quarta-feira, 31 de julho de 2019
Estocolmo
Depois de três dias seguidos, hoje é meia-noite e não repetiram o trote dizendo que é uma ligação de Estocolmo. Ele já começa a sentir falta.
Estocolmo
Escreve duas páginas e já fica ofegante.
Pergunta aqui, pergunta ali,
E Estocolmo é sempre mais adiante.
Pergunta aqui, pergunta ali,
E Estocolmo é sempre mais adiante.
Prática
Termos lidado com a poesia é responsável por algumas de nossas convicções, como a de que mulheres e flores são, sim, sinônimos perfeitos.
segunda-feira, 29 de julho de 2019
MQ
Bilac, quando conversava com uma estrela, tratava-a de vós. Quintana, de tu.
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MQ
Mario Quintana era um desses poetas venturosos que todo ano, já no primeiro dia, a primavera vai chamar em casa.
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MQ
A melhor autobiografia de um passarinho seria aquela que Mario Quintana teria escrito, se não fosse tão modesto.
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Cena doméstica
Mãe, o gato me arranhou, queixa-se a menina, mostrando o dedo ferido pelo bibelô estilhaçado.
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Números
Dizer que entre os gatos e os sofás há uma espécie de fetiche é quase uma imposição estatística.
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domingo, 28 de julho de 2019
Uma questão de estilo
Então, no coquetel, o escritor sessentão disse que seu estilo era semelhante ao de Shakespeare e, pegando uma taça de vinho, deu um gole compenetrado, como se estivesse tomando o veneno do terceiro ato.
sábado, 27 de julho de 2019
MQ
Alguma criancice o poeta pode conservar - como a de supor que, embora não saiba voar como Mario Quintana, gorjeia tão bem quanto ele.
MQ
Mario Quintana tinha o que os poetas de verdade têm: um jeito simples de dizer as coisas, como se elas mesmas se narrassem.
MQ
Ler Mario Quintana é ter a impressão de que a poesia é uma questão só de jeito, como aquele que os passarinhos têm ao voar.
Aprendizes
Musas jovens devem aprender como manusear velhos poetas. Eles são frágeis como bibelôs, embora não admitam.
sexta-feira, 26 de julho de 2019
Ás na manga
Quando lhe dava na telha tornar-se ainda mais irresistível, a condessa falsificava uns erres franceses.
Dizer ou não
Não lhes digo que até manejando um cotonete a condessa era demoniacamente sensual. Mas também não lhes digo que não.
Falsa sinecura
Quando conto que durante muito tempo sustentei minha família como revisor de textos, há sempre os que me consideram um homem bem-aventurado. São naturalmente os que nunca ouviram falar de homógrafos não homófonos.
Má sorte
Faltou-lhe um amigo para lhe dizer que a literatura talvez não fosse uma boa ideia ou para lhe indicar uma agência de viagens. Não teria consumido cinquenta anos tentando chegar a Estocolmo.
Balcão
Quantos escrevinhadores se presumiram fenômenos editoriais e não passaram da primeira impressão.
Pontos de vista
Às vezes eu odiava a condessa. Como no dia em que, antes de me deitar sobre ela, eu a olhei como julgava dever olhar para quem compartilhava um pecado comigo, e ela me disse: relaxa, bebê, isto aqui é só uma brincadeirinha.
MQ
Ah, se eu pudesse ter ainda que só um bocadinho daquilo que que em Mario Quintana havia tanto de passarinho.
MQ
Nunca eu soube de outro poeta que, como Mario Quintana, andasse pela rua dizendo: não, obrigado, hoje não, quem sabe amanhã. Os passarinhos, mal o viam sair de casa, começavam a lhe oferecer canções.
MQ
Encontrei Mario Quintana num sonho. Nós nos demos as mãos. Na minha ele deixou respingos de arco-íris.
quinta-feira, 25 de julho de 2019
Projeto final
Ir aos arquivos todos (originais de livros infantis, juvenis, de contos) e revisá-los, ou (como dizem os que julgam a literatura uma questão de boniteza) penteá-los. Estando assim todos arrumadinhos como um menino na primeira comunhão, jogá-los fora. No fundo, a literatura não passa disso: a arte de melhorar a aparência e aumentar os méritos de um defunto.
Empreendedorismo
Se Adão tivesse patenteado o pecado original, seus descendentes não estariam passando fome hoje.
quarta-feira, 24 de julho de 2019
O gemido
Os dois vendedores da livraria ouviram um gemido vindo da estante de poesia. Aproximaram-se e ficaram atentos. Instantes depois o gemido se repetiu. "Dá para acreditar? É este aqui", disse um, puxando um livro. O outro riu: "Antologia de poemas concretos. Como é que pode? Ô cimento chorão!"
Lacuna
"Mas que pouca-vergonha é essa? Pensam que isto aqui é um bordel?", exaspera-se dona Dora, atirando o chinelo nos dois passarinhos acasalados no sofá e sentindo mais do que nunca a ausência da finada gata Beijoca.
Lembrança
No velório, a viúva elogia o terno do defunto: "É o que ele usou no casamento. Quarenta e seis anos... Olha aqui, não parece novo? Doze prestações, no Mappin. Lembram do Mappin?"
Mariozinho
Curiosa é a literatura. Mario Quintana - que, assim como seu xará Andrade, foi trezentos e cinquenta, todos notáveis - deve imensa parte da fama a um trocadilho em que dois substantivos, passarão e passarinho, se disfarçam sapecamente de formas verbais.
O motivo
Procurando uma explicação para sua já incômoda longevidade, ocorreu-lhe, com vergonha e tristeza, que fazia vinte anos que não ia além do primeiro beijo com nenhuma mulher.
No alvo
Cinco reimpressões em um mês do seu livro de autoajuda deram ao autor a convicção de que havia abandonado Shakespeare na hora certa.
Ocaso
É um poema concretista velho e empenado que, tendo sido o símbolo de uma época dourada, não tem hoje nada a esperar além das bolas de chumbo da empresa de demolição.
Aculturação
Confessemos. Se uma noite nos lembrarmos de olhar para a lua e notarmos que ela foi toda ocupada por um outdoor do Mc Donald's, nosso impulso será bater palmas. Só uns dez ou quinze segundos depois colocaremos as mãos nos bolsos e começaremos a reunir penosamente os restos de nosso bom-senso.
Musa
Se ainda houvesse musas e eu merecesse uma, ela haveria de ser nordicamente loira e interminavelmente longilínea.
Sóis
Consciente de sua grandeza, o velho poeta parnasiano abre as janelas ao menos duas vezes por semana, e, mesmo assim, como ele diz, só para não perder definitivamente a amizade com o sol.
terça-feira, 23 de julho de 2019
Erro de revisão
A incauta beata que na página 19
linha 9
o pirata comeu
na errata virou batata
e tudo se resolveu.
linha 9
o pirata comeu
na errata virou batata
e tudo se resolveu.
Feitos um para o outro
Sou um desses escritores nascidos para exprimir não o mundo, nem um país, nem uma cidade, mas apenas uma esquina de um bairro obscuro que, envergonhado de sua insignificância, não aspirasse a nada além do esquecimento.
Nem só
Comecei menino. Hoje, tantas décadas depois, tenho uma convicção: a literatura não depende só da persistência.
Fôlego
Num poeta de oitenta anos, os versos tossem de duas em duas sílabas até chegarem à décima segunda, quando chegam.
segunda-feira, 22 de julho de 2019
MQ
Ora, francamente, concederam ao Marquês de Maricá a honraria, e não deram a Mario Quintana, até hoje, o título de Arquiduque de Alegrete.
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MQ
Se for imitar o Quintana, imite-o simplesmente, com algum respeito mas sem nenhuma pompa. É assim que ele gostaria.
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MQ
O melhor do amor é esperar por ele num banco de parque, lendo um livro do Quintana.
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MQ
Ultimamente, certas frases têm me vindo tão espontâneas e espirituosas que, se não parecesse jactância minha e se não fosse a minha idade, eu poderia achar que me tornei o menino de confiança de Mario Quintana, ao menos para os mais simples recados.
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Prontuário
Os personagens de Shakespeare, com exceção dos cavalos, seriam hoje todos tratados com medicamentos de tarja preta.
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Mesmo que
Numa história policial, até um candelabro merece estar sob vigilância. Quem pode garantir que, instigado pela lei da gravidade, não desabará uma noite na nuca de uma vítima, mesmo que ela seja uma obscura serviçal contratada para o jantar dos lordes?
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Dramatis personae
Nas novelas policiais, às vezes há mais mortos do que personagens.
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Modelos
Quem me dera ser um daqueles alighieris
de rimas ricamente trabalhadas
a serviço de portentosas mulheres
de majestosas imperatrizes de beatrizes
nunca dantes tão primorosamente decantadas.
de rimas ricamente trabalhadas
a serviço de portentosas mulheres
de majestosas imperatrizes de beatrizes
nunca dantes tão primorosamente decantadas.
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Os verdadeiros
Os cativos do amor queixam-se não do seu chicote, mas da parcimônia com que ele o usa.
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Fim de linha
Foi simples, foi assim:
não fui eu que me cansei dela,
foi a poesia que se cansou de mim.
não fui eu que me cansei dela,
foi a poesia que se cansou de mim.
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A escolha
Éramos jovens demais, tolos demais, estúpidos demais. Que outras justificativas podemos dar para termos decidido fazer o que, séculos antes, Shakespeare havia feito como ninguém mais conseguiria fazer?
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sábado, 20 de julho de 2019
MQ
Em Mario Quintana, o exercício da poesia era tão natural quanto a satisfação de sorrir ou a alegria de voar.
MQ
Em quase todas as fotos de Mario Quintana, sinto nele a vontade de dar uma piscada e dizer: se quiser me levar a sério, fique à vontade, mas não exagere.
MQ
Fazer poesia era, para Mario Quintana, um ato natural. Consistia simplesmente em respirar com uma caneta na mão.
MQ
Mario Quintana não tinha, por si só, o dom de fazer surgir o sol. Mas sempre dava uma ajudazinha.
sexta-feira, 19 de julho de 2019
Cantiguinha
Rezar não resolve nada,
Não encontra eco ou guarida.
Ou vem a morte matada
Ou vem a morte morrida.
Não encontra eco ou guarida.
Ou vem a morte matada
Ou vem a morte morrida.
MQ
Quando viam o menino Mario Quintana, os bem-te-vis mudavam o canto: olha eu aqui, olha eu aqui, olha eu aqui.
quinta-feira, 18 de julho de 2019
MQ
Até a palavra ambos parece menos desengonçada quando se refere a Mario Quintana e Manoel de Barros.
MQ
Se Mario Quintana e a poesia tinham um pacto, era desses que se acertam com um olhar e um sorriso.
Soneto das prerrogativas do amor
Amor, quem há de salvar-nos,
Quem há de nos resgatar
Do fundo escuro do mar,
Se quiseres afogar-nos?
Amor, quem há de livrar-nos,
Quem vai ao fogo rogar
Que as chamas venha abrandar,
Se tu quiseres matar-nos?
Não seremos nós, amor.
Deve o servo resistir
À vontade do senhor?
Podes fazer-nos sofrer,
Nos supliciar, afligir,
Podes fazer-nos morrer.
Quem há de nos resgatar
Do fundo escuro do mar,
Se quiseres afogar-nos?
Amor, quem há de livrar-nos,
Quem vai ao fogo rogar
Que as chamas venha abrandar,
Se tu quiseres matar-nos?
Não seremos nós, amor.
Deve o servo resistir
À vontade do senhor?
Podes fazer-nos sofrer,
Nos supliciar, afligir,
Podes fazer-nos morrer.
A raiz do mal
Aos dezoito anos ele começou a ser visto em más companhias. A família foi alertada, mas ninguém sabia o que eram sonetos.
Carreira
Fazer sonetos teria sido o pior dos seus pecados, se na meia-idade ele não houvesse migrado para a prosa.
quarta-feira, 17 de julho de 2019
Na esquina
Xi, menina, cuidado,
diz a cachorrinha à companheira:
aquele poodle de nariz gelado
vem subindo a ladeira.
diz a cachorrinha à companheira:
aquele poodle de nariz gelado
vem subindo a ladeira.
Em pele alheia
E, porque escrevia uma história não exatamente autobiográfica, deixou o protagonista passar a noite com a mulher do chefe do tráfico de cocaína, permitindo até que ele dormisse pachorrentamente na cama do casal depois das quatro horas de formidável amor.
terça-feira, 16 de julho de 2019
A doce recompensa da culpa
Uma vez, desgostosa com o jardineiro, a condessa me contou que frequentemente pensava em chicotear a criadagem, como o pai costumava fazer. Ela não era dada a compreender certas sutilezas, mas nesse dia creio que notou a esperança que havia em meus olhos.
segunda-feira, 15 de julho de 2019
MQ
Não sei quando o menino Mario Quintana viu seu primeiro arco-íris. Gostaria de ter presenciado o agradecido encanto com que os dois se olharam.
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Imagino Mario Quintana e Manoel de Barros como dois meninos que, maçados com a grandiloquência de sons da orquestra, puxam na plateia suas gaitinhas de boca e fazem o tico-tico bicar todo o fubá.
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Alguns poetas se movem como se a poesia fosse um sapato novo, dois números menor. Mario Quintana sempre caminhou como se usasse sandálias nas ocasiões mais solenes e estivesse descalço em todas as demais.
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Era bonito quando o minuano parava de rugir, se assumia como passarinho e ia comer alpiste na mão de Mario Quintana.
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Arena
Corinthians, quanta desgraça.
Estão nos cobrando com juros
O estádio que era de graça.
Estão nos cobrando com juros
O estádio que era de graça.
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Se estrelas se plantam, esse deve ser o atual trabalho de Mario Quintana, lá em cima.
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O simples, em Mario Quintana, não era um detalhe ou um acessório. Não era uma modéstia, uma humildade da alma. Era a própria alma, na qual ele ia buscar as flores, os pássaros e as estrelas.
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A frieza dos números
Para evitar sofrimentos, desde o início vem encarando a literatura como passatempo. Parece ter dado certo. Estava com dezoito anos quando tomou a decisão. Hoje tem oitenta.
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domingo, 14 de julho de 2019
Dever de fiel
A fidelidade ao Corinthians há de ser canina: latir, se preciso; morder, se inevitável.
No lugar errado
O que eu estou fazendo aqui?, perguntou-se o poeta, tentando ver algo de Estocolmo na paisagem suburbana da Vila Guarani.
Sobre a língua da condessa
A condessa não era muito de piadas ou gracejos. Quando os fazia, eram invariavelmente infantis. Como na tarde em que, depois de me mostrar a língua, perguntou: o que você acha dela? Feiosa, eu respondi, para provocá-la. É mesmo?, sorriu a condessa: à noite eu vou pedir a opinião do conde.
sábado, 13 de julho de 2019
Verônica Sabino
Amo em ti, cara Verônica,
Esse teu "n" antes do "i"
E esse chapeuzinho aí
Na tua sílaba tônica.
E amo também cada hino
A que dás, de dó em dó,
O encanto que é teu só, só
Teu, Verônica Sabino.
Esse teu "n" antes do "i"
E esse chapeuzinho aí
Na tua sílaba tônica.
E amo também cada hino
A que dás, de dó em dó,
O encanto que é teu só, só
Teu, Verônica Sabino.
Profecia
Quando menino, diziam-me que eu iria longe. Estavam errados. Tudo que andei ainda não me deixou em Estocolmo.
Norte-sul
A vida mudando vai
Conforme cada estação.
E a morte? Ah, a morte não.
Essa da moda não sai.
Conforme cada estação.
E a morte? Ah, a morte não.
Essa da moda não sai.
Erro contábil
E há aqueles que lançam na coluna de perdas terem sido joguetes do amor, como se houvesse melhor forma de alguém ser manuseado.
Sinopse
Fazendo um resumo de minhas relações com o amor, arrependo-me hoje apenas de ter sido só aquele pouco que fui, e não aquele inteiramente, apaixonadamente, escandalosamente tolo que poderia ter sido.
sexta-feira, 12 de julho de 2019
Bicho-papão
Dois diminutivos brigavam para decidir qual deles era o mais gracioso, quando o gramático avisou: oi, gatinho, ei,cachorrinho, ou vocês se comportam ou eu chamo já a crase.
O ideal
Fui tolo. Quem fixasse por dez segundos os olhos nas partes mais carnudas da condessa saberia que ela não precisava de um poeta romântico, mas de um prosador realista.
Suplício
Ver a condessa mordiscando biscoitos talvez fosse suportável, se ela recolhesse as migalhas dos lábios com uma língua menos minuciosa e se nos seus olhos não houvesse aquela chama que induzia a todos os pecados.
Possessão
Chegava a ser diabólico o poder da condessa sobre mim. Ela o usava em todas as situações. Como, por exemplo, quando comia azeitonas e cuspia indolentemente num pratinho os caroços que, ela sabia, logo estariam em minhas mãos e em minha boca febril.
Novato em apuros
É a primeira vez que você faz isso, não é?, perguntava a condessa quando me submetia a algum novo exercício amoroso. Eu dizia que não, mas era sempre desmentido pelo rubor que imediatamente me incendiava o rosto.
quinta-feira, 11 de julho de 2019
O substituto
Isso é tudo que você tem hoje pra mim?, perguntou a condessa e, já escorregando com o corpo nu para fora da cama, me avisou: então vou ter que procurar um amigo. Fui picado por uma ponta de receio (teria o conde voltado da viagem?) e outra de ciúme (teria a condessa outro amante, além de mim?).Ela abriu então o criado-mudo e sorriu: ah, aqui está você, fujãozinho.
Lembrança
Viu na revista a foto de uma mulher deliciosa e lembrou-se de outra, também magnífica. Estava sozinho, mas, como se fosse um menino vigiado, apagou a luz e deu o primeiro beijo na página colorida.
Mais um pouco da condessa
A condessa me dava a impressão de procurar em mim não os habituais prazeres do sexo, mas uma daquelas satisfações físicas proporcionadas pela ginástica. Já no fim da primeira noite, enquanto eu saía da cama, ela iniciava, com seu adorável ventre, uma série de abdominais.
Queridinho
Meu passarinho, meu passarinho, começou a dizer a condessa entre beijos cada vez mais profundos e molhados, e eu já quase me sentia orgulhoso, quando ela, dizendo novamente meu passarinho, meu passarinho, fez a mão descer sobre mim até onde estava o real objeto de sua insólita ternura.
O amigo ausente
O gato morreu há uma semana, mas o sol se demora ainda na poltrona, como todas as tardes, e espera que ele surja repentinamente de algum canto da sala e se atire sobre ele com aquelas garras brincalhonas.
quarta-feira, 10 de julho de 2019
Decadência
Quando o secretário de Cultura da cidadezinha, depois de mostrar aos três tenores o teatro em que no dia seguinte se apresentariam, perguntou o que tinham achado, eles improvisaram um trecho de ária e olharam para o teto. "Parece que aguenta", sorriu o mais robusto deles, confirmando uma suspeita do secretário: não havia mais Pavarottis.
O rumo
Então, em 1917, a poesia descobriu que era melhor deixar de olhar para o sol e as estrelas e seguir os passos de J. Alfred Prufrock.
Questão de memória
Nos bate-papos com os jovens alunos em colégios, quando lhe perguntam o que pensa do amor, o velho poeta diz que já teve melhor opinião sobre ele - em 1992 ou 1993 - e sorri amargamente.
Dosimetria
O velho poeta tem sonhado com braços e não sabe se, na escala dos pecados, lança isso como circunstância agravante ou atenuante.
MQ
Uma tarde, Mario Quintana parou numa esquina e ficou olhando para o céu. Durava já alguns minutos a contemplação quando as pessoas viram o que ele via: um arco-íris observando um poeta.
MQ
Os poetas são geralmente classificados em três categorias: a dos respeitados, a dos admirados e a dos amados. Mario Quintana pertence a uma quarta, a dos muito: muito respeitados, muito admirados e muito amados, tudo isso com uma obstinada simultaneidade.
terça-feira, 9 de julho de 2019
O teste
Cedendo a um desses joguinhos frequentemente propostos por sua sensualidade, ele finge não saber se são grossos ou finos os braços da amada e mais uma vez, para acabar com a dúvida, os imagina tão próximos de seus lábios que pode avaliá-los com seus beijos.
Precaução
Ele nunca perguntará se ela o ama. Não se arriscará a perder a única ventura que lhe resta: a de imaginar que sim.
Como poderia ter sido
Às vezes, lembrando-se de como certas mãos um dia estiveram próximas das suas, ele aperta o ar e fecha os olhos, em êxtase.
Aquele gosto
Uma das jovens, a mais afogueada das três, disse a palavra amor, e o poeta sorriu tristemente, como se recordasse um vício muito antigo que subitamente se arrependesse de ter abandonado.
Sina
Condenados à castidade,
os amores impossíveis
trocam beijinhos no rosto
e morrem em olor de santidade.
os amores impossíveis
trocam beijinhos no rosto
e morrem em olor de santidade.
Trecho de uma carta
Se um dia nos reencontrarmos, finja por favor não me ter visto. Eu tentarei fazer o mesmo. Meus velhos olhos há muito já não são dignos de ver as belezas do mundo, e minha mão, não me pergunte por quê, não merece mais estar em seu ombro.
domingo, 7 de julho de 2019
MQ
Se você encontrar o nome de Mario Quintana ao lado de palavras como pedantismo, gongorismo ou afetação, ele estará funcionando, na frase, simplesmente como antônimo.
MQ
Sempre que Mario Quintana aparecia num parque, folhas, grãozinhos de terra e fiapos de nuvem pousavam em sua mão, para que ele, ao soprá-los, os transformasse em borboletas.
MQ
Um livro de poesia deve estar sempre no alto da estante e perto da janela, como se fosse, ou possa vir a ser, um pássaro. Se for um livro de Mario Quintana, a janela há de estar sempre aberta.
MQ
Em Mario Quintana até os acessórios eram principais, como os balõezinhos coloridos em festas de criança e as rosas nos roseirais.
sábado, 6 de julho de 2019
MQ
As ruas de Porto Alegre
reconheciam Mario Quintana de longe
quando ele ainda vinha vindo
com seus leves passos escandindo
os versos de metros diversos
de cunho divino ou profano
com que o Guaíba ele cantava
e ninava o minuano.
reconheciam Mario Quintana de longe
quando ele ainda vinha vindo
com seus leves passos escandindo
os versos de metros diversos
de cunho divino ou profano
com que o Guaíba ele cantava
e ninava o minuano.
MQ
Os passarinhos eram econômicos nas saudações matutinas que faziam ao sol porto-alegrense, Poupavam gorjeios para a hora em que Mario Quintana, sempre acompanhado pela Poesia, saía de casa.
Rotina
Os morredores de rua
não fogem ao destino -
morrem de frio no Brás
e de fome na Vila Clementino.
não fogem ao destino -
morrem de frio no Brás
e de fome na Vila Clementino.
Privilégio
Tão horripilante se revelou o café servido no velório que não precisar tomá-lo era uma indecente prerrogativa do defunto.
quinta-feira, 4 de julho de 2019
MQ
Os prodígios de Mario Quintana tinham sempre a marca da simplicidade. Se comparados aos fenômenos naturais, pode-se dizer que ele não relampejava, não trovejava. Contentava-se em chover, em chuviscar.
MQ
Entre ser sua própria estátua, brilhando ao sol de Porto Alegre, ou um passarinho pousando um instante sobre ela, Mario Quintana, se lhe perguntassem o que preferiria, responderia gorjeando.
quarta-feira, 3 de julho de 2019
Currículo
Esperas, José do Pinto,
Ganhar nobrezas e bens,
Mas morrerás pobre, eu sinto,
Se Pinto é só o que tens.
Ganhar nobrezas e bens,
Mas morrerás pobre, eu sinto,
Se Pinto é só o que tens.
Trajetória
Viver tem sempre um sentido:
Para a frente, para o norte,
Rumo ao paraíso perdido
Onde o nada reina e a morte.
Para a frente, para o norte,
Rumo ao paraíso perdido
Onde o nada reina e a morte.
terça-feira, 2 de julho de 2019
Explicação talvez tardia
Quando digo salve, fulano, ou salve, fulana, é menos uma saudação que um apelo. Na verdade, quero dizer salve-me, fulano, salve-me, fulana.
MQ
Imagino, feita à mão por um deles, a placa: Quintana e Barros. E, lá dentro, seu Mario e seu Manoel empenhados nas duas únicas atividades do escritório: a beleza e a poesia.
MQ
Assim como Olavo Bilac, Mario Quintana era capaz de ouvir e de entender estrelas. Mas só as gaúchas.
MQ
Um tantinho de Mario Quintana por dia é essencial. O coração se aquece e a vida, para rimar, agradece.
MQ
Às vezes, acho que Mario Quintana era um menino que escrevia como gente grande. Às vezes, acho o contrário.
Chama tardia
Subitamente o rosto do defunto assumiu uma coloração de tomate maduro, e todos se perguntaram qual daquelas mulheres chorosas, todas modelos da agência dele, era responsável pelo prodígio erótico.
segunda-feira, 1 de julho de 2019
MQ
Foi escrever graça e escreveu garça. A partir daí, foi como se o poema ganhasse asas. Na troca de letras ele viu o dedo de Mario Quintana.
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MQ
Se eu houvesse conhecido Manoel de Barros antes, não teria perdido tanto tempo com poetas que, como prestidigitadores circenses, tiravam versos da manga como se fossem borboletas. Se eu houvesse conhecido Mario Quintana antes, não teria perdido tempo nenhum.
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Exército de Salvação
De vez em quando, ainda que por caridade, use uma dessas palavras esquecidas no dicionário: oxalá, porventura, vice-versa.
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Brincadeira (p/ Ana Farrah Baunilha)
O amor há de maltratar, há de doer. Só não vale morrer.
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Da construção dos sonetos
Alguns sonetos são planejados; outros, arquitetados. Não há nada de anormal nisso. Essa é a índole dos sonetos. O problema são aqueles friamente premeditados e executados cruelmente, como um assassinato.
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Resumo biográfico
No vigor dos seus noventa e dois incompletos anos, o poeta deixou a vida e, com ela, o legado de catorze cadernos plenos de maravilhas grafadas com sua esmerada letra, quinhentos mil reais de dívida e uma dezena e meia de filhos, netos e bisnetos, todos talentosos e parnasianos como ele.
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