Como não lastimar os mortos
quando o sol juvenil do domingo
vai buscá-los em casa
e já se foram
vai procurá-los na rua
e não os encontra
vai chamá-los no parque
e já não estão?
Como não lastimar os mortos
quando o sol juvenil do domingo
vai buscá-los em casa
e já se foram
vai procurá-los na rua
e não os encontra
vai chamá-los no parque
e já não estão?
Hoje me peguei pensando nesta dor que tua morte me deixou. Ela não se cansa, não descansa, e, sem cansaço nem descanso, gaba-se de me doer cada vez mais. Não merecerá castigo uma dor assim, que não esmorece, não silencia, e se proclama orgulhosa, quase triunfal?
Descansa, minha querida,
Repousa plácida, assim.
Desapega-te da vida,
Do sol, de tudo, de mim.
Hoje que tu já não me acompanhas nos passeios matinais, o sol, como se tivesse se transformado num velho avarento, me segue sem entusiasmo pelas calçadas que levam à praia. Não encontra em mim aquele sorriso que lhe oferecias, nem a graça alegre dos teus passos à medida que se aproximavam do mar. O sol sabe que nunca mais verá como tu voltavas a ser menina quando tiravas a sandália para pisar as primeiras ondas.
De quem sai pelas ruas num carro caquético, apregoando pamonhas de Piracicaba, não se pode dizer que é um poeta, mas certamente é alguém que vive das palavras.
Acredito, com uma esperança que é quase uma convicção, que para certos infortúnios, como a morte de um ser muito amado, nem o tempo consiga oferecer alívio ou consolação.
Cada dia acordava mais cedo, não para proclamar a excelência do sol, mas para, apanhando a manhã ainda não de todo desperta, melhor apreciar-lhe os defeitos.
Foram-se os dias felizes,
Tão céleres quanto vieram.
Os outros, os que não eram,
Em nós fixaram raízes.
Mulher, não vos vejo mais,
Rainha, sou vosso cativo,
Só para servir-vos vivo,
Dizei-me, rainha, onde estais?
Somente um tolo ou sandeu
Em coisa melhor crerá.
Se glória a vida não deu,
Tampouco a morte dará.
É um daqueles parnasianos inquebrantáveis aos quais pode faltar um franguinho para o almoço, mas jamais um bom cisne para um soneto.
Eu serei sempre quem viu
Que tudo ao redor ruía
E se entregou à apatia
Até que tudo ruiu.
A literatura é um dos melhores modos de aprender que o lado ruim da vida talvez seja o único.
Rainha, nós perdão viemos rogar.
Erramos. Tão serena tu dormias
E tão bela tu estavas e sorrias
Que nenhum de nós quis te despertar.
Fui relapso com você nas grandes e também nas menores coisas. Soube pouco de você. Nada me absolverá dessa culpa, nada a aliviará. Como eu gostaria de ter agora resposta para pequenas dúvidas que me atormentam. Desde o dia em que você se foi, eu me pergunto se você era friorenta. E peço, e rogo, e rezo para que não, não, não.
Há homens que tardam a se dar conta do que ocorre ao seu redor. Conheço um que, tendo vivido décadas sob a guarda de um anjo, só notou isso quando seu protetor, chamado para missão mais nobre, se foi.
Sei, já, que onde estás é um lugar encantado. Eu o vi esta noite, em um sonho que te conto agora. Eras uma menina e estavas sentada numa nuvem, com outras meninas. Um pouco acima, uma mulher que chamavam de mestra. Ela olhou para suas pequenas alunas e convidou: "Meninas, vamos saudar a nova colega?" As garotas se levantaram alegremente: "Bom dia, estrela."
Quando falo de ti ou contigo, gostaria que não estivesse presente a literatura. Que eu nunca venha a usar teu nome como o clown do circo de periferia usa a buzina para pedinchar o aplauso do sonolento espectador do último degrau da arquibancada.
Fomos buscar-te hoje ali onde te consumiu o fogo. Nós te colocamos no centro da mesa, na sala, e trouxemos para fazer-te companhia o vaso com a flor-de-maio. Lá ficarás até o dia em que, cumprindo tua vontade, te levaremos para espargir-te no mar que amavas tanto.
Sobre teu caso com a vida
O que eu te posso dizer
É que tu amaste viver
E foste correspondida.
Tantas coisas fui
quantas julguei ter sido
Fui grande
fui nem tanto
fui talvez
De tudo quanto fui
ou julguei ser
sou hoje nada
sou hoje só ex.
Certa noite um homem, incumbido de zelar por uma rosa silvestre, julgando irrelevante a tarefa e muito fria a brisa, foi para sua casa e, depois de tomar um chá, adormeceu. De manhã, despertado por um vento feroz e uma voz acusadora como uma maldição, soube que não havia mais nem rosa nem tarefa, Eu sou esse homem, minha rosa.
Aos jovens de hoje falta aquela coragem básica, aquela tolice desembestada, aquela sandice que devem ter os que merecem morrer de amor.
Soldado teu
sobrevivi a ti minha rainha formosa
para que voz nenhuma do mundo
possa negar sem resposta
tua alma de pássaro
tua essência de anjo
tua identidade de rosa.
Por que foi, minha rainha,
Que quando tu me deixaste
E a alma contigo levaste
Também não levaste a minha?
Se já não mais os desta hora,
Se não mais os desta vida,
Que sonhos sonhas agora,
Minha bela adormecida?
Depois que você se foi, cheguei a pensar que ele não viria mais. Mas o sol tem aparecido toda manhã e, vendo fechadas as janelas que você lhe abria, desce ao jardim para perguntar às flores o que aconteceu. Depois, segue seu caminho, desenxabido como o menino doentinho a quem jamais terão a coragem de dizer que sua professora nunca voltará.
Se hoje escrevo mal ou bem,
Já não me importa saber.
Hoje escrevo para quem
Já não pode mais me ler.
Habituado às pequenas gentilezas
com que viciavas este menino teu mimado -
ajudar-me a dar o nó da gravata
a fechar os botões da camisa
a colocar os pés nos sapatos -
eu se pudesse falar-te agora
começaria provavelmente
não pelas fastidiosas juras de amor
mas por perguntar-te miudezas
A primeira seria se tiveste medo
a segunda se estás com frio.
Minha maior sagacidade é ter aprendido a não ficar esperando mais notícias depois de receber a pior.
No fim já não falavas comigo
Eu dizia te amo
tu não respondias
eu repetia te amo
tu não dizias nada
E eu tolo pensei
que eras outra vez
a menina que quando se zangava
me punha de castigo
e jurava nunca mais falar comigo.
Sei agora que devia
ter tentado acordá-la
mas você estava tão corada
tão rosa tão menina
que eu quis acreditar
que fosse só uma
brincadeira uma travessura
que você estava a me aprontar.
O amor terá o nome que lhe deres.
O meu, quando eu o chamo, deixa no ar
As sílabas que cantam ao chamar
A mais gentil de todas as mulheres.
Em um ano agora já da categoria dos remotos
1958 talvez 1959 ou 1960
em algum lugar desta gélida São Paulo
na Sé ou na Ipiranga quem sabe na Barão
o sol a seguia reverente
como um súdito acompanhando sua rainha
Foi essa a imagem que me veio
e eu disse a você e você
me beliscou e me disse seu bobinho
Eu guardei o seu beliscão
como um súdito guarda
o lenço que furtou da sua rainha
e fomos caminhando assim
o sol sobre seus cabelos
eu orgulhoso à sua sombra
até um cinema qualquer
para um filmezinho de domingo
Foi um sinal o primeiro
dessa descuidada majestade
que você nunca reconheceu
mas que me iluminou e aqueceu
até seu brilho derradeiro.
Quem há de confiar ainda em ti?
O que tiveste de mais precioso
teu melhor ouro teu tesouro
deixaste que entrassem em tua casa
empilhassem tudo em uma caixa
e se fossem enquanto
sentado em tua covardia
ouvias os cantos jubilosos dos predadores.