empobrecê-los." Isso me recordou duas ocasiões nas quais revisores preocupados em fazer com que todos os personagens falassem como filólogos colocaram em lábios rudes algumas expressões castiças. As vítimas desse excesso de zelo foram o cronista Luiz Martins, famoso por sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo, e o romancista Jorge Amado. O primeiro teve a surpresa de ver numa crônica sua o freguês de um bar pedir ao garçom: "Dá-me um conhaque." E o segundo espantou-se ao ver, já em prova final, um rústico plantador de cacau dizer algo como: "Pode tardar, mas tornar-me-ei assaz poderoso por estas bandas."

quinta-feira, 1 de março de 2012

Estrela

Achar uma estrela das pequenas caída na rua, olhar para todos os lados e, não vendo ninguém que possa declarar-se proprietário, embolsá-la. Levá-la para casa, dar-lhe um pires de leite todos os dias e não permitir que ninguém saiba de sua existência. Não dizer nada, nem à mulher nem aos filhos (sabe-se lá o que pode fazer a racionalidade de um adulto e se já não haverá algum grupo dedicado à preservação de estrelas filhotes). Jamais deixar que o gato, com aqueles malignos olhos verdes, a veja. Talvez, um dia, contar a um neto, mas a um só deles, o mais confiável, e fazê-lo prometer cuidar dela quando você se for.

A flor

Todo dia, bravamente sentado na sua poltrona, quase tão velha e amarela quanto ele, ele fecha os ouvidos às notícias da rua e do mundo e cultiva a flor de sua solidão e de sua idade: o marasmo.

Verde, ainda

Quando adolescente, acreditei que, de todos os motivos para viver, o amor fosse o mais válido. Acredito nisso hoje, ainda. Onde está o amadurecimento que a idade deveria ter me trazido?

Menos, menos

Não tem sentido nenhum
Eu me exceder em ardor
Para exaltar um amor
Se for prosaico e comum.

Não tem sentido compor
Uma ode, uma epopeia, um
Soneto, nem mesmo algum
Ditirambo encantador.

Que o fervor então se cale:
Nem ode nem ditirambo.
O que este pobre amor vale

Não é mais que um verso bambo
Que em sua pobreza iguale
Os de uma rumba ou de um mambo.

Que não

São todas tristes agora
Aquelas ternas lembranças
E amargas as esperanças
Que me alegravam outrora.

Morreram as alegrias
E o cruel tempo apagou
Aquele sol que encantou
Minhas manhãs e meus dias.

Veio o vento, a tempestade,
Veio a dor, a realidade,
E foi embora a ilusão.

Ontem eu te perguntei
Se lembras quanto te amei,
E tu disseste que não.

Astúcia

Tropeçou uma tarde diante do portão do colégio, e os garotos e garotas uivaram de satisfação: "Ih, ói lá o velho." Tropeça agora todas as tardes ali e tem a satisfação de, no meio do alarido, dizer a si mesmo: "Enganei essa cambada outra vez." Em casa, os exercícios - feitos para que os tropeções continuem a ter verossimilhança - tomam-lhe cada vez mais tempo, e ele vive com os joelhos esfolados e os braços roxos.

Contabilidade

Nem tudo que eu desejei me foi negado - apenas o essencial.

Juízo final

O que responderás quando - depois de dizeres que dedicaste as vinte e quatro horas de todos os teus dias a ler e a escrever - te perguntarem o que fizeste da vida?

Feijão e arroz

Quem vive do que escreve não pode dar-se a experimentalismos, a atitudes de vanguarda. Estar cem anos à frente do seu tempo, e ser reconhecido apenas pela posteridade, é algo que só se deve almejar depois de uma boa espiada na despensa.