domingo, 31 de outubro de 2010

Situações (82) - O título

Alcântara Machado, que com Lourenço Diaféria e Mário de Andrade forma o trio de ouro dos cronistas de São Paulo, escreveu o conto que tem o mais belo título, entre todos os que eu conheço: "Corinthians 2 x Palestra 1."

Lírica (1.138) - Lourenço

No instante em que Lourenço Diaféria morreu, em uma rua simples de São Paulo o homem do realejo girava a manivela e espalhava pelo ar as nostálgicas notas de "Rapaziada do Brás".

Lírica (1.137) - Depois

São Paulo, quando eu me for,
São Paulo, minha cidade,
A dor que eu sentir, se dor
For, será a dor da saudade.

Lírica (1.136) - Distância

Estrelas pálidas, frias,
Distantes de nós, mortais,
Imunes às agonias
E surdas aos nossos ais.

Lírica (1.135) - Inferno

Literatura, que praga
Tu teres me possuído
E o fogo que nunca apaga
Teres em mim acendido.

Situações (81) - Heróis

Com Dom Quixote aprendemos que o herói pode morar na nossa rua, ter cara de gerente de loja e chamar-se Wilson de Sousa. O herói podemos ser nós, porque os deuses há muito se desinteressaram pela literatura. Bocejam agora, navegam pela internet, resolvem palavras cruzadas e moram num lugar tão prosaico que Jorge Luis Borges não tolerou ficar ali mais que um dia.

Situações (80) - O encontro

O tempo passa devagar. Talvez a noite não chegue, pensa o menino, recordando mais uma vez aquilo que lhe parece cada vez menos real: a empregada barrando sua passagem na cozinha, abaixando-se e, quase ajoelhada, beijando-lhe a boca e fazendo-lhe a pergunta que há duas horas o atormenta: "Quando seus pais saírem, você vai até o meu quarto?" Poderia se aconselhar com o seu vizinho. Um garoto de dez anos deve saber mais coisas que um de nove. Mas tem medo de que Lucas zombe dele. Se tivesse coragem de falar com o amigo, perguntaria se uma mulher pode devorar um menino. Mas receia que Lucas possa dizer que não.

Lírica (1.134) - Ainda que tarde

Por que demoraste tanto para chegar e me fazer entender que todos os meus dias, desde o primeiro, eram apenas uma preparação para a tua vinda? Sei agora ter sido inútil todo aquele tempo que vivi antes de te conhecer, a não ser pela exceção de haver aprendido, embora toscamente, maneiras de celebrar a vida - não aquela na qual acreditava, mas esta, que me ensinaste ser a verdadeira. Antes disso, quantos sóis nasceram e me chamaram, para algo que não passava de simulação... E para quantas estrelas suspirei, supondo que fossem as certas...

Lírica (1.133) - Aquém

Quando passares, comentarão tua beleza e dirão que foste amada por um poeta presunçoso, porém incapaz de expressá-la.

Lírica (1.132) - Reverência

A garota abriu uma sombrinha tão delicada em sua seda azul que a chuva parou por um instante, esperou que ela atravessasse a rua e entrasse no ônibus para só então se lançar de novo, mal-humorada, sobre as pessoas.

Lírica (1.131) - Tão óbvio

Você sabe, como eu, que nisso tudo há alguma coisa cuja explicação seria fácil buscar em teorias como retornos, vidas passadas, maquinações do destino. Seria charmoso isso, mas não tanto quanto acreditar simplesmente em algo óbvio como o amor.

Lírica (1.130) - Felicidade

Enquanto na tevê um psicólogo, um filósofo e uma jornalista expõem sua opinião sobre a felicidade, eu te imagino andando por uma simpática rua de uma cidade que, para melhor te receber, proibiu o passeio de nuvens durante o dia, sugeriu ao sol que se esmere no brilho, como se fosse feriado, e pediu às árvores do parque central que, quando passares, se curvem delicadamente, como convém a árvores civilizadas.

Lírica (1.129) - Ora, a lua...

Primeiro, encantou-se com algo que não conseguia definir na mulher. Só um pouco depois se fixou em sua beleza. E esta o fascinou de tal forma que uma noite, andando com um amigo e lembrando-se dos olhos, do rosto e dos cabelos da amada, olhou para cima e comentou, distraidamente: "Ah, ela é maravilhosa." Quando o amigo disse que sim, que a lua era mesmo muito bela, ele se irritou por notar, mais uma vez, como certas pessoas não têm nenhuma perspicácia.

Situações (79) - Modesto

Os netos olham para ele com respeito, por ser um homem que, nascido em 1938, esteve presente na passagem de um século e um milênio. Ele, modestamente, diz que preferiria ter, como os netos, seis ou nove anos. Estaria feliz com esse pouquinho.

Lírica (1.128) - Arrefecimento

Empolgado com leituras do século XIX, desde os vinte anos ele, poeta, cortejou a Morte. Dedicou-lhe elegias e sonetos, chamou-a de virgem ideal, chorou por não ser correspondido. Quando chegou aos sessenta e finalmente começou a receber provas de afeto da amada, já não gostava tanto dela.

Lírica (1.127) - O despertador do sol

Cada dia saía mais cedo da cama. Dizia ter a obrigação de acordar o sol. Ninguém da família discordava. Seus oitenta anos impunham respeito. Às quatro, sozinho, ia para a varanda, sentava-se e punha-se a olhar o céu, murmurando. Só podiam falar com ele depois que o sol aparecia. Então, satisfeito com a missão mais uma vez cumprida, ia tomar café. Na manhã em que a família viu o sol brilhando na rua e não viu o velho, soube logo o que havia acontecido. Ele não acordara o sol e o sol não o acordara.

Lírica (1.126) - De modo

Escreveu as duas primeiras palavras da mensagem: te amo. Pensou um pouco e acrescentou: ternamente. Olhou para o monitor e, insatisfeito com o advérbio, foi pondo outros: suavemente, comovidamente, freneticamente, alucinadamente, desbragadamente. Ainda em dúvida sobre qual ou quais deixaria ali, resolveu testar mais alguns: intensamente, voluptuosamente, arrebatadamente. E foi escrevendo outros, e outros. Quinze minutos depois, achou exagerada aquela concentração de advérbios de modo, mas, ainda incapaz de se decidir por um ou alguns, conservou todos na mensagem, que completou assim: amor, eu não fui ao dicionário. Tudo que está aí saiu espontaneamente deste coração que bate unicamente, somente, exclusivamente por ti.

sábado, 30 de outubro de 2010

Lírica (1.125) - Mexes

Mexes com meu coração como uma menina acarinhando provocantemente um gato, soprando-lhe o bigode, dando-lhe petelecos nas orelhas, esticando-lhe a cauda, com a confiança de quem sabe estar livre de mordidas e arranhões. Mexes com ele, o meu coração, fazes e desfazes dele e recebes, sempre, assim como a menina que afaga um gato, um olhar agradecido e um rom-rom.

Situações (78) - Fujão

Dois meninos tentavam derrubar o sol com pedradas. Estavam nisso fazia já meia hora quando um deles gritou: "Olha lá, olha." O outro perguntou: "Olha lá o quê?" Uma nuvem havia encoberto o sol. "Olha lá", insistiu o primeiro menino. "Você viu? Ele ficou com medo e se escondeu."

Lírica (1.124) - O último romântico

Morrer por amor lhe parecia tão glorioso que toda manhã, ao acordar, ele acrescentava no calendário mais um dia aos tantos em que já estava longe da amada e, doendo-lhe embora essa marcação como um punhal enterrado no peito, dava-lhe a alegria de acreditar que esse ritual e mais o jejum a que se entregava havia uma semana iriam fazê-lo enfim ter a ventura de ser encontrado, talvez ainda naquele dia, romanticamente morto na cama, com a derradeira carta de amor e renúncia nas mãos.

Lírica (1.123) - Alma

Olhou para as estrelas, tão distantes,
E, apalpando no corpo o que doía,
Jubiloso ficou, pois pressentia
Estar mais perto agora delas que antes.

Lírica (1.122) - Haicai - Madrugada

O pingo na pia,
Pingando, vai entoando
A vã melodia.

Lírica (1.121) - Teimosia

Não sei, jamais saberei
Se ela me faz mal ou bem,
Se é boa ou é má. Só sei
Que a tristeza me convém.

Lírica (1.120) - Florilégio

É à noite, quando as luzes do casarão se apagam e até os cachorros dormem, que as flores contam, no jardim, histórias de suas ancestrais: a da rosa que foi triturada pelos dentes de uma princesa numa noite em que um de seus criados, com receio das consequências, se recusou a deitar-se com ela na relva, sob o luar; a do lírio que enfeitava o colo de uma rainha num baile e que, caindo no meio do salão, foi apanhado e guardado apaixonadamente por um amante anônimo, ficando três anos dentro de um livro, do qual só saía para ouvir as confidências do enamorado, que a ele dirigia as palavras que não podia dizer à rainha; e a da margarida que certa manhã viu mortos num duelo dois nobres que se batiam pelas carícias de uma jovem lavadeira, famosa por levar à demência qualquer homem, com os beijos que aprendera com um oficial de cavalaria polonês.

Lírica (1.119) - Boêmio

Queria ainda uma vez, mesmo que fosse em sonho, entrar num cabaré, beber, dançar com as mulheres de aluguel ao som daqueles boleros que parecem ter sido feitos pelo Diabo para atiçar a própria luxúria, depois sair com a mais espalhafatosa das bailarinas num táxi habituado ao roteiro dos hotéis envoltos no cheiro pecaminoso da madrugada e entregar-se à doce devassidão. Sentado na cadeira de rodas, ocorria-lhe sempre esse pensamento: queria ainda uma vez, mesmo que fosse em sonho, entrar num cabaré.

Lírica (1.118) - Milagre

Uma tarde, talvez eu te encontre numa rua de Londres, Nova York ou Belo Horizonte, quem sabe Curitiba. Nesse dia, darei graças aos deuses, por serem compassivos, e ao mundo, por não ter a imensidão que sempre se apregoa.

Lírica (1.117) - Sob medida

Eu te beijaria por dois segundos ou três, talvez cinco. Mais do que isso seria pretensão demais para as quatrocentas noites em que sonhei com esses dois segundos ou três, talvez cinco.

Lírica (1.116) - Projetos

Atacado simultaneamente por várias moléstias, algumas simples, outras graves e uma gravíssima, o escritor, dado a reducionismos, chegou à conclusão de que tinha apenas duas coisas a fazer na vida: escrever e morrer.

Lírica (1.115) - Mensagens

Conheceram-se pelo msn, trocaram mensagens por dois anos e, no início do terceiro, depois de quatro encontros não virtuais nem muito virtuosos, casaram-se. Logo na primeira semana, na lua de mel, sentiram que faltava alguma coisa. Era o msn. Ao voltarem da viagem, surgiu a solução. Cada um se instalou em uma casa, a uma distância de dez quilômetros. Que delicioso era quando, duas ou três vezes por semana, ele (ou ela) pegava o carro e ia ao encontro do amor, sob o estímulo do sal e da pimenta do msn.

Lírica (1.114) - Percurso

Quiseste e fazes, sozinho,
A tua própria jornada,
O descampado caminho
Que te conduz para o nada.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Lírica (1.113) - O confidente

Eatava escrevendo uma desesperançada mensagem de amor e se comoveu tanto que, com os cotovelos no teclado, abraçou o micro e, banhando-o de lágrimas, lhe disse, patético: "Só você sabe como eu sou infeliz, só você."

Lírica (1.112) - Eros

E, no entanto, os homens caem sempre no velho truque, debatem-se na mesma armadilha e choram como crianças, ajoelham-se e imploram, não para escapar, mas para pedir mais jugo, mais dor. E, mesmo já agonizantes, ainda abençoam a desgraça que os abateu e sorriem gratos a quem a causou.

Lírica (1.111) - Ser assim chamada

Amante dos antigos e também dos modernos filmes de amor, seu sonho inconfessado, por muito tempo, foi o de ser chamada de baby por um homem. No começo, imaginava a cena à luz da lua, num transatlântico. Depois, diminuiu as exigências e bastaria que alguém a chamasse de baby, mesmo que fosse dentro de um ônibus ou lotação. Nunca esse sonho se cumpriu e talvez por isso ela, três vezes casada, não apareça sorrindo em nenhuma das fotos dos casamentos, guardadas em três álbuns que ela só mostra se lhe pedem muito. Viúva, continuará assim, porque provavelmente nenhum dos homens que ainda a olham com alguma esperança a chamará, enfim, de baby.

Lírica (1.110) - A notícia

Alguém irá te dizer que eu parecia tão bem, que havia acabado de pegar um livro e sorrido para uma frase que ninguém saberá qual era, porque no instante seguinte o livro e eu estávamos estendidos no chão, como se ali fosse o mar e nadássemos.

Lírica (1.109) - Passagem

Terei morrido
Terás partido
E o que eu bendigo
E o que eu maldigo
E o que bendizes
E o que maldizes
E o que me agrada
E o que me enfada
E o que aprecias
E deprecias
E o que nos move
E nos demove
E o que nos une
E nos desune
E o que nos faz
E nos desfaz
Morto estará
Cinzas será
E o mal e o bem
Cinzas também
Frágil é a vida
Minha querida
Um vão momento
Lançado ao vento
Um passaporte
Que leva à morte.

Lírica (1.108) - Retorno

Quando, castigada pelo tempo, a carne já arrefecia, o homem subitamente voltou a sentir no corpo inquietações juvenis, calores adolescentes, chamas, labaredas e um apelo que ele não sabia se era capaz de atender.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Lírica (1.107) - Drácula von Masoch

Gostaria de ser um vampiro que só pudesse ser morto por uma loira bela, alta, que usasse um longo vestido preto e precisasse cravar no seu coração não um, mas os dois compridos e pontiagudos saltos de seus sapatos.

Situações (77) - Sensível

Numa viagem de quatro dias e cheia de compromissos, ele foi logo no começo solicitado pela poesia - ela que parecia tê-lo abandonado. No meio de uma reunião, de uma frase, de um diálogo, a poesia lhe soprava sugestões que ele anotava furtivamente. À noite, no hotel, pegava as anotações. Nos quatro dias escreveu num bloquinho vinte e poucos poemas curtos que achou os melhores já feitos por ele. De volta à sua cidade, abriu a mala, ansioso para colocar os poemas no computador. Virou e revirou todas as divisões, inutilmente. O bloquinho desaparecera. Arrasado, considerou a ideia de se matar, tamanha era a perda. Ficou assim - matava-se ou não? - por cinco dias. No sexto chegou, enviado pelo hotel onde estivera, o bloquinho. Ele o abriu imediatamente e começou a ler os poemas. Meia hora depois, pálido, estava considerando outra vez a hipótese de se matar. Os poemas eram péssimos.

Situações (76) - A mulher

No dia do seu vigésimo aniversário, quando acabou a reunião com os amigos e ele entrou no carro, sentiu ao seu lado uma presença que o perturbou. Era uma mulher, ele soube, pelo perfume e pela expectativa buliçosa que lhe mexeu com o sangue. Desde essa noite, ele sempre a imaginou alta, esguia e sinuosa e pressentiu que um dia ela lhe revelaria por que o acompanhava. No início, supôs que a revelação estivesse iminente. Depois, pareceu-lhe venturoso esperar, e esperou. O dia da revelação veio cinquenta anos mais tarde, quando ele, estendido num leito de hospital, cansado de tubos e de soros, de médicos e de enfermeiras, sentiu o antigo perfume entrar no quarto com a mesma intensa fragrância de cinco décadas antes. Não chegou a ver a mulher, mas notou que ela o conduzia pela noite estrelada para um caminho que não era aquele excitante, desejado por ele na primeira noite. Mas gostou de flutuar de mãos dadas com ela.

O sentido

Que presunção revela quem diz que, por esse ou aquele motivo, a vida já não tem sentido para ele. E são tantos... Gostaria que um deles, um só, me dissesse qual o significado da vida. Sócrates soube? Platão soube? Aristóteles por acaso soube?

Situações (75) - Pressentimento

Ao acordar, abrir a janela e ver que os passarinhos não estavam na árvore, imaginou que talvez eles tivessem ouvido a conversa do médico na tarde anterior, depois da visita.

Lírica (1.106) - Crepúsculo

Melhor que seja num dia tão sem sol e sem alegria que, quando a hora chegar, à tarde ou à noite, os olhos se fechem serenamente, sem a última frustração de talvez terem deixado de ver ainda uma vez a beleza.

Lírica (1.105) - Machado

Ignoro que textos escreverei amanhã, mas sei que as palavras não me abandonarão. Toda manhã elas se oferecem, e são tão amáveis que todas as escolhidas me agradecem, como se reverenciassem minha habilidade. Só nisso elas me enganam, por serem dadas à compaixão. Há muito tempo sei disso - desde os vinte anos, quando soube que era impossível ser Machado de Assis.

Situações (75) - A formiga

No saguão do aeroporto, a formiga ia na direção do portão de desembarque, depois recuava. Eu a observei por uns cinco minutos e ela fez sempre o mesmo: ia e voltava, ia e voltava. Finalmente, parou e recolheu no chão uma migalha, talvez despachada de algum local distante por alguma amiga.

Lírica (1.104) - O segredo

Os médicos pensam saber mais de mim do que eu mesmo. Tratam com intimidade meu pâncreas, meus rins, meus pulmões, como se os conhecessem desde a infância e tivessem jogado futebol com eles. Julgam saber de tudo, e estão certos. Apenas quando se referem ao meu coração se enganam e desconhecem a mais importante de suas funções. Mas esse é um truque antigo, um segredo que meu coração e eu há muito tempo mantemos.

Lírica (1.103) - Culpa

Do velho que agora sou,
As queixas não me comovem.
Sofro por aquele jovem
Que este velho aqui matou.

Lírica (1.102) - Seda

Sentiu repentinamente na mão uma perturbadora maciez de seda e voltou no tempo, para localizar a origem daquela sensação. Mergulhou primeiro nos dez anos mais recentes, depois em mais dez e, melancólico, resolveu desistir, ao notar que a seda deixara de acariciar sua mão.

Situações (74) - Corte

Se a moto não tivesse passado, sacudindo beligerantemente o quarteirão, o homem talvez tivesse ouvido a filha, na janela, pedindo que ele não se esquecesse de comprar a ração para os peixinhos.

Lírica (1.101) - Desenho

O menino apontou o arco-íris. "Pai, quem desenhou aquilo?" "Deus." "Ele é bom nisso, né, pai?"

Lírica (1.100) - Sacrifício

Debruçado na sacada, olhando a chuva, o homem dormiu em pé. Quando acordou e viu que não havia mais chuva, foi para a cama como se caminhasse para um sacrifício.

Lírica (1.099) - Muitas

Para vencer a monotonia de cair e voltar, cair e voltar, a água da fonte artificial finge todo o tempo que é várias.

Lírica (1.098) - Pontaria

A chuva começou no fim da madrugada e, quando o sol veio, ela notou, frustrada, que havia regado o asfalto, em vez do parque onde havia tantas flores.

Lírica (1.097) - Paisagem

Olhando para cima, em dúvida sobre se choveria ou faria sol, o homem teve a súbita certeza de um pássaro rasgando o azul com seu bico.

Situações (73) - O personagem

Talvez por haver me encaminhado para a literatura e ela me haver desencaminhado de ocupações mais sérias, passei a vida construindo uma pessoa da qual agora não consigo nem gostar nem sequer tolerar. Quem há de respeitar um escritor que não soube reservar nem para si mesmo um papel razoável?

Situações (72) - O quarto

Olhando casualmente para a parede do quarto do hotel, ele viu, perto da janela, três marcas que lhe pareceram deixadas por um gato. Pensou naquilo por dez segundos só, mas ao sair do hotel, já no táxi para o aeroporto, anotou mentalmente o número do apartamento e o disse em voz baixa: 202. Se voltasse um dia à cidade, não se esqueceria. O gato - ou a simples hipótese de que ele pudesse ter estado um dia lá - havia se tornado uma referência para ele. O nome do hotel, porém, ele anotou num papel.

Lírica (1.096) - Hipótese

Se não puderes falar-me algo além dos olhos dela, dos cabelos, dos lábios, se não puderes falar-me da alma, fala-me então, de novo, dos olhos dela, dos cabelos, dos lábios. Talvez neles esteja, se não toda, a melhor parte de sua alma ou o modo pelo qual ela mais expressivamente se mostra.

Lírica (1.095) - Companheiros

Aonde fosse, levava a angústia. Davam-se bem. Conheciam-se desde a infância e ela estava agradecida porque ele sempre a acolhera com carinho. Ele, poeta mais presumido que real, às vezes se queixava dela, dizendo que, se ela o afligisse mais, ele poderia ter talvez mais sucesso na sua arte.

Lírica (1.094) - Fisiologia

Então, percebendo que abrigava um inimigo, o corpo passou a rejeitar suprimentos, porque eles alimentavam também a tropa rebelada.

Lírica (1.093) - Prenúncio

Ah, como foste inocente.
Não viste que a juventude
Podia ser a semente
Da tua decrepitude?

Lírica (1.092) - Zzzzz

Dormir dez dias, dormir
Dez noites, não acordar,
Ficar assim, prosseguir,
Dormir, dormir, continuar.

Lírica (1.091) - Jorge Luis

Não te alcançam minhas palavras, nem meus sentimentos. Às vezes, me pergunto se és quem eu imaginei e, às vezes, se quem te imaginou fui mesmo eu. Se não fosse presunção, eu me imaginaria perdido num conto de Borges, olhando-me no espelho e vendo um tigre com feições de minotauro.

Lírica (1.090) - Voos

Se para o excelso nascemos, cuidemos de nossas asas, ainda que isso nos faça engolir escárnios, ensaiemos todos os dias nossos voos, enquanto os outros estiverem cuidando de cultivar os seus ventres, e tenhamos a certeza de que a alma, no momento certo, nos levará aonde desfrutaremos a felicidade suprema, que é a graça da paz e do esquecimento.

Lírica (1.089) - Pessoas

Fernando Pessoa tinha dois braços, duas pernas, dois olhos, um rosto e possivelmente mais algumas coisas que tenho também.

Lírica (1.088) - Prova

Se queres a prova definitiva do meu afeto, podes pedir-me tudo, menos que eu te traga o mar. Talvez eu consiga, mas me tomará um tempo que, francamente, prefiro desfrutar contigo.

Lírica (1.087) - Avião

A não sei quantos pés de altitude, pensei em ti e o céu me pareceu bem mais bonachão do que em qualquer outra viagem, ainda que nuvens carregadas, ao longe, me lembrassem uma de tuas típicas frases: não é bem assim...

Situações (71) - Xeque-mate

No meio de um debate em que pouco faltou para o recurso aos socos e pontapés, um dos contendores pensou ter encontrado o argumento irrespondível: "Você acredita mesmo que, se fôssemos criados à imagem e semelhança de Deus, teríamos tubo digestivo?"

Lírica (1.086) - Aeroporto

No saguão, ouvindo alguém dizer um nome que julguei ser o teu, olhei para trás e dei uma topada num senhor com o qual acabei abraçado no chão, como se fôssemos escoteiros confraternizando. Levantei-me rápido e, enquanto o senhor me seguia, não sei se para prolongar o abraço ou se para me agredir, corri atrás da mulher que imaginei haver pronunciado teu nome, para descobrir, agoniado, quando ela chamou de novo a amiga dela, que era apenas um nome semelhante. Parei, esperando que o senhor com quem eu tinha trombado me alcançasse. Já não me importava receber seu soco ou seu abraço.

Lírica (1.085) - Leitmotiv

Enquanto a voz não se cansa
E a vida não me destroça,
Cantarei, conforme possa,
Teu nome e a minha esperança.

Lírica (1.084) - Timbre

Ouço minha voz há tantas décadas que não lhe prestava atenção. Precisei ouvir a tua para suspeitar que à minha falta algo, embora talvez não me ficasse bem esse teu timbre de cereja demorando-se um pouco na garganta, como se não estivesse ainda suficientemente adocicado.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Lírica (1.083) - Pãozinho

Te mando um bom-dia como quem manda uma coisa bem simples, que usarás sem nem perceberes e que, quando se for, também não notarás, porque amanhã haverá outro dia, e também depois de amanhã, todos tão iguais e, porém, tão belos. Te mando um bom-dia como quem manda um pãozinho quente.

Lírica (1.082) - Fim

Sabemos já que falhamos.
Deserto, apenas deserto...
Nenhum oásis, longe ou perto,
Contudo nos arrastamos.

Lírica (1.081) - Amanhã

Teremos colhido, ou não,
Os frutos. E o desfrutado,
Assim como o não provado,
Será só recordação.

Lírica (1.080) - Oração do adeus

É fácil apegar-se à vida. Quem irá recusar o sol, as flores e os frutos que ela nos oferta? Viver é doce, e doce deve ser também a despedida. A própria vida nos mostra como há de ser. Quando começa a esmaecer a cor das flores, a atenuar-se o sabor dos frutos e a amenizar-se dia a dia o sol, é hora de partirmos, gratos e reverentes.

Lírica (1.079) - Vitais

Vivemos de ar e palavras. Sem ar, morremos. Com as palavras, permanecemos.

domingo, 24 de outubro de 2010

Lírica (1.078) - A rival

Se um dia tu me abraçares,
Amor, não abraces forte.
Ames o quanto me amares,
Estou prometido à Morte.

Lírica (1.077) - Antídoto

Contra a fraqueza dos ossos,
A consumpção, a anemia,
Contra a ruína e os destroços,
Ele cultiva a poesia.

Lírica (1.076) - Ursinho

Não custa atribuir certa solenidade à morte, mas à dos outros. É de bom-tom. Mas a nossa não precisa ser encasacada. Na minha gostaria de levar comigo, se bem que fosse uma crueldade, um ursinho de pelúcia comprado especialmente para mim, para que nenhuma criança chorasse sua falta. De preferência, um ursinho cego, porque não sei que paisagens nos esperarão.

Lírica (1.075) - Ainda

Conforta pensar que talvez ainda haja tempo para alguma coisa grandiosa e quem sabe até - não percamos o bom humor - poeminhas bestas rimando sóis com arrebóis.

Lírica (1.074) - Ladeiras

De hoje em diante, estarei mais atento em meus sonhos. No de ontem à noite, apareceste - eras uma garota sardenta e eu era um molequinho bobo - e me chamaste, mas demorei tanto para te atender que foste embora na garupa da bicicleta de um menino que ria e pedalava com um ritmo satânico. Quando acordei, ainda fiz uma tentativa de achar que não tinha sonhado aquilo, mas duas gotas me salgaram os lábios e não achei a bola que no início do sonho eu chutava. Deve ter ido também contigo e com o menino, subindo e descendo ladeiras que não vi mas amaldiçoei.

Lírica (1.073) - Bênção

Se daqui a algum tempo, não sei quanto, pensares que tudo foi uma baboseira, não importa. Pensares em mim, seja em que tempo for, será algo que, estando eu onde estiver, receberei como quem recebe uma bênção.

Lírica (1.072) - Sorrisos

Terá sido tudo bonito, sim, quando recordado. Talvez não venhas a te emocionar tanto quanto eu desejaria, mas te lembrarás de algumas coisas que, se não te fizerem chorar, haverão de desenhar-te nos lábios sorrisos preciosos como aqueles poucos que consegui te inspirar.

Lírica (1.071) - Perdões

Talvez venhas a me perdoar, quando eu não estiver mais por perto com o meu mau costume de, assim que perdoado, arranjar motivos para novos perdões.

Lírica (1.070) - Estação Consolação

Talvez eu venha soprar-te os cabelos ou dizer-te palavras curtinhas no ouvido. Serei discreto, não suspeitarás de mim e, se desconfiares, sempre será possível pôr a culpa no desrespeitoso vento do metrô.

Lírica (1.069) - Perfil

Para louvar-te a beleza
Convoco o meu pensamento,
O sóbrio dom da justeza
E a chama do sentimento.

Lírica (1.068) - Ela

Aspirou o ar em torno dela e quando ele lhe saiu pelas narinas sentiu-se terrivelmente pobre. Voltou ainda os passos para encontrá-la e tentar pelo menos por um momento incorporá-lo novamente ao seu ser, mas ela havia sumido na escada do metrô, deixando na manhã de domingo a mais melancólica das lembranças.

Lírica (1.067) - Contabilidade

Deixemos de sentimentalismos, já é hora. Guardemos só o que for mesmo memorável para nós: algumas noites, algumas estrelas, alguns luares, algumas tardes também, aquelas especiais, e certamente as manhãs que nos proporcionaram tantas alegrias. Podemos guardar igualmente algumas lembranças mais simples, como aquele dia em que uma borboleta ficou presa nos teus cabelos, ou aquele em que um cachorrinho nos seguiu por três quarteirões, ou aquele em que te chamei de lindona e me deste um beliscão, ou aquele em que me chamaste de tonto e e eu concordei contigo.

Lírica (1.066) - Um abraço

Você me deve um abraço.
Você não sabe por quê,
Mas sei por mim e você,
E faço questão. Se faço...

Lírica (1.065) - Magnificência

O botânico, quando te olha, vê pétalas, sépalas, corola, essas palavras que eu aprendi também, mas que substituí, com uma vantagem que meus olhos e meu coração sempre agradecem: para mim, és esplendor, fastígio, apogeu.

Lírica (1.064) - Venturas

Tu me fizeste chorar muito, meu querido, e quisera eu que tivessem sido mais vezes, porque minhas lágrimas regaram o campo onde floresceram minhas venturas, tão mais lindas e consistentes do que essas alegrias bobocas que vejo todo dia por aí...

sábado, 23 de outubro de 2010

Lírica (1.063) - Cena

Menina, não sei se o vento
Te beijou naquele dia.
Só sei dizer que eu, ciumento,
Tua passagem seguia
E te juro, meu tormento,
Que eu, ah, eu te beijaria.

Lírica (1.062) - É hoje

O velho poeta já tentara com seus versos conseguir algo mais que só a admiração das mulheres, mas nunca tivera êxito. Por isso, na tarde em que uma loira muito bem desenhada pela natureza, chegando talvez à flor perturbadora dos trinta anos, parou na rua para lhe declarar amor, ele, lisonjeado mas precavido, perguntou se era com ele mesmo que ela pretendia falar. Não era.

Lírica (1.061) - Mês doze

Não mudarás, para mim,
Nem hoje nem amanhã.
Serás igual, sempre, assim,
Como naquela manhã.

Situações (70) - A catástrofe

Se o avião caísse, morreria com o poeta o poema que, pelo início, prometia, como tantos outros, ser o mais belo de todos.

Lírica (1.060) - Sono

Com a ajuda do vento, cavalheiresco amante, a árvore sacode a chuva do seu vestido de noite e prepara-se para o sono do qual só será acordada pelos passarinhos.

Lírica (1.059) - Impossível

Quando a vi, pensei que fosse uma princesa. Só duvidei depois que ela, estando ali tanta gente, olhou e sorriu para mim.

Lírica (1.058) - Berceuse

Quando a noite chega ao parque, as árvores começam a balançar suas flores, como se fossem mães ninando seus bebês.

Lírica (1.057) - Tristinha

Quando amava, Lia lia
Novelas sentimentais.
Abandonada, vazia,
Hoje Lia não lê mais.

Lírica (1.056) - Dia a dia

Enquanto você nem morre
Nem se permite viver,
O tempo desliza, escorre,
Sem você nem perceber.

Lírica (1.055) - Amor de médico

Doía mais, para mim,
Do que um canal infectado,
Do que um dedão esmagado
Ou uma pedra no rim.

Lírica (1.054) - Cabelos

Cabelos lisos, cabelos
Pelo chuveiro molhados,
Que possam de novo os fados
Dar-me a ventura de vê-los.

Lírica (1.053) - Retratos

Não podem os elogios,
Tenham embora justeza,
Ser mais que retratos frios
De ti, de tua beleza.

Situações (69) - O bruxo

Em 2011, num simpósio internacional sobre ecologia e conservação de recursos vitais, o representante sueco tentará incluir na agenda o Sol, ameaçado, segundo ele, de próxima extinção. Zombarão dele e se recomendará ao governo da Suécia que o exonere de suas funções, o que será feito. Em 2012, começarão a ser notadas diferenças no aspecto do Sol, às quais a imprensa, de modo geral, dará o nome pouco científico de murchamento. Em poucos meses o Sol parecerá ter envelhecido milhões de anos e já nem brilhará nem aquecerá como antes. A mídia procurará por toda parte o cientista sueco vaticinador da catástrofe, mas ele não será encontrado, o que o levará, depois de reportagens sensacionalistas, a ser chamado de Gustav, o Bruxo do Apocalipse, e caçado como Inimigo Número Um da Humanidade.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Lírica (1.052) - Ardis

Se eu te vier com um poema
Ou se surgir com um teorema
Difícil de resolver,
Ou se te levar uns textos,
Cai fora: são só pretextos,
Amiga, para te ver.

Lírica (1.051) - Madrugada

Enquanto dormes, as estrelas preparam o orvalho que há de te receber quando abrires a janela de manhã, e a lua, sabendo que gostas de despertar cedo, vai chamar o sol para que não se atrase e tenha tempo de, antes de sorrir para ti, acordar com uma carícia morna as flores, para que se aprumem, assumam sua compostura de senhoritas e não se apresentem desmazeladas em tua presença.

Lírica (1.050) - Ai, ai, pode?

Que até o final sejam doces
Nossos diálogos, assim
Como se uma fada fosses
E eu fosse algum querubim...

Lírica (1.049) - Verão

Morrer de um golpe, sem agonizar,
Como uma rês ou árvore abatida,
Morrer sem essa triste despedida
Dessas tardes que morrem devagar...

Lírica (1.048) - Definição

Este poema é para ti. Quem mais poderia despertar em mim este alvoroço, esta alegria, esta ansiedade - e esta gratidão por esse alvoroço, por essa alegria, por essa ansiedade e por tantas coisas mais? Quem poderia abrir em mim este sorriso boboca que felizmente tu não estás vendo, quem poderia acender estes olhos que, embora úmidos, parecem querer imitar os lábios e sorrir-te também? Quem mais poderia conseguir o sortilégio de transformar em ternas recordações todos os instantes, até aqueles que viveram só em meu pensamento estouvado e em minha tola esperança? Este poema é para ti e, sendo para quem é, deveria ser bem mais do que isto apenas, estes sentimentos lançados a esmo, aos quais falta o atributo que melhor te define, embora digam ser indefinível a beleza. Este poema é para ti. Guarda-o ou lança-o ao vento, para que também te louve. Celebro-te neste poema como quem celebra uma ideia, um ideal, e não aspiro a nenhum prêmio, a não ser esta honra de celebrar-te.

Lírica (1.047) - O suspiro

Acariciou os próprios cabelos lentamente, suavemente, molemente, maciamente, até o instante em que, não sabendo mais se a mão afagava ou era afagada, fechou os olhos e suspirou.

Lírica (1.046) - Fera

Enquanto, olhando-se no espelho, passava languidamente batom, ocorreu-lhe uma ideia inquietante e prazerosa: comparou sua boca a uma planta carnívora, fez uma careta felina e por um momento não soube se sentia pena ou inveja do homem com quem ia se encontrar.

Lírica (1.045) - Outrora

A velha árvore fez deslizar as tranças até a beira da água e, por uma alteração qualquer no lago ou talvez porque o sol estivesse debruçado um pouco mais para lá do que para cá nessa manhã, ela teve de si mesma um imagem lisonjeira. Quase se viu como no tempo (quantos anos atrás?) em que o vento lhe segredava palavras doces e perfumadas que dizia ter trazido de países longínquos e exóticos.

Lírica (1.044) - Matutino

O sol acariciou os cabelos do garotinho que passeava com a babá pelo parque, atrasou-se um pouco para aquecer um ninho numa árvore e correu porque na rua de baixo, às nove horas, tinha o mais prazenteiro dos seus compromissos: estar bem apresentável para cumprimentar a menina que, bocejando, abria a janela nesse horário e olhava sem muito interesse para o gramado que, porém, reverdecia ao vê-la.

Lírica (1.043) - Forno e fogão

Sensata, ela desdenhava
A chama que o consumia.
Pegava o botão, girava
E punha em banho-maria.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Situações (68) - A virgindade

No meio do baile de debutantes, o mestre de cerimônias, estabanado, ordenou à orquestra que fizesse calar seus instrumentos e pediu ao público que ajudasse a procurar, no salão, a virgindade de uma moça corada que, tendo subido ao palco, reforçou o apelo com lágrimas lancinantes. Talvez por ela não ter dado detalhes sobre a virgindade, depois de quinze minutos de busca geral ela não foi encontrada. Acharam-se, porém, um colar, uma pulseira e um bracelete. Como ninguém reclamasse a posse da pulseira, a jovem ficou com ela, parou de chorar e o baile recomeçou.

O blog

Alguém me lê? Eu não sei,
Mas ponho e porei aqui
O que vivi e gozei
O que chorei e morri.

Lírica (1.042) - Na Cultura

Depois de morto, entrarei na Cultura da Paulista todas as manhãs, como se trabalhasse ali, e ficarei até o final do expediente. Acompanharei leitores até as estantes e, com sussurros, como convém a um fantasma, indicarei livros. Com o tempo, eles se acostumarão comigo e ficarão esperando as sugestões. Alguns dos funcionários também, às vezes, me pedirão ajuda. Serei tão benquisto que, quando desejar, poderei ficar lá dentro depois de fechadas as portas, conversando com fantasmas dos escritores que admiro, naqueles momentos entre o fim da noite e o início da madrugada em que, embora poucos saibam, os livros de fato se abrem com todos os seus prodígios.

Lírica (1.041) - Pífio

Quis para mim a grandeza,
A chama e os fogos da glória.
Consegui só, pobre história,
Uma vela, e mal acesa.

Situações (67) - Estoque

Quando ninguém mais aguentava sua tristeza nem se dispunha a ouvi-la, ele foi chorá-la em outra freguesia. Voltou um ano depois, com um novo repertório de catástrofes e calamidades, além do hábito, novo, de no fim de cada uma delas dizer: "Deus quis assim."

Situações (66) - Poetastro

Depois de por muitos anos exaltar a bem-amada em milhares de maus versos, o poeta ainda teve a presunção de lhe perguntar se ela às vezes não sentia ciúme de si mesma, por inspirar tanta beleza.

Lírica (1.040) - O dia

Pode ser hoje, amanhã...
Que tudo tranquilo esteja
E, se algo tocar, que seja
Chopin. Eu amo Chopin.

Lírica (1.039) - Extravio

É noite, agora, e será noite sempre, hoje eu sei. Tantas vezes te mandei o sol, e com tanto amor, que anteontem ele resolveu não voltar.

Lírica (1.038) - Façanhas

Ele disse que, se ela quisesse, traria a lua para ela. Ela sorriu, desdenhosa. Qualquer outra se encantaria com isso. Mas ele queria qualquer outra? Para as outras, suas façanhas seriam trazer uma sombrinha barata e um queijo mineiro.

Lírica (1.037) - Semelhantes

A ânsia de alcançar a beleza me tornou presunçoso. Olhei com desdém quem não a procurava e, pensando estar perto de possuí-la, consumi todos os meus dias. Não a encontrei, não tenho mais tempo para encontrá-la e me sinto igual àqueles homens de camiseta e sovacos ao léu, que depois do almoço, no bar, palitam os dentes e arrotam, satisfeitos.

Lírica (1.036) - Escuro

Fechar os olhos e ter
A sensação de que o dia,
O amor, a dor e a alegria
Se escoam para o não ser.

Lírica (1.035) - Minueto

Quando ouve o minueto de Boccherini, imagina três ou quatro gotas de chuva dançando com a ponta das sapatilhas numa folha de árvore dourada pelo sol, com o saiote cor-de-rosa enfunado pelo vento da primavera e pelos rodopios.

Lírica (1.034) - Despedida

Beleza imortal, beleza
Que eu procurei toda a vida,
Mostra-me tua realeza,
Que é hora da despedida.

Lírica (1.033) - O soldado

Foi numa época distante. O jovem soldado escapava toda noite do regimento e cavalgava quatro horas para se postar diante da senhorial casa da amada, que, no entanto, só o aceitava como amigo. Ele ficava uma hora olhando para a janela e às vezes recebia o favor de um aceno, antes de a luz se apagar. Cavalgava então as quatro horas de volta e chegava com a aurora ao quartel. Uma noite, já com o sol nascendo, morto de cansaço e de frustração, sofreu uma queda que não lhe tirou a vida, mas o condenou a ser, para sempre, só amigo da amada, como ela havia querido. Ele, porém, não quis. Quando recebeu alta, sumiu com sua cadeira de rodas pelo mundo.

Lírica (1.032) - O poema

Ela disse à amiga, pedindo-lhe segredo, que fugiria naquela tarde com o homem amado. Tinha encontro com ele às três, debaixo da maior árvore do parque. Faltando cinco para as três, uma tempestade como jamais se viu, e que durou três dias, inundou toda a cidade, carregando casas, pessoas e animais. Fizeram-se buscas, reportagens, mas nunca mais se ouviu falar nem do amado nem da amada. Trinta anos se passaram, mas há quem suponha vê-los abraçados embaixo da árvore. Tudo por causa de um tolo poema que um poeta romântico escreveu.

Situações (65) - Dupla

Na última década, a vida lhe reservou dois grandes acontecimentos, sócios na mesma empreitada: o amor e o câncer.

Situações (64) - Cinamomos

Se fosse uma donzela, aceitaria que chorassem por ele os cinamomos de Alphonsus de Guimaraens, murchando as flores ao tombar do dia. Não quer que ninguém, que nada chore por ele, ou talvez só uma flor comum e pouco acostumada a lamúrias.

Situações (63) - Neoplasia

Agora, quando ouve conversas sobre enfermidades medíocres e moléstias bisonhas, ele sorri, superior. Ah, se soubessem o trunfo que ele tem, a carta que, escondida na manga, pode a qualquer instante ostentar, vitorioso.

Situações (62) - O ator

Atacado por três moléstias, todas reivindicando a condição de fatais, o velho ator sentiu que estava interpretando seu mais difícil papel: o de fingir que estava vivo.

Lírica (1.031) - Nada

O tempo já é tão escasso
E teu ânimo também
Que tu já não podes nem
Aprimorar teu fracasso.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Lírica (1.030) - Aprecie com moderação

Se amar, não ame demais.
O amor nos fere, maltrata.
Não é a morte que nos mata,
É o amor, com seus punhais.

Lírica (1.029) - Efeito colateral

Amor? Não te animes, não.
Depressa ou devagarinho,
O amor é o melhor caminho
Para levar-te ao caixão.

Situações (61) - No muro

O homem escolheu as três palavras: escroto, puto, maldito. Na madrugada seguinte, quando o guarda-noturno se recolhesse à guarita, ele as escreveria com prazer e ódio no muro da esquina, dentro de um coração toscamente desenhado. Por alguns dias os moradores se perguntariam, alvoroçados, a quem eram dirigidas aquelas palavras. Depois de várias conjecturas, não se chegaria a nenhuma conclusão, e as chuvas iriam borrando as letras, até que o incidente fosse esquecido. Só o homem furtivo que as havia pintado sabia, mas jamais diria a ninguém, que as três palavras eram uma maldição lançada contra seu maior desafeto, aquele que desgraçara sua vida: o amor.

Lírica (1.028) - Resolução

Diante da dor, fique mudo.
Não chore o amor, essa farsa,
E também não seu comparsa,
O afeto. Dane-se tudo.

Lírica (1.027) - A causa

Gostaria de morrer de beleza, da mais lancinante de todas as belezas. Não sabe qual seria: se um nascer ou um pôr de sol, se um arco-íris no mar, se uma polonnaise de Chopin. Gostaria de morrer de uma beleza, uma beleza qualquer, uma beleza pungente, uma beleza de uma beleza insuportável, ainda que no atestado viesse a constar uma tolice como enfarte, embolia ou deficiência respiratória aguda.

Situações (60) - A boneca

A catadora de lixo pegou a boneca. Faltavam-lhe um braço, uma perna e os olhos. Quando alisou a cabeça dela e murmurou "coitadinha", a boneca disse: "Mamãe."

Situações (59) - Entre árvores

Uma árvore foi arrancada de um parque e replantada em outro local. No primeiro dia, ela perguntou à árvore vizinha: "Por que os passarinhos aqui são tão tristes?" A outra, balançando melancolicamente os galhos, respondeu: "Porque aqui é um cemitério."

Situações (58) - Carência

O menino, de quatro ou cinco anos, entrou em casa e, alegre, correu para a mãe. Tinha na mão um passarinho morto: "Mãe, ele pode ser meu bicho de estimação?"

Lírica (1.026) - Pesquisa

A entrevistadora pediu que eu citasse dez coisas essenciais à minha vida. Uma delas, claro, foi você. Se tiver a curiosidade de saber se você foi a primeira, a segunda ou a terceira, telefone. Só lhe digo que no fim da pesquisa a entrevistadora me chamou a atenção: você estava três vezes na lista. Eu sorri e disse: é pouco.

Lírica (1.025) - Outro

Eu não sou mais eu. Eu sou
Alguém que tudo esqueceu,
Alguém que se transformou
Depois que te conheceu.

Lírica (1.024) - O vício

Para livrar-se da obsessão por ela, decidiu fazer o que havia feito com o fumo e o álcool: encarou a mulher como um vício, marcou um dia e, a partir dele, parou de vê-la e de falar-lhe. Nunca mais uma tragada, nunca mais um golinho. Já na primeira semana soube que dessa vez seria bem mais difícil. Na segunda, voltou a fumar e a beber.

Lírica (1.023) - Só o melhor

Quando me lembrar de ti, no derradeiro dia de inverno, que sejam boas as lembranças. Não será difícil escolhê-las. Estivemos tão empenhados em nos destruir que os momentos felizes poderão ser contados nos dedos, e ainda sobrarão pelo menos dois para coçar as orelhas.

Lírica (1.022) - Polos

Ele está sempre querendo que ela lhe dê coisas que ele julga tão insignificantes e tão fáceis de dar... Ela está sempre considerando tão difíceis e tão fora de propósito as coisas que ele julga insignificantes...

Lírica (1.021) - Rapazola

Não devo ter aprendido nada, mesmo, com minhas literaturas. Do fogo que tenho na alma, não consigo exprimir mais do que a fumaça, e minha tempestade interior mais parece uma garoa. Sinto-me como um rapazola tentando versos.

Lírica (1.020) - Viagens

Tenho relutado em te mandar o sol. Nunca mais sei em que latitude, em que longitude, em que continente estás. Receio te enviar o sol à meia-noite e não gostares dele, porque te atrapalhará o sono.

Lírica (1.019) - Decepção

Certa manhã, quando eu era menino, o vento furtou do rádio de uma casa do bairro uma canção que falava do mar. Foi uma pena tê-la ouvido. No ano seguinte, quando conheci o mar, ele não me pareceu tão bonito quanto nos versos da canção.

Lírica (1.018) - Loucuras

Se puder mesmo encontrar Virginia Woolf, seja em que esfera for, tem só um receio: o de que ela não ache a loucura dele digna da loucura dela.

Lírica (1.017) - Vistoria

Toda manhã, ele passa o sol em revista: vê se está limpo, bonito, simpático, se não há nele nada que possa ser censurado. Só quando o julga digno, faz-lhe um sinal e o despacha para a casa da amada.

Lírica (1.016) - Coração reclamão

Sou humilde, sempre fui. Só comecei a falar de alma depois de te conhecer, porque todas as outras palavras me pareceram débeis para expressar a comoção que tua presença causou, tão grande que não me coube no corpo, embora o coração até hoje se ressinta e proclame que o teu lugar é dentro dele.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Lírica (1.015) - Lutas

O melhor, nas lutas da vida, é o instante em que, deitado, sentindo que o corpo é uma dor só, mas está apaziguado, você não quer mais saber se bateu ou apanhou, se perdeu ou ganhou. As duras palavras já foram esquecidas, quem ofendeu, quem deu o primeiro tapa revidado, se foi você quem morreu, se foi você quem matou. Assim são todas as lutas da vida, menos as do amor. Nestas, o morto é sempre você.

Lírica (1.014) - Ruas

Por onde andei hoje, as ruas só ostentavam nomes de homens mortos, mas o velho e mentiroso sol fazia brilhar tanto as placas que, por alguns momentos, me senti quase feliz ali entre aqueles Antônio Carlos, Luís Coelho e Matias Aires, que talvez tenham um dia aquecido o coração com ilusões iguais às que me alegraram falsamente enquanto pensava em coisas impossíveis e descabidas e lembrava outras tantas, tão dolorosas, que acabaram por me molhar os olhos e me deixaram tão imprestável que ir à Livraria Cultura teria sido um martírio que eu covardemente evitei.

Lírica (1.013) - Garantia

Dormir sabendo que não
Haverá mais nenhum dia,
Nenhuma dor, agonia,
E os olhos não se abrirão.

Situações (57) - A viagem

Quando sentiu que não poderia adiar por muito tempo a viagem, foi escolher no armário a roupa mais sóbria. Espirrando, pelo cheiro da naftalina, decidiu-se por um terno de trinta anos antes, quando era gerente de banco. Talvez pensando em obter alguma vantagem no lugar para onde ia, colocou uma medalha de santa no bolsinho do paletó escolhido.

Lírica (1.012) - A esmo

Amor, errante navio,
Que adianta todos os mares
Aventureiro singrares,
Se voltas sempre vazio?

Situações (56) - O herói

Ao lhe avisarem que seria injetado em suas veias um líquido radioativo, para um exame de contraste, ele pensou que talvez pudesse esquecer-se de que se encontrava lá buscando um diagnóstico para o seu corpo frágil e imaginar-se transformado pela radioatividade em um grande herói. Isso se seu neto estivesse ali.

Lírica (1.011) - Tu

Todos os lugares a que não fui nesta amada cidade jamais me fizeram falta, até o momento em que te conheci. Agora, abro o guia, percorro os mapas e lamento não termos estado aqui, ali, acolá. Ponho o dedo numa página, em outra, numa vila, num parque ou bairro, e me dói não havermos estado juntos em ruas com nome de flores, de árvores e até em ruas que ainda não carregam o peso de mortos ilustres e se denominam simplesmente A, B, C, D. Não é a cidade que me faz falta. És tu.

Lírica (1.010) - Historieta

Daqui a alguns anos, todo este tormento, esta aflição, estas madrugadas sacudidas por pesadelos, esta voz que sugere a drástica abreviação do caminho, tudo isto será uma história banal, que não dirá mais respeito nem a ti nem a mim, uma historieta de um homem e de uma mulher, que, por sua monotonia, ninguém quererá ouvir.

Lírica (1.009) - O peixinho

Depois de resolver que não ligaria nem mandaria mensagem para Márcio - ele que sofresse mais um dia para aprender a não ser chato -, ela se ajeitou no sofá e bocejou. Poderia esticar-se ali e dormir. Se ligasse para Márcio, ele iria propor um encontro, um cinema, uma coisa enfadonha qualquer. Depois de um novo bocejo, longo e cantarolado, ela olhou para o pequeno aquário, onde o único peixinho sobrevivente, borbulhando, fazia um interminável círculo. Gostava do peixe, como havia gostado dos outros três, mortos. Estar no sofá olhando para o peixinho deu-lhe prazer. Era bom ter um peixinho que não implorava encontros e ficava sempre ali, à disposição dos seus bocejos e dos seus olhos que lentamente se fecharam para o sono.

Lírica (1.008) - Tesouro

Tão tolos somos. Juntamos dia a dia pedrinhas às quais atribuímos o valor de pepitas. No fim, nossa memória senil pouco reterá delas, e será melhor assim: se delas conseguirmos nos lembrar, elas nos atormentarão como se fossem um tesouro que perderemos no último suspiro.

Situações (55) - Tiranos

Perto do fim, começaram a falar-lhe constantemente da alma. Ele ouvia tudo com resignação mas, no fundo, pouco lhe importava que ela existise ou não. Só desejava que, assim como ele ia se libertar do corpo, também a alma o deixasse em paz e fosse para onde quisesse, sem contar com ele para coisa nenhuma. Estava cansado de tiranos.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Lírica (1.007) - Vestida de preto

Senhora do tempo, que te importa saber se o verão está longe ou próximo? Que te importa saber se haverá ainda algum fruto para quem, febril, espera? Que te importa saber se as lembranças martirizam a memória do desgraçado? Que te importa saber se haverá um novo dia para quem sofre? Que te importa, senhora do tempo, senhora do enganoso júbilo e da inapelável calamidade?

Situações (54) - Motel

Depois de arfar como um cachorro sobre ela, o homem levantou-se, pegou na calça o dinheiro e o passou à mulher. Ela apanhou as notas quase liturgicamente e, ao guardá-las, o homem viu dentro da bolsa a foto de uma garota. "Minha filha", disse a mulher, orgulhosa, e, empurrando o dinheiro mais para o fundo, agradeceu: "Deus que abençoe o senhor." Ele saiu do motel, deixou-a na esquina onde a havia encontrado e pisou no acelerador: 60, 80, 100. À sua frente, abriu-se um farol vermelho e sangrento como o fogo do inferno.

Situações (53) - A bicicletinha

O neto já não gostava tanto do avô, desde o dia em que, tendo deixado a bicicletinha no meio da sala, a viu atirada para um canto, junto com uma frase: "Quem foi que largou esta merda aqui?" Tinha sido quinze anos antes, mas ele ainda não conseguira se esquecer.

Lírica (1.006) - Internet

Conheceram-se pela internet, corresponderam-se pela internet durante anos e pela internet marcaram um encontro, embora tivessem se detestado e abominado em todo o tempo de correspondência. No encontro, surpreenderam-se. Ele a achou maravilhosa. Ela achou o mesmo dele. Aprenderam a lição. Nunca mais se encontraram. Continuam a se detestar e abominar pela internet, noite após noite.

Lírica (1.005) - 2020

O ano é 2020. Muito antes de ele chegar, os numerólogos já haviam se manifestado sobre as calamidades e as venturas contidas nos quatro algarismos. Vaticinaram incêndios pavorosos, altissonantes conquistas esportivas, a aparição de moléstias incuráveis, a surpreendente cura para outras. Nenhum deles revelou que se daria um fato singelo: num dos dias desse ano destinado a tantos espantosos eventos, alguém esvaziaria um quarto numa casa e ali encontraria, num caderno de folhas já esmaecidas por dez outonos, cem poemas nos quais estava toda a arrebatada alma de um homem: versos ruins que, por isso e por não terem sido objeto de nenhum grandioso vaticínio, acabariam lançados a um cesto de lixo do qual, no entanto, antes da chegada do caminhão, um garoto resgataria um objeto pesadíssimo que só em casa lhe diriam ser uma máquina de escrever.

Lírica (1.004) - O café

Daqui a alguns anos, farão uma reforma no café. Tudo será mudado, expandido, melhorado. Mesas novas substituirão aquelas em que se apoiaram cotovelos sonhadores e em que mãos fixaram desenhos em guardanapos. Outras xícaras hão de reluzir e quem entrar aspirará o ar com satisfação: ah, como ficou bonito, isto aqui. As vozes das atendentes soarão mais juvenis, porque as velhas funcionárias, reprovadas pelo tempo, não estarão mais lá. Talvez um senhor, um só, um daqueles impertinentes velhos de bengala, olhe de fora e, depois de ter os olhos umedecidos por uma lembrança, resmungue alguma coisa e resolva não entrar.

Lírica (1.003) - O chocolate

Na quinta entrega semanal, o garoto teve a certeza de que a mulher era cruel. Já na primeira vez, ela o recebera com uma saia curta que, nas entregas seguintes, pareceu ter encolhido ainda mais. Já na primeira vez, ela subira num banquinho e pedira que ele lhe fosse passando as compras, que ela, com as nádegas quase encostando no seu rosto, ajeitava num armário. Já na primeira vez, ela lhe oferecera um chocolate. Já na primeira vez, ela dera vários suspiros, que se multiplicaram nas entregas seguintes. Já na primeira vez, ela dissera: "Que pena que você é tão menino..." Agora, na quinta vez, recebendo novamente o chocolate, ele sentiu que seria sempre assim. Ele era só alguém que, beijado no rosto na saída, acendia nela a luxúria que depois arderia nos braços do homem de barba espessa que no início da noite chegava no carro verde. Para ele, menino, haveria sempre o amargo consolo do chocolate.

Lírica (1.002) - O duelo

Homem de honra, barão que era, enfrentou um conde no primeiro suspiro da aurora, enquanto a mulher que provocara o duelo fazia subir ao seu leito o jovem e insaciável camareiro, recomendando-lhe presteza na execução de sua tarefa, porque dali a alguns instantes certamente viriam dizer-lhe qual dos seus dois apaixonados morrera, se não tivessem morrido ambos.

Lírica (1.001) - Orgulho

No hospital, os parentes que iam chegando, sabendo que o corpo do homem era um campo minado, perguntavam-lhe o que o tinha posto no leito: se o rim, se o fígado, se o baço. Ele, sem poder falar, por ter um tubo na boca, apontava o coração, e os parentes julgaram ver nele um sinal de insanidade, porque parecia haver certo orgulho no sorriso que os lábios delineavam quando ele fazia o gesto.

Lírica (1.000) - 1º de janeiro

Marota, aquela alegria.
Passou comigo o feriado,
Torrou o meu ordenado
E lá se foi, no outro dia.

Lírica (999) - Um momento

Há um momento em que os adjetivos, esses ornamentos do estilo, devem ser dispensados. Há um momento em que se há de pedir desculpas ao leitor e esquecer os maneirismos da literatura. Um momento em que se tenha o direito de dizer apenas: "Eu sofro." Melhor ainda: um momento em que não se diga uma palavra e em que nossa dor, resignada, não se revele em nenhum traço de nosso rosto ou em nossos olhos, voltados para a rua ensolarada, onde um grupo de crianças, brincando, celebra sem saber a ilusória alegria da vida.

Lírica (998) - Ela

Lavraste o áspero chão e com sementes de palavras o cultivaste. O sol ameno, a brisa benfazeja e a bênção da chuva fizeram nascer ali uma flor, mágica palavra. Em torno dela se reuniram outras: beleza, apogeu, pureza. Outra palavra, porém, uma que não semeaste, fatal palavra de cinco letras, espreitava desde a primeira manhã e o primeiro orvalho teu chão, tua flor, tua ventura.

Lírica (997) - Tique-taque

Enquanto as horas escorrem,
Milhões de doentes resistem,
Milhões de velhos desistem,
Milhões de meninos morrem.

Lírica (996) - Futuro

Meninos de olhos tristonhos
Que já no início do dia
Vão à radioterapia,
Meninos graves, contidos,
Meninos envelhecidos,
Quais são agora seus sonhos?

Lírica (995) - Dúvida

Se tudo agora te cansa,
Andar, sentir, respirar,
Se já morreu a esperança,
Por que, então, continuar?

Lírica (994) - Desconstrução

Quando morreres, terás morrido, nada além disso. Os passarinhos não cantarão mais docemente nesse dia, o sol não ostentará um brilho especial e a chuva, se vier, não será para chorar por ti, embora aos poetas bisonhos, como tu, aprouvesse essa imagem. Teu mal sempre foi a poesia. Quando começaste a te encantar com os sonetos, as odes e as elegias e te interessaste por hemistíquios, decassílabos e alexandrinos, alguém na tua família, teu irmão talvez, deveria ter dito que isso tudo sempre foi coisa de peralvilhos e salta-pocinhas - tudo embuste, logro, balela.

domingo, 17 de outubro de 2010

Lírica (993) - Algo

Quando eu me for, se não tiver tido tempo de falar com você, não importa. Digo-lhe agora que, se de alguma coisa eu sentir falta lá aonde vou, você saberá, mais do que ninguém, o que é.

Lírica (992) - Atacama

A todo instante precisava convocar outra vez seu espírito humanitário e voltar a olhar compungido para a tevê, onde os mineiros eram içados pela cápsula. Mas logo certo rosto, certo sorriso, certos cabelos lhe vinham novamente à memória e ele, deixando de assistir à televisão, se sentia ao mesmo tempo o mais venturoso e o mais indigno dos homens.

Lírica (991) - Boneca

Toda noite, agora, no seu sonho, a mulher surgia como aquelas bonecas russas que, quanto mais desvestidas são, mais vestidas parecem. Ele ia tirando peça por peça, madrugada adentro, e, quando vinha a claridade inicial da manhã, acordava febril, sem ter concluído a tarefa.

Lírica (990) - A história

Se você tivesse vindo, talvez a recordação daquela tarde fosse ainda mais grata do que é, e mais intensa a emoção que jamais deixou de provocar. Mas você se perdeu no caminho, porque a história estava destinada a ser assim, e quem há de de contrariar a história?

Lírica (989) - Presente

Se eu tivesse uma rosa, te daria. Quando a pegasses, eu ficaria olhando teu rosto e sei que veria nele a compreensão de que, se pudesse te dar outra coisa, qualquer coisa, mil coisas, eu não ficaria jamais tão feliz quanto naquele momento, único na eternidade, em que a rosa, passando de minha mão para a tua, reconhecesse que a ti, apenas, havia sido destinada, antes mesmo de nascer para a glória da beleza e a pureza do perfume.

Lírica (988) - Liberdade

O corpo tolo iludir:
Deixá-lo ali, esticado,
Dormindo um sono pesado,
E de mansinho fugir.

sábado, 16 de outubro de 2010

Situações (52) - Os pés

Repentinamente, os órgãos do seu corpo se rebelaram e suas caminhadas diárias começaram a ser substituídas por visitas a médicos e laboratórios. Exames levavam a mais exames, que levavam a hipóteses que levavam a mais exames e, em seguida, pequenas operações que levavam a operações maiores. A exceção eram os pés, que finalmente, depois de quase três anos de tratamento, haviam expulsado a micose. Agora podiam falar mal da sua próstata e da sua paratireoide, dos seus rins e dos pulmões, mas os pés, ah, os pés ele os deixava sempre à mostra no hospital e lhe proporcionavam um orgulho quase feminino.

Situações (51) - Quem?

No momento supremo, quem te dará a mão para a travessia? Teu Sócrates, teu Platão, teu Aristóteles, teu Cristo, teu Buda, ou a enfermeira, talvez Abigail, quem sabe Dolores, cuja imagem será a última que levarás para onde fores?

Situações (50) - O pesadelo

Continuava a sonhar com a fonte de água límpida e gelada, mas agora, quando abria a boca sequiosa, o que nela entrava era um líquido amarelo e quente como a urina de um vulcão. Tentava fechar a boca, mas duas mãos a mantinham escancarada até que o asqueroso líquido, tendo enchido todo o seu corpo, começava a refluir e, voltando à garganta, o fazia engasgar, sufocar e acordar no meio da madrugada, mordendo as duas mãos, que eram as dele, para conseguir respirar.

Situações (49) - O violino

Pegou o papel, a caneta e começou a escrever sua despedida. No meio do texto, por ter certo apego a questões de estilo, resolveu trocar tormento (que fazia eco a um sofrimento da linha de cima) por suplício. Para evitar a rasura, foi apanhar outra folha e, nesse instante, cessou o som do violino que, chegando do apartamento ao lado, o incitara ao suicídio. Parado na sala, ele encheu de lágrimas a folha nova, isenta de queixas e declarações, sem saber por que chorava, mas sentindo vagamente que talvez fosse por haver traído o violino.

Lírica (987) - Paz

Que doce entregar-se ao sono,
Sem tecer frase nenhuma,
E ter, se tiver, só uma
Palavra. Aquela: abandono.

Lírica (986) - Farsa

Jorge Luis Borges era um ser humano, como eu. Quanta mentira pode haver numa frase que nove entre dez pessoas diriam ser verdadeira. Como foi que eu, enquanto havia tempo, não percebi que confiar nas palavras era a pior desgraça que me poderia ocorrer? Ah, eu era tão rapazola, tão tolo, naquela época. Não mudei quase nada, graças à literatura.

Lírica (985) - Gorado

Quantas lágrimas guardou, quanta tristeza, e também quanta ternura incubou, tudo por achar que os sentimentos só se devem exprimir pela arte...

Lírica (984) - Declaração

Ninguém sentirá o que sinto por ti, ninguém te amará como eu. Sei - ou imagino - que outros já te disseram isso, com essas mesmas palavras, ou com outras, mais belas. Olhaste bem nos olhos deles enquanto te diziam, como olhaste nos meus agora? Bem, então só posso pedir que olhes nos meus de novo. Mais uma vez, só, por favor, porque é tão tímida a minha ternura...

Lírica (983) - Só

Saiu do amor como quem,
Sentindo a vida acabada,
Não quer saber de mais nada,
Não quer saber de ninguém.

Lírica (982) - Longe

Chega um tempo em que o amor parece tão longínquo e inalcançável que só a lembrança dos olhos da amada e o eco da sua voz na memória animam o amado a prosseguir.

Lírica (981) - As sonsas

As horas lentas, aquelas
Que devagar se desatam,
As sonsas, cuidado com elas,
Porque são essas que matam.

Lírica (980) - Calmaria

Talvez não deva ficar nem um traço de nada. Não sei o que pensas, mas para mim será muito triste, será mais ou menos como se, depois de se revolver em paixão e fúria, o mar exibisse uma plácida superfície azul.

Lírica (979) - Ampulheta

Houve um tempo, um tempo breve,
Que na memória ficou
E que a saudade descreve
Como o melhor que passou.

Lírica (978) - Olvido

Se o tempo implacável me obrigar a percorrer a trilha do olvido, que essa trilha comece por ti. O resto será mais fácil de esquecer, porque não terá mais nenhum sentido.

Lírica (977) - Platônico

Aquilo que for, se for,
Será vivido e fruído,
Mas nunca terá o valor
Do que podia ter sido.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Lírica (976) - Alma

Se a alma é um passarinho,
Que a minha se livre enfim
Do meu corpo, que é seu ninho,
E voe no céu sem fim.

Lírica (975) - Talvez

Talvez tu mates alguém
De amor vivido e sofrido,
De amor não correspondido
Ou de outras causas fatais.
Talvez tu mates, porém
De tédio eu sei que jamais.

Lírica (974) - Escritos

Ficarão algumas coisas escritas, aqui e ali, numa gaveta, num arquivo de micro, em um bloquinho. Elas serão o retrato do meu fracasso, principalmente as que se referem a ti. Preparei-me a vida inteira para ser escritor e, quando tive afinal um motivo para escrever, eu o desperdicei vergonhosamente.

Lírica (973) - Só isso

Não serei sentimental, nem dramático. Te digo só que foi bom te conhecer. Aconteça o que acontecer, para o bem ou para o mal, para além de todas as dores e incompreensões, o que eu quero te dizer hoje é só isso: que foi bom te conhecer.

Lírica (972) - Gracias a la vida

Ter acordado tão cedo tantas manhãs, só para te desejar bons dias, fez-me, além de tudo, o imenso bem de escancarar a janela para o sol e o coração para ti.

Lírica (971) - Einstein

É tudo tão relativo
E amar é tanto sofrer
Que já nem sei te dizer
Se estou morto ou estou vivo.

Lírica (970) - Pó

Tudo aquilo que se fez
E o que não se fez, o bem
E a crueldade também,
Caminha para a vaziez.

Lírica (969) - Ninharia

Eu me satisfaria com tão pouco, tão pouco bastaria para a minha felicidade, que é difícil compreender como essa ninharia, negada, me fez assim miseravelmente infeliz.

Lírica (968) - Se

Se praga de poeta pegasse, os papéis negociados na bolsa se transformariam em borboletas, e as debêntures, pelo nome antipático, virariam lagartixas.

Lírica (967) - Conselho

O que você não faz por amor, não faça por nenhuma outra coisa.

Lírica (966) - Você

Não, você não é um caso raro em que uma fração se revelou maior que o todo. Você é um caso em que uma parte da vida mostrou que as outras todas não valem nada sem ela.

Lírica (965) - Recordação

Tomara que um dia, recordando aquele afeto ao qual eu me dei inteiro e me comoveu tanto, você, por uma favorável disposição de espírito, por generosidade ou até por certa compaixão (não importa), possa dizer: "Foi lindo."

Lírica (964) - Lá atrás

Espero que haja flores quando você voltar, as melhores que a primavera fizer florir. E que você e elas se deem bem, como flores que são. Eu não estarei para ver esse momento, para não embaçar seu esplendor com a minha tristeza de árvore velha. Eu terei ficado em algum ponto do caminho, lá atrás, no outono ou no inverno.

Lírica (963) - Tudo ok

Você me disse: e daí,
Se o eterno amor já morreu?
Daí nada, eu respondi.
Morreu o amor, morri eu.

Lírica (962) - Navegante

No seu roteiro amoroso
Foi vítima de um tufão
Perto do mar do Japão,
E um vendaval pavoroso
Quase o colocou a pique
No rumo de Moçambique.

Porém seguiu sua viagem,
Que teve seu triste fim
Na longínqua Bombaim,
No meio de uma voragem.
Foi bravo, foi valoroso,
Que o céu lhe seja piedoso.

Lírica (961) - Naufrágio

Sentia-se tão deploravelmente desiludido por um naufrágio amoroso, e tudo ao seu redor lhe parecia tão inútil e sem significado - as árvores, as flores, o sol - que lhe veio a certeza de que morrer não era a única forma de deixar a vida.

Lírica (960) - O tempo

Para você não existe o tempo, ainda. Não se preocupe. Ele é uma maldade que os adultos criaram e que se exerce apenas sobre eles. Aproveite, menina, os dias e as noites, o sol, a lua. Quando você notar que seus olhos estão se tornando indiferentes à beleza e seu coração esfriando, então você estará sentindo as primeiras ameaças do tempo. Mas aí você já será uma adulta e merecerá tudo que o tempo fizer com você.

Lírica (959) - Vocação

Quando chove, ele pega uma panela da mãe e vai para o quintal. A quem estranha, ele diz que uma tarde uma nuvem lhe mandou um peixinho azul e que uma noite a lua encheu de leite a panela. Seu destino é claro: a loucura ou a poesia. Talvez ambas.

Lírica (958) - Olhos

Quem vê o azul dos seus olhos, plenos de calma, não sabe como eles podem se carregar de nuvens espessas e sombrias, como podem ser atormentados pela repentina faísca dos relâmpagos e como essa ira pode passar para os lábios e se traduzir em palavras agudas como punhais. Mas, depois da tempestade, como é belo vê-los de novo com a claridade leitosa do seu azul, bonançosos como a superfície de um lago.

Lírica (957) - Ocaso

Você diz que nunca sentiu isso, nem na juventude. Não poderia, mesmo. Há sentimentos que só afloram quando o sol, antes de se pôr, deixa seu último brilho sobre as árvores.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Lírica (956) - Conduta

Para o tudo ou para o nada,
Para viver ou morrer,
Seja qual for a jornada,
Você precisa crescer.

Lírica (955) - Gagá

Virão a me chamar de gagá, se já não me chamam, mas eu não me importo: se o meu coração cismou de se achar jovem, posso negar-lhe a alegria de me ver tomar um sorvete de palito na Paulista, de assobiar como um moleque na Augusta, de escrever sonetos açucarados que me fazem ser seguido pelas abelhas e de, no meio do temporal, abrir não um guarda-chuva, mas a boca para a água das nuvens e os olhos para o assombro do arco-íris?

Lírica (954) - De queijo

Custou-me tanto tempo, tantos volteios, tantos ensaios, tantas reticências chegar e dizer-te olha, eu te amo, e seria tão mais simples, tão mais fácil, tão mais verdadeiro dizer-te olha, eu te gosto - não como uma provocação aos gramáticos, mas como algo que soaria tão mais simpático e espontâneo, tão perfeito para ti, garota de andar displicente, que transformas o ato de comer um pãzinho de queijo nisto, apenas, e que no entanto é tanto e tão memorável: o ato de comer um pãozinho de queijo.

Lírica (953) - A macieira

O homem quer plantar uma macieira. Nunca viu uma, e se viu (talvez num livro ou num filme) esqueceu como ela é. Não sabe como se planta uma macieira. Não sabe se é uma árvore grande ou pequena. Ele pensa nas maçãs que vai poder dar ao neto e dizer fui eu que plantei. Ainda não tem o neto, mas sabe como se plantam netos e espera que a filha plante logo um, bem plantado.

Lírica (952) - Metrô

Podia ser você, podia. Ela tem os mesmos olhos, cabelos assim loiros como os seus, e esse seu jeito de garotona. Você é mais nova, uns quinze anos, talvez até mais, mas ela é como eu disse, é uma garotona mesmo. Desculpe eu estar falando isso, você nem me conhece e pode achar, sei lá, que eu... Está bom, obrigado. Eu precisava falar com alguém sobre essa mulher. Ela é... Ela é... especial para mim, entende? Um dia você vai sentir isso por alguém, e vai saber como é. Você já sente? Bom, então fica mais fácil compreender. O que eu estou querendo dizer é que essa mulher entrou na minha vida, na minha alma, no meu corpo. Às vezes eu vou me olhar no espelho, para ver se ela está nos meus olhos. Porque ela está, o dia inteiro. Obsessão? É, você usou a palavra certa. Obsessão amorosa, aguda. Por que eu estou triste? Bom, não é tão difícil adivinhar. É, acabou. É isso. De um dia para o outro, pluft. Ah, faz tempo, sim. Dois anos... Não, eu não vou esquecer, nem quero. Ela é especial. É única. Podia ser você. Podia ser outra, é o que todos me dizem. Podia ser qualquer uma, se pudesse ser qualquer outra. Mas não pode. Bom, eu desço na próxima. Você me desculpa? Eu precisava mesmo falar com alguém. Boa sorte também para você.

Lírica (951) - A lição

Aprendi geografia, história, português, francês, trigonometria. Carreguei na minha infância meus livros, meus dicionários e minha presunção. Minhas notas dez, enfileiradas, chegariam à praça da Sé. Ah, como se orgulhava minha família com minhas álgebras, meus logaritmos, meus tratados de Tordesilhas. Meu futuro seria brilhante, era a frase que eu mais ouvia. Outra era: a instrução é tudo. Ensinaram-me tantas coisas, tantas, não me ensinaram a alegria. Meus antigos colegas, vocês que fugiam das aulas para ir ao cinema ver Carlitos e os Irmãos Marx, por onde andam vocês? Quero lhes dizer que vocês estavam certos e pedir, implorar até, que, por favor, pelo amor de Deus, venham me mostrar como se faz para abrir os lábios e mantê-los assim pelo tempo necessário para conseguir aquele som que eu gostaria de produzir pelo menos uma vez, para aliviar a alma sofrida: aquele gorgolejar desatado, irresistível, cacarejado, destrambelhado de uma gargalhada.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Lírica (950) - O pássaro

Posso enganá-los ainda, por algum tempo. O público me ama, sempre me amou. E os críticos, quem se importa com eles e seu veneno? Dizem que estou decadente, mas seis meses antes de qualquer ópera das quais participo não se encontra mais um ingresso, nem que um rei queira. Quem acredita nos críticos? Sempre foram tolos. Incensaram Caruso, Gigli, Pavarotti e até aquele medíocre Lanza. O processo é sempre o mesmo. Alçam alguém às estrelas, pelo prazer de derrubá-lo depois. Querem fazer isso comigo, agora. Já devem ter algum geniozinho escondido no chapéu, algum rapazola corado pelas gemadas da mamãe, e garantirão que ele é capaz de despedaçar uma taça de cristal com um dó, a trinta metros de distância. Mas terá esse novo gênio o que Caruso, Gigli, Pavarotti e Lanza não tiveram, o que só eu tenho? Terá ele este pássaro aprisionado na garganta, este pássaro que vem sendo a minha glória? Ele está morrendo, eu sei. Já não canta, já não cantamos como antes. Foram os seis meses naquele manicômio de quartos gelados, aqueles maus-tratos. Quase morremos ali, eu e meu pássaro querido. Quando saímos, não éramos os mesmos. Mas disso apenas eu e meu pássaro sabemos. Conhecemos nosso destino. Não está distante a noite em que ele morrerá na minha garganta no momento do agudo mais agudo. O público ficará estupefato: será a primeira vez que o grande Enzo não alcançará a nota! Quando essa malfadada noite vier, não deixarei que os críticos zombem de mim e instiguem a plateia a vaiar. Morrerei com meu pássaro, com ele se debatendo nesta garganta que será celebrada enquanto houver ópera no mundo.

Lírica (949) - A pergunta

Curioso que, diante do esplendor azul do mar, ou dos rodopios das árvores convidadas pelo cavalheiresco vento para dançar, ou da noite florescendo em estrelas, ainda haja aqui, ali e acolá jovens que, com os olhos fundos de preocupação, perguntem qual é o sentido da vida. Alguns, com o tempo, esquecem a pergunta e seguem. Os outros continuam a fazê-la e, empenhando-se em compreender o significado da vida, deixam de fruí-la. Para estes, pobres homens, a circunspecção e a tristeza. Para os demais, a majestosa amplidão do mar, a dança das árvores com o vento e as noites carregadas de estrelas.

Lírica (948) - Oxalá

Que o sol de toda manhã
E que o pão de cada dia
E que a canção e a poesia
Possamos ter amanhã.

Lírica (947) - O cobertor

Um raio de sol ficou enredado na cortina do quarto e à noite, quando a solitária mulher apagou a luz e se deitou tristemente, ele esperou um pouco, tímido, mas depois subiu até a cama, onde brilhou por um instante, antes de se esgueirar para baixo do cobertor azul.

Lírica (946) - A musa

Julgavam-no exagerado porque, fazendo em seus versos uma constante celebração dos encantos de uma mulher, ele se dizia um cantor da imortal beleza. Os que apontavam esse exagero nele jamais tinham visto a mulher inspiradora dos seus poemas.

Lírica (945) - Sussurro

Não serei tolo de te dizer o que sinto por ti. Há séculos, poetas que merecem ser assim chamados louvam suas amadas com um canto que tornaria o meu, em comparação, tão grosseiro e insuportável quanto o alarido de mil araras enlouquecidas. Não te direi nada. Pronunciarei teu nome baixinho, bem baixinho, longe da indiscrição do vento, para que não chegue a ti nem um fiapo do meu sussurro e os teus ouvidos recebam só o murmúrio das folhas do teu jardim.

Lírica (944) - O velho

Entrevado, o velho capitão passava os dias no sofá, onde o sentavam de manhã e de onde o tiravam à noite, para levá-lo à cama. A tevê ficava sempre ligada, mas não tinha nada a mostrar aos seus olhos quase mortos e também nada a dizer aos seus ouvidos indiferentes. Uma vez ou outra, uma imagem de mar surgia, num noticiário ou num filme, e então ele, que agora só dizia coisas ininteligíveis, se agitava e emitia sons que tinham uma desagradável semelhança com grunhidos. Quando a neta saía dos seus afazeres domésticos para ver o que estava acontecendo, ele, com a mão que já não lhe obedecia, tentava indicar a tevê. Às vezes, a neta olhava para o aparelho, mas o mar já desaparecera, como se fosse fruto da imaginação ou do desesperado desejo do velho.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Lírica (942) - Praia

A mãe estava consultando o tempo que faria na praia no dia seguinte, para ver se valia a pena viajar: de manhã, sol; à tarde, sol. "E à noite, mãe?" perguntou o menino de três anos, e, ao saber que à noite não haveria sol, pensou que as praias talvez não fossem lugares tão especiais quanto ele havia imaginado.

Lírica (941) - Ciúme

A mulher talvez não recordasse mais, porém o homem saberia dizer o nome de cada um dos amantes dela antes de se ligar a ele. E não só o nome: costumava ser atormentado por uma justaposição, uma interpenetração, uma imbricação de bigodes, bocas, narizes, testas, queixos, partes de vários homens reunidas no rosto de um só, como se num pesadelo Picasso houvesse juntado todas as razões do ressentimento e da inquietação dele numa apenas, grande, perturbadora, venenosa, insuportável.

Lírica (940) - Colombo

Se a terra não fosse esférica,
Seríamos abençoados.
Pelados nós andaríamos,
Viveríamos largados,
Pelados tudo faríamos,
Pelados, sempre pelados.
Felizes todos seríamos
E isto, sim, seria a América.

Lírica (939) - A fábula

Às vezes faz um textinho premeditadamente jocoso, alegre, boboca. Nessas ocasiões, sente-se tão bem que chega a se perguntar se literatura não seria, afinal, isso - algo mais voltado às coisas miúdas da terra do que às culminâncias do céu. Por que não falar das formigas, tão próximas, em vez de ficar namorando a lua? Quando está quase aceitando a teoria, lembra-se da história da raposa e das uvas.

Lírica (938) - Terça, 12

Teria já sido,
Teria acabado,
Teria passado,
Teria já ido.

Que as flores não tidas
De novo floresçam,
A nós se ofereçam
E sejam colhidas.

Lírica (937) - Odezinha

Dar graças a Zeus,
Aos fados, aos deuses,
Ao sol deste dia,
Presente de Deus.
Adeus aos adeuses,
À melancolia,
Ao fel, à rudeza,
À dor e à tristeza.
Bem-vinda, alegria!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Situações (48) - Psitacídeo

Quando o veterinário, depois de cuidadoso exame, aconselhou o dono do papagaio a não se preocupar em demasia, porque os sintomas não indicavam senão uma mudança de hábito comum aos psitacídeos ao atingirem a fase adulta, o papagaio, vendo-se assim denominado, tomou-se da justa ira que caracterizara seus ancestrais e declarou solenemente, com todos os pê-quê-pês, que psitacídeo era a vaca da mãe do veterinário.

Lírica (936) - Haicai: Crepúsculo

A tarde envelhece,
Enquanto o suave manto
Da noite se tece.

Lírica (935) - Estrelas

Na noite de lua cheia, o homem se atirou ao mar e teria morrido, se não o socorressem. Estenderam-no na praia e o fizeram expelir a água dos pulmões. Em cada golfada saíam quatro ou cinco estrelas, que aos adultos passaram despercebidas, mas com as quais um garoto encheu seu balde de plástico. As estrelas que não couberam no balde foram recolhidas pela maré alta, que as levou de novo às ondas, para que servissem de guia aos navios, de alimento aos peixes e de última visão aos nadadores desastrados ou aos suicidas.

Lírica (934) - Artista

Nas tuas colagens
Não há jamais calma.
Há luta, tormento,
Há gritos, mensagens,
A dor que tens na alma,
O teu sofrimento.

Lírica (933) - Maçã

Maçã divina, maçã
Da macieira mais sagrada,
Maçã dourada, adorada,
Que eu possa ver-te amanhã,
Maçã perene, banhada
Pelo esplendor da manhã.

Lírica (932) - A inimiga

Agora escolhe livros pequenos e os lê da primeira à última página, sem trégua nem para dormir. Teme o sono. Sabe que em algum canto dele, no mais escuro e profundo, está a eterna inimiga dos homens, aquela a quem apraz cortar no meio todas as histórias, reais ou inventadas.

Lírica (931) - Olhos

Olharei para ti com os olhos do espírito. Haverá melhores olhos para algo que talvez tenha nascido nos primeiros dias do tempo e provavelmente perdurará até os últimos?

domingo, 10 de outubro de 2010

Lírica (930) - Filosofia de algibeira

A vida não vale nada,
Não vale a dor, o desgosto.
Bem diz quem diz que é uma piada,
E uma piada de mau gosto.

Lírica (929) - SOS

De todos os vírus que
Vêm pelo computador,
O mais cruel, já se vê,
É aquele chamado amor.

Lírica (928) - Infância

Por que jamais um poema
Falou de um menino arteiro
Gozando a alegria extrema
De mijar num formigueiro?

Lírica (927) - Essa palavra

Chamou o amor com tanta febre e loucura que seus lábios sangraram. Implorando por água, foi-se enfiando mais e mais num deserto que havia sido visitado pela última chuva num dia impreciso, quarenta ou cinquenta anos antes. Esqueceu-se da sua infância, da adolescência, de tudo. Esqueceu-se do seu nome, e todas as outras palavras, não mais ditas pela sua boca, morreram também na sua memória. Andou, continuou andando, não porque tivesse um rumo, mas porque lhe parecia vagamente que andar era a maldição que devia cumprir. Não buscava mais o amor. Queria beber um gole de água, nada mais do que isso, antes de entregar o corpo à areia quente. Mas, na tarde em que recebeu a bênção ansiada, as duas gotas que deslizaram dos seus olhos e umedeceram por um instante seus lábios eram salgadas como a saliva do demônio. Mesmo assim, balbuciou ainda a derradeira palavra, a única da qual nesse instante se lembrou. Se alguém estivesse com ele ali, poderia dizer, mais pelas sílabas desenhadas na sua boca do que pelo som, que essa palavra era amor.

Lírica (926) - A lição de Gertrude Stein

Em vez de tanto escrever,
Tanto em verso quanto em prosa,
Melhor seria dizer
Só isto: rosa, rosa, rosa.

Lírica (926) - Chocolate

Filosofias, teorias, hipóteses e as grandes especulações do espírito humano passaram a não lhe dizer nada. Buscava agora as coisas simples: filmes, de preferência comédias; livros de enredo bobo; patacoadas na tevê. Assim como a menina do poema de Fernando Pessoa, tinha descoberto que a única metafísica válida era comer chocolate, tomar sorvete, ir à lanchonete para bebericar um café. Quem se importa com Kant, Descartes, Rousseau, quando no horizonte da vida vão se insinuando as primeiras trevas da noite?

Lírica (925) - Verdade

Não era mentira, mas, ainda que fosse, ele, romântico sempre, continuaria a dizer que estava morrendo de amor.

Situações (47) - O pombo

O pombo, mutilado, atraiu a atenção de outros pombos. Trouxeram-lhe farelos, que puseram diante do seu bico, mas ele não se mexeu. Arrulharam, tentaram reanimá-lo. Quando perceberam que não havia mais chance para ele, abandonaram-no. Antes, alguns o bicaram com furioso desdém. A natureza não concede perdão aos fracos.

Lírica (924) - Segredo

Antes do dia final,
Beleza, revele-me onde
Você, beleza imortal,
Beleza pura, se esconde.

Lírica (923) - Sorrisos

Pedirei a alguém que tire uma foto minha. Capricharei no sorriso, que há de ser o mais terno de minha vida. Deixarei a foto na estante, dentro de um livro que facilmente encontrarás. Não será um presente, mas apenas uma lembrança que talvez te faça sorrir. Será uma pena que eu não possa ver esse sorriso.

Lírica (922) - Bulício

Árvore sáfara, quem há de lamentar tua falta de flores e de frutos, se os pássaros fazem balançar alegremente os teus galhos?

Lírica (921) - Amanhã

No parque, as árvores continuarão olhando para os homens, e você não fará nenhuma falta a elas.

Lírica (920) - O rio

Mesmo quando o homem dorme, o rio que há dentro dele continua a fluir, deslizar, correr, para longe, para bem longe, para muito longe, para um lugar que no início o assustava, mas para o qual ele agora anseia ir.

Situações (46) - O som

Quando o som agudo explodiu repentinamente na sala do velório, como se uma ambulância a tivesse invadido, o padre, assustado, interrompeu a oração e todos olharam para o morto, mas ele estava fora do alcance dos celulares.

Lírica (919) - O colibri

O homem tomou-se de amor por um colibri. Ouvia-o cantar em volta da casa, na frente, nos fundos, como se quisesse entrar, mas jamais o tinha visto (na verdade, nunca havia visto um colibri). Quando saía para trabalhar, por um quarteirão ainda era seguido pelo canto. Olhava para cima e nada via, ou via vários passarinhos em revoada. Qual deles seria o colibri? Num domingo, dormiu até mais tarde e estranhou que o colibri não o tivesse acordado. Foi pegar o jornal e, ao lado dele, viu o passarinho, duro como uma pedra. Trouxe-o até o peito e encheu o pequeno corpo de lágrimas. Um vizinho parou: "O que foi?" "É meu colibri. Parece que está doente." O vizinho olhou e disse: "Ele está morto. Não é um colibri, é um pardal. Por aqui não tem colibri." O homem odiou o vizinho por isso. Levou o colibri para dentro, pegou uma velha caixa de sapatos e o colocou dentro, em cima de uma camisa de lã, que afofou. Com medo de que o colibri sentisse frio, levou-o até o quintal e o expôs ao sol. Entrou para atender o telefone. Enquanto falava com a irmã e lhe perguntava como se sabia se um colibri estava mesmo morto, o gato do vizinho pegou o pássaro e o carregou nos dentes até a rua, onde o devorou. O homem, ao voltar ao quintal, alegrou-se: o passarinho estava vivo e tinha voado! E naquele dia, e em todos os outros, continuou a ouvir em volta da casa o canto do colibri.

sábado, 9 de outubro de 2010

Lírica (918) - Só mais uma sílaba

Deixou a caneta livre para escrever o que ela quisesse, e ela escreveu: amor. Sorriu e, se a caneta fosse objeto abraçável, ele a abraçaria. Parecia um bom augúrio. Deveria ter se contentado e fechado o bloquinho, mas deu à caneta liberdade para escrever mais alguma coisa que ela quisesse. Ela aproveitou a palavra amor, que ainda cintilava com sua tinta vermelha no papel, e acrescentou uma sílaba: te.

Lírica (917) - A derradeira

Das horas noturnas,
Sombrias, soturnas,
Que Deus nos proteja.

E que a derradeira,
Que chega traiçoeira,
Clemente nos seja.

Lírica (916) - Poente

Que as vivas chamas do dia
Por um instante ainda ardam
E aqueçam ainda a alegria.
As horas frias não tardam.

Lírica (915) - Um gato

Gostaria de te dar um gato. Quando vi, essa frase estava escrita no meu bloquinho, sem que eu me lembrasse de tê-la sentido passar pelo meu cérebro. Deve ter sido ditada, eu suponho, pelo meu coração. Uma ótima razão para eu mantê-la. Gostaria de te dar um gato. Não vou dizer nada mais. Preciso? Gostaria de te dar um gato.

Lírica (914) - Cordeiro

Cordeiro, empresta-me os teus olhos quando chegar a minha hora. Que neles não haja nenhuma ira. Que as luzes se apaguem lentamente, que os sons se afastem silenciosamente, que tudo se esvaia como deve se esvair.

Lírica (913) - Zombarias

Vinha notando que já nem o vento o respeitava: cuspia-lhe gotas de chuva no rosto, levantava-lhe a camisa, jogava-lhe longe o boné.

Lírica (912) - Frações

Não era muito afeito à matemática, mas ultimamente vinha, antes da palavra homem, colocando frações: três quartos, dois terços, meio.

Lírica (911) - Cena final

Gostaria de ser um ator. Diria as últimas palavras, choraria, a plateia choraria também e, depois dos aplausos, ele iria para os bastidores, trocaria de roupa e, em vez do frio que o esperava na vida, iria tomar um conhaque num bar onde uma música alegre balançaria as garrafas.

Lírica (910) - Que

Depois de todo o tormento,
Que Deus conceda a quem ama
Que aos poucos se extinga a chama
E que venha o esquecimento.

Lírica (909) - Epifania

Virginia Woolf me consideraria tolo e ignorante. Faria, com seus brilhantes amigos, comentários vexatórios sobre mim e me arranjaria um apelido terrível, mas eu continuaria gravitando em torno dela. O ciúme envenenaria meu sangue e eu rezaria para que morressem Litton, Clive, Violet, Vita. Um dia, num dos seus acessos de demência, Virginia talvez pudesse me achar menos abominável. Eu então - ou ela - diria ao cordato Leonard que iríamos dar um passeio pelo campo. Seria uma manhã muito azul e nuvens claras flutuariam tão baixo que eu recearia estar sonhando. Eu aspiraria o ar e, com ele, entrariam em meus pulmões o olor adocicado da grama, o aroma pungente das flores e o cheiro da alma e o cheiro do corpo de Virginia, e seriam um cheiro só, o da alma e o do corpo, e o da grama e o das flores, e eu gostaria de ser Litton, talvez Clive, provavelmente Violet, certamente Vita, pois qualquer um deles seria muito mais indicado que eu para receber a dádiva da epifania.

Lírica (908) - A fila

Quando chegou sua vez, imaginou que pudesse enganar o homem de longas barbas brancas que fazia a seleção. Encolheu-se todo e disse que era só um menino. O velho sorriu ternamente: "Eu sei. Entre, menino. Sua mãe já está aqui."

Lírica (907) - O ponto

O caminho foi se estreitando. Furtiva, a noite desceu e o burburinho cessou, como se ele houvesse entrado em outra dimensão. Pensou que estivesse dentro de um sonho e concentrou-se para sair dele, ou mudar o rumo dos seus passos, para voltar à luz, mas seus pés se recusaram. Poderia parar, talvez, e foi o que tentou, mas suas pernas continuaram andando na direção do caminho que agora, tendo-se estreitado inteiramente, era um ponto só, um ponto no qual ele ficou entalado, como um pássaro numa chaminé. Buscou o ar, mas não havia ar, e a última imagem que teve foi a de um homem de avental verde olhando para ele mais resignado que aflito.

Lírica (906) - Safo

Virginia e Vita traçavam
Com o dedo a geografia
Dos corpos e a poesia
Com a qual se completavam.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Lírica (905) - O morto

Devia ter resistido,
Devia ter protestado.
Colocaram-no estendido,
Colocaram-no deitado.

Lírica (904) - Haicai: Urubu

A vida rolou
A escada, e a morte, avisada,
Correndo chegou.

Lírica (903) - Tributo

Que lírios, que rosas,
Que flores formosas
Nunca te faltem.

Que poetas diversos
Em rútilos versos
Sempre te exaltem.

E que eu, resignado,
Lembrando o passado
E o que fruí,

O amor não esqueça
E fiel reconheça
Que o devo a ti.

Lírica (902) - Vida

Chegou ao final a festa.
As luzes se apagam, tudo
O que vibrou está mudo.
Dormir, agora, é o que resta.

Lírica (901) - Ti ti ti ti ti

Às vezes fica a lembrar
A incontrolada alegria,
A comoção que sentia
Ao toque do celular.

Salve, Mario!

O Nobel concedido a Mario Vargas Llosa vem com pelo menos vinte anos de atraso. Em 1990 ele havia escrito já os seus livros mais importantes. Os que ele fez depois foram só uma reafirmação, e quase sempre em tom menor, do seu talento de narrador. Escritores como ele e como García Márquez, centrados nas paixões do homem - especialmente na mais avassaladora de todas, o amor, aqui incluído o fogo sexual -, tendem a murchar com o tempo, à medida que se esvai sua seiva física. O passar dos anos faz bem a escritores como Borges, muito menos passionais que cerebrais, embora os dois adjetivos aqui sejam evidentemente - e lamentavelmente - reducionistas. Vargas Llosa e García Márquez (este bem menos prolífico ultimamente) têm enveredado mais pelas reminiscências que resvalam para o ensaio. O que os dois fizeram de mais representativo foi concluído há vinte anos. Llosa, como Márquez, mereceu o Nobel(e digo isso, claro, na qualidade de leitor, simplesmente), e ainda bem que o reconhecimento chegou, embora tardio. Numa época de tantos dentes cerrados e de tanta busca de literatura "séria" e "socialmente engajada", é bom pegar um livro como "Pantaleón e as visitadoras" e acompanhar os ardis matemáticos do capitão Pantaleón Pantoja para suprir de mulheres um batalhão de soldados enlouquecidos pela abstinência sexual, na selva. Ah, os maravilhosos e precisos cálculos que fazem cada rameira recrutada precisar atender a 3,7 ou a 4,2 homens, dependendo das circunstâncias... Cálculos que acabaram valendo ao capitão Pantaleón, o Pantita, o epíteto de Einstein da foda. Quem disse que a "boa" literatura precisa ser sisuda? "Tia Júlia e o escrevinhador" é outra delícia, temperada com um bom humor que sempre foi uma das características de Llosa. Salve, Mario!

Situações (45) - O menino

Havia quatro meninos no saguão daquele hospital por onde não gosto de passar. Um deles, o mais carequinha e o mais alegre de todos, sorriu para mim. Fingi não tê-lo visto. Faltou-me a coragem de sorrir para ele, tive medo de ser falso. Ele sabe que tem câncer, mas não sabe o que é câncer. Eu sei.

Lírica (900) - Espiral

Comprei um caderno e enchi todas as linhas das cem folhas com teu nome. Se te conhecesse quando menino, terias sido toda a minha geografia, a minha história, a minha gramática, aquelas coisas todas que me ensinaram e que não fazem nenhum sentido sem ti.

Lírica (899) - Glória

Ter lido tratados de análise literária, os melhores autores, haver escrito com alma e paixão desde a adolescência, trabalhar duro para construir um estilo e saber, no fim, que nenhuma frase nossa alcançará a repercussão e a sonoridade daquela que os ônibus exibem: "Transporte, um direito do cidadão, um dever do Estado." Que imortal, que integrante de academia de letras terá frase mais simples, mais expressiva e mais bela para apresentar?

Lírica (898) - A viagem

Agora, quando entra num avião olha com pena para os passageiros, as mulheres, os homens, as crianças. Fica triste com o que acontecerá à aeromoça que vem lhe oferecer uma balinha e imagina como a família da tripulação receberá a notícia. Porque sabe que, se o Destino seguir o roteiro que está na sua cabeça e no seu coração, o avião entrará no meio das nuvens e nunca mais será visto, a não ser que haja, no seu rumo, um lugar em que não existam nem dor nem desesperança.

Lírica (897) - Alívio

Chorar seria tão bom,
Chorar, chorar de verdade,
Chorar alto, forte, com
Fervor, com intensidade.

Lírica (896) - Trecho de diário

"Não tenho compromisso com mais nada. Minha idade, tão propícia à demência senil, me permite ser normal das tantas às tantas e insano das quantas às quantas, e vice-versa. Finalmente me cansei de representar, de acordar e de me preparar para a monótona obrigação de ser o que pensei ser nesses anos todos e de me apresentar como os outros acham que devo ser. Tenho o direito e a vontade de ser imprevisível, e minhas experiências nos últimos dias (expressão ambígua, essa) me deixaram muito feliz. Assobio na rua como um moleque, rio com motivo ou sem, e minha única preocupação não é com o que venham a pensar de mim, mas com o que esse pensamento possa acarretar: talvez não me caia bem a camisa de força e, quando me trancarem, como farei para cumprimentar as flores que encontro diariamente no meu caminho? Posso mandar-lhes cartas, mas escrever não é o meu forte e talvez seja difícil anexar o sorriso que especialmente as rosas sempre esperam de mim."

Lírica (895) - Freud

Quando minha mãe morreu, eu me pus a imaginar onde ela estaria no dia seguinte e não tive dúvida de que seria no céu, até o momento em que desgraçadamente me veio a lembrança dos três gatinhos que nenhuma vizinha quis e foram afogados por ela no tanque, numa manhã de junho.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Lírica (894) - Madeleine

Desculpe. Seu pão de queijo mereceria Proust, ninguém menos. Me perdoe. Não sou digno de certas recordações e, por isso, lhe prometo que esta é a última que me atrevo a ter.

Lírica (893) - Dez segundos

Em 2014, um jogo da Copa do Mundo talvez te faça recordar um homem que gostava de futebol. Se eu tiver sorte, talvez esse homem seja eu e, se essa sorte for muita, quem sabe seja uma boa lembrança e, por ser, dure mais que dez segundos.

Lírica (892) - Oração

Senhor, abençoai os puros
E os degradados também,
Os aptos, os morituros,
Quem faz o mal ou o bem,
Os mais sensíveis, os duros,
Quem tem fé e quem não tem,
Os imortais, os obscuros,
Quem é, e quem é ninguém.

Lírica (891) - Graça

Senhor, que os seres amados
A graça alcancem de ter
Os olhos tristes fechados
Por quem lhes soube querer.

Lírica (890) - O último

Será um toque bem suave,
Como o roçar de uma folha,
O borbulhar de uma bolha
Ou o suspiro de uma ave.

Lírica (889) - Estatística

Confesso que quando li
Me enchi de puro estupor
E nisto quase não cri:
Ainda há quem morra de amor.

Lírica (888) - Notícia

Aqueles que o amor traiu
Fizeram uma passeata
Que, começando no Rio,
Chegou ao rio da Prata.

Lírica (887) - Características

Se for tranquilo e indolor,
Se não te dilacerar,
Se não ferir ou matar,
O amor não será o amor.

Lírica (886) - Sorriso

Sorriso terno, sorriso
Mesquinho, custa-lhe ser
Cordato e se oferecer,
Se é tudo de que preciso?

Lírica (885) - Adjetivo

Sei que sou ridículo. Que outro adjetivo merecerá quem, tendo ensaiado gorjeios na juventude, não conseguiu aperfeiçoá-los nem se livrar deles na época que deveria ser a da maturidade e agora ainda emite grasnidos desafinados como os de um pato velho?

Lírica (884) - Pior

Querem saber? Não sou melhor que vocês. Sou até pior, porque um dia tive a pretensão de ser mais que apenas um homem saudável comendo batatinhas fritas na mesa da calçada, com o ar de quem, como vocês, tendo dezenas de etiquetas nas malas e meia dúzia de diplomas no escritório, conhece todas as verdades do mundo, embora a modéstia e o tédio os impeçam de discorrer sobre elas. Ainda que vocês não se importem comigo, talvez lhes agrade saber que, apesar dos meus esforços, não sei espetar uma batatinha nem erguer um copo como vocês.

Lírica (883) - A moeda

Exaltaste a vida e enalteceste o amor porque era hábito entre os poetas. Vida e amor sempre foram objetos poéticos, como as naturezas-mortas para os pintores. No fundo, sempre soubeste que a vida e o amor eram as duas faces de uma moeda: o engodo. Mas dedicaste a esse falso ouro suas rimas e versos. Teu consolo é que não foste o único. Outros - todos maiores do que tu - têm propagado a todos os ventos essa cantilena, por séculos e séculos, e os que ainda não estão sob a terra logo estarão, calados de vergonha e com o peito cheio de imerecidas e inúteis rosas.

Lírica (882) - Historinha

O gatinho apareceu na casa dela e aliviou sua solidão até o dia em que, tendo a patinha ferida pela bicicleta de um menino, começou a miar intoleravelmente, de aflição e dor. Na terceira tarde, ela o colocou no carro, passou diante do veterinário, hesitou um pouco e seguiu até um parque, onde o deixou, ainda miando de aflição e dor.

Lírica (881) - Lago

Serão teus, agora, todos os dias, até o último. Se desta vez tiveres o bom-senso de ignorar o amor e a piedade, teu caminho será sereno como aquele que os barcos seguem no lago azul das pinturas antigas.

Lírica (880) - Objeto

Estava preparado para tudo - até para as traiçoeiras recordações que vinham sussurrar-lhe, principalmente de madrugada, que a vida talvez não fosse aquilo que ele agora sabia bem que era: um objeto incômodo e vergonhoso que era preciso largar na primeira esquina e afastar-se depressa, para que ninguém viesse devolvê-lo.

Lírica (879) - Simples

Seria triste, se fosse,
E nos doeria, se doesse,
Mas é um lenitivo, esse:
Fechar os olhos é doce.

Lírica (878) - Frustração

Sonhou que tinha morrido
E ao acordar execrou
O desastrado alarido
Do galo que o despertou.

Lírica (877) - Febre

Prestava mais atenção
Agora. Ouvia um violino,
O doce dobre de um sino,
Uma suave canção.

Lírica (876) - Oportunismo

Começou a se julgar cínico, porque, dando agora valor às belezas nas quais antes não reparava, era como se pedisse a Alguém, cuja existência ignorara, que lhe concedesse um pouco mais de tempo para gozá-las.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Lírica (875) - Íntimo

Corria agora perigo.
Levava, para onde ia,
E à noite, quando dormia,
Dentro do corpo o inimigo.

Lírica (874) - Aquilo

Alguma coisa crescia
Dentro dele, lentamente.
Crescia forte, veemente.
Não era amor, nem poesia.

Lírica (873) - Atitude

Um dia, resolveu que estava na hora de ser autêntico. Parou de sorrir, de rir, de gargalhar. Assumiu a sua tristeza. Perdeu os amigos, mas descobriu que não precisava nem deles nem de mais ninguém.

Lírica (872) - Alma

Brigitte Bardot, uma das mais belas mulheres que o mundo conheceu, lastimou, ao chegar à velhice, como era amargo confiar no corpo, como ela havia confiado, e ver que ele, assim como as flores, murcha, definha e morre. O que dizer, então, quando se confia na alma - e na sua manifestação mais pura, a poesia - e se descobre que ela vale menos, muito menos que o corpo?

Lírica (871) - Morte

Talvez seja mesmo só o que parece ser: um sono um pouco mais longo.

Lírica (870) - Obsessões

Em alguns escritores, a obsessão cai bem: Robert Walser, Nelson Rodrigues, Marcel Proust, Thomas Bernhard, Kafka, por exemplo. Por quê? Porque são escritores de verdade, gênios. Em outros, as obsessões são uma chatice inominável. Os piores são os que só vivem para falar da morte. Diante desses, aos leitores cabe uma atitude: torcer para que morram logo e parem de encher o saco.

Lírica (869) - Lição

Pedem-me que de vez em quando eu ria um pouco. Disseram-me até que é um santo remédio. Acho um bom conselho. Mas quem, se até hoje não aprendi, vai me ensinar como se faz isso?

Lírica (868) - Mesmo assim

Há de se cantar a vida sempre, mesmo quando ela, já tendo virado a esquina, não se lembrou sequer de nos dar um tchauzinho.

Lírica (867) - Apelo

E no escuro, quando a casa toda dorme, ele esquece a dignidade que deve aos seus setenta anos e, como se fosse possível uma resposta, chama, choroso: "Mãe!"

Lírica (866) - Na gaveta

Àquela festa de aniversário ninguém deixou de comparecer. Elogiaram-no por coisas que ele tinha feito e por outras, que jamais fizera. Ele sabia, e sabiam todos, que o motivo daquilo tudo, das novas virtudes louvadas, e das antigas finalmente reconhecidas, eram os envelopes com os diagnósticos, na gaveta.

Lírica (865) - Lona

É doce confessar o fracasso, quando se fez tudo e tudo que se fez foi inútil. É doce admitir a derrota, permanecer no chão e nem levantar os olhos, para que não nos exijam mais nada. É doce esperar que cessem todos os ruídos e se apaguem todas as luzes, para devagar, bem devagar, nos erguermos, quando já ninguém pode exultar com o sangue de nossos ferimentos nem achar prazeroso o lancinante gosto de nossas lágrimas.

Lírica (864) - Incompatibilidade

O drama de minha vida é fácil de resumir: eu me entreguei inteiro à arte, a arte não quis se entregar a mim.

Lírica (863) - Beleza

Beleza imortal, beleza
Eterna, eu te procurei,
Beleza, e só encontrei
Engano, logro, tristeza.

Lírica (862) - PM

Depois do meio-dia, as sombras começam a se mostrar. Vão se atrevendo no correr da tarde, se alongando. Ganham espaço em silêncio, se insinuam, avançam, e logo, enquanto a tarde tristemente adormece, vão indicando o reinado da treva total.

Lírica (861) - No

Seguro, o inglês. Quando a Morte
Pergunta "morre ou não morre?",
Responde, com sua voz forte:
"Escuse me, please, Death, I'm sorry."

Com as desculpas à minha professora de inglês, pelos quase certos erros (bonita e paradoxal expressão, essa).

Lírica (860) - A mãe

Virginia Woolf aprendeu, quando menina, que a melhor maneira de atrair a atenção e o carinho da mãe era simular alguma doença. Quando, com cinquenta e nove anos, deslizou para as águas do Ouse, sabia que a mãe, morta, não poderia acudi-la, mas talvez mesmo assim, apesar das pedras nos bolsos, tenha flutuado um pouco, esperançosa.

Lírica (859) - Será

Será macia, será
Um sopro bom, de monção,
Será um bálsamo a mão
Que os teus olhos fechará.

Lírica (858) - Só

Todos, com o semblante sério,
Retomaram seu caminho.
No escuro do cemitério
Ficou o morto, sozinho.

Lírica (857) - A Parca

Nos campos da primavera
A brisa sopra seu canto
E as flores se abrem, enquanto
A foice, paciente, espera.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Lírica (855) - Aqui, ó

Se danem Paris e Roma
E Barcelona e Madri.
Não vou lá. Estou em coma,
Estou morrendo, morri.

Lírica (854) - Arrufos

Caramba! Cáspite! Irra!
Podem mesmo dois adultos
Ser tão ignaros e estultos
E alimentar tanta birra?

Lírica (853) - Azedinha

A vida é aquela baba
Aqui, no Rio, em Belém,
Em Catanduva também
Ou em Paranapiacaba.

Lírica (852) - Outra

Em nome do amor se disseram as mais sérias tolices do mundo. Esta é mais uma.

Lírica (851) - Pode?

Não vou cantar o otimismo.
Me digam, quem cantaria,
Sofrendo de dispepsia,
De crupe e de reumatismo?

Lírica (850) - E daí?

Digamos que seja uma tarde muito azul, de primavera. Que os passarinhos, alvoroçados, cantem e que os frequentadores do parque se olhem maravilhados, por jamais terem ouvido música igual. Digamos que haja no ar um aroma desses que os maus poetas costumam chamar de celestiais. Digamos que e que e que. E daí? A mim, que me importará tudo isso, estando onde estarei?

Lírica (849) - A hora

Poderá ser de madrugada, à tarde, à noite, de manhã. Não se preocupe. Você não precisará estar preparado, não dependerá de você. Quando for o momento, sorria, se quiser. Ou não sorria. Não posso lhe dar conselhos. Nunca passei por isso. Quando chegar minha hora, saberei.

Lírica (848) - O caminho

Não me amparem, não me segurem. Eu, que tantos caminhos busquei, tenho um, agora, que me foi destinado desde o dia em que nasci. Não preciso fazer nada, nem poderia, se quisesse. É só seguir, andar. Meus passos não são mais aqueles resolutos, com os quais eu pretendia vencer jornadas. São os que agora me cabem, lentos, às vezes trôpegos, mas seguros. Não me amparem, não me segurem. Não me esperem, também. Não há volta. Um dia vocês farão também este caminho. É meu agora o privilégio.

Lírica (847) - Vivendo

Não há mais riso ou enlevo,
Amor não mais haverá.
Vivo do que o dia dá:
Vejo, sinto, penso, escrevo.

Lírica (846) - O vampiro

Em Curitiba, à noite, circulam algumas mulheres com marcas de dente no pescoço. As outras não tiveram a sorte de conhecer Dalton Trevisan.

Lírica (845) - Com Dalton

Seria agradável sair pela noite com Dalton Trevisan. Ele não me levaria para um prostíbulo ou um lupanar, me levaria para um puteiro onde as mulheres exibiriam dentinhos de ouro, tatuagens indicando o itinerário do amor aos bêbados já sem o dom do olfato e (evoé, Baco!) nada teriam em comum com as virgens de Álvares de Azevedo.

Lírica (844) - Descuido

Às vezes, de manhã, ainda emaranhado no sono, esquecia que tinha se proibido de acalentar esperanças e, abrindo a janela, olhava para o horizonte com um sorriso.

Lírica (843) - Ramo

Na tarde em que o mundo estiver sofrendo sua agonia final, os homens, morrendo todos na última de suas insanas batalhas, não verão, porque o céu estará ensanguentado pelas chamas e enegrecido pela fumaça, um passarinho que estará tomando um rumo que não será nem norte, nem sul, nem leste, nem oeste (apenas mais quatro dessas pobres e presunçosas convenções humanas) e levará no bico um ramo de oliveira.

Situações (44) - Anatomia

Tantas perdas vinha sofrendo, tantas extirpações, que toda manhã, ao acordar, a primeira coisa que fazia era checar se tinha ainda cabeça, tronco e membros.

Situações (43) - Mal-informado

Quando resolveu ser poeta concretista, a palavra com que iniciou seu novo estoque poético lhe pareceu tão adequada que ele passou a manhã andando pela sala, pronunciando-a com um deleite juvenil: pa-ra-le-le-pí-pe-do, pa-ra-le-le-pí-pe-do.

Situações (42) - Zorra

Ah, como seria mais simpática a morte se os parentes e os amigos não vestissem aquelas roupas ridiculamente solenes, se os colares, os braceletes, os casacos felpudos e os penteados fúnebres fossem deixados em casa pelas mulheres e se o bando de crianças pudesse correr em volta do caixão e, sem medo da cara feia do defunto, roubar-lhe umas flores e iniciar uma guerra que fizesse voar pétalas para todos os lados.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Lírica (842) - William Saroyan

Uma dívida que não saldarei é a visita que sempre quis fazer a Fresno, na Califórnia. Não sei o que se pode ver lá, nem se algum guia turístico informa. A mim me bastaria saber que em tal ou qual casa nasceu William Saroyan. Ninguém sabe hoje quem foi William Saroyan, e, dizendo isso, eu me sinto irrecorrivelmente culpado. Eu sei quem foi William Saroyan e, pelo que ele representou para mim, o mínimo que eu deveria ter feito, desde o primeiro conto dele que li, seria dizer o nome dele pela rua, ou ao menos sussurrá-lo, como se sussurra o nome da mulher amada ou de um santo.

Lírica (841) - Ivan Ilitch

Lembro-me de como achei tolo Ivan Ilitch quando ele descobriu com espanto que, como todo ser humano, estava destinado a morrer. Como me arrependo, hoje, de, com a minha presunçosa adolescência, não ter demonstrado por ele mais do que uma tênue comiseração. Não sei se terei outra oportunidade de me encontrar com ele, pobre Ivan. Que Deus o tenha.

Lírica (840) - Alguns

No dia em que soubermos (se viermos mesmo a saber), poderemos descobrir que a última viagem talvez seja a primeira de outras tantas. Alguns de nós exultarão. Alguns.

Lírica (839) - Inventário

Cuida bem do teu corpo. Um dia a Morte virá e hás de prestar contas. Ela te perguntará dos rins, dos pulmões, do pâncreas, das paratireoides, de tudo, e irá colocando um "x" diante de cada item. Estás preparado para esse inventário? Estás mesmo? O que dirás, por exemplo, quando ela te perguntar onde está teu coração? Que nome dirás, que endereço darás quando ela quiser saber quem ficou com ele?

Lírica (838) - Pauliceia

Tão anacrônica é tua febre, tão ultrapassada... Deverias ter nascido duzentos anos atrás e ser companheiro de Álvares de Azevedo ou quem sabe Fagundes Varela. E, expondo-se ao cruel frio paulistano e à sua mortal garoa, ir declamar teus versos tuberculosos em algum beco onde ao menos te responderiam os cães irados e as maldições dos pais de família zelosos de suas virgens, guardadas para os fidalgotes e para os homens não corrompidos pela peste da poesia. Hoje, quem te responde?

Lírica (837) - Ensaio amoroso

O amor é imortal. Podem vir a negá-lo os lábios que o juraram, podem zombar dele e até amaldiçoá-lo. Estarão negando, zombando e amaldiçoando em vão. A partir do momento em que é jurado, o amor não pertence a quem o jurou. O amor está sob a esfera e sob a competência dos deuses e não há quem, tendo-o recebido como dádiva, possa dispor dele e modificá-lo. Assim que alguém invoca seu nome e o acolhe, o amor cumpre seu destino de ser e de perdurar, nos imutáveis tempo e espaço que só a ele cabem.