terça-feira, 31 de outubro de 2017

Catálogo (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Sexo prazeroso -
salvo engano -
é um pleonasmo vicioso.

Ideal

Morrer deveria ser
como tomar um banho morninho,
deitar e adormecer.

De pó para pó

Nossos mortos nos estranharão:
cadê aquele sorriso lindo,
aquele cabelão?

O tempo certo

O cansaço e a castidade
são duas conquistas
da terceira idade.

Enquanto

Enquanto eu me enturmava com os doutos
as marias flertavam com os outros.

Recíprocos

Só ao chegar saberemos
se nossos mortos têm por nós
o amor que por eles ainda temos.

A fórmula

Para ganhar convém estar
ou no lugar certo
ou ainda mais perto.

De "O despertar dos mágicos"

"Sabei, dizia um mestre alquimista, sabei vós todos, os investigadores dessa Arte, que o Espírito é tudo, e que, se nesse Espírito não está encerrado outro Espírito semelhante, esse tudo para nada serve."
De Louis Pauwels e Jacques Bergier, tradução de Gina de Freitas, Editora Bertrand Brasil.)

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Ainda que os mesmos

Como eu gostaria de ter hoje algum ideal, mesmo que fosse um daqueles antigos, que tão decepcionantes se mostraram.

Aquilo de sempre

De mim não tenho a dizer
Nada sério ou importante:
Viver, padecer, morrer -
Nada belo nem brilhante.

De Milan Kundera

"Por que aproveito todas as ocasiões para me sentir culpado?"
(De A festa da insignificância, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, Companhia das Letras.)

sábado, 28 de outubro de 2017

Bretão

Futebol é só um jogo, que é preciso ganhar hoje, e amanhã, e depois, e de novo.

Balcão

O lugar dos romances de capa e espada é ocupado hoje pelos manuais de copa e cozinha.

Linhagem

Não, perdigotos não são o produto da união de um perdigão com uma perdiz.

Pouco

Um morto só,
ainda que muito sério,
não justifica um cemitério.

Patente

Todos os provérbios -
uns mais, outros menos -
têm instintos ditatoriais.

Aula de literatura

Shakespeare morreu
mas desafortunadamente
só depois que matou Romeu.

Início de "A festa da insignificância", de Milan Kundera

"Era o mês de junho, o sol da manhã surgia das nuvens e Alain caminhava lentamente por uma rua parisiense. Ele observava as moças que, todas, mostravam o umbigo entre a calça de cintura muito baixa e a camiseta cortada muito curta. Estava encantado; encantado e até mesmo perplexo: como se o poder de sedução delas não se concentrasse mais nas coxas, nem na bunda, nem nos seios, mas naquele pequeno buraco redondo situado no meio do corpo."
(Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, Companhia das Letras.)

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Cotação do dia

Por mais lastimável que seja seu presente, os morituros hão de ser dignos do seu futuro.

Destino

Não esmoreço.
Sigo a sina dos morituros.
Persisto. Amadureço.

No portal do Estadão

Hoje falo de um marido escritor, provavelmente malogrado numa coisa e na outra.

http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/parabens-querido/

De Giorgos Seféris

"A cada manhã me lembra a água morna
que não tenho junto a mim mais nada vivo."
(De Poemas, tradução de José Paulo Paes, Nova Alexandria.)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Heróis

Escrever é aquela outra façanha que alguns velhos ousam, além de respirar.

DF

Qual é a língua portuguesa que se fala em Brasília?

Melhores amigos

Gostaríamos de dar aos arcos-íris nomes como Lulu ou Totó e adestrá-los de tal forma que saltassem graciosamente para apanhar os ossos que nossa generosidade lhes atirasse.

Índole

Para uma barriga burguesa
vale muito menos uma ambrosia
que um bifão à milanesa.

Relato (para Luiz Vita)

Venho morrendo com certo gosto e assiduidade.

Penduricalhos (para Gabriel Perissé)

Retórica é tudo aquilo com que se tenta, como se fosse possível, melhorar uma rosa ou um passarinho.

Ocasião

Não tardes, menina.
Melhor me veres andando na joão mendes
que deitado na vila alpina.

De Giorgos Seféris

"Um pouco mais
e veremos as amendoeiras em flor
o brilho dos mármores ao sol
o mar cheio de ondas

um pouco mais
elevemo-nos um pouco mais."

(De Poemas, tradução de José Paulo Paes, Nova Alexandria.)

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Michê

São paulo puta rampeira
me comes na brigadeiro
na barão na conselheiro
na travessa e na ladeira.

Tradição

Porque é preciso rimar,
Nos poemas todo fantasma
Tem de tossir e ofegar
Como se sofresse de asma.

Frase de Giorgos Seféris

"Os dias roem nossa vida sem alarde."

Autossuficiência

Sou minha trajetória completa:
meu mais dileto algoz
e minha vítima predileta.

Pauliceia

Minha odisseia passa
pelo brás bexiga pompeia
casa verde água rasa e largo da lapa.

Descrença

Penso em mim como quem pensa
num trabalho longo que não trará
nem prêmio nem recompensa.

Tarefa

Tenho feito de mim o que faz um homem que se detesta, com o empenho de quem pretende ser perfeito em tudo que faz.

Autoconhecimento

Quem me conhece bem, como eu, não me acha grande coisa.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Gafe

No meio do velório
alguém comenta que o defunto
foi um vivente finório.

Nos trinques

Excetuando a maquiagem
e o ar apalermado
era um morto irretocável.

De Inês Pedrosa

"Precisamos da tristeza para aprender a olhar para o céu."
(De Os íntimos, publicado pela Alfaguara.)

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Significado

Entendo sua revolta, amigo, mas nefelibata não é a puta que pariu.

Diferença

Um poeta velho não se descobre assim como se descobre uma América.

Quintana (para Silvia Galant François)

Quando viam Mario Quintana, as estrelas ficavam com a cabeça nas nuvens.

Mérito

Quando chegar a hora de pôr o burro na sombra, não hesite. Você merece.

QI zero

Se você não morreu de amor, está perdendo seu tempo, bocó.

Perfil (para Alexandre Brandão)

A melancolia, como a formiga, deve ser lenta e trabalhadora.

Milagre

De todos os poetas, mesmo do mais insignificante, se deve sempre esperar que a qualquer momento possam ser redimidos por uma palavra que, saindo dos seus lábios, desenhe no ar uma borboleta.

Postura municipal

Ainda que se trate só de um busto, e não de uma estátua, e a praça seja a mais humilde da cidade, a petição em que se sugerir essa homenagem para um poeta deve ser aprovada por pelo menos um cachorro, um gato e um bem-te-vi da vizinhança.

Lembrança

Que de nós fique uma frase, ao menos, que alguém possa lembrar quando não pudermos mais dizer nenhuma. E que seja uma dessas frases comuns, cotidianas, com as quais se costuma cumprimentar um amigo. Pode nem mesmo ser uma frase com início, meio  e fim, mas um monossílabo como oi. E que no sorriso de quem vier a lembrá-la se possa ler alguma coisa assim como: ah, aquele jeito que ele tinha quando chegava...

De Sylvio Floreal, sobre o Brás

"O Brás, durante o dia, é um verdadeiro poema homérico de atividade e trabalho. É a ânsia em marcha, desabusada e audaciosa. É a luta em assomo febril de indômita avançada, penetrando, dominando todas as esferas da vida. O esforço aguerrido pela fúria de enriquecer multiplica-se de mil modos, toma aspectos e proporções espantosas, criando iniciativas, tramando expedientes, urdindo invenções, inventando meios que o conduzam ao triunfo monetário."
(De Ronda da meia-noite, publicação da Boitempo Editorial.)

domingo, 22 de outubro de 2017

22 de outubro

Amigos, vos agradeço
Por tudo que me atribuís.
Sei bem que não vos mereço,
Mas ah! Como estou feliz!

(Para todos, todos, todos os que me levaram a ver, hoje, que um homem pode ser amado pelo que faz, ainda que faça só algo que imagina ser poesia.)

Palavras (para Ana Clara Beauvoir)

"Sofrer pela poesia, morrer por ela? Poesia é uma palavra, só."
"E amor, o que é?"

Cotação do dia (para Ana Farrah Baunilha)

Um lacaio que, despedido por entornar chá em uma condessa, se arrepende ainda hoje, trinta anos depois, por não tê-lo bebido no soberbo colo adornado por um colar.

Hoje, na revista Rubem,

eu trato de um desmoronamento de frases. (www.rubem.wordpress.com)

De Saul Bellow

"Tristeza, Senhor, é uma espécie de frivolidade."
(De Herzog, tradução de Sílvia Rangel, Edições Símbolo.)

sábado, 21 de outubro de 2017

Diagnóstico

As reticências são um surto de megalomania do ponto final.

Boa companhia (para Rose Marinho Prado)

Dou-me bem com os infortúnios, e eles não se dão mal comigo.

Autopreservação (para Silvana Guimarães)

Se não zelarmos por nós
se não nos cuidarmos
se não resistirmos
se acabarmos morrendo
o que pensarão de nós
esses cujas melhores gargalhadas
dependem de nós
das piadas que somos
quando como agora eu
latimos e dizemos
que estamos latindo poesia?

Progresso (para Rose Marinho Prado)

Com o desenvolvimento dos meios de transporte e do sistema de pronta entrega, os poemas concretistas atingiram sua fase de maior sucesso.

Vintage

O que tenho a oferecer são, ainda, alguns sonetos. Batem-me à porta como cães escorraçados. Parecem todos da década de 1960.

Cotação do dia (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Sinto-me desnecessário e decorativo como um ponto e vírgula.

História (para Silvia Galant François)

Conversar com estrelas era coisa de poetas desocupados.

Meu papel

Por muito tempo imaginei que perder fosse a minha sina. Tudo que me acontecia dava a impressão de ser irrevogável. Não havia substituto para mim. Eu era o personagem ao qual cabiam os infortúnios. Habituei-me a eles, passei a apreciar as calamidades. Quando, já no meio da peça, notei sinais de mudança, precisei lutar como nunca havia feito, para conservar meu papel na peça.

Soneto do meu tirano (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)

Eu, que do amor sou vassalo,
Se cometo algum pecado,
Não é o de não celebrá-lo,
É louvá-lo demasiado.

Tenho sido um bom cantor.
Desde que a ele me afeiçoei,
Só o chamo de meu senhor,
De majestade e meu rei.

Podendo me desmentir,
Provou o amor a nobreza
Que persisto em lhe atribuir:

Como escravo me mantém,
Conserva minha alma presa
E meu coração também.

Início de "O apelo da selva", de Jack London

"Buck não lia jornais; caso contrário, teria sabido das dificuldades que o aguardavam, de Puget Sound a San Diego, a ele e a todos os cães que fossem rijos de músculos e tivessem pelo abundante e aconchegador. Tudo porque alguns indivíduos, tateando as trevas do Ártico, tinham topado com um metal amarelo; e, propalada a descoberta aos quatro ventos por companhias de navegação e outros transportes, homens aos milhares se precipitaram para o norte. Ora, esses homens precisavam de cães, e os cães de que precisavam não podiam deixar de ser possantes, de ter músculos poderosos para o trabalho e pelo grosso que os protegesse da geada."
(Tradução de Rui Guedes da Silva, publicação da Editora Abril.)

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Do que os poetas precisam

Os poetas criaram tal aura para si que, quando falam de tormentos físicos e de misérias do corpo, ninguém se dispõe a imaginar que estejam falando disso realmente. Supondo não terem nada espiritual a oferecer à mão estendida, todos se esquivam. Como adivinhariam que os poetas às vezes têm fome de pão, ainda que sejam só migalhas?

A idade (para Marcelo Mirisola, Paula Giannini e Veronica Stigger)

Devemos escrever enquanto jovens, quando ainda soam fortes nossas imprecações, nossa fúria, nossa revolta. O exercício da literatura, com suas constantes incitações ao clássico, tende a emascular nosso ímpeto em nome de um equilíbrio que os velhos leitores e os acomodados escritores celebram entre bocejos.

Cotação do dia

O único a quem você enganou foi você mesmo. Cinco décadas sonhando literatura, vivendo literatura, tentando literatura. Constância, empenho, obstinação. Você acreditou em suas palavras, se achou profundo, pronto, capacitado. Nunca lhe ocorreu, em todo esse tempo, que você era a pessoa mais fácil de ser enganada, por mais tolo que fosse o enganador?

Conselho do dia

Ao diabo com a autoajuda, a autoestima, a autocomiseração. Diga eu sou ridículo, eu sou bizarro, eu sou a mais infame piada do mais grotesco dos palhaços. Diga isso e saia para o sol como saíam aqueles homens honestos de que falam os livros antigos.

Hoje, no portal do Estadão,

o repentino entusiasmo de um homem por sexo.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/mulheres-pela-casa/

Um trecho de Julio Cortázar

"Amizades: uma gata mansa e pedinchona, outra preta mais selvagem, igualmente faminta. Os pássaros aqui quase nos chegam às mãos e as lagartixas verdes sobem nas mesas à caça de moscas. De longe, uma grinalda de balidos de cabra nos cerca, cinco vacas e um bezerro pastam no mais alto da colina e mugem adequadamente. Ouvimos também os cães das cabanas no fundo do vale; as duas gatas se somarão esta noite ao concerto, é certo."
(De Orientação dos gatos, tradução de Remy Gorga, filho, Editora Nova Fronteira.)

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Linguagem amorosa

Eu te amo
ele dizia
eu te amo
ela ecoava
e se amavam muito
com verbal economia.

Sofisticaram-se.
Ela o chamava de meu céu
ele de minha estrela guia
e amaram-se pomposamente
até o amor morrer
de verborragia.

Do ramo (para Rose Marinho Prado)

Se você tiver o que dizer, algo assim como um texto com início, meio e  fim, escolha exprimir-se em prosa e deixe a poesia para aqueles malucos que há séculos sabem fazê-la.

De Inês Pedrosa

"Ele tem barriga de cerveja, barriga de cerveja, barriga de cerveja. E está semicareca. Um semicareca é a versão barata e envergonhada de um careca. Mau gosto."
(Do romance Os íntimos, Editora Alfaguara.)

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Á erre gê agá

Uma expressão presumivelmente difícil de engolir, em pelo menos dois sentidos, é poema seminal.

A ocasião faz o poeta (para Rose Marinho Prado)

Por um equívoco do setor de expedição, as caixas em que estavam os adjetivos, os verbos, as preposições e os pronomes não chagaram à oficina do poeta. Limitado a uma centena de substantivos, ele os esparramou em cima da mesa, assumiu um ar heroico e disse resolutamente: eu não desisto. Estava nascendo o concretismo.

Tipos

Os bons poemas dão a impressão de que estavam prontos já antes de alguém os escrever. Nos outros, nota-se o vão esforço dos poetas.

Antes só

Um intelectual, sozinho, é uma calamidade que se pode suportar, como um incêndio ou uma inundação. Difícil é quando eles surgem aos bandos, como nas inaugurações e nos lançamentos, ávidos por vinho chileno e rissoles.

Modo de fazer

Há de se cuidar para que o exibicionismo das flores não empane o brilho do defunto em seu único dia de glória.

De "Os íntimos", de Inês Pedrosa

"Um coração judeu. Em tudo exactamente igual a qualquer outro coração humano. Abandonado, em excelente estado de conservação, na neve suja de Auschwitz, no último dia de dezembro de 1944."
(Editora Alfaguara.)

terça-feira, 17 de outubro de 2017

De Margaret Atwood

"Trair é um trabalho árduo."
(De Transtorno moral, tradução de Carlos Ramires, Editora Rocco.)

Os nossos

Eles esperam por nós.

Tantas  vezes lhes falhamos
tantas os esquecemos
tantas os relegamos
e eles ainda esperam por nós.

Não estão aflitos agora.
Que aflição pode haver?
Que sentimento pode ter
pó que espera por pó?

De Inês Pedrosa

"A narrativa bíblica pode ser interpretada de outra forma: Deus enviou a maçã e a serpente para que as suas criaturas ganhassem o direito ao livre-arbítrio."
(Do romance Os íntimos, Alfaguara.)

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

O adjetivo (para Ana Farrah Baunilha)

Sou um substantivo ao qual só se ajusta bem um adjetivo: reles.

Efeito

É quando você se sente mais inútil, vazio, oco e imprestável que você se põe a adjetivar.

Na lista

Visceral e crucial são dois dos piores adjetivos que conheço. Representam uma tendência antiga e atualíssima: o mau gosto que se presume letrado.

Do romance "Os íntimos", de Inês Pedrosa

"- Tu és um analfabeto sentimental
disse-me uma vez uma mulher. Eu agarrei-me aos peitos dela enquanto a beijava. Como se me agarrasse a uma boia de salvação, só isso."
(Publicado pela Alfaguara.)

domingo, 15 de outubro de 2017

Um, os dois ou os três (para Marco Antonio Martire)

Falar de amor causa sempre constrangimento. Quando não é um dos interlocutores, é o outro, às vezes os dois. Mas na maior parte das vezes é o próprio amor.

Zombaria

Se o que de nós escrevi
Eu pudesse ainda apagar,
Parariam de zombar
Do amor, de mim e de ti?

Os dois tipos

Há os homens de ação e os outros, os de omissão. Não me perguntem a qual dos tipos pertenço.

Só isso

Digam o que disserem, e mesmo que não digam nada, o que os leitores esperam dos poetas é sempre beleza.

De Margaret Atwood

"As lesmas comiam tudo e não eram comidas por nada. Não ser atraente tem suas vantagens."

sábado, 14 de outubro de 2017

Sempre ali

Vocês me conhecem. Sou aquele sujeito que diz ter morrido de amor e no entanto continua a falar  dele e a acusá-lo. Vocês sabem como proceder comigo. Vocês me ouvem um pouco, depois fingem me ouvir mais um pouco e no fim me deixam falando sozinho. No dia seguinte, eu estou na mesma esquina, aquele morto acusando o amor. Apareci ali ninguém sabe quando nem como, e fui ficando. Somos poucos hoje, três ou quatro em toda a cidade. O amor talvez não seja um bom assunto.

Conselho médico

Se fores ficar doente
que seja uma doença decente
e tenha o nome que for
seja uma das que constem
dos manuais de medicina
e não aquela coisa mofina
aquela molestiazinha chamada amor.

Ninharias

O que nos mata são essas tolices a que damos tanta importância, como o amor. Ele já nos envergonhou tanto que, ao mencioná-lo, nós o chamamos agora pelo mais brando dos seus nomes: afeto.

Megafone

Sempre quis vender a ideia de que tenho algo essencial e bonito a dizer. Sempre fui mau vendedor.

Modos de ver

Talvez a vida nunca tenha sido boa. Você é que talvez tenha sido tolo todo esse tempo.

Troca (para Rose Marinho Prado)

Sei que não tenho alma. Se a tivesse, há muito ela estaria com o Diabo, em troca de uma obra, ainda que não fosse prima.

Aqueles tipos (para Inês Pedrosa)

Os escritores são aqueles tipos que morrem sem desfrutar a vida. Eles a desperdiçam toda numa única e maníaca atividade: trabalhar, trabalhar, trabalhar, para acrescentar uma linha, um adjetivo ao seu necrológio.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Algoz (para a Flá Perez)

Ou o amor nos mata ou nos mata a poesia.

Hoje no portal do Estadão

http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/uma-nova-mulher/

(Os valiosos conselhos das revistas)

Fugacidade (para Tania Regina Fernandes Cordeiro)

Tínhamos tanto a dizer,
Mas deixamos o tempo ir
E o relato se perder.
Quem ainda, hoje, o quer ouvir?

A opção

Morre-se de tantas causas, de tanta ridicularia: de gripe, de acidente, de inveja, de melancolia. Morre-se de amor ou de falta dele, morre-se na hora certa, morre-se quando não se devia. Morre-se do desencontro, morre-se da procura. Por que zombar, por que escarnecer, por que desdenhar de quem quer definhar de poesia, de quem quer morrer de literatura?

Entre nós (para Silvana Guimarães)

Nós os chamamos em vão,
Inútil é nossa voz.
Os bárbaros não virão,
Há muito estão entre nós.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O momento

Quando nada temos a dizer e todos os olhos nos olham como se fôssemos impostores, aí é que nos cabe mostrar o que aprendemos com a literatura.

Identidade

Exigir que os poetas românticos escrevessem teria sido uma impertinência. Com aquela presença, aquele porte, aquela aura...

Herança

Tenho pena de mim, do homem que me tornei depois de tantos sonhos malogrados. É um mau hábito que aprendi com minha mãe.

Hipótese

Se o amor fosse como você às vezes ainda o imagina, você o mereceria?

Mão única

Que você tenha se apaixonado pela poesia se entende. Mas foi presunção demais julgar que ela corresponderia.

Obviedade

O que mais você esperava? Que futuro poderia ter um menino viciado em rimas e versos?

Balanço

Hoje você pode dizer que a poesia foi mais um brinquedo de criança que um projeto de vida.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Aleluia

Eu não ter nada a escrever
É uma bênção do Senhor.
Devemos Lhe agradecer -
Eu e, mais que eu, meu leitor.

Cotação do dia

Estarmos mortos é já um hábito quase tão antigo quanto o de viver. Alguns nos chamam de indiferentes, outros de apáticos. A verdade é que desde o início não nos demos muito bem com essas coisas todas que tanto agradam aos demais.

Índex

Palavras também sofrem discriminação. Devaneio, por exemplo. E alvíssaras, e augúrios, e primícias. Melhor não pronunciar nenhuma delas.Todas carregam uma maldição. Preservemos nossos lábios e digamos amor uma vez, duas, três, enquanto nos permitem dizê-lo.

De Inês Pedrosa

"O erro é a melhor definição da humanidade; no mundo animal não existe o erro, apenas a morte."
(De Os íntimos, Alfaguara.)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Porcentagem

Hoje quase ninguém mais estranha se dizemos que nossa ocupação é a literatura. Só um entre dez faz ainda aquele comentariozinho sarcástico: ah, sei.

Piada

Contaram uma piada tão boa que, pela primeira vez na noite, senti pena do defunto. Para lhe melhorarem a aparência, tinham lhe tirado o aparelho auditivo.

De Inês Pedrosa

"O sofrimento é como a liberdade: só aproveita aos corações de grande fortaleza. Aos outros, corrompe-os, mais nada."
(De Os íntimos, Alfaguara.)

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Cotação do dia

Sempre tive consciência de que eu valia pouco, mesmo no tempo em que cheguei a valer alguma coisa.

Prateleira

Sou aquele que você pode levar menos caro amanhã e muito mais barato depois de amanhã.

O que temos

Contra as misérias do corpo, temos por enquanto apenas a expectativa de alma e essa ternura aguda que nos espeta quando alguém diz a palavra amor.

Início de "Os íntimos", de Inês Pedrosa

"A minha vida ficou decidida no instante em que salvei uma mulher das ondas do mar. A ação heroica completa: agarrei num mergulho o corpo inerte, trouxe-o para a praia, fiz-lhe respiração boca a boca e assisti ao seu regresso à vida. Quando os primeiros socorros chegaram já estava tudo resolvido. E eu sabia duas coisas: em primeiro lugar, que queria ser médico. Em segundo, que os seios arfantes de uma mulher eram um excelente substituto do paraíso. Mais tarde perceberia que tudo cansa, a salvação ou o paraíso."
(Editora Alfaguara.)

domingo, 8 de outubro de 2017

Futuro

Robôs escreverão por nós e serão tão eficientes que com estes nossos mesmos ingredientes - o amor e os outros dois de praxe - apaixonarão multidões, terão a cabeça metálica coroada com chuvas de flores e com eles sonharão as mulheres sentimentais.

Cotação do dia

Então um dia, um domingo, você nota que está morto e que não é uma sensação nova.

Hoje na revista Rubem

Falo de defuntos e de outros itens não tão frios.
(www.rubem.wordpress.com)

Início do conto "Luíza vinha de noite", de Aldyr Garcia Schlee

"Luíza vinha de noite, na sombra do muro coberto de madressilva, e entrava pelo portão do lado. Vinha ofegante, muda, nervosa, tremendo, tremendo... vinha geladinha aquela mulher: geladinha geladinha, como se estivesse nua em pelo, despida, já sem nenhuma das roupas que se iam afrouxando e lhe caindo do corpo pelo chão, mal ela entrava em minha casa."
(De Os 20 melhores contos de Aldyr Garcia Schlee, Editora Ardotempo.)

sábado, 7 de outubro de 2017

A aflição do conde

Depois das refeições, o conde Olof levantava-se, ia até onde a condessa estava sentada, beijava-lhe o rosto e saía da sala para fumar. Era tudo sempre igual. Uma noite, ele tinha dado alguns passos, depois do beijo, quando a condessa o chamou. "O que você quer?", ele perguntou, contrariado. Ela insistiu: "Vem aqui." Ele se reaproximou. Ainda sentada, ela puxou seu rosto e cochichou alguma coisa. O conde olhou para mim. Parecia aflito. A condessa cochichou de novo. Ele, então, como se cumprisse uma sentença, a beijou no ombro. Ela deu um suspiro longo. Quando o conde finalmente saiu, imaginei que ela fosse olhar para mim. Não olhou. Eu me retirei, sem esperar que ela me concedesse a permissão.

Chicana

Poetas e rosas só deveriam envelhecer se fosse absolutamente inevitável, e depois de esgotados todos os recursos.

Frase

Poetas velhos são mais patéticos que poéticos.

Lembrança

Tínhamos tanto a dizer. Dissemos amor - e tínhamos dito tudo.

Gostou daquilo?

Algumas manhãs depois daquela em que me deixara beijar seu ombro, a condessa me perguntou: "Gostou daquilo?" Não me lembro de ter conseguido dizer uma palavra, mas meus olhos certamente falaram por mim, enquanto a condessa prometia: "Qualquer dia vamos fazer aquilo de novo. Você já mordeu alguém?"

Maneirismos (para Rose Marinho Prado)

Nem toda literatura antiga é boa. Alguns personagens ficavam com a pulga atrás da orelha, davam tratos à bola e falavam com seus botões.

Um trecho de Jean-Yves Leloup

"No olhar de uma criança que morre, ou que nos sorri, há algo mais que matéria. Pode-se explicar esta intuição quanto se quiser, pelo funcionamento de nossas sinapses ou pela complexidade crescente do funcionamento de nossos neurônios, de nossos átomos, o que aparece no olhar de uma criança, o que vem ao meu encontro aqui, na matéria... não é matéria."
(De Nomes de deuses, tradução de Maria Leonor F.R. Loureiro, Editora Unesp.)

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Carnê Foice

Morrer um pouco por dia,
Morrer um pouco por mês,
Sem pressa, sem correria,
Morrer um pouco por vez.

Só o ombro

Eu tinha acabado de prestar um dos meus prosaicos serviços de lacaio e perguntei à condessa Olga se ela precisava de mais alguma coisa. Ela estava sentada à mesa do café da manhã. O conde Olof tinha saído. Ela pediu que eu me aproximasse. "Me beija o ombro", eu a ouvi dizer, e era tão espantoso isso que eu me mantive de pé diante dela. "Me beija o ombro", ela repetiu. Eu hesitei ainda um instante. "Me beija o ombro." Era macia a blusa da condessa. Meus lábios se fixaram ali até o momento em que, instigados pela ousadia, resolveram aventurar-se pelo pescoço. Imediatamente ela os afastou. "O ombro, só o ombro."

Ma Belle

A eguinha chamava-se Ma Belle. Nas manhãs de bom tempo, a condessa passeava com ela pela propriedade. Voltava sempre com o rosto coradíssimo. Execrava, com bom humor, a égua. Dizia que ela era maluca e cada vez corria mais. Um dia ou outro, a condessa recontava também alguma piada de Ivan, o cavalariço. E, porque eram sempre histórias picantes, seu rosto se avermelhava ainda mais. Eu, sempre mordido pela inveja, me perguntava se contar piadas tinha sido o único motivo para ele receber da condessa a honra de dar nome ao mais novo, e favorito, dos seus cães. Ivan era mais grosseiro que o conde, isso me parecia óbvio. E, quando eu passei a supor que a grosseria talvez fosse uma virtude apreciada pela condessa, passei a desejar também que, se houvesse em mim um traço qualquer de nobreza, ninguém chegasse a notá-lo. Se me perguntassem qual seria minha maior aspiração, eu diria: quero ser o mais rude dos homens.

Hoje, no portal do Estadão

Um pouco daquela história do rei Eduardo VIII.

http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/sexo-oriental/

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A pergunta

Se eu fosse me entrevistar, começaria perguntando não por que imaginei que poderia ser escritor, mas por que continuo imaginando.

O periquito

O periquito estava tão  moribundo quanto o realejo e seu velho dono. Tão moribundo que seus parcos movimentos já eram atribuídos a cordéis manipulados pelo velho. Não piava mais. Se piasse, seria também certamente por artes de ventriloquia do velho.

Um e outro

Louco não é o poeta, que vive conversando com suas mil e uma estrelas. É o astrônomo, que se cansou de conversar com todas e vive procurando novas.

Atualização

Os poetas modernos sabem que a época está mais para patos que para cisnes.

Probabilidades

Se viessem a me conhecer bem, talvez as pessoas chegassem a gostar de mim. Quem sabe até aquela que diz me conhecer tão bem.

Permissão

Se eu fosse um passarinho, daria um jeito de me enfiar num poema do Quintana e, se alguém viesse me expulsar, eu protestaria: foi seu Mario quem me deixou entrar.

Ordem pública (para Paula Giannini e Veronica Stigger)

Na noite em que as nuvens desandaram a lançar flores em vez de chuva sobre a praça, a polícia prendeu todos os poetas da cidade, que por sinal eram três.

Amor (para Inês Pedrosa)

Minhas mãos descobriram pacientemente o formato de minha melancolia, sabem que ela é como um bebê e a embalam cada vez mais maternalmente.

O conde (para Luiz Vita)

Só posso atribuir à inveja a antipatia que desde o começo senti pelo conde Olof. O que havia, naquele homem grosseiro, que pudesse atrair uma mulher como a condessa? Fortuna não era, porque, como fui sabendo aos poucos pelos criados antigos, ela já nascera rica. Essa descoberta me fez muito mal. Passei a imaginar aquelas mãos imensas, aquelas pernas fortes, aquele corpanzil deitado na cama conjugal. Comparei tudo com a minha inexpressiva figura de lacaio e depois disso assumi a minha amarga inferioridade.

Peculiaridades

Personagens antigos cofiavam a barba e franziam o nariz.

Precaução (para Liberato Vieira da Cunha)

O delegado de costumes proibiu a realização do baile das conjunções copulativas.

Esperança (para Deonísio da Silva)

Se alguma rebelião ocorrer na gramática, será chefiada pelas conjunções adversativas.

Conselho

Sei que é uma daquelas chamadas hipóteses remotas, mas de qualquer maneira anote: fuja das condessas.

Ponto alto (para Rose Marinho Prado)

Quando se ouve um poeta parnasiano contar histórias, sempre se aguarda o momento em que ele falará da importância dos cisnes em seus sonetos.

Recorrente (para Angela Brasil)

Há sempre aquele defunto que um mês depois julgamos ver dirigindo um táxi e, cinco anos mais tarde, saindo do consultório de nosso psicanalista.

Início de "Os vestígios do dia", de Kazuo Ishiguro

"Parece cada vez mais provável que eu vá realmente empreender a viagem que já há alguns dias me vem ocupando a imaginação. Viagem, devo dizer, que empreenderei sozinho, no conforto do Ford do Sr. Farraday; viagem que, do modo como a imagino, levar-me-á a percorrer grande parte da mais bela região da Inglaterra até as terras do oeste, e pode me manter afastado de Darlington Hall por uns cinco ou seis dias."
(Tradução de Eliana Sabino, Editora Rocco.)

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Justiça (para Inês Pedrosa)

A alguns defuntos, surpreendidos num dia infeliz, deveria conceder-se nova chance, para desfazerem a má impressão.

Fisionomia (para Inês Pedrosa)

De modo geral, o que se pode dizer dos defuntos é que a maioria deles teria melhor aspecto se morressem dez anos mais jovens.

Poema do viaduto (para Silvana Guimarães)

Nosso melhor crítico somos nós.

Ninguém melhor que nós saberia
como escolhemos o homem
como o fizemos sofrer
como o atormentamos
como o supliciamos
como o levamos a descrer
de tudo que o fazia viver
e lhe indicamos o viaduto
e lhe dissemos pula e ele pulou.

Quem melhor que nós saberia
que a voz que incitou o homem a pular
e a voz que gritou ao saltar
eram a nossa voz?

Terceiros

Que os olhos alheios,
se não nos tornarem mais belos,
não nos tornem mais feios.

Fogo brando

Dizer que a condessa Olga me seduziu já no primeiro olhar seria obedecer a um dos ritos inerentes aos relatos deste tipo, mas poderia dar ao leitor a impressão de que lhe serão oferecidas, a seguir, cenas de chama e paixão. Se houve chama e paixão, foram as que me consumiram. A condessa Olga sempre me tratou com frieza desdenhosa, sempre teve o exato controle dos seus cordéis.

As azeitonas

Jamais verei alguém espetar uma azeitona tão compenetradamente quanto a condessa Olga. Não sou um homem refinado, embora alguns lacaios atinjam essa condição, e espetar azeitonas com palitos talvez seja indigno de uma condessa. Mas dificilmente quem a visse espetá-las diria que aquilo não era um ato artístico. Eu me sentia sempre tentado a aplaudi-la. Uma noite ela alcançou a perfeição. Uma a uma, havia levado à boca meia dúzia de azeitonas, e eu, observando as que no prato esperavam sua vez, senti aflição por elas.

Início de "Moll Flanders", de Daniel Defoe

"Meu verdadeiro nome é bastante conhecido nos arquivos ou registros das prisões de Newgate e Old Bailey, e certos processos de maior ou menor importância relativos à minha conduta pessoal encontram-se ainda pendentes. Por isso não se deve esperar a inclusão de meu nome ou de especificações sobre a minha família, nesta obra."
(Tradução de Antônio Alves Cury, Editora Abril.)

terça-feira, 3 de outubro de 2017

As duas meninas da condessa (para Ana Farrah Baunilha)

Os braços da condessa Olga eram gorduchos, pareciam duas meninas saltitando ao sol. Ela gostava deles e os exibia fartamente. Eu gostava deles também.

Atenuante

Você não deveria cobrar-se tão severamente assim. Seu retrospecto literário talvez não seja ruim como você pensa. Há nele uma centena de sonetos, é verdade, mas quem hoje se importa com sonetos?

Nós

Alguma coisa fizemos, como não?
Houve uma premiação
em que um de nós foi elogiado,
outro foi honrosamente mencionado
e um terceiro teria vencido
se houvesse concorrido.
Alguém pergunta: foi concurso de quê?
Não lembro exatamente,
admito que não,
mas foi algo importante, sim:
um concurso de contos,
um concurso de poesia
ou outra coisa assim.
Se foi só isso? Não, houve mais.
Espere um pouco, que eu tenho
tudo ali naqueles jornais.

Época

Cheguei a crer em alguma pureza. Foi na época em que palavras como amor e alma significavam muito mais para mim. Eu era jovem e tolo, e assim fui até ouvir a voz que me disseram ser a da razão.

Ainda, e sempre, Henri Frédéric Amiel

"Um rimador não é um poeta; um orador não é um artista. É necessário esposar a profissão para nela distinguir-se; é necessário possuir a fundo o seu instrumento para fazer parte do conjunto."
(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações.)

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Provador

A condessa Olga, em algumas noites nas quais o conde se atrasava para o jantar, pedia que eu provasse a sopa e dissesse se não estava quente demais. Só depois, com ávidos estalos de língua, começava a tomá-la. Nunca com a colher que eu havia usado.

Nomes

O nome do conde para o qual naquela época trabalhei era Olof. O da condessa era Olga. A condessa amava cachorros. Tinha seis. Seu favorito chamava-se Ivan, como o cavalariço da propriedade.

Uma lembrança (para Ana Farrah Baunilha)

No tempo em que fui lacaio na casa da condessa Olga, até o gato dela me dava ordens. Se queria água ou comida, fitava-me com aqueles olhos despóticos, iguais aos da dona quando, instigando-me a beijá-la, me advertia: "Só o ombro, só o ombro."

Os cânticos

Tudo que ouvimos nesta cidade é ruído, desde que nos levantamos até o instante no qual voltamos a nos deitar. Os bem-aventurados que às vezes ouvem cânticos celestiais já não os mencionam, não por piedade de nós, mas para que não os encaremos como se costuma encarar os mentirosos.

In extremis

Talvez nos caiba a sorte de morrer sem estrebuchar. Se nos perguntassem hoje qual bênção nosso descaramento poderia ainda pedir, certamente escolheríamos essa.

Autorretrato

Quando você se diz indigno, inútil e inepto, você revela seu autoconhecimento e sua autocomiseração. Você é muito pior do que tudo isso.

Único

Ele gostaria de ser o gato de uma garota que nunca tivesse tido nenhum e houvesse esperado por ele ao menos cinco dos seus quinze anos de vida.

Inépcia

O que falta fazeres para acreditarem que és ainda mais indigno do que tuas próprias palavras, nos teus próprios lábios, há tanto tempo dizem?

A tarefa

Não arrefeça, não esmoreça. Destruir-se é uma tarefa para a qual você não pode contar nem com seu melhor amigo, se você o tiver, nem com Deus. Os amigos são negligentes e Deus tem compaixão até pelos seus piores filhos.

Origem

Também você imaginou que  tivesse algo a dizer. Assim começam quase todos os grandes equívocos literários.

domingo, 1 de outubro de 2017

Medida (para Paula Giannini e Veronica Stigger)

Uma lição de estética que eu já poderia ter aprendido é chorar com moderação.

Cotação do dia

Pelo menos num domingo, um homem, por mais reles e atormentada que fosse sua alma, deveria ter motivos para sorrir duas ou três vezes.

Hipótese

Sou um homem que valeria pelo espírito, se por ventura ou porventura o tivesse.

Face oculta

Se pudessem ver como se infla tua vaidade quando dizes que és o mais vil de todos os seres.

Ego

Mais que você, quem
se orgulhará do que tem?
Você se arrasta como um verme
e proclama que ninguém
se arrasta melhor que você.

Final de "Despedida em Las Vegas", de John O'Bri

"E o corpo sem vida esfria na cama de hotel; sem sentir o beijo dela, rasgado da sua alma e enviado aos lábios como um ato final, para levar a termo as horas que passou na janela, olhando para os olhos mortos fixos no teto e para ensinar a ela um modo de tocá-lo além do ato de fechar seus olhos; sem ver os olhos dela, a princípio úmidos, depois secando e ficando secos, mesmo quando os soluços começam a subir do peito, para se perder no vozerio do cassino quando ela sai do hotel; sem ter consciência da cama dela, da verdade da sua vida, que com passo vago segue para seu apartamento. Sera tira a roupa, escova os dentes e fica deitada, acordada, no escuro."
(Tradução de Aulyde Soares Rodrigues, Ediouro.)