domingo, 2 de setembro de 2012

Os filósofos

Os filósofos são aqueles senhores que começam propondo a discussão de um problema e, enquanto desenvolvem sua tese, apresentam mais uma centena de questões, sem resolver nenhuma. Mas como ficam belos os problemas na linguagem filosófica. Resolvê-los seria quase uma atitude de mau gosto.

Cão em velório

Um cachorro chegou, farejou as três salas do velório e, displicente, voltou para a rua e para o sol. Pesquisou outra vez o ar e, depois de regar generosamente o poste, virou a esquina e desapareceu. Um filósofo extrairia disso uma parábola, um poeta ao menos uma estrofe. Mas o mais interessante seria conhecer o ponto de vista do cachorro.

Nem sempre

Escrever todos os dias nem sempre é dedicação à literatura, mas mera presunção.

De terno e gravata

De terno e gravata, que não lhe eram habituais, o morto assumiu uma severidade que impressionou os parentes e os amigos, porém não as moscas, que se aproximaram dele como se estivesse de bermuda e camiseta e untado de mel.

sábado, 1 de setembro de 2012

Contas

De tudo quanto vivi,
Quando o tempo for contado,
Que cada instante sem ti
Me possa ser compensado.

Bom dia

As melhores manhãs são urdidas de madrugada. Enquanto a amada dorme, há uma conspiração da qual participam gotas de estrela que, pingando lentas e silenciosas, se misturam com um pouco de leite coado da lua, para avivar o verde, dourar o amarelo e fazer de cada cor e matiz as cores e os matizes que a amada, acordando, admirará. Talvez, se a conspiração tiver sido completa, um resto de vento noturno diga duas palavras que, pelo sorriso que abrir a amada, se poderá supor que sejam bom dia.

Conforme sua vontade

Pule de que andar for
sangre a jugular
aperte a corda
até sufocar
morra como lhe der vontade
mas nunca ao amor
implore por piedade

Peça so seu fornecedor
um punhal ameno
uma boa cicuta
ou um simples veneno
mate-se como lhe der vontade
mas nunca ao amor
implore por piedade

Tranque-se no congelador
afogue-se no mar
ponha nisso todo o empenho
e vá tentando até acertar
por menor que seja a possibilidade
mas nunca ao amor
implore por piedade.

Poeminha informático

Saudades de você
do tempo em que pelo micro
piadinhas eu lhe mandava
e gracejos inventava
para que de você viesse
um he-he-he ou um rs

Saudades de você
do tempo em que
meu dia começava
com o bom-dia
que pelo micro
eu lhe mandava

Corria tudo tão bem
que correr melhor não poderia
cada bom-dia meu
retribuído por teu bom-dia
e talvez assim continuasse
se não me tentasse a poesia

Querendo que você
fosse mais do que você
troquei a linguagem simples
que tão bem nos servia
pela pompa engravatada
pela grandiosidade fria

Mandei-lhe odes sonetos
obras de falha ourivesaria
e sozinho hoje diante do micro
lembro-me do tempo em que você
com um rs ou um he-he-he
aos meus e-mails respondia.

Alô

Somos escravos das frases grandiloquentes. Dizemos a um amigo que jamais poderemos retribuir o que ele fez por nós e, no entanto, às vezes dar-lhe um alô bastaria, e o alegraria, mas passamos dias sem dá-lo.

Se eu ao menos

Se eu ao menos
tivesse procurado
um pouco mais
se eu tivesse
escolhido melhor
se eu ao menos
pudesse prever
se eu tivesse adivinhado

Dei tudo ao Amor
e pensando que fosse muito
acreditei que o Amor receberia tudo
como se fossem presentes para um rei

Estava ali tudo
que com esforço reuni
e enquanto as oferendas
eu carregava
sempre alguém indagava
para quem eram
todas aquelas prendas
se por acaso para Deus
e eu sempre respondia sim
são para um Deus

Mas quando as dei
o Amor olhou para mim
quase rancorosamente
como se eu fosse
uma voluntária intrometida
que tivesse levado
um saco abarrotado
de roupa velha e comida
para um indigente

Havia ali até alguns trastes
é verdade
com a minha vida misturados
mas o Amor nada quis ver

Se eu ao menos
tivesse procurado
um pouco mais
se eu tivesse adivinhado
se eu tivesse
escolhido melhor
se eu pudesse prever.