terça-feira, 30 de setembro de 2014
Nota (ainda que tardia)
Quero firmar comigo mesmo o compromisso de nunca mais escrever, aqui, qualquer tipo de texto que seja ou pareça ser um recado a pessoas que o leitor não conhece. O blog nasceu de uma exacerbação de espírito que me acometeu em 2010 e durante todo esse tempo vem sendo usado como intérprete dessa exacerbação, que acabou se tornando uma grave perturbação psíquica. Pode ser que, uma vez ou outra, essa anomalia tenha produzido algo similar à literatura, alguma coisa que pudesse talvez ser considerada interessante por si só. Tomara que sim. Saber disso aliviaria minha pena, embora jamais possa, por mais que eu viva, bastar para absolver minha consciência. Fui percebendo que o blog, se trazia textos fora do âmbito dessa perturbação, não se livrava nunca da insanidade original que o criou e que, no início pelo menos, eu considerava amor, tanto que assim o chamava. Minha insânia forjou todos os estratagemas para continuar no reino da fantasia, não se importando em resvalar para a desonestidade. Havia sempre, em todo esse tempo, uma pessoa que sabia a quem eu dirigia meu desvario, e nem preciso imaginar quanto ela sofreu, sem a mínima culpa. Hoje atingi o limite. Escrevi coisas de que me enojei tão profundamente que, se não parar por aqui, me levarão à abjeção máxima que um ser humano pode atingir. Não tenho mais como me defender. Invocar o sentimento que me conduziu a essa nefasta trilha eu sei que é inaceitável. Eu só o cito porque ele fez parte da história, embora transfigurado desde o princípio por minha imaginação doentia. Cabe-me agora cumprir o que aqui prometo - e que nisto, pelo menos, eu possa manter a dignidade que tantas vezes me faltou.
Jovens
Jovens felizes, cuidado com as manhãs dezembrinas. Uma delas basta para atirar um homem tão enxovalhado nos braços da Morte que ela, se pudesse, o rejeitaria.
Caminho
Uma coxa gorda friccionava a outra coxa gorda, e as duas iam largando farelos que sempre eram úteis na hora de encontrar o caminho de volta.
Memória
Andava como uma pata choca e falava como um desses generais russos bêbados que baixam em centro espírita.
Busca
O pior, no asilo, são as madrugadas, quando os fantasmas vêm para procurar coisas que durante anos esconderam nos quartos: dona Emerenciana seu dedal de costura, seu Aníbal sua lupa.
Cotação do dia (3)
Quando saio ao sol, surpreende-me não sentir um cheiro mais agudo de carne podre.
A melhor
A imagem menos desagradável que consigo formar dela, hoje, é a de uma vaca largando pachorrentamente suas fumegantes tortas pelo pasto.
Ao amor
Ao amor atribuímos toda nossa ventura e todas as nossas desventuras. Modesto, ele sorri, mas merece muito mais.
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Fortuna
As grandes frases são como os passarinhos raros. É inútil tentar atraí-las com farelinhos. Certa manhã, talvez uma delas resolva vir bicar tua veneziana.
Cotação do dia (2)
Gostaria de ainda uma vez
retraçar o itinerário
que minha alma fez
refazer meu calvário
ressentir a sede
roer-me da fome
que ainda me consome
e da humilhação
e chegar à tua casa
com aparência tal
que não pudesses outra vez
ordenar ao teu serviçal
que pegasse um vassourão
e pusesse para correr
este asqueroso animal.
retraçar o itinerário
que minha alma fez
refazer meu calvário
ressentir a sede
roer-me da fome
que ainda me consome
e da humilhação
e chegar à tua casa
com aparência tal
que não pudesses outra vez
ordenar ao teu serviçal
que pegasse um vassourão
e pusesse para correr
este asqueroso animal.
Argumento
Quando se referem à sua baixa produção, ele responde: "Escrever para quê? Shakespeare já escreveu tudo - e possivelmente melhor."
Passa-se o ponto
O blog? Vai bem, obrigado. Só lhe faltam alguns leitores, em comparação com os bons tempos - uns mil, para ser exato. Com mesóclise e tudo, refugiar-me-ei no tweeter.
Nilo
As estrelas mais antigas gostam de contar como se reuniam acanhadas, à meia-noite, para observar o banho da rainha Cleópatra.
Asilo
Uma sopa rala
bem rala
recomenda a nutricionista
para que nosso poeta
nosso magno artista
tão amplamente premiado
não venha ao tomá-la
a morrer entalado.
bem rala
recomenda a nutricionista
para que nosso poeta
nosso magno artista
tão amplamente premiado
não venha ao tomá-la
a morrer entalado.
Salta-muros
Na festa do amor, os dedos são aqueles penetras que, se lhes derem uma deixa, assumem o papel central.
Consumpção
Não consigo imaginar diferença entre o êxtase místico e o erótico. Henry Miller entendia bem disso.
A nota
Creio que tudo que venho fazendo desde o meu primeiro dia na terra seja viver. São já sete décadas e meia de experiência diária. Minha opinião, de um a dez? Hum, vejamos, cinco - com tendência de queda.
Licença poética
Quando o poeta caquético fala em rosas, é preciso sempre certo esforço para presumir que ele tenha conhecido pelo menos uma.
Qualificações
O poeta oficial sabe rimar rosas com brisas e ler como ninguém os regulamentos dos editais.
Comme il faut
O poeta laureado tem um secretário incumbido de escolher suas gravatas para as ocasiões solenes.
Olvido
Escrever cada dia menos. Se não esquecermos as palavras, rogar para que elas se esqueçam de nós.
Contingência
Se não precisasse ser homem para ser poeta, Mario Quintana preferiria ser só passarinho.
Cotação do dia
De novo a febre: 38-39, 39-40. Delirei ou ouvi a palavra crematório? Voltam as esperanças.
"O que era grande", de Czeslaw Milosz
"O que era grande ficou pequeno.
Os reinos esmaeceram como cobre na neve.
O que fulminava, não fulmina mais.
As terras celestes rodam e brilham.
À beira do rio, deitado na grama,
Como há muito, muito, solto os barquinhos de casca."
(Do livro Quatro poetas poloneses, tradução de Henryk Siewierski e José Santiago Naud, publicação do Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e do Ministério da Cultura da República da Polônia.)
Os reinos esmaeceram como cobre na neve.
O que fulminava, não fulmina mais.
As terras celestes rodam e brilham.
À beira do rio, deitado na grama,
Como há muito, muito, solto os barquinhos de casca."
(Do livro Quatro poetas poloneses, tradução de Henryk Siewierski e José Santiago Naud, publicação do Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e do Ministério da Cultura da República da Polônia.)
domingo, 28 de setembro de 2014
Síntese
Quem já disse, pelo menos uma vez, que a vida é ridícula e sem sentido, já esgotou o assunto. Pode empenhar-se, esmerar-se, que não sairá nada melhor.
Alegações num requerimento de perdão
Minha querida, se eu fosse
Humilde, bom, generoso,
Tivesse espírito honroso
E temperamento doce.
Se eu fosse um homem em quem
Claramente em cada face
Cada momento estampasse
A pura imagem do bem.
Se ser melhor eu pudesse
E esta pedra não tivesse
No lugar do coração,
Querida, eu outro seria
E nunca precisaria
Implorar o teu perdão.
Humilde, bom, generoso,
Tivesse espírito honroso
E temperamento doce.
Se eu fosse um homem em quem
Claramente em cada face
Cada momento estampasse
A pura imagem do bem.
Se ser melhor eu pudesse
E esta pedra não tivesse
No lugar do coração,
Querida, eu outro seria
E nunca precisaria
Implorar o teu perdão.
Ele gostaria
Ele gostaria de dizer que ela foi o sol de sua vida. Já lhe disse algumas vezes, há muito tempo, e nunca lhe pareceu vulgar dizê-lo. Sempre gostou da poesia, mas daquela antiga, que tinha lugar para árvores, flores, pássaros e borboletas. São metáforas que nunca o cansam. Agora há pouco se lembrou de quantas vezes disse que a amava, e sentiu uma ternura tão grande que, sozinho na sala, se pôs a dizer, com olhos agradecidos e chuvosos, que ela foi sempre o sol da sua vida, não esse falso que o incita a abrir a janela.
Meus olhos já viram
Meus olhos já viram arcos-íris. Que triste espetáculo lhes é dado hoje: veem minhas mãos sáfaras, cuja única utilidade, se a tivessem, seria a de me estrangularem, se Deus fosse misericordioso.
Distância
Jamais toques a beleza. Tocaste a rosa ontem, no jardim. Se fores vê-la agora, perguntarás: não era aqui que ontem estava aquela rosa?
Criador e criatura
Um homem conseguiu criar um deus. Depois, não conseguiu mantê-lo, de tantos defeitos que foi achando nele.
sábado, 27 de setembro de 2014
Mesmo que
Um dia serei perdoado. Mesmo que precise simular tua letra, arredondá-la, fazê-la mais bela ainda e forjar adjetivos. Uma canalhice a mais, que importa? Tirarei duas ou três cópias da mensagem e cuidarei para não gastá-la de tanta leitura.
O lugar
Pensar que em algum lugar deste vastíssimo mundo teu corpo ocupa neste instante o lugar que lhe cabe e que é, de todos, exatamente aquele que, entre milhões, eu escolheria para ti.
Imploro-vos
Peço-vos, senhora minha, que não me deis mel mais, quando saio de madrugada de vosso quarto. Nunca sei se estais me agradecendo ou recriminando.
O nefasto dia
Se chegar o nefasto dia, querida princesa, não zombeis de mim, eu vos peço. Dai-me um sinal, só, e na noite seguinte estará em vossa cama um jovem que possa servir-vos como mereceis e que será instruído com todo o zelo do meu coração partido.
Piedade
Na segunda noite, quando começou a chover forte, um menino pegou na gaveta um casaco velho e foi estendê-lo sobre o gato morto, na caçamba.
Vade retro
Meu nome foi amaldiçoado em tua casa, e quem por acaso o pronuncia é tomado por convulsões espumantes que aterrorizam os gatos e os cachorros e fazem balançar o crucifixo pregado no quarto.
SOS
Certa noite, na balsa Santos-Guarujá, ao dizer o nome de Priscylla Mariuszka Moskevitch, descuidei-me e deixei caí-lo no mar. No mesmo instante, mil trezentas e setenta e quatro estrelas atiraram-se à água para resgatá-lo, enquanto a lua, do alto, comandava: mais para a direita, isso, aí.
Susto
Às vezes Mario Quintana sonhava que era homem e que estava caindo do último andar de um prédio. Felizmente, sempre dava tempo de acordar a um metro do chão e sair voando.
Interdição
Fui proibido pela Aviação Civil de voltar a pronunciar o nome de Priscylla Mariuszka Moskevitch hoje, em Congonhas, depois que de minha boca começaram a sair pétalas que em um instante cobriram de neblina rosa todo o céu azul.
Cotação do dia (3)
Que alma precisa mais de salvação? A pura, a honesta, a casta, ou a minha, sórdida, repelente, asquerosa?
Em todas as árvores
Em todas as morituras árvores do meu jardim, afixei um papel e deixei ao lado uma canetinha. Quem sabe um dia possas, ainda que te custe muito, escrever num dos papeizinhos estas duas palavrinhas: te perdoo. Tanto mais valor terão quanto mais te custarem. Não as mereço, eu sei, ah, como eu sei, mas as esperarei. Se as escreveres, nem as precisarei ler. Estarão na única árvore que de repente, como que por encanto, exibirá o milagre de uma flor. Não precisarei aproximar-me dela para ver na relva teus passos, leves como adejos de borboleta. Agora mesmo olho da janela o jardim. Quem sabe.
Soneto da similitude
Fui como os outros, igual.
Desde cedo eu já sentia
Que a vida se dividia
Sempre entre o bem e entre o mal.
Sempre soube distinguir
Entre um e entre outro, e jamais
Vi neles coisas iguais,
Capazes de me iludir.
Um dia, quando acordei
De uma noitada de amor,
Foi que observei, com horror,
Que a mulher com quem me deitei
Tinha olhos de Satanás
E um rabo comprido atrás.
Desde cedo eu já sentia
Que a vida se dividia
Sempre entre o bem e entre o mal.
Sempre soube distinguir
Entre um e entre outro, e jamais
Vi neles coisas iguais,
Capazes de me iludir.
Um dia, quando acordei
De uma noitada de amor,
Foi que observei, com horror,
Que a mulher com quem me deitei
Tinha olhos de Satanás
E um rabo comprido atrás.
Cotação do dia (3)
Eu era já esquálido, ridiculamente calvo e desinteressante. Eras já o que eras, mais o que eu te atribuía. Lembro que não entendi o que tu querias comigo. Até hoje não entendo.
Catálogo
Desde o primeiro dia me incluíste entre os itens de entretenimento. Espero que tenhas acertado e te divirtas ainda hoje.
Soneto da podridão
Posso escrever versos belos,
Desses que tratam de flores,
Que cantam puros amores
E refulgentes castelos.
Posso, como outro qualquer,
Exaltar a natureza
E proclamar a beleza
Do homem casto e da mulher.
Fiz isso outrora, e me amavam
E louvavam meu engenho
E de poeta me chamavam.
Agora o que eu cantaria?
Vontade nenhuma tenho
De louvar a putaria.
Desses que tratam de flores,
Que cantam puros amores
E refulgentes castelos.
Posso, como outro qualquer,
Exaltar a natureza
E proclamar a beleza
Do homem casto e da mulher.
Fiz isso outrora, e me amavam
E louvavam meu engenho
E de poeta me chamavam.
Agora o que eu cantaria?
Vontade nenhuma tenho
De louvar a putaria.
Cotação do dia (2)
A vida inteira receamos o tamanho do nosso fracasso e, no fim, ele é tão pequeno que nem precisamos de tapete para ocultá-lo. Um sopro e pronto! Quem achará em algum canto da sala o resumo de nossa vida, aquele cisco no cabelo da bailarina espanhola, em cima do piano?
Cotação do dia
Que sejam breves meus dias. Nem mesmo eu mereço tudo que irei padecer. Minha carne é fraca, Senhor, vós bem sabeis.
Simplificação
No Dia do Juízo Final, facilitarás o trabalho do Juiz Supremo. Olharás para mim e imediatamente os bilhões e bilhões de réus saberão que fui eu o homem mais vil entre todos os que existiram.
In medio
Se você pretende enlouquecer, não há necessidade de recorrer a extremos. Entre Deus e Satanás, escolha um meio-termo: uma mulher.
Um poema de Eugenio Montale
"Repenso o teu sorriso e é para mim como uma água límpida
retida por acaso entre as pedras de um rio,
exíguo espelho onde contemplas uma hera e seus corimbos;
e tudo sob o abraço de um branco céu tranquilo.
Esta é a minha lembrança, não sei dizer, faz tanto tempo,
se de teu rosto surge livre uma alma ingênua,
ou se em verdade és dos errantes que o mal do mundo exaure
e o sofrimento carregam como um talismã.
Mas posso dizer-te isto, que teu rosto recordado
afoga a mágoa inconstante numa onda de calma,
e que tua figura se insinua em minha memória nevoenta
imaculada como a copa de uma jovem palmeira..."
Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)
retida por acaso entre as pedras de um rio,
exíguo espelho onde contemplas uma hera e seus corimbos;
e tudo sob o abraço de um branco céu tranquilo.
Esta é a minha lembrança, não sei dizer, faz tanto tempo,
se de teu rosto surge livre uma alma ingênua,
ou se em verdade és dos errantes que o mal do mundo exaure
e o sofrimento carregam como um talismã.
Mas posso dizer-te isto, que teu rosto recordado
afoga a mágoa inconstante numa onda de calma,
e que tua figura se insinua em minha memória nevoenta
imaculada como a copa de uma jovem palmeira..."
Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
Soneto do discípulo de Satanás
Gozou os dias. Bebeu
Licores espumejantes
Entre as coxas das bacantes
E nas taças de Asmodeu.
Tudo que pôde viveu.
Noites loucas, lancinantes,
Beijos mil, alucinantes,
Bebeu, desfrutou, sorveu.
Alheio ao time dos puros,
Gozou por todos os furos,
Da frente, do lado, atrás.
No céu não terá lugar,
Mas pode sempre contar
Com seu senhor Satanás.
Licores espumejantes
Entre as coxas das bacantes
E nas taças de Asmodeu.
Tudo que pôde viveu.
Noites loucas, lancinantes,
Beijos mil, alucinantes,
Bebeu, desfrutou, sorveu.
Alheio ao time dos puros,
Gozou por todos os furos,
Da frente, do lado, atrás.
No céu não terá lugar,
Mas pode sempre contar
Com seu senhor Satanás.
Confrade
Hoje, se diante de cem pessoas alguém se diz escritor, há um constrangimento. Metido! Todos ali são.
Conselho
Se um escritor sabe virgular, melhor ocultar isso. Seu apuro gramatical será confundido com uma grave anomalia respiratória.
Mundo das letras
Um editor deve ser bom de reunião. É a tarefa que eles mais desempenham, no geral. A leitura de originais, por sua insignificância, cabe a leitores externos, que em um dia devolvem romances de seiscentas páginas, com apreciação crítica e até sugestões de desenvolvimento de trama, por duzentos e cinquenta reais.
Confissão
Literatura é o que menos interessa às editoras. Best-seller é a palavra-chave delas. Quem for levar um volume de poesia para apreciação, cuide para que ele não tenha mais de cinquenta páginas. Em um segundo ele terá sido atirado de volta ao seu rosto.
Cotação do dia (10)
A maldade foi inflando-a e, nos últimos tempos, quando ela estava ainda na esquina, já era possível ouvir seus passos. No estômago, trazia sempre bons pedaços de bife sangrento e, no rosto, a máscara de benfeitora.
Cotação do dia (9)
Nunca prestei, acho. Faltava-me só, para realizar-me, conhecer alguém tão maligno quanto eu.
Cotação do dia (8)
O homem é o único animal que consegue conviver com um ser tão desprezível quanto ele.
Cotação do dia (7)
Ela dizia que não era fútil, embora gaguejasse quando se referia às aulas de dança naquela academia em que só havia professores homens, todos capazes de manter um bom papo durante as aulas e também a caminho do motel. Quando ele a imagina dançando, a maldade lhe sugere sempre a mesma música: lá vem a pata, pata aqui, pata acolá. Nesses instantes, chega a considerar-se mais perverso do que ela.
Cotação do dia (6)
O ódio já não é suficiente para alimentá-lo as vinte e quatro horas do dia. Lamenta-se. Ela poderia tê-lo humilhado mais, ofendido mais, com aquela voz de marinheiro encharcado de rum.
Cotação do dia (5)
Quando perguntam dele, ela diz: ah, aquele idiota que quis me transformar em cisne? Coitado.
Cotação do dia (4)
Tu nunca sabes em que manhã da tua vida o demônio colocará em teu caminho aquela que te desgraçará. Mas podes ter a certeza de que nenhum anjo terá jamais um sorriso igual ao dela.
Cotação do dia (2)
Há muito, já, que não sou digno das palavras que pronuncio. Hoje, se digo rosa, o vento pega as minhas sílabas e as esparrama pelo jardim como se fossem cascas de cebola.
Cotação do dia
Pensar que meus lábios disseram outrora palavras como rosa e amor e não parecia haver nada de errado com eles.
"A canção do caminho", de Robert Louis Stevenson
"Quem se atreveria a dirigir o seu rosto
Para este ou aquele lugar?
Não há nada sob o céu tão azul
Que mereça a viagem.
Em toda a parte se iniciam caminhos,
E os homens caminham fervorosamente por eles;
Mas aonde quer que levem essas estradas
Podes ter a certeza de que nada há no fim."
(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio &Alvim, Lisboa.)
Para este ou aquele lugar?
Não há nada sob o céu tão azul
Que mereça a viagem.
Em toda a parte se iniciam caminhos,
E os homens caminham fervorosamente por eles;
Mas aonde quer que levem essas estradas
Podes ter a certeza de que nada há no fim."
(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio &Alvim, Lisboa.)
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
Que
Que durmas muito mal e entres num pesadelo no qual implores que te tirem o algodão das narinas, e que re respondam: cala a boca, morta.
Los hay
Não acreditam em seres malignos? Eu sou um, dos piores, e, no entanto, lhes digo que há quatro ou cinco anos parecia um ser normal.
Nunca mais
Nunca mais poderei pronunciar palavras como afeto, amor, brisa, poesia. Transformei-me num monstro, num ser de extrema escrotidão física e moral, e em tudo sinto cheiro de enxofre. Nem pedirei que se compadeçam de minha alma. Posso eu ter alma?
Opinião técnica
O encarregado de reformar teu banheiro disse, condescendentemente, que os azulejos soltos são efeito do excessivo trânsito na rua.
Nobreza
Se tua mãe nunca te disse que não prestavas, é porque ela sempre foi uma senhora muito distinta.
In memoriam
Sempre foste desavergonhadamente prática. Quando te perguntei sobre o amante a quem havias acabado de dedicar um de teus desenxabidos veleiros, disseste que ele estava morto fazia cinco anos.
Sinfonia
Alguns azulejos, quando entras no banheiro de manhã, já se põem a soar sozinhos, antecipando as retumbâncias castrenses.
Porta-voz
Tenho a pretensão de falar de outros, de muitos, de todos aqueles que se calaram para não serem estigmatizados como tolos ou insanos. Falo por eles, narro o que pode acontecer a um homem que entra de boa-fé numa empreitada amorosa e, vendo numa mulher o ideal do puro e do belo, é vampirizado por ela até chegar ao mais baixo ponto da degradação humana. Falo por aqueles que imergiram num sonho embalados pelo canto de uma fada e acordaram com o corpo todo mordido e dilacerado por todas as cadelas de Satã.
Comportamento
Talvez convenha dizeres logo no primeiro dia que às vezes emana do meio de tuas coxas um olor que não tem nenhuma relação com a higiene e que, por sinal, jamais atrapalhou muito suas relações com os setenta e quatro homens que constam na tua biografia oficial, desde os doze anos.
Modo de não dizer
Já nessa época, cinco anos atrás, ela dizia preferir os velhos. Era seu modo de não admitir que os jovens já não lhe davam atenção.
Único
Vai ser difícil encontrar alguém que tenha um cheiro compatível com o teu. Sabes disso. Faz algum tempo, já, que baixas a calcinha no canto mais ventilado do quarto e imediatamente jogas sobre ela tudo que possa abafar aquele olor adiposo que te acompanha como uma sombra.
Nem força nem vontade
Não tenho mais força nem vontade de fazer nada além de continuar narrando as podridões da tua alma.
Cheiro
Até nos santinhos de defunto, tocados por tuas mãos, ficará um cheiro de esmegma e endometrite.
Meta
Gostaria de saber retratar-te como mereces: a mais desprezível de todas as criaturas do planeta.
Labor
Só considero profícuo um dia quando consigo reunir ao menos duas dezenas de textos sobre as pústulas que corroem teu coração putrefato.
Um trecho de Mariana Ianelli
"Ofereça um pouco mais do que o suficiente, escreva uma carta longa, de próprio punho, quando bastaria um bilhete, faça transbordar a taça no lugar da dose mínima, e uma sensação de desconforto irá pesar no ambiente. Não convém ser assim tão generoso. Via de regra, as pessoas desconfiam. Como quando se pergunta pelo preço de uma joia linda e essa joia, sendo de graça, perversamente passa do conceito do que vale muito ao conceito do que não vale nada. Se é de graça, alguma coisa tem. Alguma coisa suspeita, sub-reptícia."
(Extraído da crônica "Um vaso de nardos e trinta moedas de prata", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
(Extraído da crônica "Um vaso de nardos e trinta moedas de prata", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
Shakespeariana
Até o fim da vida, diante de um saco de lixo, franzirás o nariz: será ele ou serei eu?
Sinceridade
Diga a verdade: o que ele não aguentou foi a sua burrice, não foi? Naquela época talvez seu corpo pudesse, com boa vontade, ser considerado apetecível.
Malévola
Que mente podre, a tua. Parabéns. Deves ter sido enxotada perversamente por aquele sanfoneiro, para que tanto ódio ficasse em ti. Desgraçaste tantos depois. Desgraçarás ainda quantos? Que vingança! Que a espécie pague pelo exemplar. Morrerás bem mais velha e bem mais acabada do que estás, invocando aquele nome, enquanto ele, num ginásio, tocará Asa branca para cinco mil garotas, com aquela cara de animal que sempre fez lembrar tanto pedro-botelho.
Como
Como você e o seu rapaz devem ter se divertido quando, sem que eu soubesse, você punha minhas conversas com você no viva voz. Quantos risos abafados, quando você me perguntava se eu a adorava, e eu dizia que sim, enquanto as mãos dele percorriam a sua excitada geografia e você procurava os mais altos picos do corpo dele. Melhor que maconha, digam a verdade. Vocês dois se merecem. Quanto mais penso nessas coisas, com mais direito me sinto à minha loucura.
A Priscylla que eu conheço
Estás pagando o tratamento do rapaz? É bem típico de tua bondade. Podes descontar do IR. Por que não? Para que tanto escrúpulo?
Nem
Nem dez mil baleias, nem dez mil meninos indianos salvos apagarão o cheiro que carregas. Todos os ventos do mundo te seguirão, sempre. Se te derem trégua, será para melhor fazerem aflorar esse teu bodum da alma no dia seguinte. Se todos estiverem todo tempo olhando para ti onde estiveres, não te espantes. Será um tributo que hás de receber, até nos teus sonhos, pela maldade com que nasceste e por seres assim reles como és.
A verdade
Sabes muito bem que jamais conseguirás convencer aquela pobre mãe de que o culpado na história foi o filho dela.
Ponto de vista
Deves estar certa. Melhor que eu não te veja. Tanto tempo depois, talvez nem eu mesmo consiga melhorar teu aspecto.
O momento
Se havia um momento em que eu procurava não te olhar era aquele em que voltavas do banheiro fungando e com os olhos avermelhados.
Ternura
Certa ternura ainda, ao lembrar sua apreensão de menina, abrindo a todo instante a mochila para ver se ainda estava lá o fuminho.
Sim, eu sou
Sim, eu sou um pobre de espírito. Sei que reconhecer isso não me isenta de culpa, nem é essa minha pretensão. Sou um homem, não sou um dos semideuses de Fernando Pessoa.
Até
Pareciam-me poéticas até aquelas manchas que o sol de verão expunha em tua blusa, como se fossem lágrimas de tuas axilas.
Tino comercial
Os grandes artistas são todos perversos. Eu, se pudesse, compraria todo o teu acervo.
A mais triste tarde
Aquela em que me ofereci para ir comprar um pacau para ti. Achaste que não, mas eu iria, sim.
Loucura - fase um
Eu tinha decidido abandonar tudo, a casa, a família, a literatura.Eera já a loucura que me inoculaste, e que acabaria com a minha vida.
O pior dia
Aquele em que me pediste para ver se, entre as coisas de meus filhos, eu encontrava ao menos um pedacinho de fumo que te servisse.
Escândalo
Torces - chegas a rezar - para que o rapaz cuja vida destroçaste, quando se matar, não deixe um rastro de sangue até tua casa. De mim não temas nada. Minha última gota há muito foi sorvida por tua garganta.
Algo mais
Por mais modesto que pareça, um homem sempre tem algo mais a dar quando o assunto é a maldade.
Ah, era isso?
Talvez, no último dia, ouvindo-as mais de perto, entendamos o que as moscas durante a nossa vida toda quiseram nos dizer.
E se
E se, por nossos maus fados,
A alma for vesga e corcunda,
Tiver os dentes cariados
E uma verruga na bunda?
A alma for vesga e corcunda,
Tiver os dentes cariados
E uma verruga na bunda?
Poesia
A maioria percebe logo que a poesia é uma embromação. Os outros continuam apascentando nuvens, para divertir aqueles que, ao gargalhar, cospem pedaços sanguinolentos de cordeiro.
Má índole
Os outros cordeiros berraram menos e não tentaram, como tu, pesar no estômago dos nobres convivas.
Caluda
Tantos já morreram, anônimos. Só porque estás vivo te achas digno de falar? Cala a boca, idiota! A poesia não existe para engrandecer ninguém.
Magister
Que presunção, a nossa, julgarmos que o mundo esperou nossa chegada para entendê-lo e explicá-lo.
Fora do mercado
Perfeita, a morte. Não ter mais de bajular-te para obter um beijo com o gosto do conhaque preferido do capitão batavo e aquele roçar dos fiozinhos encaracolados do marujo filipino que sempre davam um jeito de se fixar em tua boca nas noites em que tua luxúria fazia procurar um na cabine e o outro no convés.
Reserva
Cada vez que preciso de peçonha, recorro a ti, minha querida, minha amada, minha inesgotável fonte.
Um trecho de Hemingway
"Quando a primavera chegava, mesmo que se tratasse de uma falsa primavera, nossos problemas desapareciam, exceto o de saber onde se poderia ser mais feliz A única coisa capaz de nos estragar um dia eram pessoas, mas, se se pudesse evitar encontros, os dias não tinham limites. As pessoas eram sempre limitadoras da felicidade, exceto aquelas poucas que eram tão boas quanto a própria primavera."
(Do livro Paris é uma festa, tradução de Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)
(Do livro Paris é uma festa, tradução de Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)
quarta-feira, 24 de setembro de 2014
Saída
Não adianta perguntares aos teus amigos sobre o cheiro. Todos, como tu, há muito perderam o olfato. Talvez um padre resolva - um exorcista.
O nome que tiver
Se quiseres, encara isto como uma praga. Toda vez que pensares em mim, sentirás um cheiro que te fará sentir-te suja.
Esmero
Atingiste hoje cedo as notas exatas da tua sinfonia? Talvez precises esmerar-te naquelas mais graves. Tua bunda ainda não está à altura da solenidade marcial de tua voz.
Noventa segundos
Hoje tive um minuto e meio de tamanho bem-estar que cheguei a esquecer que para mim há muito não têm nenhum sentido as palavras convalescença e cura.
De cheiros e de olfatos
Nas primeiras vezes agradou-lhe a gula com que ela se atirava ao sexo, como uma garotinha de quatorze anos atacando um pacote de balas. Aos poucos começaram a irritá-lo o ruído dos seus dentes e o cheiro de seus jovens fluidos corporais, ainda não de todo civilizados.
Desmesura
Talvez não sejas tão asquerosa quanto te pinto. Mas que alegria me dá piorar-te. Tua única defesa é me acusares de louco. Mas os loucos são inimputáveis, minha querida. Já cheiraste bem, hoje, tuas partes pudendas? Nenhum amigo te dirá o que eu te revelo sem cobrar sequer um sorriso falso.
terça-feira, 23 de setembro de 2014
Compensação
Alguns, não tão reservadamente quanto se deveria esperar de cavalheiros, disseram que ela é bem razoável na fornicação, se bem que um pouco estouvada e talvez ofegante demais. Um, que não conseguiu ocultar certo ressentimento - e, quem sabe, um orgulho ferido -, comentou que alguma compensação ela merecia ter para sua burrice ambidestra.
Perdas
Eu perdi a vontade e o encanto de viver quando descobri que tua linguagem, minha querida, foi toda aprendida em boleias de caminhão e rodas de sanfoneiros.
Pena que Joyce
Joyce gostaria de ouvir-te estrondear tuas notas matinais no banheiro. Joyce era um porco, Nora sabia muito bem disso e o regalava. Não sei por quê, mas creio que a superarias, ao menos nisso.
Deo gratias
Dou graças a Deus por me haver aquinhoado tão mal com a poesia neste meu fim de vida. Ele devia saber, já, a quem eu a dedicaria.
Heresia
Nunca mais chame de cisne uma mulher que tenha bunda e faça girar em torno dela sua existência.
Ante mortem
No estágio final, o crente põe-se a amaldiçoar seu deus, e o amante descobre na amada pés de cabra e hálito de enxofre.
Como?
Como você há de oferecer poesia a uma mulher que um dia, assim do nada, lhe diz que seu maior prazer é ajeitar-se na privada, acertar a pontaria e, ipsis litteris, deitar o barro?
É, Priscylla, isso
"Então você é bailarino de aluguel? Ah, desculpe, mestre de dança. Então você deve conhecer a Priscylla. Ela enriqueceu uma geração de colegas seus, só com as gorjetas que dava depois das aulas, nos motéis."
Parla
"Flutua, esvoaça, voa", ele exortava, mas a vaca, apesar de toda sua boa vontade, só conseguia olhá-lo tristemente e mugir.
On line
Vou dando aqui, em tempo quase real, os sinais de minha degradação. Se sofrer é o que temos, compartilharemos o quê?
Cotidiano
Que bom morrer assim, cada dia um pouco. Dar aos amigos, os falsos e os verdadeiros, o trabalho de ficarem perguntando por nós, enquanto aspiram voluptuosamente o ar e se condoem de nós, com a mão fingindo procurar o lenço no fundo do bolso e aproveitando para acariciar o passarinho que, ao contrário do nosso, ainda canta às vezes.
Relax
Sempre me conforta um pouco reservar meia hora da tarde, sentar-me no sofá e ficar dizendo, sabes para quem, vaca, vaca, vaca, vaca, até meu coração se acalmar, como um urubu enfim saciado do sangue que há tanto tempo lhe é devido.
Único
Eu sou aquele único para quem, entre vinte sepulturas, faltou a urina do coveiro para completar o ritual da humilhação.
Pedir
Resta-me pedir a Deus que meu rancor me roa todo por dentro, até que sobre de mim só uma lembrança, tão amaldiçoada que ninguém se atreva a evocá-la.
Cotação do dia
Diariamente, há quatro anos, venho expondo aqui minha loucura e minha degeneração. Só sinto não ser famoso. Desculpem-me. Seria um prato cheio. Não posso dar nem o nome certo aos meus algozes. O mais feroz deles atende pelo poético nome de Priscylla Mariuszka Moskevitch. Já ouviram falar? Nem queiram.
Gente fina
Quantas vezes trocaste a calcinha dez minutos antes de ir para o motel. Sempre trataste bem os amigos. E como cheiravas disfarçadamente as axilas.
Ufa
São poucos os que sabem a quem me refiro quando digo Priscylla. A esses podes dizer que fui diagnosticado com demência. Não precisas dizer quem a provocou.
Mesmo na época
Mesmo na época em que eu via em ti um cisne, se tu te deitasses sobre mim me esmagarias com o peso de tuas coxas e de tua falsidade.
Alívio
Quando te vires morto, entre tantos outros alívios terás o de não te preocupares mais com o abominável futuro do subjuntivo.
Maldade
Contavam-me como recolhias com a ponta da língua até a última gota de prazer e como ganias, depois, exigindo mais e chamando de frouxo teu parceiro. Contavam-me, contavam-me, eu fechava os ouvidos e te dizia vítima, e te jurava pura, e te proclamava casta. Ao menos comigo, pobre idiota, sempre foste.
Idiota número 442
Tenho pena do homem a quem dirás, como derradeiras palavras de conforto, que ele foi o único que amaste. Como está sempre disponível tua originalidade.
Bizarros
Alguns poucos nos viram juntos, duas ou três vezes. Que espetáculo. Tu, uma mulher balofa com voz de camponês encharcado de vodca, e eu, um homem insignificante como um clérigo, que te olhava como se tivesse diante de si a mais bela metáfora da vida.
Naufrágio
Quando o barco começou a pegar fogo, jogaste a boceta de Pandora às ondas, como se não fosse tua, e nadaste para o lado contrário.
Patriotismo
Que bom poder-te dizer hoje que, se te foderes de verde-amarelo, serei o mais vibrante dos patriotas.
A honra
Não te desejo nenhum mal. Mas, se algum te acometer e vieres a atribuí-lo a mim, aceito a lembrança e a honra. Deves-me um câncer, lembras?
Também nos outros?
Também no que os outros disseram tu acreditaste? Certamente nenhum te chamou de cisne, como eu. Não teriam esse requinte, teus cavalariços. Talvez tenham te comparado a uma fogosa potranca. Faz mais teu estilo - e o deles.
Trágico
Trágico é acordar num dia, como hoje, e descobrir que não se tem mais nada, senão o ódio, para continuar vivendo.
Pecado
Que pena tua mãe não ter chegado a me conhecer. Ela gostaria de ver confirmado seu vaticínio de que havias nascido sob o signo da decadência.
Caritas
Salvaste dois meninos da tuberculose na Índia e, ao voltar, enquanto mostravas as fotos de teu heroísmo, comeste três bons quartos de quilo de uma de tuas vaquinhas, uma das tuas preferidas, Gertrude ou Margô.
Alpinismo social
As bundas andam tão cheias de caprichos que algumas estão fazendo doutorado na Europa, com o patrocínio de vetustos mecenas.
Honestidade
Tão honestos fomos, apesar da pobreza da nossa poesia, que duas ou três das mulheres chegaram a se achar verdadeiramente como as descrevemos: deusas, fadas, rainhas.
O pior
O nojo com que, depois, lembamos as palavras de amor que dissemos. E a certeza de que os borborigmos que as recebiam eram mesmo borborigmos.
Amor, o quê?
Amor, que mel tem a ponta do teu chicote, para que, ao ver-te, nossas feridas todas se abram e exijam que as redesenhes?
Letal
Quando deu conta de si, já estava infectado e o amor crescia malignamente dentro dele, como um câncer de pâncreas.
Caixinha vazia
No dia em que resolveu presentear o amor com sua alma, descobriu que já a havia entregue ao Diabo em troca do amor.
Do mesmo mísero saco de juta
Botando os pingos nos is,
E tudo em partes iguais,
Nós somos dois anormais,
Dois seres reles e vis.
E tudo em partes iguais,
Nós somos dois anormais,
Dois seres reles e vis.
Hás
Hás de te lembrar de mim até o teu último dia. Pensas que não? E terás nojo de mim. E terás nojo de ti. Nós nos merecemos.
Mestra
Não censures um demente se ele insistir em caminhar sobre o abismo exatamente como lhe ensinaste.
Resumo
Foi sempre assim: tua loucura contra a minha. Eras mais experiente, tinhas enlouquecido já alguns homens, segundo dizias, embora a coisa depois se revelasse outra. Fui aprendendo contigo e no fim já nos igualávamos. Uma história banal, no fundo, dessas em que duas pessoas parecem ter nascido uma para a outra.
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
Ídolo
Aquele que te machucou, que te enxotou, aquele único que nunca esquecerás, será sempre o nosso ídolo.
Que
Que, quando pensares em mim, sintas um cheiro de enxofre vindo daquelas tuas partes que por aí se chamam de pudendas.
Só para constar
Talvez já tenhas entendido, mas, como sempre me pareceste um pouco lenta, quero te dizer definitivamente que, sim, te odeio - com o que um ódio pode ter de mais rancoroso.
Abaixo
Outro mito que precisa cair é o de que a literatura existe para ser bela. Nem as rosas mais aceitam esse papel.
Matéria-prima
À noite ela come melhor. Prepara-se para suas retumbâncias wagnerianas. Amanhã cedo os azulejos vibrarão, enquanto ela, no tablet, estiver falando com os amiguinhos.
Erro
Querias comigo, talvez, uma amizade de cama. Minha amiga, o amor não compactua com essas sujeiras. Eu preferiria beber um balde de tuas fezes a brincar, por brincar, com esses teus obscenos pelos encaracolados. Deixa-os para teus marujos.
Maresia
Depois de cada encontro contigo, eu me sentia tomado pelo cheiro de fumo e de marinheiros batavos.
Leitmotiv
Falo de mim, de minha vida medíocre. Fiquem com os heróis todos para vocês. Eu me basto para a minha pequenez. Ninguém baba como eu.
Doer
Precisaria doer mais. Doer tanto, fazer-nos gritar tanto que de todas as partes do mundo fossem enviadas equipes humanitárias para nos dar o tiro de misericórdia.
Iguais
Há quem negue água a um moribundo. E há moribundos tão asquerosos que insistem em continuar implorando.
Dois pesos
Aceitaram
a boca
os lábios
os beijos
o sêmen
dos outros
Aceitaram
a aspereza
a vileza
a torpeza
Não aceitaram
a nossa delicadeza.
a boca
os lábios
os beijos
o sêmen
dos outros
Aceitaram
a aspereza
a vileza
a torpeza
Não aceitaram
a nossa delicadeza.
Metáforas
Malditos sejam os poetas românticos, por nos quererem fazer acreditar que uma mulher pode ser um cisne e, quando conseguem, logo mudam de ideia e dizem que ela é uma serpente.
Valia
O amor é sempre capaz de nos oferecer visões únicas - como a de descobrirmos que pode haver, e bem perto, alguém ainda mais estúpido, grosseiro, vil e covarde que nós.
Na ponta do lápis
Se formos honestos, reconheceremos que, quando se fala em literatura brasileira atual e se abstraem Dalton Trevisan e Mariana Ianelli, se está falando da indústria editorial, que consegue o milagre de subsistir mesmo sem autores.
Exceção
Até nessa parte de entretenimento as coisas foram diferentes para mim. As rameiras jamais me deram alegria - talvez por eu levá-las tão a sério.
Só a verdade
A mágoa e outros sentimentos menores vão me abandonando nestes meus últimos dias. Deus é grande. Quando digo que ela não prestava, digo apenas porque é verdade - e ela sabe disso.
Matronas
E no entanto parece tão simples para nós, sapos, transformar em cisnes mulheres cujo peso se conta em arrobas.
Cotação do dia (2)
Somos iguais aos outros: abjetos, sórdidos, imundos. Só que temos coragem de dizer.
No asilo
Hoje dois dos velhinhos mais pacatos se pegaram a tapa, dizendo-se donos do Tobias. Tobias é um ratinho esperto que vive pedinchando comida.
Custo-benefício
Se é certo que passaremos mais tempo mortos que vivos, vamos nos ocupar de quê? Da vida ou da morte?
Astúcia
De soslaio, o defunto observa seu gato. Se houver algum descuido, ele o enfiará no paletó. Sabe que pode contar com sua conivência.
Definição
A vida sempre foi essa merda, apesar de todas as tentativas de aromatizá-la artificialmente com a poesia.
Cenário
Quando lhe disseram para ir ver a mãe, morta, a menina só estranhou que houvesse tanta gente na sala e mãe estivesse deitada sobre a mesa.
Um trecho de Sandor Márai
"Quem poderia fotografar, registrar, tatear o instante em que algo se rompe entre duas pessoas? Quando aconteceu? De noite, enquanto dormíamos? N almoço, enquanto comíamos? Agora, quando vim ao consultório? Ou muito, muito tempo atrás, apenas não percebemos? E continuamos a viver, a falar, a nos beijar, a dormir juntos, a procurar a mão do outro, o olhar do outro, como bonecos animados que continuam a se movimentar ruidosamente por um tempo, mesmo estando a mola de seu mecanismo quebrada... O cabelo e as unhas do morto continuam a crescer, talvez as células nervosas ainda sobrevivam quando os glóbulos vermelhos já estão mortos... Nada sabemos. O que posso fazer agora? Que refletor devo acender para encontrar nessa escuridão, nessa trama, aquele momento único, aquele milésimo de segundo em que algo cessa entre duas pessoas?"
(Do romance Divórcio em Buda, tradução de Ladislao Szabo, publicado pela Companhia das Letras.)
domingo, 21 de setembro de 2014
Na minha
Não quero estragar o domingo de ninguém. Quando minhas tristezas chegarem aí, finjam que não chegaram.
Solidariedade
Uma mulher da sala F veio avisar que o café do bar da esquina era mais barato que o vendido na lanchonete do velório.
Velório
O cachorro estranhou ter sido enxotado pelos outros homens e seu dono haver permanecido deitado, sob as quatro velas, sem tentar ajudá-lo.
Solenidade
Às vezes olho para ele, meu melhor terno. Com ele é que eu irei, no dia. Em tudo, na vida, os melhores pagam seu preço.
Novidade
A mosca estranhou que, tendo sido quase morta pelo homem na véspera, pudesse andar livremente agora pelo seu rosto e entrar em suas narinas, apesar do algodão.
Birra
Fazia já cinco horas que o defunto estava na sala quando seu gato, no quintal, tomou a resolução definitiva: se não queria vir vê-lo, ele é que não iria dar-lhe a honra, ora. Assim pensando, espichou-se na grama e dormiu.
Arranjo
Alguém foi arrumá-las, e uma das flores caiu do peito do defunto. A menininha a recolheu e a repôs: "É sua, tio."
Três haicais de Carlos Drummond de Andrade
'Num automóvel aberto
riem mascarados.
Só minha tristeza não se diverte"
Não tenho dinheiro no banco,
porém,
meu jardim está cheio de rosas."
"O pintor ao meu lado
reclama:
quando serei falsificado?"
(Do livro Haicais - Boa companhia, organização de Rodolfo Witzig Guttilla, publicação da Companhia das Letras.)
riem mascarados.
Só minha tristeza não se diverte"
Não tenho dinheiro no banco,
porém,
meu jardim está cheio de rosas."
"O pintor ao meu lado
reclama:
quando serei falsificado?"
(Do livro Haicais - Boa companhia, organização de Rodolfo Witzig Guttilla, publicação da Companhia das Letras.)
sábado, 20 de setembro de 2014
Amparo
Começará lá fora uma tempestade tão estrepitosa que a mãe do pequeno defunto se aproximará mais dele, para protegê-lo.
Tantos
Tantos homens decentes poderiam ter matado Sylvia Plath - e a ela coube o mais cruel de todos os seres: um poeta.
Os únicos
Lendo hoje Sylvia Plath, descobri que, se existir gente honesta, ela há de ser procurada entre os loucos - e só entre eles.
Soneto do que significa viver
Importa agora saber,
Depois que tudo se esfez,
O que cada um de nós fez
Ou deveria fazer?
Viver sempre foi assim.
Fizemos o que fizemos,
Nos demos como nos demos,
Desde o início até o fim.
Às vezes pensamos que
Tudo mudaria se
Algo tivesse ocorrido.
Viver é simples. Não tem
Heróis, bandidos também.
Viver é só ter vivido.
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
Cotação do dia (2)
Se um dia Deus puser à sua disposição a corda, que você saiba usá-la como um homem.
A palavra
Se você tiver palavra pior que câncer, use-a. Tudo para garantir a satisfeita comiseração dos amigos e melhorar o modo de pronunciarem a palavra coitado.
Missão
Morrer é o que nos incumbe.
É sábio quem, na sua hora,
Adiamentos não implora,
Os olhos fecha e sucumbe.
É sábio quem, na sua hora,
Adiamentos não implora,
Os olhos fecha e sucumbe.
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Êxtase
Colhi nas mãos um peixinho prateado, disse-lhe palavras amáveis e soltei-o de volta ao rio, com a certeza de que jamais viverei um momento de tão esplendorosa beleza.
Arte
Serem a musa de um artista verdadeiramente grande é uma oportunidade que as mulheres têm de se ver como jamais serão. Mas onde estão os artistas verdadeiramente grandes?
Realmente importantes
Hora de pensar em coisas grandiosas, como o céu, o mar. Em Deus, não. Só em coisas ainda não deturpadas inteiramente pelos homens.
Almoço
Ela o olhou como uma serpente olhando para um ratinho e disse: "Desculpe, queridinho. Não é nada pessoal. É a cadeia alimentar."
Identidade
Se você se sentir alegre, altruísta, e sorrir para norte, sul, leste e oeste, pode estar certo: não é você.
Aquele
O amor é aquele bandido
Cujos crimes nós perdoamos,
Que em nossa cama deitamos
E chamamos de querido.
Cujos crimes nós perdoamos,
Que em nossa cama deitamos
E chamamos de querido.
Soneto do fútil e do perene
Idiota, enquanto escrevias
Sobre mentira e verdade,
Sobre Deus e a eternidade,
Iam murchando os teus dias.
Em nada te comprazias
Além da perenidade,
Do acerto e objetividade
Das tuas filosofias.
A que conclusões chegaste
Não sei, não as divulgaste,
Mas, pelo que saber pude,
Tu não gozaste um instante
Da fase mais fulgurante
Da tua morta juventude.
Sobre mentira e verdade,
Sobre Deus e a eternidade,
Iam murchando os teus dias.
Em nada te comprazias
Além da perenidade,
Do acerto e objetividade
Das tuas filosofias.
A que conclusões chegaste
Não sei, não as divulgaste,
Mas, pelo que saber pude,
Tu não gozaste um instante
Da fase mais fulgurante
Da tua morta juventude.
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Presente
Deixarei à tua porta um gato tão branco, tão tolo e pedinchador que nem mesmo tu terás como ralhar com ele ou comigo.
Apesar de tudo
Mantemos todos os orifícios
em pleno exercício
a serviço de todos os vícios
e da devassidão.
Pecamos, iludimos,
mentimos, prevaricamos,
e confiantes esperamos
pela graça do perdão.
em pleno exercício
a serviço de todos os vícios
e da devassidão.
Pecamos, iludimos,
mentimos, prevaricamos,
e confiantes esperamos
pela graça do perdão.
Pancada
Deus não batia bem. Depois de criar os peixes e os pássaros, precisava ter concebido da costela do Diabo o homem, essa coisa escrota com aquele penduricalho?
Prodígio
Gozarei ainda êxtase igual ao daquela tarde, na avenida São João, em que descobri ter existido um homem chamado Fernando Pessoa?
Deixá-lo entrar
Deixá-lo entrar, dar-lhe um pouco de leite e um miolo de pão. Vê-lo desfrutar o milagre de comer e puxá-lo depois para o colo, no sofá. Permitir que ele se acostume ao calor do seu peito e o olhe como um gato olharia a mãe. Sentir que ele começa a ronronar e já não teme nada, porque você está ali. Quando ele se mostrar confiante, coloque-o na caixinha, se preciso aos poucos, para não assustá-lo. Ligar para o abrigo de animais, descobrir que Deus é grande e é tempo ainda de levá-lo esta noite, porque há ocasiões em que até um gato estropiado tem sorte. Dirigir como se você estivesse transportando uma nuvem muito branca. Preencher o papel passado pela encarregada e, depois, suportar a tristeza de ver o gato o encarar como se você fosse o mais traidor de todos os seres que formam a miserável espécie humana. Dizer-lhe que ele ficará melhor ali, embora a essa altura ele já se recuse a falar com você. Ir para casa. Talvez essa lembrança, a de um gato vadio do qual você foi mãe por duas horas numa noite fria de setembro, seja a última que você tenha no dia em que se fecharem para você todas as portas.
Cotação do dia
Em algum canto, ali atrás, ficou algo talvez essencial. Já não importa. Nada mais importa.
Técnica
Desistir aos poucos, devagar. Cada momento, cada segundo do seu sofrimento há de ser fruído por quem o provocou. Assim é a vida. Você não quis ser do lado dos que gozam. Deixe-os gozar, então. Permita que olhem bem para você. Assim. Se você apertar os olhos, poderá oferecer ao mundo duas belas lágrimas. Ofereça-as. Diga que está com câncer, ainda que não seja inteiramente verdade.
Definição
Crônica é um texto geralmente escrito por alguém que se diz cronista por lhe parecer exagerado chamar-se poeta.
Facilidade
Perder é sempre melhor.
O que devemos fazer
Para as derrotas obter
Nós já sabemos de cor.
O que devemos fazer
Para as derrotas obter
Nós já sabemos de cor.
terça-feira, 16 de setembro de 2014
Modéstia
Se houvesse na sala outro pássaro, como Drummond, Mario Quintana calava-se. Temia ser tido como imodesto.
Raízes
Há quem se envergonhe de suas raízes aristocráticas. Se for homem, será aquele que vencerá todos os concursos de cuspe a distância. Se for mulher, será quela que dançará uma rumba como rameira nenhuma jamais conseguiu.
A pergunta
"Me diga uma coisa, você está morrendo?"perguntou-me uma leitora. "É só eu me interessar por alguém, e ele está morrendo." Quase disse a ela: "E quem não está?"
Cotação do dia (2)
Sempre que seu jovem potro mostrava cansaço, ela dizia meu nome e ele se punha a escoicear como se fosse o corcel preferido do Diabo.
Cotação do dia
As febres e eu nos damos cada vez melhor. Já não saberia viver sem elas. Meus dentes as esperam, para tamborilar, para triturar o nome dela, salvo-conduto para o inferno e os seus deliciosos horrores.
Seiva
Mostraste meus sonetos ao teu rapaz. Foram capim novo para ele. Como te fustigou à noite, como relinchaste. Se precisares de outros poemas, podes passar em casa. Estou sempre fazendo algum que te celebre.
Bênção
Enquanto formos cativos
Do amor único e primeiro,
Quem mais, entre os seres vivos,
Terá melhor cativeiro?
Do amor único e primeiro,
Quem mais, entre os seres vivos,
Terá melhor cativeiro?
Modo de usar
Se a arte não for encarada como uma finalidade em si mesma, melhor nem pensar em lidar com ela. A arte deve ser nosso único alimento, ainda que só tenha veneno a oferecer.
Perfume
Se a alma se desse valor, se nós a tratássemos como ela merece, talvez um dia nós viéssemos a ter não a visão dela, mas a sutil emanação de sua presença, como um perfume de mulher entrando na sala e indo sentar-se no banquinho do piano.
Chuva
Ir até a chuva, deixá-la molhar-nos como se fôssemos uma dessas árvores que acordam certa noite e descobrem que nunca foram regadas com amor.
Mestre
De vez em quando Mario Quintana embirrava com um bem-te-vi e ia até o quintal ensinar-lhe a nota certa.
Futuro
Os derradeiros bate-papos, marcados para Presidente Prudente, Birigui e Araçatuba. Depois não mais sair de casa, nunca. Não precisar ser mais nada. Essa talvez venha a ser a felicidade, afinal. Não ter de fazer nada. Ser somente alguém estendido numa cama.
Bênção
Enquanto formos cativos
Do amor único e primeiro,
Quem mais, entre os seres vivos,
Terá melhor cativeiro?
Do amor único e primeiro,
Quem mais, entre os seres vivos,
Terá melhor cativeiro?
segunda-feira, 15 de setembro de 2014
O sorriso
Embora, durante as duas horas diárias de visita dela, ele precisasse pedir pelo menos uma vez à enfermeira que lhe trouxesse o papagaio, hoje, quando se lembra desse tempo, ele é tomado por um romantismo que abre nele um sorriso igual ao dos anjos e dos idiotas.
Manter as aparências
Uma frase inteligente aqui, talvez um bom parágrafo ali adiante, o que mais? Mortas as grandes ambições, cuidar apenas para que tudo não fique parecendo algo assim como um probleminha de palavras cruzadas.
Equívoco
Talvez no início tu tenhas acreditado também que eu pudesse te ver melhor do que eras. Falhei. Foste construída sobre carne - e nada do que a carne constrói merecerá jamais o sopro da poesia.
Receita
Eu a criei com o que tinha de melhor. No entanto ela me saiu tão corriqueira quanto as outras todas, concebidas por Deus.
Irresignação
Morrerei sem me resignar ao fato de que homens urinam e defecam. Vivi setenta e cinco anos esperando diariamente um desmentido.
Sinais
Se você tem também aqueles orifícios de onde saem a fulva urina e as escaldantes fezes, um pouco de modéstia talvez lhe caia bem, Desconfie da grandeza dum homem se em sua casa houver papel higiênico.
domingo, 14 de setembro de 2014
www.rubem.wordpress.com
Hoje, resumo o que foi a grande desgraça de minha vida. Sonhar alto? Sapos devem, quando muito, olhar para o brejo onde vivem. Estrelas não foram feitas para eles. Olhar para o alto é uma insolência que Deus está sempre pronto para castigar.
Que
Que seja bom o vosso domingo. Que não vos atormentem as vozes de vossos mortos. Os meus já há alguns dias falam comigo com naturalidade. Pertenço a eles, já, e sinto uma serenidade única. O corpo dói, a febre queima. Não doerá, não queimará mais. Hoje é hoje, amanhã será amanhã.
Quando, alma?
Como iremos
alma imortal
acreditar ainda em ti?
Que valor podes ter
se há tanto tempo
te resignas a morar
nesta carcaça?
Alma, as minhas janelas
estão todas abertas
Não são tantas
nem tão amplas
mas por que não podes
alma saltar desprender-se
e voar voar voar?
alma imortal
acreditar ainda em ti?
Que valor podes ter
se há tanto tempo
te resignas a morar
nesta carcaça?
Alma, as minhas janelas
estão todas abertas
Não são tantas
nem tão amplas
mas por que não podes
alma saltar desprender-se
e voar voar voar?
Inépcia
Não soube mantê-la no plano espiritual, permitiu que a poesia fizesse negociatas com a carne, e tudo se tornou o que sempre é: a rotina de um homem e de uma mulher que como todos os outros, desde o início dos tempos, aprenderam a ocultar a animalidade com o álibi de um falso violino.
Esse corpo grande
Não é que ela não preste. Teve sempre esse corpo grande e essa ambição de prazer que têm os corpos grandes. Ele é que, podendo ao menos tentar torná-la uma possessão do espírito, quis ser mais um dos brinquedos que desde cedo ela usou na sua satisfação.
O reinado da carne
Se ele lhe elogia os beijos, ela diz que aprendeu com ele. Ele é um dos três, quatro ou cinco homens com quem ela viveu. Dizendo ele, ela pensa que menor será seu ciúme. Por que nenhum desses três, quatro ou cinco lhe ensinou algo verdadeiramente importante, algo espiritual,, que a tivesse feito melhor e que ela pudesse passar a ele, em vez desses resvalares de língua?
sábado, 13 de setembro de 2014
Perfeição
Já bem próximas estão as noites em que, acordando mijado, te perguntarás de que te serviram teus amados Shakespeare, Dickens e Flaubert. Tudo na vida segue sua perfeição. A nossa é esta, este odor incapaz de atrair um rouxinol. Nós nos realizamos em urina, fezes e vômito. Se fosse diferente, por que nos sepultariam?
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
Simpáticos espectros
Os espectros noturnos são gentis. Têm o cuidado de não surgir abruptamente diante de nós. Aparecem devagar, deixam-se ver, não se mexem, até que nos sintamos à vontade com eles. Estranhei o comportamento de um deles, esta madrugada. Era um espectro pequeno, um menino, e e,mais discreto ainda que os outros, deu a impressão de quer passar ignorado por mim. Aproximei-me dele aos poucos; Ele foi se encolhendo. Cheguei-me mais ele foi se encolhendo. Vi que tinha os olhos tristes e um braço a menos.
Cansaço
Vergonha eu ter tanto tempo julgado que este meu corpo, frágil ramo, me representava. Hoje o vento zomba de mim. Nunca me roca. Um toque, só, e ele não teria mais com quem brincar.
Alarme falso
Ia dizer que me abandonaram as forças. Mas que sentido teria usar o plural, quando já não me resta nenhuma palavra?
Talvez nem...
... um haicai mais. O corpo está destroçado, a alma não dá sinais de existir. Que coisa triste é o homem,
Agora há pouco,
ia dizer que me abandonaram as forças. Que sentido teria usar o plural, quando já não me resta nenhuma?
terça-feira, 9 de setembro de 2014
Boletim
Mais um dia de febre, de frio glacial, de alucinações, de delírios, de visões horrendas. Nos pômulos, na nuca, no topo da cabeça, dores lancinantes. Lascas de gelo me perfuram continuamente, metodicamente, selvagemente. Sinto o sol na pele, mas tudo é noite ao meu redor. Há cinco dias não enxergo nada e, no entanto, fecho os olhos e ponho as mãos sobre eles, porque as farpas de gelo não param de me cutilar. Se esse é o início do fim, na fase seguinte estarei berrando por clemência no inferno, com abutres devorando minhas vísceras.
Papel
Nosso mal é o protagonismo. Queremos sempre as melhores situações, as melhores falas. Sofreríamos menos se nos contentássemos em ser aquela barata de plástico que o produtor põe em cena para melhor caracterizar um quarto sórdido de hotel.
Desejo
Gostaria de ser hoje um menino e de estar muito doente. Saudade daqueles anos, na infância, em que uma doença grave me atirava por meses à cama. Havia a febre, o frio, o tiritar convulso, as injeções, os remédios amargos. E havia os livros que compravam para mim todos os dias. Quando eu era tomado pelos frequentes delírios noturnos, conversava com os piratas saídos das páginas da Coleção Terramarear. Hoje a febre não me rende livros, porque os olhos quase não conseguem já distinguir as letras. Meus ouvidos, também já quase surdos, não captam mais o deslizar ciciante das escunas. Que piratas querem ver um velho rabugento e escrofuloso?
Vida
Não temos nada a ganhar,
Não temos muito a fazer.
Do que iremos nos queixar?
Isso se chama viver.
Não temos muito a fazer.
Do que iremos nos queixar?
Isso se chama viver.
Ascensão
Como a bengala de um cego, a ponta de sua língua tateia a boca da mulher, buscando-lhe o céu e as estrelas.
Soneto do amor prostituto
Os trinta mil atributos
Que tem o amor são mesquinhos
E só se dão, inteirinhos,
Aos cafajestes e aos putos.
Aos que por eles se matam
Numa atividade insana,
Eles dão uma banana
E os execram e os maltratam.
O amor é uma meretriz
Que só se sente feliz
Em camas de lupanar.
Não lhe falem em sentir,
Não lhe falem em fruir.
O que o amor quer é gozar.
Que tem o amor são mesquinhos
E só se dão, inteirinhos,
Aos cafajestes e aos putos.
Aos que por eles se matam
Numa atividade insana,
Eles dão uma banana
E os execram e os maltratam.
O amor é uma meretriz
Que só se sente feliz
Em camas de lupanar.
Não lhe falem em sentir,
Não lhe falem em fruir.
O que o amor quer é gozar.
Inveja
Quando o dedo médio dela volta de suas incursões pelo seu próprio corpo, os outros nove o olham com uma inveja letal, que se exacerba no momento em que ela, como agradecimento pelo prazer, o leva à boca e fecha sobre ele os lábios úmidos.
Diferenças
Ser mau não requer prática nem habilidade. Já ser bom exige certo jeito e o dom de fingir.
Soneto da imprecisa memória
O que fomos não importa.
Se houve entre nós uma história,
E se teve brilho e glória,
Hoje é só uma história morta.
Dela o que guarda a memória
É uma rua meio torta
Onde alguém bate a uma porta
Numa tarde merencória.
Por mais que bata e que espere,
Por mais que se desespere,
Ninguém a porta abrirá.
Ou talvez a abra e sorria.
Como foi naquele dia?
Deixa. Quem se importará?
Se houve entre nós uma história,
E se teve brilho e glória,
Hoje é só uma história morta.
Dela o que guarda a memória
É uma rua meio torta
Onde alguém bate a uma porta
Numa tarde merencória.
Por mais que bata e que espere,
Por mais que se desespere,
Ninguém a porta abrirá.
Ou talvez a abra e sorria.
Como foi naquele dia?
Deixa. Quem se importará?
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
Soneto de como o amor é inclemente
O amor é mesmo inclemente.
Se tolos lhe parecemos
Dele jamais esperemos
Conduta condescendente.
Para esse tipo de gente,
Por mais que nós lhe imploremos
E por mais que argumentemos
O seu castigo é veemente.
Nos chicoteia, maltrata,
Nos dilacera, nos mata,
E tudo faz a sorrir.
Que perito é em destruir!
E depois, ao fim e ao cabo,
Ainda nos cospe no rabo.
Se tolos lhe parecemos
Dele jamais esperemos
Conduta condescendente.
Para esse tipo de gente,
Por mais que nós lhe imploremos
E por mais que argumentemos
O seu castigo é veemente.
Nos chicoteia, maltrata,
Nos dilacera, nos mata,
E tudo faz a sorrir.
Que perito é em destruir!
E depois, ao fim e ao cabo,
Ainda nos cospe no rabo.
Último momento
Teremos muita sede quando chegar nossa hora. Quando nos derem água, a garganta ressequida terá alento para dizer a única palavra que lhe aprouve dizer sempre: amor.
Compensação
O amor é cego, mas num instante nos despoja da camisa, da calça, e nos leva para a cama com aquela cueca que parece uma tela de Salvador Dalí.
Proporção
Se tudo formos somar,
Para cada um dos motivos
Que temos para estar vivos,
Dois há para não estar.
Para cada um dos motivos
Que temos para estar vivos,
Dois há para não estar.
Dom
Deus foi quem me deu o dom
De, sendo sempre enganado,
Jamais ficar revoltado,
Julgando que o mau é o bom.
De, sendo sempre enganado,
Jamais ficar revoltado,
Julgando que o mau é o bom.
Brasil, setembro, 2014
Nos roubam inteiramente,
Dinheiro grosso e miúdo,
Nos roubam o continente,
Nos furtam o conteúdo.
Dinheiro grosso e miúdo,
Nos roubam o continente,
Nos furtam o conteúdo.
Insensatez
Se nós tivéssemos sido
Sensatos como devíamos,
Aqui não mais estaríamos,
Já teríamos morrido.
Sensatos como devíamos,
Aqui não mais estaríamos,
Já teríamos morrido.
O papel
Sonha que está morto e o levam ao crematório. Chove muito, e assim que o carro funerário ganha velocidade começa a correr atrás dele um menino tísico, com um papel na mão. O cortejo fúnebre diverte-se com o incidente. O menino parece sempre que vai alcançar o carro e entregar o papel, com o qual acena. Cai então uma batega ainda mais forte e o menino some de vez. Ele, o morto, suspira. Está salvo.
domingo, 7 de setembro de 2014
Soneto do significado do amor
Jovem, se queres saber
O que significa o amor
E qual é o seu valor,
Talvez eu possa dizer.
Sempre fui um sonhador
E pelo amor quis viver
Toda a vida, até morrer,
Ou na alegria ou na dor.
Todo ao amor me entreguei,
Corpo, alma e vida lhe dei,
E dele o que foi que ouvi?
"Eu não estou nem aí."
Então, meu jovem, escuta:
O amor é um filho da puta.
O que significa o amor
E qual é o seu valor,
Talvez eu possa dizer.
Sempre fui um sonhador
E pelo amor quis viver
Toda a vida, até morrer,
Ou na alegria ou na dor.
Todo ao amor me entreguei,
Corpo, alma e vida lhe dei,
E dele o que foi que ouvi?
"Eu não estou nem aí."
Então, meu jovem, escuta:
O amor é um filho da puta.
Quadrinha
O câncer que me injetaste
Era fraco e não matou.
O amor que me juraste
Era pouco e se acabou.
Era fraco e não matou.
O amor que me juraste
Era pouco e se acabou.
Soneto daquele tipo asqueroso
O amor é um tipo mendaz,
Sórdido, vil, asqueroso,
Sempre mesquinho e maldoso
Em tudo que omite ou faz.
Só calamidades traz
No seu estoque horroroso
E o inferno mais pavoroso
É o que ele chama de paz.
O amor é aquele canalha
Que na tarefa não falha
De destruir e destroçar.
Mas todo dia nos diz
Que só quer ver-nos feliz
E vive por nos amar.
Sórdido, vil, asqueroso,
Sempre mesquinho e maldoso
Em tudo que omite ou faz.
Só calamidades traz
No seu estoque horroroso
E o inferno mais pavoroso
É o que ele chama de paz.
O amor é aquele canalha
Que na tarefa não falha
De destruir e destroçar.
Mas todo dia nos diz
Que só quer ver-nos feliz
E vive por nos amar.
Soneto do prêmio que o amor me deu
Neste final de semana,
Sem ter nada que fazer,
Eu decidi me inscrever
E entrei em uma gincana.
Me disse o organizador
Que o vencedor ganharia
Como suprema honraria
Um grande prêmio do amor.
Venci, e quis receber.
Melhor seria perder.
Quando o amor se aproximou,
Me disse: veja se gosta,
E um balde cheio de bosta
No meu rosto despejou.
Sem ter nada que fazer,
Eu decidi me inscrever
E entrei em uma gincana.
Me disse o organizador
Que o vencedor ganharia
Como suprema honraria
Um grande prêmio do amor.
Venci, e quis receber.
Melhor seria perder.
Quando o amor se aproximou,
Me disse: veja se gosta,
E um balde cheio de bosta
No meu rosto despejou.
Desdém
No velório o defunto, com sua mudez e autossuficiência, dá sempre a impressão de ser um homenageado mal-agradecido.
Fugindo ao script
O morto deveria ter o direito de pelo menos espantar aquela mosca que nunca se decide entre a narina esquerda e a direita.
Zureta
Mas se não é mesmo o cúmulo!
Fez sua amada jurar
Que irá um dia mijar
Na lápide do seu túmulo.
Fez sua amada jurar
Que irá um dia mijar
Na lápide do seu túmulo.
A morte
A morte só vem no fim
naquela ocasião
em que tua voz
não tem mais força para chamar
e o astucioso amor
já se distanciou o bastante
para se ver livre
de qualquer acusação.
naquela ocasião
em que tua voz
não tem mais força para chamar
e o astucioso amor
já se distanciou o bastante
para se ver livre
de qualquer acusação.
Soneto da serventia que descobri em mim
Eu sou aquele mendigo
Que tendo pedido pão
Aproveitou a ocasião
E pediu também abrigo.
Era uma bela mansão
E quem falara comigo
Disse espere um pouco, amigo,
Que eu vou falar com o patrão.
Para dentro fui chamado
E na hora fui contratado
Pelo meu novo senhor.
Abandonei a poesia
E hoje é minha serventia
Lavar a bunda do amor.
Que tendo pedido pão
Aproveitou a ocasião
E pediu também abrigo.
Era uma bela mansão
E quem falara comigo
Disse espere um pouco, amigo,
Que eu vou falar com o patrão.
Para dentro fui chamado
E na hora fui contratado
Pelo meu novo senhor.
Abandonei a poesia
E hoje é minha serventia
Lavar a bunda do amor.
Madrugada de domingo
Menos morto do que ontem. A febre cedeu um pouco. Mas ele sente frio, muito frio. Treme, bate os dentes. Como último sinal de dignidade, retém a urina quanto pode. Mas, como em todas as outras madrugadas, acaba deixando que ela escorra, quente. Que bênção é sentir por dois minutos essa ausência de frio. De manhã, a irmã de caridade vai censurá-lo, mas que importa, se agora ele se sente como no dia em que a amada lhe sorriu e lhe disse que o amava?
"Fim da viagem", de Robert Louis Stevenson
"Deixa que tua alma encontre uma
Âncora neste mundo da matéria. Fundeia aqui o teu corpo -
Que desde já este espetáculo imutável seja
A gravura nos teus olhos; e quando soar a hora
E a verde paisagem escurecer de repente -
Os últimos, os que acompanharem o teu cavalo no sonho
Acompanharão o teu cavalo morto."
(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Âncora neste mundo da matéria. Fundeia aqui o teu corpo -
Que desde já este espetáculo imutável seja
A gravura nos teus olhos; e quando soar a hora
E a verde paisagem escurecer de repente -
Os últimos, os que acompanharem o teu cavalo no sonho
Acompanharão o teu cavalo morto."
(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
sábado, 6 de setembro de 2014
E ainda isso
Além do mais, sou um péssimo exemplo para os suicidas. Há cinco anos minha corda está na gaveta.
Resumo
Não mais que uma cusparada
Sobre um montinho fecal
Sintetiza o nosso ideal.
Nós nunca valemos nada.
Sobre um montinho fecal
Sintetiza o nosso ideal.
Nós nunca valemos nada.
Hoje de madrugada...
... imaginei que o blog estivesse morto. Estava frio, rígido como um cadáver. Tentei reanimá-lo e - para infortúnio dele e meu - consegui. Mas está nas últimas, este meu companheiro que nasceu para registrar os quatro anos mais atormentados de minha vida. Também eu estou abandonando tudo: sonhos, ideais, esperanças. Perto está o dia em que parecerei uma múmia no hospital, como há quatro anos. Desta vez espero não sair de lá andando. Havia na época ainda um resto de ilusão em mim. Escrevi aqui dezoito mil textos, em alguns dos quais julguei, com autocondescendência, ver algum valor. Valiam tanto quanto um berloque. Estou cansado, muito cansado, e não vejo mais sentido em nada. Por não ter a bravura exigida, eu me deixarei extinguir, assim como vai se extinguindo este blog: piegas, tolo, inútil, ridículo. Se tenho ainda uma palavra de carinho para mim mesmo, é só esta: pateta.
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
Graus
O amor é aquela desgraça
Que dói muito quando vem,
Quando fica dói também
E muito mais quando passa.
Que dói muito quando vem,
Quando fica dói também
E muito mais quando passa.
Cama
Ao sol não cabe a ventura
Esplêndida, inigualada,
De ver a cor, a textura,
Da relva encaracolada.
Esplêndida, inigualada,
De ver a cor, a textura,
Da relva encaracolada.
"Katharine", de Robert Louis Stevenson
"Vemos-te como vemos um rosto
Que na floresta estremece
Sobre o espelho de um charco
Para sempre silencioso, claro e fresco;
E no caprichoso vidro surges
E pairas entre sorrisos e lágrimas,
Mágica e humana, real ou etérea,
Pelo azul refletida."
(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Que na floresta estremece
Sobre o espelho de um charco
Para sempre silencioso, claro e fresco;
E no caprichoso vidro surges
E pairas entre sorrisos e lágrimas,
Mágica e humana, real ou etérea,
Pelo azul refletida."
(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Rebelião
Os outros prisioneiros decidiram fazer uma manifestação contra os maus-tratos infligidos pelo amor no cativeiro. Eu me associei a ela, embora por um motivo diverso: reivindicava mais e mais agudos suplícios.
Item
O único compromisso que a poesia deve ter é com o amor. Poesia social é uma contradição em termos.
Um poema de Marina Tsvetáieva
"Dois sóis congelam - tende piedade, ó deus! -
Um - no teu céu, outro - no peito meu.
Como esses sóis - algum dia terei cura? -
Como esses sóis levaram-me à loucura!
E ambos congelam - o seu raio não dói!
E o que gela antes é o mais quente dos dois."
(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, publicação da Martins Fontes.)
Um - no teu céu, outro - no peito meu.
Como esses sóis - algum dia terei cura? -
Como esses sóis levaram-me à loucura!
E ambos congelam - o seu raio não dói!
E o que gela antes é o mais quente dos dois."
(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, publicação da Martins Fontes.)
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
Regra
No jogo do amor não entre com astúcias. Seja tolo, perca até a última ficha. Depois, de quatro, babe naquele sapato de salto alto.
Malévola
Mulher, sei que não sou digno
Do teu contato frequente,
Do teu abraço indecente,
Do teu caráter maligno.
Do teu contato frequente,
Do teu abraço indecente,
Do teu caráter maligno.
Uma só
Amor, quando digo teu nome, meus lábios sabem que não precisariam ter aprendido mais nenhuma palavra.
Perversão
Amor, para que esses olhos, para que esses dentes? Não me olhas, não me mordes, não me devoras. Que degenerado tu és, amor.
Carpe matinam
Se o amor te sorri de manhã, aproveita. À tarde a oferta já não valerá, e à noite as portas estarão fechadas.
Retrô
Às vezes sonho que Paternostra Maternostra Memechka é Ana Karênina, e exerço sobre ela meu ciúme retroativo, ao som da balalaica.
Relento
Bati à porta de Petruszka Matruszka Menuszka numa noite de neve como aquelas dos romances russos. Sentia frio, tinha fome. Ela mandou ao meu encontro Ígor e Bóris, os dois cães que tinha para espantar esmoleres.
Prova
Se um dia alguém duvidar de minha insanidade, conto com o testemunho de Pamenka Marystella Menyra. Ela foi minha mestra.
Êxtase
Aquele momento em que os lábios dele, e os dela, não se descolariam nem para lamentar o fim do mundo nem para saudar o início de um novo.
Chuva
Quando me lembro de Platynia Magnarova Meganova, aos meus lábios volta o sabor de cabelos molhados.
Quem
Quem é você, que me alenta,
Quem é você, que me arruína,
Que me derruba e sustenta,
Quem é você? Minha sina?
Quem é você, que me arruína,
Que me derruba e sustenta,
Quem é você? Minha sina?
Gangorra
Amada, minha querida,
Dona do meu universo,
Como me alegraste a vida,
Como me pioraste o verso.
Dona do meu universo,
Como me alegraste a vida,
Como me pioraste o verso.
Dândi
Era um homem tão fino e educado que a direção pensou em pôr uma gravata sobre a camisa de força.
Clemência
Não castiguem o amor. Ele me lanhou inteiro, é verdade, mas vejam que rosas ele desenhou, como se meu corpo fosse um jardim.
Álibi
Santa literatura. Sempre foste meu álibi. Até no último de meus dias eu terei alguns papéis rabiscados para responder toscamente aos que perguntarem o quê, afinal, eu fiz na vida.
Trâmites
Se para Petruszka Márya Medvelski minha morte fosse um triunfo, eu já a teria providenciado.
"Balões", de Sylvia Plath
"Desde o Natal estão com a gente,
Claros e inocentes,
Bichos de alma oval,
Tomando metade do espaço,
Movendo e roçando sua seda
Invisível, o ar os leva,
Gritando e estourando
Quando feridos, murchando até o fim, em convulsão.
Cabeça de gato amarela, peixe azul -
Em vez de uma mobília velha
Com que luas estranhas convivemos:
Esteiras, paredes brancas,
E estes globos peregrinos
Cheios de ar leve, verde ou vinho,
Divertindo
O coração como desejos ou pavões
Livres, abençoando
O antigo chão com suas penas
Folheadas em metal.
Seu irmão caçula
Está fazendo
O balão miar feito um gatinho.
Parece ver
Do outro lado um mundo cor-de-rosa, comestível,
Ele morde.
E cai
Pra trás, jarra cheia,
Contemplando um mundo claro como água.
Um trapo vermelho
Sobra em seus dedinhos."
(Do livro Poemas, tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, publicação da Iluminuras.)
Claros e inocentes,
Bichos de alma oval,
Tomando metade do espaço,
Movendo e roçando sua seda
Invisível, o ar os leva,
Gritando e estourando
Quando feridos, murchando até o fim, em convulsão.
Cabeça de gato amarela, peixe azul -
Em vez de uma mobília velha
Com que luas estranhas convivemos:
Esteiras, paredes brancas,
E estes globos peregrinos
Cheios de ar leve, verde ou vinho,
Divertindo
O coração como desejos ou pavões
Livres, abençoando
O antigo chão com suas penas
Folheadas em metal.
Seu irmão caçula
Está fazendo
O balão miar feito um gatinho.
Parece ver
Do outro lado um mundo cor-de-rosa, comestível,
Ele morde.
E cai
Pra trás, jarra cheia,
Contemplando um mundo claro como água.
Um trapo vermelho
Sobra em seus dedinhos."
(Do livro Poemas, tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, publicação da Iluminuras.)
quarta-feira, 3 de setembro de 2014
Multiplurimegassilábico
Eu gostaria que Preâmbula Magnifika Melioribus tivesse um nome longo, que eu demorasse um dia para dizer, um nome nascente e poente, sem precisar repetir por vinte e quatro horas Preâmbula Magnifika Melioribus, embora repetir me agrade tanto.
Diagnóstico
Levaram-no para o hospício, e nem precisaram perguntar a causa de sua insanidade. Logo na entrada ele gritava Jênifer, Jênifer, Jênifer.
Inveja
Que os poetas são uns suicidas
É um insofismável fato:
Queriam ter sete vidas,
Como dizem ter um gato.
É um insofismável fato:
Queriam ter sete vidas,
Como dizem ter um gato.
Crítica
Se Pabla Mangels Merszagen tivesse ao menos gostado dos meus sonetos... Não quis sequer esforçar-se.
Soneto do jugo que me impus
Do amor eu fui um vassalo
Por fé e por convicção,
E por vontade e paixão
Eu quis servi-lo e louvá-lo.
Para de culpa isentá-lo
Pus-me eu mesmo na prisão
E juro que, se ele não,
Eu pensei em algemá-lo.
Submisso às suas torturas,
Gozei todas as doçuras
Que a paixão pode nos dar.
O jugo chegou ao fim
Porque ele cansou de mim
E me mandou me mandar.
Por fé e por convicção,
E por vontade e paixão
Eu quis servi-lo e louvá-lo.
Para de culpa isentá-lo
Pus-me eu mesmo na prisão
E juro que, se ele não,
Eu pensei em algemá-lo.
Submisso às suas torturas,
Gozei todas as doçuras
Que a paixão pode nos dar.
O jugo chegou ao fim
Porque ele cansou de mim
E me mandou me mandar.
Um poema de Emily Dickinson
"Quando os diamantes são mito
E os diademas, uma lenda,
Broches e brincos semeio
E cultivo para venda.
E embora meu parco renome,
Minha obra - um dia estival - já teve mecenas:
Primeiro, foi uma rainha;
Depois, uma borboleta."
(Do livro Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
E os diademas, uma lenda,
Broches e brincos semeio
E cultivo para venda.
E embora meu parco renome,
Minha obra - um dia estival - já teve mecenas:
Primeiro, foi uma rainha;
Depois, uma borboleta."
(Do livro Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
Ali, ó
Falando o português claro, sem vieirismos nem maneirismos, morrer ia acabar sendo um puta lucro.
Moucos
Te disse ao ouvido, perto,
Fingiste não escutar.
Só gritarei no deserto,
Para não te perturbar.
Fingiste não escutar.
Só gritarei no deserto,
Para não te perturbar.
Planilha
Ela organizava sua agenda amorosa com esmero. Havia o fotógrafo, o indianista, o ex-marido, o diretor de revista, o curador de arte, o discípulo de Platão. Se um deles falhasse, numa segunda-feira de manhã, eu tinha chance.
Aquele
Amor verdadeiro é aquele que já morreu ou o que está por nascer. Amor realizado, consumado, é estatística.
Amor
Algumas vezes alguma
Bem leve e pouca esperança
Que logo afrouxa e se cansa.
Algumas vezes nenhuma.
Bem leve e pouca esperança
Que logo afrouxa e se cansa.
Algumas vezes nenhuma.
Queima de arquivo
Na noite mais espessa, queimarei tudo que me deste: os livros, as colagens, e até os e-mails que imprimi. Sei que as chamas escreverão teu nome. Eu o soprarei para as estrelas.
Áudio
Quando eu falar de amor, não olhe para o meu rosto. Não estrague assim um momento talvez especial.
Lições
Me agradaria que você não tivesse a sua idade, que você tivesse trinta anos menos, não conhecesse certas coisas da vida e, inacreditavelmente, me achasse o homem exato para corrompê-la. Seria prazeroso, eu imagino, irmos à sua casa, quando você estivesse premeditadamente sozinha. Eu me apresentaria como conhecedor e começaria a ver - presumivelmente no sofá, para não espantá-la - a partir de que ponto eu iniciaria sua deseducação sexual. Seria excitante se você, mentindo ou não, me dissesse ter todas as dúvidas sobre o assunto. E eu não me importaria, também, que você acabasse me ensinando alguma coisa que, depois, você aos meus olhos desconfiados lançasse à conta da intuição feminina.
Animalzinho
Gostaria de saber o que ela sente, de verdade, quando ele, como agora, dá cutiladas com a ponta da língua em seu umbigo, como se fosse um animalzinho rodeando uma toca, ansioso e ao mesmo tempo temeroso do que possa encontrar lá dentro. O que será que ela sente quando ele, já um pouco mais confiante, repousa a língua ali, e a deixa ficar, ofegante como uma corça?
Senha
O amor me chamou: psiu, venha,
Digite seu nome. Teclei
O dele, um pouco esperei,
E ele disse: bela senha.
Digite seu nome. Teclei
O dele, um pouco esperei,
E ele disse: bela senha.
"Forte e baixo", de Robert Louis Stevenson
"Forte e baixo, na chaminé
O vento suspira;
E então, como resposta
Brilha o fogo
E o quarto ilumina-se e escurece
Como se respirasse.
Junto à chaminé que soa
O jovem à parte
Muda de cor e
Com o coração em alvoroço
Escuta no centro da tempestade
A voz do amor e da morte.
Alto soa o amor como uma flauta
E as suas ternas notas
Parecem nascer nos prados de abril
Ou currais da encosta;
Mas o vento dos bosques na chaminé
Profere o lema da morte."
(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
O vento suspira;
E então, como resposta
Brilha o fogo
E o quarto ilumina-se e escurece
Como se respirasse.
Junto à chaminé que soa
O jovem à parte
Muda de cor e
Com o coração em alvoroço
Escuta no centro da tempestade
A voz do amor e da morte.
Alto soa o amor como uma flauta
E as suas ternas notas
Parecem nascer nos prados de abril
Ou currais da encosta;
Mas o vento dos bosques na chaminé
Profere o lema da morte."
(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
terça-feira, 2 de setembro de 2014
Cotação da noite
Dependendo do dia, certas palavras podem soar doces aos nossos ouvidos: morrer, por exemplo.
Menos
Quando há uma cama por perto, a palavra amor deve ser ouvida com cautela. Pode ser dita apenas para encurtar o caminho.
Som
Na voz de Pauline Magna Manteaux há um raspar de folha, um arranhar de lixa, uma guturalidade hipnótica que arrepia todas as cordas do meu violino.
Aos dois
Se perguntarem aos meus olhos qual foi sua visão mais bela, eles certamente citarão o nome de Phoebe Marianska Melieszka. Pode ser que mencionem também o céu, muito azul, o sol soberano. Mas não creio.
Botões
Se ele tivesse controle, se conseguisse, gostaria que tudo ficasse naquele instante em que, depois de ter a orelha lambida, ela suspira e começa a deslizar a mão para a braguilha. São cinco botões, que ele mantém escrupulosamente fechados. Depois que ela os abre, ele a leva para o quarto. Devagar, porque o melhor já aconteceu.
Isso?
Conseguiu, não sabe como, furtar uma estrela do céu. Trouxe-a para a amada. Ela a olhou com o enfado de quem preferiria um cedê do rei Roberto.
E se...?
Talvez exista a alma, mesmo,
E em vez de digna e altaneira
Apenas biscateie a esmo,
Como uma puta rampeira.
E em vez de digna e altaneira
Apenas biscateie a esmo,
Como uma puta rampeira.
Se ele
Se ele passar a mão no teu sal, lamber os dedos e fizer cara de desagrado, tu podes me chamar.
Um trecho de Inês Pedrosa
"Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só um princípio - nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida. Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a persistência."
(De Fazes-me falta, publicado pela Planeta.)
(De Fazes-me falta, publicado pela Planeta.)
Provedora
Priscylla Mariuszka Moskevitch tem olhos de menina malvada, daquelas que compram um periquito para o almoço do gato.
Peneira
Eu queria contar cada fio daqueles bem finos que ela tem. Alguns acham feio o nome. Eu, não. Acho bonito. Pentelhos. Queria contar um por um, me atrapalhar na conta, começar tudo de novo, dividir, multiplicar. Fazer uma peneira entre os dedos, deixar passar aquele trigo. Para não errar outra vez, queria ir separando de três em três, ou de cinco em cinco, e falando com eles, baixinho. Já viu como os caixas de banco fazem para contar o dinheiro? Eles molham de saliva o dedo. Contar fios de ouro é igual.
Sirva-se, por favor
Algumas mulheres pensam que os poetas vivem de brisa e lhes negam com obstinada teimosia o que oferecem na bandeja ao primeiro tocador de campainha.
Soneto do tempo irrecuperável
Eu tanto tempo perdi
Fazendo o papel de tolo,
Dizendo versos a ti,
Que não poderei repô-lo.
Não se calculam em vezes
Meus repetidos enganos.
Não foram dias, mas meses,
Não foram meses, mas anos.
Como eu poderei, me diz,
Se em cada jura que fiz,
Jurei com sinceridade,
Meu tempo recuperar,
Se em cada vez, ao jurar,
Jurei pela eternidade.
Fazendo o papel de tolo,
Dizendo versos a ti,
Que não poderei repô-lo.
Não se calculam em vezes
Meus repetidos enganos.
Não foram dias, mas meses,
Não foram meses, mas anos.
Como eu poderei, me diz,
Se em cada jura que fiz,
Jurei com sinceridade,
Meu tempo recuperar,
Se em cada vez, ao jurar,
Jurei pela eternidade.
"Uma capa", de W.B. Yeats
"Uma capa fiz do meu canto
De baixo a cima
Bordada
De antigas mitologias;
Mas tomaram-na os tolos
Para exibi-la ao mundo
Como se por eles fora lavrada.
Deixa, canto, que a tomem,
Pois maior feito existe
Em andar nu."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
De baixo a cima
Bordada
De antigas mitologias;
Mas tomaram-na os tolos
Para exibi-la ao mundo
Como se por eles fora lavrada.
Deixa, canto, que a tomem,
Pois maior feito existe
Em andar nu."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
segunda-feira, 1 de setembro de 2014
Autocrítica
Antigamente se morria aos vinte e poucos, de amor e de poesia. Hoje se morre aos setenta e tantos, de dispepsia.
Soneto da vida cor-de-rosa
Se for amor, há de ser
Um desses de folhetim,
Que possa nos entreter
Do começo até o fim.
Que a moça (Rosa ou Jasmim)
Venha um dia a conhecer
Um Ângelo ou Serafim
Que possa beleza ter
E, buscando sua alma gêmea
Num lindo corpo de fêmea,
Encontre em Jasmim ou Rosa
Essa alma em sonhos pedida
Que transforme sua vida
Numa vida cor-de-rosa.
Um desses de folhetim,
Que possa nos entreter
Do começo até o fim.
Que a moça (Rosa ou Jasmim)
Venha um dia a conhecer
Um Ângelo ou Serafim
Que possa beleza ter
E, buscando sua alma gêmea
Num lindo corpo de fêmea,
Encontre em Jasmim ou Rosa
Essa alma em sonhos pedida
Que transforme sua vida
Numa vida cor-de-rosa.
Balinha
Aquele rei Salomão lá não sei das quantas, que foi o maior sacana da terra, você acha que alguma vez ele tirou uma balinha de hortelã com a língua assim, de onde eu estou tirando de você? Mulher já tinha naquele tempo, a Bíblia diz, e acho que elas eram que nem as de hoje. Mas balinha de hortelã será que tinha? Quer de novo?
Heterônimos
Se a polícia quisesse acompanhar os passos de Fernando Pessoa, precisaria designar pelo menos cem homens para a tarefa.
Margot
Quando ela beija Margot, quando é beijada por Margot, quando ela arranha as costas de Margot e sente nos ombros as exigentes unhas de Margot, sabe que a vertigem, o amolecimento das pernas e a umidade na ruiva penugem entre as coxas, nada seria como é, se ela não pudesse dizer, como diz agora, prensando-a contra a parede, Margot, Margot, Margot. Se Margot se chamasse Clara, ou Lúcia, ela não estremeceria em pé, assim. Ela recolheria as unhas, como um gato de bons princípios, e não as enterraria em Margot, em Margot, em Margot.
O brinquedo
Gostaria de ter não só este brinquedinho. Seria justo oferecer-te mais. São dez os teus dedos, seria bom mantê-los todos entretidos, ter para cada um deles um passatempo.
Um poema de Emily Dickinson
"Morri pela beleza, mas estava apenas
No sepulcro acomodada
Quando alguém que pela verdade morrera
Foi posto na tumba ao lado.
Perguntou-me, baixinho, o que me matara:
"A Beleza", respondi.
"A mim, a Verdade - são ambas a mesma coisa,
Somos irmãos."
E assim, como parentes que certa noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu os nossos nomes."
(De Poemas escolhidos de Emily Dickinson, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
No sepulcro acomodada
Quando alguém que pela verdade morrera
Foi posto na tumba ao lado.
Perguntou-me, baixinho, o que me matara:
"A Beleza", respondi.
"A mim, a Verdade - são ambas a mesma coisa,
Somos irmãos."
E assim, como parentes que certa noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu os nossos nomes."
(De Poemas escolhidos de Emily Dickinson, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)
Prodígio
O amor faz coisas prodigiosas comigo. Me tira da cartola e me põe no colo de uma princesa que me chama de amorzinho.
Fidelidade
Falem mal do maravilhoso amor que nos mata, e espetaremos bonequinhos de vodu e amaldiçoaremos suas plantações com a praga de um bilhão e meio de gafanhotos.
Inocentes
Estamos morrendo
cada dia um pouco mais
mas não usamos
a linguagem dos ais
Ensinaram-nos a resignação
e vamos morrendo
tão sem queixas
e tão pródigos em sorrisos
que a morte hesita
Como levar embora
tão formidáveis meninos?
cada dia um pouco mais
mas não usamos
a linguagem dos ais
Ensinaram-nos a resignação
e vamos morrendo
tão sem queixas
e tão pródigos em sorrisos
que a morte hesita
Como levar embora
tão formidáveis meninos?
Soneto das sete pragas do Egito
Entre os malditos maldito,
Te assolarão as mazelas,
As sete pragas do Egito
E outras tantas, piores que elas.
Gozaste a bênção do amor,
O mais completo e divino,
E tiveste o despudor
De declará-lo mofino.
Tiveste o descaramento
De zombar de um sentimento
Mais nobre que as religiões
E terás a tua vida
Totalmente destruída
Por pestes e maldições.
Te assolarão as mazelas,
As sete pragas do Egito
E outras tantas, piores que elas.
Gozaste a bênção do amor,
O mais completo e divino,
E tiveste o despudor
De declará-lo mofino.
Tiveste o descaramento
De zombar de um sentimento
Mais nobre que as religiões
E terás a tua vida
Totalmente destruída
Por pestes e maldições.
"Nos Estados Unidos", de Robert Louis Stevenson
"Com o coração dividido vagueio por aqui
E sou como um irmão mais velho,
De outros tempos -
Embora jovem seja a minha idade.
Falais uma língua diferente da minha,
Embora ambos tenhamos nascido ingleses.
Eu vou em direção à noite dos tempos,
Vós subis pela manhã.
Vós cresceis magníficos e fortes e livres,
Mas a idade ainda deve decair;
Vosso será o amanhã - para mim,
A Inglaterra e o Passado."
(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
E sou como um irmão mais velho,
De outros tempos -
Embora jovem seja a minha idade.
Falais uma língua diferente da minha,
Embora ambos tenhamos nascido ingleses.
Eu vou em direção à noite dos tempos,
Vós subis pela manhã.
Vós cresceis magníficos e fortes e livres,
Mas a idade ainda deve decair;
Vosso será o amanhã - para mim,
A Inglaterra e o Passado."
(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)