segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Cotação do dia

Hoje, sentindo um arrepio que escritores antigos definiam como um discreto aviso da morte, o que fiz? Nada de útil: três sonetos, como se eles viessem a fazer falta àquilo que, quando eu me considerava escritor, talvez tivesse o desplante de chamar de obra. São três sonetos ruins. Esperemos uns dias. Se eu me revelar um bom vidente, logo o mau poeta deixará de importunar os leitores. Três sonetos ruins num dia. Haverá no Guinness algo prevendo isso?

Soneto do que podemos dar ao amor

Enquanto estivermos vivos,
Mesmo que mal estejamos
E ainda que muito soframos,
Nos mantenhamos altivos.

Ao amor não concedamos,
E aos seus esquemas esquivos,
E aos seus apelos furtivos,
Nada que nós não queiramos.

Se bem que, diante do amor,
Seja por qual razão for,
De forma ou de conteúdo,

Queiramos sempre lhe dar
O que ele quer nos tomar,
Mesmo que ele queira tudo.

Soneto do que eras e do que és

Como mudou teu destino
E como és diverso agora
Daquele que foste outrora,
No tempo em que eras menino.

Ah, como eras duro, forte,
Como tu te jactanciavas
E em cada gesto zombavas
Da senectude e da morte.

Daqui a um ano ou um mês,
Uma semana talvez,
Tu não te lembrarás nem

Do nome. Balbuciarás
Algo que nem saberás,
Mas que talvez seja amém.

Homenagem

Se ele não estivesse bem morto, consideraria consagradora a cintilação do sol sobre seu caixão fechado e a estridente liberação do trânsito para o cortejo - oito carros, contando o funerário.

Gangorra

O melhor que pode acontecer a um poeta é andar nas nuvens. O pior é ser chamado de nefelibata.

Soneto do que deveríamos ter dito ao amor

Melhor seria não ter
Jamais o amor conhecido,
Jamais seu gosto sentido,
Jamais o seu rosto ver.

Por que, tolos, fomos crer
No seu charme produzido,
No seu sorriso fingido,
Se era tão fácil descrer?

Quando ele o corpo pediu
E depois a alma exigiu
(A alma, que pretensão, a alma!),

Devíamos dizer não,
De jeito algum, maganão,
Espera aí, vamos com calma.

"Fantasia", de Mariana Ianelli

"Depois da bruma que seduz ao erro
Depois da grande decepção e do escrúpulo
Mesmo que te doendo como a um animal
Perdido, arremessado no vazio de um campo,

Pudesse vingar pura a criança
No sopro que te deu vida, coração fremente,
Deslumbramento à margem dos abismos,
Um guizo de túrgidas estrelas e nada mais..."

(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)


Nosce te ipsum

Quem há de nos compreender
Se quando nos avaliamos
Concluímos sempre que estamos
Entre o ser e entre o não ser?

Roteiro

Porque vivemos demais
E a vida se foi inteira,
Que ela não nos fira mais
E a morte seja maneira.

Escolha

Se não for pela beleza, por que o passarinho insiste em apanhar pedrinhas brilhantes e exibi-las no bico, para o sol, como um mascate gabando seus tecidos?