terça-feira, 30 de junho de 2015

Do escritor e sua testemunha

O compromisso que o escritor deve assumir é consigo mesmo. Fazer tudo que puder, sempre o melhor que puder. O leitor deve ser considerado o que é: uma testemunha que pode ser condescendente ou não, que pode dar ao escritor um minuto de atenção, ou meio, ou nenhum. O escritor pode adulá-lo, bajulá-lo até, para ganhar sua simpatia. Mas o escritor não é um saltimbanco. Melhor será que o leitor o veja como é: alguém que, se der três saltos mortais seguidos, será não por magias suas, mas pelo poder que tiverem suas palavras.

Segredos

À noite, na estante, ouvem-se cochichos nas páginas de Dom Casmurro: são as entrelinhas contando às linhas segredos de Capitu e Escobar.

Cotação do dia

O amor pode revelar ao homem que em certas coisas ele se subestima. Pode, por exemplo, ser muito mais tolo do que imagina.

"Cemitério pernambucano (Nossa Senhora da Luz)", de João Cabral de Melo Neto

"Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.

Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.

Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.

Mortos ao ar livre, que eram,
hoje à terra livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.

(De Antologia poética, publicada pela José Olympio Editora.)

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Soneto dos dias antigos e dos atuais

Ah, como tudo mudou.
Aquela louca alegria
Que me instigava e impelia
Há muito tempo murchou.

Se fui o que hoje não sou,
Era o amor que me movia,
Por ele era que eu vivia,
Ah, por que tudo acabou?

Dia a dia eu acordava
E em mim o amor inspirava
A ventura de viver.

Desde quando ele morreu,
Agora, dia a dia, eu
Acordo para morrer.

Juíza

Com a gramática não há como discutir. Se ela apita, está apitado. Mesmo quando obscura, a regra é sempre clara.

Catorze

A soma dos dois quartetos e dos dois tercetos só dá um bom soneto se houver uma boa musa.

The end

Morrer de amor melhora qualquer biografia.

"A morta viva", de Murilo Mendes

"Maria do Rosário estendida no caixão
Toda vestida de branco aos vinte anos
Está cercada de angélicas e de moscas.
Seu rosto é inviolavelmente puro e simples.
Telefonam telefonam telefonam.

Inclino-me sem chorar sobre seu corpo.
Só agora lhe digo a palavra de ternura
Que ela nunca pôde conseguir de mim,
A palavra que talvez justificasse uma vida,
A palavra que eu nunca tive a força de dizer.

Só agora sei que a amo, de um amor definitivo.
Só agora me descobri seu companheiro para sempre.
A eternidade irrompeu no tempo, violentíssima."

(De Melhores poemas de Murilo Mendes, publicação da Global Editora.)

domingo, 28 de junho de 2015

Soneto da solidão

Ontem, enquanto dormias,
Eu pelas ruas vagava
E a mais uma me entregava
Das minhas noites vazias.

Ontem, enquanto sorrias
A quem no sonho te amava,
E tua mão o afagava,
E mais beijos lhe pedias,

Eu sentava na calçada,
Com minha alma atormentada
E gelo no coração,

E tinha só, ao meu lado,
Um amigo inesperado:
Um velho e friorento cão.