Conjugação

 Desfrutar é outro daqueles tantos verbos que para ele não fazem mais sentido na primeira pessoa.

Trecho final

 Porque é o último,

Sabes que enfim é o certo.

Podes sorrir agora,

Ninguém zombará de teu sorriso.

Teus passos são só os que pede o caminho,

Porque estás perto,

Cada passo mais perto.

O pseudônimo

 Decepcionado com o anonimato de sua literatura, resolveu participar de um concurso de contos. Seu pseudônimo, Amaro Reles Ramble, revelou-se modesto depois que se divulgou o resultado. Estava um pouco mais amaro, um tanto mais reles, bastante mais ramble.

Estatística

 Hoje, posso dizer com certeza - e com orgulho - que sempre pertenci ao grupo dos tolos.

Boia

 A poesia não chegou a salvar-me. Esteve perto, mas não o bastante.

Chegada

 É fácil ser sábio quando os caminhos se reduzem a um só e o cansaço economiza cada passo.

Continha de chegar

 Olhem se nós morrermos

cada dia um pouco

devagar e sempre

sem pressa

morigeradamente

dia chegará

em que teremos

morrido o suficiente.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2025/01/19/varios-tons-de-fracasso-raul-drewnick/ 

O exercício

 Às vezes, meu cérebro age como se fosse um moleque endiabrado. Hoje, por exemplo, me sugeriu  este  exercício como o mais adequado para a minha idade e meu futuro próximo: fechar os olhos, sempre que possível, e mantê-los assim cada dia com maior determinação.

A frase

 Há quatro dias não escrevo. Há quatro dias, como se fosse um cão abandonado, uma frase me segue, aflita: "Há de ser um lugar tranquilo". Não é literatura, mas eu a registro aqui. A vida é assim, às vezes. Direta e pedinchona como um manifesto. "Há de ser um lugar tranquilo."

Produto

Em tudo quanto você

Os olhos põe, ou a mão,

Nada de belo se vê

Nem digno de apalpação. 

Opinião

 Desde os quinze anos, o que mais venho fazendo é escrever. Se você me acha escritor, eu lhe agradeço. Se acha que não, eu lhe agradeço se não me disser.

Saudade

 Era menos infeliz outrora, quando dava olhos à presunçosa pirotecnia do sol e ouvidos à demagogia matinal dos bem-te-vis.

Passagem

Que no fim restem só duas palavras e você possa dizê-las simplesmente como são, sem retórica ou solenidade. Uma delas será Senhor. A outra, perdão, ou obrigado. 

Resumo

 Se ao menos tivesse sido literatura aquilo em que consumi o sangue dos meus dias.

Contra o mundo

 Ultimamente o velho poeta deu de embirrar com tudo. Tem casos pendentes com os vizinhos, os parentes, os cachorros da rua, o sol bisbilhoteiro, que o importuna logo de manhã, além de outros que correm em segredo de justiça.

Proverbiozinho de algibeira

 Se é inábil tua mão, o que de melhor podes ensinar-lhe é a omissão.

Embuste

 Viciado em literatura, até o mesquinho gemido final ficou esperando o desfecho triunfal.

Outrora

 Longe vai o tempo em que, para ver as manhãs, saía  com os braços abertos e o coração cheio de adjetivos.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2025/01/05/conta-aquela-da-poesia-raul-drewnick/

Oraçãozinha envergonhada

 Cada dia estou mais fraco.

Valei-me, meu bom Jesus,

Banhai-me todo de luz.

Sou fosco, sou baço, opaco.