domingo, 1 de junho de 2014
Estação Vergueiro
Foi aqui que a esperei uma tarde inteira. Sofri, encharcou-me a chuva, morri. Que bom que você não veio. Você não sofreu, você não se encharcou, você não morreu. E, afinal, por que você viria? Para ver um homem chorando? Você já estava cansada desse espetáculo, que eu ainda hoje repito, pobre ator de uma peça só.
Um poema de Emily Dickinson
"O rosto é seu biógrafo -
Pelo tempo em que puder corar,
A perdição é opróbrio -
Depois, ele peca em paz."
(De Poemas escolhidos de Emily Dickinson, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
Pelo tempo em que puder corar,
A perdição é opróbrio -
Depois, ele peca em paz."
(De Poemas escolhidos de Emily Dickinson, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
Fernanda Lima
Me fascinam
tua ambivalência,
tua ubiquidade.
Se olho para ti,
e em seguida para o sol da tarde,
vejo um sol aqui embaixo
além daquele lá de cima
os dois com
a mesma excelência
os dois com
igual majestade.
tua ambivalência,
tua ubiquidade.
Se olho para ti,
e em seguida para o sol da tarde,
vejo um sol aqui embaixo
além daquele lá de cima
os dois com
a mesma excelência
os dois com
igual majestade.
Espelho
Com essa cara
de sonso com azia
e de tolo condecorado
queres estar um dia
diante do sagrado
altar do Amor
Nosso Único
e Amado Senhor?
de sonso com azia
e de tolo condecorado
queres estar um dia
diante do sagrado
altar do Amor
Nosso Único
e Amado Senhor?
Fernando Pessoa doente
"Dói aqui?", pergunta o médico, apertando-lhe o peito. "Em mim, não. Mas dói no Ricardo Reis." Pacientemente, o médico pega uma das cem fichas de diagnóstico e faz a anotação.
Eles, eu
O que eles querem de ti
Não sei, mas provavelmente
A eles darás, gentilmente,
O que eu jamais recebi.
Não sei, mas provavelmente
A eles darás, gentilmente,
O que eu jamais recebi.
Soneto da nossa recíproca falsidade
Dos fracos laços e até
Dos fortes vínculos nossos
Não ficou nenhum de pé,
Todos viraram destroços.
Do amor que nos inspirou,
Do afeto que nos unira,
Tudo afinal se mostrou
Mentira, pura mentira.
Nós fomos falsos, mentimos,
E agora o gosto sentimos
Da nossa mútua traição.
O que eu queria contigo,
E o que quiseste comigo,
Era isso, só: destruição.
Dos fortes vínculos nossos
Não ficou nenhum de pé,
Todos viraram destroços.
Do amor que nos inspirou,
Do afeto que nos unira,
Tudo afinal se mostrou
Mentira, pura mentira.
Nós fomos falsos, mentimos,
E agora o gosto sentimos
Da nossa mútua traição.
O que eu queria contigo,
E o que quiseste comigo,
Era isso, só: destruição.
O que ficou
Nós nos debatemos tantos anos, amor, antes de morrer... E o que ficou de toda a nossa agonia? O peixe, ao menos, quando fisgado, deixa no ar uma centelha de prata, como se desafiasse o ouro do sol.
O sol no sofá
É o terceiro dia da empregada. É mais nova que as duas anteriores. Deve ter cinquenta. Sentado no sofá, de onde dificilmente sai, porque as dores de coluna o atormentam, ele vê que ela é como sua mulher disse: ordeira. Na véspera e na antevéspera, também começou pela cozinha e é agora - quando a mulher saiu com a filha, como toda tarde - que ela vem arrumar a sala. Assim como ontem e anteontem, ela tira o pó daqui, mexe ali, acolá e, depois de um suspiro de cansaço, vem e senta-se ao lado dele, que vê tevê. No primeiro dia ele quase não sentiu o contato dela. No segundo, ela se encostou mais. Hoje, no primeiro momento ele pensou que ela fosse sentar-se no seu colo. Parece que estão num daqueles bancos apertados de ônibus. Ela fala com ele carinhosamente, como a filha fala, e, com uma voz que tenta imitar a dela, pergunta se ele está bem, se tomou os remédios. Suando de culpa antecipada, ele tenta lembrar aquela palavra, como é mesmo? Incesto. No primeiro dia ela perguntou sua idade e ele confessou, com tristeza: setenta e cinco. Ontem ela disse que tinha esquecido, perguntou de novo, e ele roubou na conta: setenta e um. Se ela perguntar hoje também, o que ele vai dizer? Isso ele ainda não sabe. Sabe que fazia muito tempo que não sentia esta quentura inquieta na coxa, e também um pouco acima, onde ela mexe agora com a mão vagarosa, lerda, preguiçosa, como se não tivesse nada mais para fazer na casa, como se não precisasse ainda lavar a frente e regar o jardim. Talvez o que ele está sentindo já seja o máximo. Vai descobrir isso logo, porque a mão se movimenta mais rapidamente e tenta abrir um botão da sua calça. Ele fecha os olhos e espera. Recorda-se de uma frase. Não tem nada a perder. Onde ela está sentada ficará pelo menos, como ontem e anteontem, o calor que depois ele apalpará com a mão reverente, como se ali tivesse estado o sol com sua bunda majestosa.
Um poema de Eugenio Montale
"O homicídio não é o meu forte.
De homem nenhum, talvez de algum inseto,
algum mosquito esmagado com um chinelo
na parede.
Durante muitos anos usei os mosquiteiros
para protegê-los. Depois, por muitíssimo tempo,
tornei-me eu próprio um inseto, mas indefeso.
Acabei descobrindo que viver
não é questão de dignidade ou de outra qualquer
categoria moral. Não depende,
nunca dependeu de nós. A dependência
pode até exaltar-nos, mas não nos alegra nunca."
(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)
De homem nenhum, talvez de algum inseto,
algum mosquito esmagado com um chinelo
na parede.
Durante muitos anos usei os mosquiteiros
para protegê-los. Depois, por muitíssimo tempo,
tornei-me eu próprio um inseto, mas indefeso.
Acabei descobrindo que viver
não é questão de dignidade ou de outra qualquer
categoria moral. Não depende,
nunca dependeu de nós. A dependência
pode até exaltar-nos, mas não nos alegra nunca."
(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)
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