domingo, 30 de setembro de 2012

Terço

Nessas mãos
que desde a puberdade
frutos apanharam
até a saciedade

Nesses dedos
que desteceram teias
e úmidos desvelaram
mornos segredos

Nessas  mãos
entre esses dedos
um dia colocarão
cinquenta e cinco contas

E nem nelas nem neles
lembranças restarão
da seda dos frutos apanhados
dos fios dos segredos desvendados.

Hebe

Teu nome dizia o que eras:
Hebe, deusa da alegria,
Primeiro clarão do dia,
Essência das primaveras.

Por quê?

Amor, que matas e feres,
Por que me tens açoitado,
Por que me tens lacerado?
Por que matar-me não queres?

Maturação

Se um poema é o que você quer,
De nada adianta chamá-lo,
De nada adianta forçá-lo.
Ele virá quando vier.

Sobre a felicidade

Parecer feliz é fácil. Basta conhecer a arte da dissimulação. Ser feliz é saber exercer essa arte.

sábado, 29 de setembro de 2012

Lixo

Faliram as flores
falharam os frutos
gorou tudo
que prometeram as estações

Ficaram as folhas
traçando no chão
a parca memória
a insípida história
que o vento folheará
sem lhe prestar atenção
e com zelo arrastará
para o mais próximo bueiro
ou para o primeiro caminhão.

The voice

Ter como norte a tua voz.
Ouvi-la e segui-la, tal
Como o verso ao ritmo, qual
O rio buscando a foz.

Um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen

"RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA

Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdício de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino."

(Do livro "Poemas escolhidos", publicado pela Companhia das Letras, seleção de Vilma Arêas.)

Dois versos de Sérgio Resende de Barros

Li muita poesia, tudo que pude, li todos os grandes que me vieram às mãos mas, volta e meia, não é de Shakespeare nem de Wislawa Szymborska que lembro, nem de Borges, nem de Drummond. Dois versos, de Sérgio Resende de Barros, que conheci na Biblioteca Mário de Andrade nos idos de 1960, me encantam ainda. Não sei se Sérgio continuou a escrever (tenho certa lembrança de alguém me haver dito que ele seguiu carreira na magistratura). Mas poeta há de ser sempre quem criou dois versos como os dele - que reproduzo aqui, com aquela sadia inveja de não serem meus e a lástima de não me recordar do poema inteiro:

"As árvores mudas cantam o silêncio,
As luzes apagadas acendem a escuridão."

Te cuida

Te cuida garota
ele recomendou
espera aqui
que eu volto logo
com muito dinheiro
um carro maneiro
e a gente vai pra festa

Ela esperou
e se cuidou
mas ele não
e quando voltou
como tinha prometido
vinha já com status de bandido
duas balas na testa
e o carro em que chegou
dez horas além do horário
era preto e funerário
imponente até
mas ninguém gostaria
e nem pensaria
em ir com ele a uma festa.