quinta-feira, 31 de março de 2011

Um coelho

Te darei um dia
um coelho tão branco
tão unicamente
inacreditavelmente
e inatingivelmente branco
que ninguém
nem eu
incorrerá na aberração
de compará-lo à neve
ou cometerá a heresia
de dizê-lo igual
a um floco de algodão

Te darei um coelho
um dia
misericordiosamente
imune a qualquer metáfora
ou mau gosto
de minha poesia

terça-feira, 29 de março de 2011

Quanto

Amou, já nem sabe quanto.
Qual há de ser a medida
Capaz de aferir o encanto,
A força, a razão da vida?

segunda-feira, 28 de março de 2011

Logro

Sementes tantas, plantadas,
Projetos tantos, perfeitos,
Só deram sonhos desfeitos,
Deram só flores fanadas.

Teste

Fechar os olhos, deixá-los
Como se o sono lhes viesse
Ou como se a morte houvesse
Chegado para fechá-los.

Etapa

Percorre de novo o mapa,
Mais do que nunca aturdido.
Não sabe: venceu a etapa
Ou foi por ela vencido?

Pauta

Que docemente vivamos,
Como se diz que convém,
E mansamente morramos
Sem dar trabalho a ninguém.

domingo, 27 de março de 2011

Maturidade

Não tem mais idade
para bancar o tolo

Não olha mais para o céu

De lá só vêm
ele sabe muito bem
as piscadas obscenas do sol
o câncer de pele
e o desprezo pastoso dos pombos

Olha para baixo
jamais para as pessoas

Sabe que ninguém
nada além lhe daria
que um sorriso casual
ou um educado bom-dia

Olha para o chão
onde crescem as ervas vadias
para as calçadas escorregadias
para o poste usual
onde os cachorros exprimem
sua gratidão
pelo passeio matinal

Olhar para baixo
tem sido o seu destino
e ele o aceita
desde menino
quando descobriu
que as esperanças são vãs
e que o açúcar da vida
não dura senão
quatro ou cinco lambidas
e meia centena de manhãs

A definição

Veludo ou seda. Nenhuma
Palavra mais nomearia
Tão bem a tua mão macia,
Ou, quem sabe, só mais uma
Ainda melhor haveria
Que seda e veludo: espuma.

De cada dia

Em tudo, nas alegrias,
Nas horas boas e más,
Estavas sempre, e ainda estás,
Poesia, pão dos meus dias.

O vento

No início da manhã, as despenteadas árvores do parque falavam alvoroçadas do vento diferente, juvenil, desajeitado, de mãos nervosas, que as visitara naquela madrugada. Algumas o definiam como morno, outras como quente, umas o chamaram de tímido, outras de um pouco ousado. Quando perguntaram à mais jovem delas o que achara do visitante noturno, viram que ela ostentava uma flor rubra, nascida dela ou ali deixada como presente pelo travesso vento da madrugada.